O MOTIVO RACIONAL

O DESTRUIDOR DE MUNDOS

"Era uma vez um sábio chinês que um dia sonhou ser uma borboleta.
Seu sonho foi tão vivo e intenso, que quando acordou uma dúvida lhe perseguiu.
Era ele um sábio chinês que sonhou que era uma borboleta?
Ou ele era uma borboleta sonhando que era um sábio chinês?"

Lamento iniciar essa parte com uma afirmação que parece privilegiar um certo grupo, mas os fãs de Ficção Científica em geral tem mais facilidade de compreender o tipo de conceito que estou prestes a discorrer.

Aqueles que assistiram a filmes como The Matrix, Total Recall, City of Shadows, Truman’s Show ou 13o Floor, logo perceberão as relações destes com aquilo que irei descrever, os que conhecem o filósofo René Descartes ou Platão também. Aos demais não cabe preocupações, tentarei ser o mais claro possível.

Em várias ocasiões em minha vida tenho sonhos bem convincentes. Eu me vejo em outro lugar, outro mundo, sendo outra pessoa, e se penso em qualquer coisa a respeito daquela situação, por mais estranha que ela me pareça, imediatamente memórias completas e coerentes me vêm à lembrança. Posso recordar de um passado totalmente diverso da minha trajetória real, que se encaixa perfeitamente naquela realidade do sonho. Posso olhar para um objeto e lembrar imediatamente de toda a história dele fora dos limites "sensoriais" daquela ilusão. Ou seja, praticamente não há chance de me aperceber que estou sonhando. E quando acordo, fico impressionado.

Não sem razão por vezes me identifico com o sábio chinês da fábula acima. Nesse exato momento em que escrevo esse texto, eu poderia estar sonhando, de repente poderia acordar na cama e pensar como era real aquele sonho em que eu estava à frente de um computador digitando algo sobre sonhos.

Tive também, em ocasiões não raras, sonhos dentro de sonhos.

A questão é, como posso ter certeza de que nesse exato momento, não estou sonhando?

É comum quando tenho esse tipo de questionamento dentro de um sonho, que eu acorde de imediato, mas não é a regra. Há casos em que a ilusão persiste mesmo sob vários questionamentos. De qualquer forma, tenho a convicção de que esta vida que levo, esse dia a dia que me permite escrever esse texto, é minha vida mais real. E como?

Pelo fato de que essa realidade resiste ferozmente a qualquer tentativa de contestá-la, caso contrário talvez eu acordaria para uma vida melhor, ou pior. Mas ainda assim, não me atrevo a ter uma certeza absoluta, apenas relativa.

Hipoteticamente, se fosse possível que alguém quisesse apostar algo muito valioso comigo, afirmando que nesse momento eu estou sonhando, e se fosse possível a comprovação caso eu me enganasse, eu não apostaria.

Não obstante, levo uma vida bastante consciente de minha realidade pessoal. Sei qual é meu nome, onde moro, quem são meus familiares, onde estudo e trabalho. Tenho certezas de muitas coisas próximas, mas quanto mais essas coisas se afastam de mim, mais minhas certezas diminuem.

Tenho certeza de como são certas ruas de minha cidade, pois as vejo todos os dias, não me atreveria entretanto a garantir a alguém sobre o trajeto de certa localidade a qual não costumo ir com muita frequência. Muito menos a uma que só fui uma única vez. Que dizer de uma que jamais fui.

Portanto minha certeza a respeito das coisas em minha casa são muito mais fortes do que as sobre a casa de uma outra pessoa. Minha convicções sobre a economia de meu país são mais claras do que as sobre a economia do Canadá, mais ainda sobre as da economia do Adzerbaijão, e nem tenho idéia de como pode ser nas Ilhas Ballery.

Concluindo, quanto mais próximo de uma realidade, maior é minha certeza relativa sobre ela.

Vivo num mundo em que tenho, graças a fontes externas, uma idéia de como é. Sei sobre inúmeras cidades em centenas de países, que há 6 bilhões de pessoas e de diversos fatos ocorridos em um período de mais de 6.000 anos de história escrita.

Mas minha certeza a respeito disso é mínima. Beira o desprezível. Nunca fui à maioria dos países do mundo, jamais vi ao vivo a quase totalidade dos eventos que me chegam até mesmo pelas telecomunicações. Se houvesse um complô milenar para inventar que na China há uma muralha que têm extensão de quase 1/3 do diâmetro do planeta, e se esse complô fosse obedecido por todas as fontes de informação, provavelmente eu jamais saberia que não é verdade.

Vejo uma notícia no jornal e posso acreditar, principalmente se ela for confirmada por outros jornais e outras fontes, mas me preocupa saber que há bem pouco tempo atrás havia uma conspiração nacional para disseminar inverdades e distorções sobre os países comunistas, por praticamente todas as fontes de informação, mesmo porque qualquer uma que dissesse o contrário poderia ser eliminada.

