RELIGIÃO MUSICAL

Ninguém contesta o poder social das religiões, e sua capacidade estupenda para canalizar forças transformadoras do mundo. Os religiosos tendem a ver nisso a própria evidência da ação divina, os materialistas a evidência dos poderes do sugestionamento, da tradição, da ilusão, da necessidade e fragilidade humanas e todas as outras formas de explicar psicológica e socialmente a quase onipresença da religiosidade.

Eu próprio, considerei por muito tempo a existência de uma "Intuição Mística" tão fundamental na mente humana que tornaria a religião fenômeno obrigatório e universal, independente de haver algo além da matéria. Na verdade, seria a principal responsável pelo próprio advento da humanidade. A Mística, o primeiro pilar da cultura humana, precederia então a Arte, a Filosofia e a Ciência.

Mas há algum tempo, tenho pensado num enfoque diferente.

Façamos um desafio aos religiosos, ou ao menos à maioria deles, principalmente aos cristãos: Experimentem retirar TOTALMENTE a Música de suas atividades!

Fazendo isso, será que a "presença de Deus" se fará sentir da mesma forma? Será que teremos os arrebatamentos emocionais tão típicos das congregações? Continuariam a igrejas lotadas e animadas?

E se a Arte, em especial a Música, não for o mero resultado da alegria típica dos rituais, ou uma mera retribuição estética ao divino?

E se a Arte for na verdade a causa da Religiosidade?

SAGRADO E PROFANO

Outrora costumava-se diferenciar a Arte Sacra da Arte Profana, a primeira voltada à contemplação do divino, ao sublime, elevação do espírito rumo a sentimentos mais altos. A segunda, voltada apenas à diversão e satisfação dos sentidos num nível mais simples. Dito de uma forma direta, Música Sacra é pra se ouvir, Música Profana para Dançar.

O que penso que deveríamos considerar seriamente, ao menos por algum tempo, é a possibilidade de que toda Religiosidade, no fundo, não passe de Arte Sacra. O tipo de experiência estética que nos desperta sentimentos tão singulares e deslumbrantes que ficamos tentados a acreditar estarmos tocando em algo transcendental.

E não somente na religiosidade, mas também nos sentimentos cívicos. O Nacionalismo, inclusive os extremos fascistas e nazistas, também é incrivelmente dependente da arte. Quer seja de estórias e mitos fundadores, com personagens magníficos capazes de feitos tão fascinantes que mesmo diante da poesia inegável não nos atrevemos a questionar-lhes a factualidade. Quer seja por meio de imagens e símbolos imponentes e dignificantes, como estátuas que veneram líderes ou mesmo arquitetura que dá ares olimpianos a monumentos. E, principalmente, quer seja por meio de hinos que veneramos tanto que não nos atrevemos a desrespeitar.

E de fato, Música é o melhor exemplo.

Todos gostam dela, muitas nós ouvimos e apreciamos num grau baixo ou moderado, mas outras nos encantam de tal forma que nos despertam sentimentos 'divinos', mesmo que sejamos ateus e materialistas. Se você conhece músicas que lhe comovem tanto que repudiaria qualquer tentativa de ridicularizá-las, como fazer versões funk por exemplo, então de certo deve ter experimentado, ao viajar nela, uma sensação muito próxima, talvez indistinguível, da experimentada em experiências supostamente místicas.

Juntando um grupo com a mesma preferência e celebrando uma música especialmente envolvente compartilhando um sentimento de elevação, pode-se dar um ótimo primeiro passo para a construção de uma nova religião, ou ao menos de um grupo bastante coeso.

Talvez, todos os símbolos, mitos, crenças e sistemas religiosos que desenvolvemos não passem de uma forma de protegermos as artes que consideramos belas demais para permitir sua profanação.

Queremos resguardar uma música e exigir respeito a ela, pelo tanto que nos fascina, então lhe damos tons de sobrenaturalidade e lhe integramos em um contexto místico, de onde podemos invocar respeito à religiosidade. Ao menos, a maioria das pessoas pensa muito mais antes de atacar nossas crenças religiosas do que nossas preferências puramente estéticas.

E se todo o fenômeno da religiosidade for um processo inconsciente desse tipo?

