Volta aos ENSAIOS
Este é o primeiro de uma série de ensaios que, embora sejam relativamente independentes, são interligados, constituindo uma dissertação para minha disciplina de mestrado Tópicos Especiais de Ética e Filosofia Política.
Liberdade
e Igualdade

Em Defesa da
DEMOCRACIA

Sobre o que vem a ser a Democracia, a única dúvida recai sobre o que é o DEMOS, cuja melhor significação não é exatamente o "povo", mas sim os "cidadãos". Mas de qualquer modo, como o povo é representado pelos cidadãos, o sentido "Governo do Povo" não chega a ser inadequado.

Afinal, não é todo o povo que vota. Crianças e adolescentes até os 16 anos não podem fazê-lo, a maioria dos presidiários também não, e tão pouco pessoas com problemas mentais. Apesar disso, todos eles fazem parte do povo, embora não sejam plenamente cidadãos. Assim, devemos entender povo como cidadãos, isto é, pessoas em pleno gozo de seus direitos civis.

A Democracia também costuma ser frequentemente definida como um governo do povo, pelo povo, e para o povo.

Em minha opinião a primeira característica é dispensável, visto que necessariamente, em toda e qualquer circunstância, todo o poder sempre emanou do povo, mesmo nos mais opressivos sistemas monárquicos e absolutistas. O que pode ocorrer é que esse poder seja usurpado do povo, caso este se submeta aos seus governantes por ignorância, medo, idolatria ou indiferença. Mas como é impossível que uma liderança minoritária seja fisicamente mais forte que a maioria liderada, então só podemos concluir que mesmo um governo anti-democrático exerce seu poder pela usurpação de um poder que fundamentalmente É proveniente do povo.

Já o exercício pelo povo é mais adequado, visto que nos sistemas não democráticos o governo é exercido por elites específicas, que ditam de cima para baixo as regras da sociedade. Enfim, para o povo diz que esse poder deve ser feito em benefício do povo, e não somente de determinados segmentos sociais, como ocorreu com frequência ao longo da história, e ainda ocorre.

Dito isto, lembremos que embora essa idéia tenha milhares de anos, só nos últimos séculos ela se tornou popular. Hoje, a maior parte do mundo reconhece a democracia como algo a ser conservado ou alcançado. Mesmo alguns ditadores gostam de se autoproclamar líderes democráticos. Essa hegemonia da concepção de democracia no século XXI contrasta com a hegemonia da opinião contrária em quase toda a história, onde democracia raramente era considerada uma boa idéia.

Mesmo hoje, podemos encontrar ainda notáveis discursos antidemocráticos, e invariavelmente seus argumentos remontam à Platão, cuja magnífica envergadura filosófica não o impediu de ficar conhecido como o maior opositor intelectual da democracia em todos os tempos.

O argumento platônico em si é simples. Afirma basicamente que é inevitável que a democracia degenere para um tipo de populismo que em última instância irá se transformar num tipo de tirania. Ou seja: O sistema seria vulnerável a uma corrupção natural, que faria com que indivíduos de grande capacidade demagógica e influência moralmente discutível, assumissem o controle do governo, abrindo caminho para toda sorte de degeneração. Assim, a democracia esconderia na realidade uma oligarquia, um governo de elites que dominam o discurso democrático, induzindo o povo a pensar como eles.

O outro lado da crítica platônica é que o verdadeiro governo deveria ser o de uma Aristocracia, que difere da Oligarquia porque, embora ambos sejam governos de minorias, a oligarquia seria de uma minoria interessada somente em si própria, ao passo que a Aristocracia seria o governo dos "melhores" no bom sentido, isto é, cidadãos altamente esclarecidos e bem intencionados, com o propósito firme de beneficiar toda a sociedade.

Mas não é preciso ler A República de Platão para entender de um modo claro, ainda que simplista, como o problema pode ser colocado. Basta prestar atenção à alguns dos diálogos de Guerra nas Estrelas - Episódio II. Num deles, a princesa Amidala, defensora da república democrática galáctica, diz a Anakin Skywalker: Populismo não é democracia. Dá ao povo o que ele quer, não o que ele precisa.

Mais adiante, novamente dialogando com o futuro Darth Vader, braço direito do Imperador Galáctico que aboliria a democracia, temos o seguinte desenvolvimento:

Anakin: Precisamos de um sistema onde os políticos se reúnam e discutam o problema, de acordo com os melhores interesses do povo, e então ajam.
Amidala: É exatamente o que fazemos. O problema é que as pessoas nem sempre concordam. Na realidade, raramente o fazem.
Anakin: Então deveriam ser persuadidas.
Amidala: Por quem? Quem as faria concordar?
Anakin: Não sei. Alguém sábio.
Amidala: Isso parece muito ditatorial para mim.
Anakin: Bem, se é o que funciona...

