da Democracia |
Este é o Segundo de uma série de ensaios que, embora sejam relativamente independentes, serão interligados, constituindo uma dissertação para minha disciplina de mestrado Tópicos Especiais de Ética e Filosofia Política. |
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Sobre a Fraternidade, vértice esquecido da tríade revolucionária francesa, falarei no próximo texto. Aqui tratarei dos vértices que tem estado em primeiro plano ao menos desde que centenas de pessoas literalmente perderam suas cabeças. A idéia de Liberdade, aparentemente inexistente no oriente, tem sido há séculos um forte ideal a ser alcançado, e ao mesmo tempo um forte valor no qual nos baseamos. A Igualdade, ainda que em menor grau, também. Mas parece haver uma tensão entre ambas, ao mesmo tempo que uma aliança. Essa paradoxal relação pode ser expressa pelo fato de que ambos os conceitos carregam sua dubiedade intrínseca. Por exemplo a frase "As pessoas são todas iguais" e "As pessoas são diferentes" podem estar ambas corretas, desde que sejam tomadas em sentidos distintos. Da mesma forma afirmar que "Somos todos livres" ou "Somos todos prisioneiros" pode ser cada qual adequada a um certo contexto, e nem sempre é claro exatamente à qual. Nessa mesma contradição aparente, os conceitos de Liberdade e Igualdade podem facilmente ser compatíveis ou não. Podemos pensar que somos iguais exatamente pelo fato de sermos livres, mas também que, ao ser livres, podemos querer ser desiguais. Pensar também que é nossa igualdade que nos impede de ser livres é válido, dependendo do ponto de vista, ou que é nossa liberdade que nos impede de ser iguais. Com toda essa flexibilidade de interpretação, não deveria ser surpresa que muitas vezes tenha surgido uma hostilidade entre idéias que parecem defender cada um desses princípios em detrimento, ao menos aparente, do outro. E é claro, falo da associação que o Liberalismo, pelo próprio nome, tem com a idéia de Liberdade, ao mesmo tempo que o Progressismo tem uma associação com a idéia de Igualdade. Refiro-me, evidentemente, aos rótulos políticos que foram adotados em nossa contemporaneidade. Os Progressistas, associados à Esquerda, em seu ensejo de transformar a sociedade, tem na obtenção da Igualdade um de seus maiores objetivos. Por outro lado, os Liberais, lutam pela manutenção da liberdade, e parece que são interesses inconciliáveis. Espero mostrar o porquê desta ilusão, e do motivo pelo qual tanta tinta, suor e sangue tem sido derramado em nome de ideais que podem muito bem estar não equivocados, mas mal direcionados. Apresento então, meu esquema conceitual:
A dicotomia Liberalismo X Progressismo, ou Direita X Esquerda, ou Conservadora X Reformadora, contempla parte deste esquema, mas não todo, e acaba caindo em erro. A "Esquerda" tem preocupação maior com a necessidade básica dos seres humanos, mas tem falhado na questão de suas necessidades mais sofisticadas, em sua realização. A "Direita" dá ênfase na liberdade individual desta realização, mas tem negligenciado a igualdade fundamental. Isso explica porque, nos casos de regimes que tendem mais à esquerda, ocorrem melhores condições de igualdade básica, no sistema de saúde e educação, e ao mesmo tempo piores condições de exercício da diferença, por meio da liberdade de associação política, comunicação e livre expressão de idéias, ou mesmo na capacidade de deslocamento. Também explica porque nos regimes que tendem mais à direita, ao mesmo tempo que existe essa possibilidade liberal de pensamento, ação e movimento, há menor igualdade de oportunidade, visto que crianças e jovens não estão, por herança, em condições equivalentes de realização, o que, afinal, termina por limitar a própria idéia de liberdade. Há que se considerar um mérito para a esquerda, doravante chamada somente de Progressismo, pelo simples fato de dar mais ênfase ao essencial, as condições fundamentais da existência. Mas também um demérito por terminar prejudicando a finalidade maior do ser humano, que é a realização de seu virtualmente infinito potencial. Mas voltando à simples dicotomia, espero que meu esquema conceitual esclareça um pouco a questão. Somos ao mesmo tempo iguais e diferentes, essencialmente iguais mas potencialmente diferentes. Da igualdade essencial creio ser necessário falar pouco. Por mais díspares que sejam os comportamentos, pensamentos e hábitos de duas pessoas, nada muda o