A MAIS BELA DAS MUSAS

MÚSICA é a mais sublime, e suprema, de todas as artes. Não apenas por ser mais antiga, estando presente em forma primitiva até mesmo entre os animais, mas também por ser a única quase que completamente abstrata. Ao contrário do que muitos pensam, a música não tem significado universal. Só achamos que uma certa melodia parece ser "egípcia", "árabe" ou "nordestina" por estarmos acostumados a ouví-la associada a tais culturas.

Ela pode, no entanto, evocar emoções mais fundamentais, como tensão, alegria ou esplendor, embora até nisso o reforço cultural termine sendo determinante.

Mesmo assim, existem algumas modalidades musicais que parecem inevitavelmente associadas a algum tipo de sentimento menos evidente, que parece nos levar a uma experiência mística. Em geral, uma sequência harmônica que pode dispensar ritmo ou mesmo melodia.

É verdade que toda música sempre é composta de melodia, harmonia e ritmo, mas é possível que somente um desses elementos esteja evidente. Em geral, quando só há ritmo, ou seja, uma marcação cadenciada, "batida", somos tentados a produzir movimento corpóreos regulares. Mas mesmo uma melodia pura possui um ritmo intrínseco, mesmo que não claramente marcado, e assim, é como se ao invés de movimentos corpóreos, fôssemos induzidos a movimentos mentais.

A melodia, que nada mais é que uma sequência de tons, nos "conduz" por um caminho estético, nota por nota, rumo, e dentro, de algum tipo de sentimento.

Por sua vez, uma harmonia é uma execução simultânea de tons, em geral na forma de acordes, constituídos de 3 ou mais notas que podem ser consonantes (só existem 24), ou dissonantes (existem milhares). Uma sequência harmônica é como uma melodia de acordes, mas como são ao menos 3 notas em cada etapa, é como se os "caminhos" melódicos simultâneos atingissem um equilíbrio, conduzindo a um tipo de "movimento" ainda mais abstrato.

Certas sequências harmônicas parecem induzir uma sensação 'misteriosa', palavra da mesma raiz de 'mística', confundida com mist, do inglês ('neblina', 'névoa'), embora aparentemente de outra etimologia. Uma modulação entre Dó Maior e Fá Menor, por exemplo, parece despertar uma sensação desse tipo. Ou um simples acorde dissonante com sexta menor, Lá Maior com Fá, por exemplo.

A MÚSICA É SUBLIME

Não aposto em reduzir a Religiosidade, muito menos a Mística, à Arte. Mas estou convencido da influência extrema da mesma sobre as religiões.

Desde os transes xamânicos ritmados por tambores e cânticos guturais até as peças sacras executadas em imensos órgãos de tubos em igrejas visualmente deslumbrantes, a arte está presente na religião. E a música se destaca por ser, em muitos casos, um componente obrigatório, enquanto as demais artes podem ser dispensadas, como em cultos ao ar livre, por exemplo.

Mesmo as recitações do Al Corão são incrivelmente melódicas, e há de se considerar se até mesmo mantras e o próprio ÔM (aum) não sejam também uma forma de música mística.

A música é tão forte, que não só inexiste alguém normal que não a aprecie em alguma forma, como é a única coisa capaz de disputar interesse em pé de igualdade com a pornografia na internet. Lembro-me quando foi, há muitos anos, noticiado que pela primeira vez a palavra 'sex' havia perdido o primeiro lugar nos rankings de sites de busca, para a palavra 'MP3'.

Ou seja, ela é capaz de superar até mesmo os mais fortes impulsos instintivos, apesar de inexistir uma verdadeira 'música erótica', diferente das demais formas de arte, que sempre tem sua aplicação em favor da libido.

A Música é Sublime. Quando muito, diria Freud, é Libido Sublimada.

De qualquer modo, o desafio permanece.

Podem até deixar as demais artes, mas experimentem retirar as músicas, e eu apostaria que as igrejas perderiam a maioria de seus fiéis.

Música é Magia.

Marcus Valerio XR

26 de Novembro de 2011


<O que é ARTE
ENSAIOS

A Situação Crítica
da CRÍTICA