Quem foi capaz de distinguir esses diálogos em meio a pirotecnia Star Wars não tem como não ter percebido o problema. Se o povo não é capacitado para dizer o que ele próprio precisa, então quem é? E o pior, como ele saberá quem é?

Isso me faz lembrar o problema acerca do dilema da procedência divina: Como podemos saber que uma revelação vem de Deus?

Ora, se for pelo seu conteúdo, então somos nós que dizemos se a coisa é boa ou não, e então não precisamos de revelações divinas. Mas se não temos essa capacidade, se não podemos dizer o que é certo ou errado, então como saberemos se a revelação é mesmo de uma fonte divina boa, ou de uma fonte diabólica maligna?

É evidente que só há uma solução, tomarmos para nos mesmos a responsabilidade pela escolha, dispensando legislações divinas ou tiranos pretensamente sábios. Isso nos joga no árduo terreno de termos que arcar com os nossos próprios erros, mas na realidade, não temos outra escolha, então, é melhor admitir essa limitação.

Aplicando isso à crítica platônica, podemos distinguir basicamente dois aspectos.

O primeiro, mais respeitável, é o da delicadeza do sistema. A facilidade com que pode ser corrompido. Já comentei isso em meu último ensaio, e repito: "Um estado teocrático islâmico simplesmente irá restringir severamente a livre educação de crianças fora da religião islâmica, bem como um estado comunista totalitário fará basicamente o mesmo, cortando pela raiz a maior parte das ameaças contra sua ideologia. Já a democracia, por sua própria natureza, permite que se eduque, incentive, propague e fortaleça sistemas de pensamento anti-democráticos, que um dia, podem derrubar a própria democracia e implantar um sistema que corte pela raiz o mesmo privilégio que a geração revolucionária possuiu."

Portanto, é uma vulnerabilidade natural deste tipo de governo a que ele possa ser derrubado por dentro, e mais, isso pode mesmo acontecer de forma legítima! Porque não poderia de forma ilegítima? A solução para isso pode muito bem ser mais democracia, ou limitações auto impostas pelo sistema, do mesmo tipo daquelas que frequentemente nós impomos a nós mesmos, quando evitamos sacar dinheiro demais do caixa eletrônico com medo de gastarmos tudo, ou nos privamos de ir a uma festa com medo de comermos demais e sairmos da dieta.

Nossa constituição, por exemplo, está repleta de cláusulas pétreas, que não podem ser mudadas nem mesmo por plebiscito, que é a manifestação mais radical de soberania popular via democracia direta. Coisas similares ocorrem em outros países, com os recursos de limitação ao poder soberano do povo. Assim, podemos dificultar que o sistema fomente sua própria auto-destruição, mas não podemos impedir totalmente que ele se enfraqueça por outros meios.

Esse problema apontado pela crítica platônica, no entanto, me parece poder ser neutralizado pelo simples fato de que apesar de toda sorte de nomes de governos que possuímos, na realidade, até hoje só existiu de fato um único modelo de governo, que poderia ser chamado de Microcracia, que nada mais é do que o governo de muitos por poucos.

Jamais um único tirano governou sozinho. Ele conta com o apoio de uma elite. Jamais um povo se governou plenamente, mas sim por meio de seus líderes. Portanto, os governos humanos parecem fadados a ser sempre factualmente exercidos por uma minoria de pessoas. A questão é a qualidade desta minoria. Seria ela uma elite sócio-econômica interessada somente no próprio bem estar? Seria uma representatividade bem intencionada mas equivocada, ou seria de fato uma nata da humanidade com as melhores qualidades morais e plenamente apta para governar?

Foi Rousseau, no Contrato Social, que definiu duas formas de Aristocracia aplicáveis a grupos grandes, a Hereditária, que seria a pior forma possível de governo, e a eletiva, que seria a melhor. Somando isso ao fato de que uma democracia direta é impossível a contingentes populacionais muito grandes, qual seria então a diferença entre uma Aristocracia Eletiva e uma Democracia Representativa?

A diferença só poderia ser na qualidade desta elite. Mesmo que uma democracia se corrompa, ela não deixará de manter a forma de uma microcracia, e assim, toda a questão pode ser resumida em como exatamente manter os estatutos principais desta microcracia. Exceto se essa elite se fechar em uma identidade étnica ou social muito específica, o que seguramente não é o caso de nenhuma democracia a qual estamos acostumados, a única restrição é que essa elite tem que ter um mínimo de instrução.

As instituições democráticas podem ser protegidas por recursos de contenção como a divisão triparticionária de poderes, bem como a simples estrutura representativa discriminada, como o bicameralismo, ou a subdivisão partidária, que vem a criar um sistema de equilíbrio de interesses que, ainda que delicado, tem conseguido resistir relativamente bem no último século.