fato de que ambas precisam respirar e se alimentar, que pensam por processos cognitivos equivalentes e que em última instância canalizam para um mesmo objetivo final o resultado de seus esforços, isto é, a necessidade de uma realização pessoal com vista a uma noção, ainda que oculta, de Bem. Ao mesmo tempo nossa liberdade sofre de dualidades similares. Primeiro, sequer somos capazes de nos livrar da velha questão do determinismo. Somos livres ou meras peças de um Xadrez Cósmico? Nossas escolhas recaem sobre um domínio intencional próprio e independente, o Livre Arbítrio, ou é apenas uma ilusão decorrente de determinações externas, quer sejam de um ente intencional ou da aleatoriedade do mundo subatômico? (Ver minha monografia DEUS ME LIVRE) Segundo, mesmo que assumamos sermos livres, uma opção à qual parecemos não ter escolha em adotar, ainda temos muita dificuldade em saber o quanto de fato exercemos de liberdade, visto que a influência do ambiente, especialmente o cultural, parece ter prioridade sobre a capacidade de discernimento e livre escolha da maioria dos seres humanos. Mais de 4/5 das pessoas permanece na religião em que foram criadas, e mesmo a maioria dos que mudam o fazem num mesmo âmbito do pano de fundo cultural, como mudar do catolicismo para o protestantismo. E em terceiro lugar, e o mais importante, é a questão de até que ponto o exercício de nossa liberdade afeta a liberdade alheia, e até que ponto é válido cercear, ou permitir, certas liberdades levando em conta o bem estar geral da sociedade. E por ter falado em protestantismo, cabe lembrar que a luta ocidental pela liberdade tem um marco histórico nos feitos de Lutero. Seu rompimento drástico para um outro padrão de crença representa uma conquista em termos de liberdade que foi precursora de todos os rompimentos similares posteriores. Da liberdade de crença, seguiu-se a liberdade de convicção filosófica e política, e a cada vez maior liberdade de ação. Os séculos XVIII e XIX foram marcados por movimentos históricos que tiveram na conquista de liberdades seu foco principal. Do Liberalismo Político seguiu-se o Liberalismo Econômico, e deste último surgiu o Capitalismo. E é sobre esse ponto que é útil fazer algumas considerações importantes que também podem ajudar a clarificar certas questões ainda nebulosas em nosso contexto atual. O termo Liberalismo parece ter sido sequestrado pelo Capitalismo, em especial devido a confusão deste com o Liberalismo Econômico. O termo Neoliberalismo, por exemplo, é completamente aplicado a um movimento de ideologia econômica, menos relacionado a questão das liberdades sociais e políticas do que muitos de seus defensores costumam professar. Com isso, tem havido notável confusão na oposição entre Progressismo e Liberalismo, visto que o primeiro, em geral, está muito mais em oposição à questão econômica, e não política. Por outro lado alguns liberais se beneficiam desta confusão acusando seus adversários ideológicos de serem opositores das liberdades em geral. Em parte isto é compreensível devido ao fato do Progressismo estar vinculado a idéia de um Estado mais atuante, que aplique programa sociais de reversão de desigualdade, e que promova políticas que, para obter êxito, podem ter algum impacto nas liberdades em geral. Talvez isso seja um fardo necessário para a implementação de um sistema que realmente promova a igualdade, de modo a revertermos, a longo prazo, uma situação que não só promove a desigualdade, como posteriormente afeta a própria liberdade ao não oferecer a todos os segmentos sociais as mesmas possibilidades. As lutas pela Igualdade são típicas do Século XX. As revoluções de esquerda são sinais do sucesso de uma ideologia cujo objetivo original é reduzir, se não abolir, as disparidades sociais. É possível então pensar que a conquista das liberdades tenha sido condição necessária para a luta pela igualdade, visto que sentido não faz que alguém não livre, o que consiste em ser desigual em relação a outros, possa lutar pela igualdade se não tem liberdade. Seguramente, a liberdade conquistou um grande espaço em nosso mundo contemporâneo, em relação ao mundo moderno e ainda mais ao medieval. A simples possibilidade de movimentação entre os grupos sociais, facilitada pela liberalização religiosa, política, e pelo enfraquecimento dos valores que estabeleciam o sistema de "castas" feudal, já contribuiu para promover também, em