Tenho também o testemunho de outras pessoas, minhas conhecidas, muitas das quais confio. Mas jamais esqueço que elas podem se enganar, exagerar ou mesmo mentir.

Que certeza absoluta eu poderia ter de que de fato existe uma guerra no Oriente Médio? Que na Índia há miséria? Que o Japão fabrica robôs de alta tecnologia? Não é impossível que seja tudo falso!

Se eu acreditasse cegamente em tudo o que vejo através de fontes "confiáveis", teria tomado como verdadeiras várias teorias científicas que já foram derrubadas, noções históricas distorcidas e já abandonadas. Dependendo da fase de minha vida e de minhas referências, teria que acreditar piamente que comunistas matavam velhos por não mais servirem a comunidade, que extraterrestres estavam travando combates com forças secretas norte americanas, ou que milagres foram realizados por santos canonizados pela Igreja Católica.

Pode parecer radicalismo, mas numa determinada fase de minha vida decidi que não mais acreditaria totalmente no que quer que fosse. Poderia compartilhar opiniões comuns, discutir consensos, até agir de acordo com uma série de "verdades" que me foram vendidas, mas jamais iria tomá-las no meu íntimo, como inquestionáveis.

Duvidava de tudo o que via nos telejornais, cheguei ao extremo inclusive, de quase inverter os fatos dos noticiários apenas como exercícios de dúvidas. Acreditava apenas no que queria.

Essa atitude evoluiu, percebi que até mesmo coisas próximas de minha vida poderiam não ser verdade, que talvez algumas pessoas com quem eu tratava podiam não ser o que pareciam, que talvez meus pais não fossem legítimos, e uma série de outras atitudes que só não chamaria de paranóia porque elas jamais foram externadas, ou seja, nunca as transformei numa conduta pessoal aplicável ao mundo externo, mas apenas a um questionamento interior.

Levei esse exercício ainda mais longe, poderia na verdade estar vivendo uma ilusão, talvez até ontem minha vida fosse diferente e alguém tivesse viajado no tempo e alterado o passado. Talvez estivéssemos dominados por extraterrestres que manipulavam nossas percepções o tempo todo. Talvez sempre que eu desse as costas a um local escuro, monstros abrissem seu olhos, ou duendes ficassem invisíveis ante qualquer aproximação, mas estivessem em toda parte.

Tais possibilidades começaram a me fascinar, pelo seu potencial de despertar um sentimento de deslumbramento com a vida. Tudo era possível. Nesse filmes que mencionei, ocorrem fatos semelhantes, mas mesmo quem nunca os tenha visto, pode ter tido pensamentos como esse principalmente na infância. Talvez houvesse monstros em baixo da cama que se escondessem ao menor movimento. Talvez quando saíssemos de nosso quarto, os brinquedos criassem vida, talvez nossos pais sejam seres de outro planeta disfarçados, que um dia nos contarão tudo e nos mostrarão um mundo de maravilhas.

Qual era afinal o objetivo dessa brincadeira? Demorei a perceber, mas na verdade era me libertar!

Eu queria estar fora do controle de qualquer um que quisesse me manipular, assim eu não aceitaria pessoas tentando me induzir a fazer o que elas queriam, políticos me convencendo a votar neles ou religiões tentando interferir até em minha liberdade de pensamento.

Não sei se Jesus existiu, não conheci Marx, não sei como era Hitler. Por que deveria aceitar ou contestar de imediato idéias que teriam sido lançadas por eles? Se sequer muitas pessoas que defendem tais idéias os conheceram.

Não se trata de um total fechamento ao mundo exterior, na verdade é um fechamento de meu mundo interior para coisas exteriores, para que não invadam minha alma, não contaminem meu pensamento, da forma como elites dominantes ou grupos revolucionários sempre desejaram.

Continuei acreditando em Jesus Cristo, admirando as idéias de Karl Marx e impressionado com a trajetória e habilidade de Hitler, mas isso jamais faria com que tomasse certas verdades e as aplicasse a minha vida como se tivesse certeza delas.

Se eu o fizesse, teria que ser livre para acreditar também em Maomé, a considerar Adam Smith, ou tomar partido contra ou a favor de Fidel Castro ou Saddan Hussein, por que não?

Sabia então que quanto maior a quantidade de informações que eu tivesse, maior a possibilidade de tomar conhecimentos mais confiáveis. Teria que pelo menos comparar fontes. Há muito mais possibilidade de veracidade num fato admitido até por facções contrárias, do que num fato afirmado apenas por uma, e negado por outra. Com relação a coisas imateriais, o melhor era sem dúvida percorrer todas as possíveis fontes místicas, religiosas e mitológicas que pudesse, e o que encontrasse em comum a todas tinha maior possibilidade de ser verdade. Mesmo assim, pode haver um complô!

Como poderia ter algum direcionamento na vida sem ter certeza de nada. Como poderia estruturar meu pensamento, minhas ações, minhas intenções, sem ter nenhuma certeza?! Como realidade, o mundo estava destruído.



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