Fraternidade
Este é o Quarto de uma série de ensaios que, embora sejam relativamente
independentes, estão interligados, constituindo uma dissertação para minha
disciplina de mestrado Tópicos Especiais de Ética e Filosofia Política.
A Razão
Universal

ABSOLUTISMO
O QUARTO ELEMENTO

Vimos que movimentos ideológicos dos últimos séculos podem ser mais ou menos classificados em grupos que se identificam com os três lemas da Revolução Francesa, sendo:

No grupo da Liberdade, o Liberalismo Religioso, Econômico, Político e Social. Em consequência, o Abolicionismo, as lutas por Independência, o Capitalismo e Neoliberalismo, o Ateísmo, etc, são resultado das possibilidades abertas pela liberação dos costumes, consciência e individualidade.
Sob a Igualdade, temos o Socialismo e o Comunismo, a Social-Democracia, o Estado do Bem-Estar Social, a Emancipação Feminina, as políticas Anti-Segregacionistas, e de Redução da Desigualdade em geral.
E pela Fraternidade, temos o Nacionalismo, o Etnocentrismo, o Fascismo, e os movimentos pela Fraternidade.

Em todos os casos tivemos resultados que podem ser vistos como positivos e negativos, e não é por acaso que aparecem numa ordem "decrescente" em quantidade de rótulos identificáveis, visto que receberam ênfase histórica sequencial.

Isso, no entanto, não esgota as possibilidades de pensamento, aliás, pouco as preenche. É preciso lembrar que tais conceitos apareceram num contexto revolucionário que entendia que tais valores não estavam presentes no sistema em vigor, e que por isso mesmo, tal sistema devia ser derrubado.

Creio que toda vez que visualizamos alguma "Trindade", há na realidade um Quarto Elemento Oculto que lhes dá sustentação (Já tomei conhecimento, por parte de um Filósofo Católico, que o Quarto Elemento da Trindade Divina poderia ser o próprio Diabo, visto ser a oposição lógica que dá sentido ao sistema.)

É evidente que os três valores da Revolução estão em oposição a um sistema que chamamos de Absolutismo, que se manifestava na época, e local, por um sistema monárquico, apoiado pelo clero, que não permitia Liberdade, uma vez que sacramentava uma ordem social rígida, não democrática, e altamente invasiva, o que por si só, também inviabilizava a Igualdade, e assim, destruía qualquer possibilidade de Fraternidade entre as classes isoladas pelo nascimento.

É preciso então adicionar esse quarto elemento opositor para que o significado histórico dos três lados do triângulo revolucionário faça sentido.

Numa visão poético-geométrica, é preciso solidificar o triângulo trazendo-o do mundo bidimensional para o mundo tridimensional, acrescentando um quarto vértice, e transformando-o num Tetraedro!

Essa noção tridimensional nos permite uma visão mais versátil dos possíveis movimentos conceituais que fluem de um ponto a outro, acrescentando uma mobilidade que a tríade revolucionária, por si só, não facilita detectar.

Quando Adam Smith publicou a Riqueza das Nações, seu principal objeto de crítica era o Mercantilismo, o monopólio que as metrópoles exerciam sobre suas colônias, o metalismo e protecionismo, e todas as demais formas comerciais exercidas pelo Absolutismo. Assim, o primeiro grande marco do Liberalismo Econômico reagia contra o que estamos considerando aqui um quarto elemento, e consequentemente as Revoluções Gloriosa, na Inglaterra, e Americana tinham como opositores o absolutismo.

Só muito depois ocorreria aos modernos contrapor Smith contra Marx, ou o Liberalismo contra qualquer forma de Igualitarismo. Pelo contrário, o Liberalismo Econômico de Smith era, também, um clamor pela possibilidade de Igualdade, no caso, de condições de exercer o comércio.

Saltando para o século XX, a Revolução Russa de 1917 tinha como opositor um regime absolutista, dos Czares, e não uma Burguesia como a inglesa, contra a qual foram edificados os movimentos comunistas mais próximos de Marx. Assim, mais uma vez a luta pelo viés Igualitarista não se opunha a forma alguma de Liberalismo, mas sim ao que chamamos de Quarto Elemento.