Enfim, há sempre que lembrar que assim como comumente temos que nos proteger contra nós mesmos, por medo de, pela tentação, cairmos no excesso, no desperdício, ou coisa pior, a democracia também precisa de formas de contenção da soberania popular, que vem sendo aperfeiçoadas ao longo da história, e que podem ser entendidas como uma espécie de mediação entre razão e a força, sobre a qual falaremos mais adiante.

O segundo aspecto da crítica platônica, menos respeitável, é também o mais utilizado hoje em dia, e tem haver com a qualidade oculta de uma certa aristocracia ideal. Se voltarmos ao pequeno diálogo citado acima, veremos que o apelo a um tipo de pessoa, ou instância "sábia" é muito sedutor, e veremos que mesmo uma defesa da democracia tem dificuldade em formular a viabilidade de um sistema onde o consenso escapa tão facilmente. Uma vantagem inequívoca dos sistemas autoritários é a capacidade de tomar resoluções mais rápidas e de longo prazo, o que facilita a execução de projetos.

O problema é então: QUEM SERÁ ESSA AUTORIDADE?

Já passamos da fase onde era possível acreditar em nobrezas descendentes de deuses ou em tiranos divinamente estabelecidos, portanto, a que tipo de liderança suprema estaríamos dispostos a nos submeter?

Platão evidentemente tem uma noção bem clara do que seria essa aristocracia de sábios. Seriam os filósofos de sua linha de pensamento, que crêem ter o conhecimento da verdade única, e poder implementá-la de cima para baixo sobre o mundo, refletindo um ideal divino. Qualquer semelhança com supostos santos iluminados por um suposto Espírito Santo é algo mais que mera coincidência.

Experiências com tal pretensão frequentemente foram bem desastrosas em nossa história, o que nos levaria a pensar se o erro estaria numa distorção do sistema, ou no sistema em si. Se for o último caso, assunto encerrado, essa aristocracia auto proclamada, e não eleita, como seria de se esperar num sistema democrático, seria então inadequada. Se for o primeiro caso então resta somente uma conclusão forçosa.

Qualquer crítica anti-democrática que não reivindique o poder para uma facção específica, é HIPÓCRITA!

Isso ocorre porque não faz sentido algum propor uma não-democracia apenas por ser uma não-democracia, o que faz sentido é propor uma não-democracia específica. Na realidade, todos irão preferir algum tipo de não-democracia específica do que a democracia em si, porém como tal não-democracia é inviável, ficamos com a democracia, que é melhor do que uma não-democracia que não nos interesse.

Deixando de forma mais simples, se for para fazer exatamente o que eu penso que deve ser feito, então eu irei preferir um sistema autoritário do que um democrático, mas se for para fazer o que eu penso que não deva ser feito, então sempre irei preferir uma democracia a um sistema autoritário.

Ninguém em sã consciência irá preferir ser governado por uma ditadura que faz o contrário do que ele considera bom, ao invés de uma democracia que, por mais falha que seja, não pode nos obrigar a fazer o que não queremos. Assim, a crítica pura e simples contra a democracia no fundo esconde o fato de que o crítico não prefere uma não-democracia qualquer, ele prefere o poder para si próprio, ou ao menos em seu benefício.

Enfim, quero a acrescentar algo sobre a relação entre razão e força, que desponta como um tipo de teoria do poder.

Podemos distinguir esses conceitos de 'Força' e 'Poder'. Força, necessariamente sempre vem do povo, todo o povo, pelo simples fato de que 100 pessoas sempre serão mais "fortes" do que 50, (se pensarmos na equivalência proporcional destes grupos, e não em comparar 50 adultos fortes e capazes com 100 crianças e adultos efermos).

Poder também provêm do povo, mas de uma forma menos direta, pois pressupõe o florescimento de capacidades de liderança e manipulação dos interesses do grupo. Assim, embora a força em si venha do povo, o poder sempre está nas mães de líderes que manipulam essa força.

Esse poder seria então fundamentalmente racional, do mesmo tipo que nos faz manipular a força dos animais a nosso favor. Embora jamais um homem possa ser mais forte que um touro, ele pode ser mais poderoso, por saber fazer uso não só da própria força, mas da força do próprio touro.

Assim, esse poder pressupõe a habilidade de governar a força, força esta que, sem governo, é apenas força desordenada, que pode eclodir em qualquer direção e ser mesmo auto destrutiva.

Voltando ao assunto tema, a democracia seria então um governo onde embora, como sempre, a força emane do povo, o poder também emane de povo, pois os representantes democraticamente eleitos provém de quaisquer segmentos sociais, diferente de um sistema aristocrático tradicional onde os nobres, que diferem claramente do povo, é que exercem o poder.

E enfim, o terceiro elemento é que o poder seja exercido em benefício de todo o povo, e não em proveito próprio ou de grupos específicos.

E é principalmente nesse sentido que ainda temos muito o que melhorar.

Volta aos ENSAIOS

Marcus Valerio XR
10 de Junho de 2008

Liberdade e Igualdade