paralelo, algum tipo de igualdade. Se antes, só os de sangue azul podiam ser reis, depois é ao menos possível que o cidadão comum chegue à chefia máxima de um país, democrático, é claro. Porém, esgotadas as possibilidades de realização da Igualdade que a mera liberalização da sociedade pôde promover, veio a necessidade de promovê-la ainda mais por meios outros que o da mera elevação da Liberdade individual, visto que essa, em geral, está mais focada em abrir possibilidades ao indivíduo que já tem um potencial maior de realização. Outros indivíduos porém, sofrem de um menor potencial, e não por uma questão intrínseca, mas pelas péssimas condições em que nasceram, ou foram lançados, cresceram e chegaram ao estágio de vida onde as tradições culturais esperam absorvê-lo definitivamente na homogeneidade de pensamento. Indivíduos assim, de certo modo, são tão livres para acessar as maiores conquistas da civilização quanto o é o analfabeto à quem é liberada uma magnífica biblioteca. Os primeiros passos da promoção da Igualdade só podem ser, então, óbvios. Trata-se de oferecer ao máximo de pessoas possível, principalmente ao menos favorecidos, meios para que possam de fato utilizar os acessos. Mas, se é lugar comum afirmar que a Liberdade tem seu preço, também deveria sê-lo afirmar que a Igualdade não é de graça, com, possivelmente, um agravante. O preço da Liberdade normalmente recai principalmente sobre o próprio indivíduo que dela se beneficia, já o preço da Igualdade, pela sua própria natureza, não pode recair de forma tão pontual, mas sim disseminar-se rumo aos "iguais" que lhe sejam próximos. Os afro-descendentes que ficaram livres da escravidão tiveram que se adaptar à uma nova condição que impôs diversas dificuldades, e que em muitos casos foram solucionadas abrindo mão de parte dessa liberdade. Embora tenha havido um custo social envolvido que afetou principalmente setores mais privilegiados, no caso, a perda da mão de obra escrava, esse custo foi rapidamente compensado pelo fortalecimento de um sistema de produção remunerado que, se não tem direito sobre a vida do indivíduo, também não tem obrigação de sustentar suas necessidades primárias, mas sim, apenas de lhe oferecer um salário. Além de não ter o alto custo consciencial que a prática da escravidão cobrou às mentes mais sensíveis e lúcidas. Já disponibilizar um sistema educacional público que ofereça a todos ensino de qualidade, bem como um sistema de saúde, habitação e segurança pública que garantam suas necessidades fundamentais, tem um custo que fatalmente recairá sobre toda a sociedade, e cuja compensação demorará, por definição, gerações para se fazer sentir. Em parte, talvez, pela percepção intuitiva dessa relação, os movimentos ideológicos de esquerda têm poucas reservas quanto a onerar o estado e a sociedade pela promoção da Igualdade, mas o custo deste ideal não é apenas econômico, há também um custo sobre a própria liberdade em si, ou ao menos à sua percepção por alguns indivíduos. Uma liberdade igualitária é muito interessante para quem esteja nos estágios iniciais da realização pessoal, mas à medida que tais estágios venham sendo superados, o apelo começa a ser transferido da liberdade coletiva para a mera liberdade individual. Isso significa que o indivíduo que obteve grandes conquistas em sua realização, e em geral isto é entendido como o indivíduo que ascendeu econômica e socialmente, só pode usufruir de certos benefícios deste nível mais alto se puder contar com desigualdades institucionais presentes.
Se não houvesse alguém que, por necessidade econômica, estivesse disposto a vender um serviço de faxina, o indivíduo bem
sucedido sócio economicamente necessitaria ele próprio exercê-la, ou pagar um preço necessariamente maior. Se não houvesse
quem, por carência econômica, estivesse disposto a alugar sua força de trabalho como construtor civil, não haveria, ou
haveria pouca oferta para atender a carência estética e simbólica por uma moradia personalizada e sofisticada que os que
não sofrem de carência econômica costumam desenvolver. Se não houvesse mulheres que, por imperativos econômicos, não
estivessem dispostas a oferecer seus encantos anatômicos a homens que, na falta de encantos equivalentes mas na sobra de
encantos monetários, precisam satisfazer mais plenamente seus imperativos biológicos, então, eles teriam muito mais trabalho
interpessoal em campanhas românticas.