Enfim, a queda da Dinastia Qing, na china, perante os Republicanos Nacionalistas, pode ser vista como uma forma de contraposição de uma noção de Liberalismo e Fraternidade contra o absolutismo imperial, visto que a dinastia em questão privilegiava um segmento étnico em detrimento de outros, no caso o Manchu, visto por muitos chineses como estrangeiros, enquanto a República da China, que se instituiu em 1912, visava a atender anseios mais amplos, tanto de conservadores quanto de reformistas, promovendo independência relativa de províncias e uma monarquia parlamentarista. Só mais tarde, 1949, viria a subir ao poder a República Popular da China, com a vitória definitiva dos comunistas.

Tudo isso mostra que tentar entender os movimentos ideológicos somente através das linhagens do triângulo revolucionário é insuficiente. E assim, tentar entender por meio de uma simples oposição bipolar entre Esquerda e Direita, mesmo deixando claro ser isso uma composição Conservador/Liberal e Liberal/Progressista, o que nos leva a uma dicotomia Liberalismo e Igualitarismo, é mais insuficiente ainda.

Ao final do texto anterior, sugeri que pode haver uma aproximação entre tradições tidas como extremamente opostas, o Conservadorismo e Progressismo. Em que sentido? Pela Quarta Via, que nos leva, se não de volta ao absolutismo, ao menos a um resgate de algumas de suas características.

O exemplo mais evidente é o Japão, tese mais pormenorizada em minha monografia Xintoísmo e A Identidade Cultural do Japão. Em 1868 é promovida a Restauração Meiji, que poderia ser considerada como uma "retro-revolução", pois embora fosse uma mudança radical no estado de coisas, não era em direção a uma nova ordem, mas a uma antiga.

O Japão era governado pelo Xogunato, um regime militar perpétuo que perdurou por quase um milênio, onde a Casa Imperial era relevada a um poder simbólico de segunda ordem. Assim, com a restauração, elevou-se a identidade étnica mitológica do país centrada na figura de um imperador divino, evidentemente, absoluto.

Os "retro-progressistas" da época, então, levavam a nação de volta a um estado "pré-conservador", que perdurou até 1945, com a derrota na segunda guerra mundial.

Exemplos similares podem ser vistos no Nazismo e no Fascismo, embora de teor diferente, pois ergueu-se uma noção de um Estado "Absolutista" Contemporâneo, chamado de Totalitarismo, centrado num grande líder, de modo a restaurar muitos dos elementos típicos do outrora aparentemente extinto absolutismo europeu. Nesses estados, puderam ser verificadas diversas formas análogas às que foram combatidas pela Revolução Francesa.

Mais uma vez, tivemos "revolucionários", ou "progressistas" que viabilizaram uma radical mudança no estado de coisas em direção uma sistema que resgatou elementos que foram "conservados" durante mais de um século.

Esses três exemplos, como vimos, se deram pela via que identificamos como da Fraternidade, porém, mais uma vez, de uma semi-fraternidade, visto ser tão limitada quanto o era num contexto absolutista onde a ordem social desigual era sacramentada.

Uma Visão Tridimensional

Utilizei a imagem da transição de uma imagem 2D para uma em 3D. Urge utilizar uma esquema visual.

Embora o uso dos termos Igualdade, Liberdade e Fraternidade seja mais esclarecedor que Esquerda e Direita, ou Progressismo, Liberalismo e Conservadorismo, ainda não é suficiente para uma visão precisa das oposições ideológicas dos últimos séculos.

Muitas tríades ocultam um Quarto Elemento, que lhes dá um contraste conceitual lógico. Nesse caso, trata-se do estado de coisas contra o qual os lemas da Revolução Francesa foram levantados. Esse elemento oculto é o Absolutismo, com sua essência centralizadora de poder

Passamos então de uma visão meramente bidimensional, pois um triângulo é uma figura plana, para uma visão tridimensional, pois 4 elementos são o mínimo necessário para um raciocínio melhor aplicado ao "sólido", ao nosso mundo espacial real.



Agora, deixando de lado o tentador e fértil terreno das analogias, é preciso lembrar que da mesma forma como podemos notar pontos ditos como positivos e negativos na Liberdade, Igualdade e Fraternidade, deveríamos esperar o mesmo neste Quarto Elemento Oculto, e para facilitar essa noção, abandonarei o uso do termo Absolutismo, substituindo pelo menos incômodo Universalismo.