Fazendo essa abordagem, devo prevenir não realizar um mero ataque a segmentos privilegiados da sociedade. Apontar um problema social nunca será plenamente apropriado, ou mesmo honesto, se não incluir um apontar de si mesmo. Da mesma forma, tal autocrítica também nunca será sincera, ou mesmo producente, sem uma defesa de si mesmo, que nos salva de assumir uma postura auto destrutiva. E assim, tal defesa também não seria jamais adequada se não fosse irradiada para o objeto original da crítica social, ou seja, no caso, os segmentos sociais em si. Certamente, produzirei bem menos, quer seja em termos intelectuais ou técnicos, se não puder dispor de serviços que outros podem me oferecer liberando-me de tal fardo. Tais serviços são, ao menos no nosso contexto social, prestados por pessoas que normalmente não estão nas mesmas condições sócio econômicas que eu. Seguramente não serão meus colegas de mestrado que realizarão o necessário serviço de faxina em minha residência. Por outro lado, presto serviços técnicos para pessoas que, físicas ou jurídicas, predominantemente possuem mais recursos financeiros do que eu. Para tal funcionamento econômico social, a desigualdade é uma mola mestra. É muito discutível que seja possível eliminar certos níveis de desigualdade, e mesmo sequer desejável, uma vez que certas potencialidades humanas só parecem surgir em meio às possibilidades de movimentação de forças que os sistemas desiguais permitem. O próprio ócio parcial parece indispensável para a viabilização de certas capacidades criativas cujo retorno à sociedade pode ser lento, mas absolutamente fundamental. É dessa desigualdade que surge a produção cultural, as conquistas e avanços da mentalidade e os "super-humanos" num sentido não exatamente nietzschiano. Sem essa produção, a humanidade estaria estagnada a um estágio perpétuo equivalente à dos insetos sociais. Se é fora de questão que as oportunidades devem ser o mais igualitárias possíveis, se quisermos uma sociedade justa, e isso significa inevitavelmente um sistema amplo de ensino, saúde e segurança que a ninguém deixe descoberto, por outro lado, é certamente contraproducente tentar igualar os seres humanos em seus níveis mais avançados de realização, onde todo o significado existencial e as potencialidade criativas se concretizam. Isso certamente implicará em haver diferença de potenciais não apenas pessoais, intelectuais ou artísticas, mas mesmo de recursos, o que não necessariamente implicaria em injustiça. Alguém pode optar por levar uma vida mais austera e tranquila ao invés de correr atrás da riqueza, o que, normalmente, exige doses consideráveis de esforço pessoal, e algum talento. Optar por ser um intelectual a ser um grande comerciante pode resultar em desigualdade sócio financeira. Mas será difícil alegar qualquer injustiça se, em ambos os casos, houve oportunidade igualitária. No entanto, essa situação tenderá a gerar uma desigualdade subsequente, pois a pessoa mais abastada poderá oferecer a seus descendentes oportunidades educativas e instrucionais melhores, bem como atendimento médico, e então a desigualdade se transfere.
Aparentemente, a única forma de contornar isso seria um sistema único de educação e saúde, bem como algum controle estatal
sobre a herança, herança esta que invariavelmente substitui o valor do mérito pelo de uma nobreza sucessória. E, evidentemente,
sistemas de controle deste tipo seguramente constituem restrições à liberdade individual.
Com tudo isso, espero que fique esclarecido porque, apesar das sintonias, também costuma ocorrer desintonias entre os valores da Igualdade e da Liberdade. Achar o necessário equilíbrio entre ambos, parece vital para a manutenção do próprio sistema democrático. A democracia fundamentada radicalmente na igualdade, tende a implicar em restrições da liberdade individual, na forma de evitar o poder de poucos sobre muitos. O exemplo de proposta democrática de Rousseau, em O Contrato Social, inviabiliza a deliberação, isto é, a discussão sobre as ações a serem tomadas pelo poder soberano, pois isso tenderia a sobrepujar os discursos mais versados sobre os mais suscetíveis, resultando num controle do poder por parte dos artistas da oratória, ou pior, os detentores de meios de persuasão mais incisivos. Já as propostas marxistas, mesmo permitindo a deliberação, tendem a uma igualdade social obrigatória que terminará por nivelar as opiniões em torno de um mesmo eixo, no caso, da ideologia comunista dominante, o que também tem graves implicações para a livre produção de idéias de alternativas. Por outro lado, democracias fundamentadas na liberdade, em geral dando valor a deliberação, tendem a gerar tamanha dissensão de opiniões que as decisões costumam sempre recair na arbitrariedade das votações, ao invés de decisões conjuntas onde a melhor proposta se faz clara. Ou, seguem no caminho temido por Rousseau, colocando o poder nas mãos de elites, quer sejam intelectuais ou patronais, ou ainda pior, baseadas na força. Em parte, a promoção de um terceiro valor, o da Fraternidade, pode vir a socorrer esse delicado equilíbrio entre a Liberdade e a Igualdade, e será o tema do próximo texto.
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