Justifico tal mudança, pelo ponto em comum que há entre os dois conceitos. Absoluto pressupõe algo completo em si próprio, perfeito, isento de erro e impureza. Ora tal conceito em si necessariamente seria imutável, e consequentemente universal, pois se manteria inalterado independente do contexto. O Universal em si, também é algo que tem aplicação em qualquer contexto.

Assim, espero depurar esse quarto elemento de sua pejoração histórica, que se resume a um poder político desmedido, ou uma ordem social esmagadora, e ficar somente com a idéia de uma noção transcendente, que estaria acima das imperfeições relativas, ou, ao menos, num grau mais elevado em relação a outros conceitos operacionais.

Essa idéia levará então a uma elevação do conceito de Fraternidade para sua exponenciação maior, que é uma Fraternidade Universal.

Considerando a necessidade humana por valores absolutos, é compreensível o efeito da "falta de solo" que a derrubada do sistema de coisas absolutista resultou. O Relativismo, embora fundamental para o aperfeiçoamento de novas visões de realidade, trouxe entre seus inúmeros benefícios o problema da dificuldade de se estabelecer um norteamento.

Outrora acreditava-se consensualmente numa natureza humana específica, que podia ser utilizada como forma de justificar o estado de coisas, visto integrar conceitos como desigualdades inerentes entre humanos e povos, e consequentemente hierarquias naturais, que por hábito, eram sacramentadas.

Os séculos XIX e XX viriam a por em cheque a noção de que exista algo de essencial ao ser humano que possa ser pressuposto como independente da influência externa, e com isso pode-se dar um golpe fatal nos vieses que estabeleciam que a sociedade deveria refletir uma "Cidade de Deus" agostiniana devido a imperativos naturais.

A derrubada de outras noções tidas como espontâneas, como a superioridade das etnias européias sobre as africanas, dos homens sobre as mulheres, ou dos nobres sobre os plebeus, foram conquistas que movimentos intelectuais de caráter sociológico, antropológico e existencialistas ajudaram a consolidar.

No entanto, deve ter havido excesso ao eliminar não só certas especificidades dessas pressuposições naturalistas, mas a própria idéia de natureza humana em si, visto que a partir daí, desprovido de um norteamento sobre sua essência intrínseca, abriu-se a idéia de que a humanidade poderia ser qualquer coisa que a engenharia social permitisse.

Em síntese, derrubou-se uma coleção de pressuposições específicas de natureza humana, e abriu-se caminho para outras, onde estados absolutistas contemporâneos podiam, mais uma vez, mover seus aparatos ideológicos para, por meio da educação massificante, censura e propaganda extensiva, lograr um novo molde para o ser humano, desta vez, porém, de uma forma amplamente deliberada e consciente.

De fato, se não há nada intrínseco ao ser humano, ele pode ser moldado de acordo com seu ambiente, então, não haveria motivos para não moldá-lo de modo intencional, visando um tipo de humano perfeitamente integrado a um modelo prévio de sociedade.

A grande diferença entre o velho Absolutismo e novo Totalitarismo seria que o antigo moldava o ser humano de modo inercial, pelo simples hábito pouco ou nada questionado, baseado numa pressuposição tradicional, e o novo molda de acordo com um planejamento prévio revolucionário, visando instituir um novo estado de coisas.

O sucesso relativo de ambos os sistemas pode ser explicado pela aparente necessidade, ou forte tendência a se acomodar, a vieses absolutos. Os humanos parecem ter grande apreço por segurança conceitual, ter normas sólidas e claras pelas quais possam se guiar.

Estados absolutistas modernos, no sentido mais próximo do clássico, podem ser vistos entre os obtidos por revoluções islâmicas. Nesse caso, mais uma vez, não temos uma engenharia social no sentido de um planejamento consciente de estado de coisas em vista a um modelamento da natureza humana, mas sim uma pressuposição de natureza, por meio de obra divina, que deve ser respeitada.

Nesse caso, podemos mais uma vez evocarmos o tema da Fraternidade como um rótulo capaz de identificar peculiaridades deste movimento. De certo que o Talibã ou a Revolução de Khomeini não tinha qualquer apreço pela Revolução Francesa, mas ainda assim seus movimentos podem ser entendidos como a emergência de uma nova identidade integrativa, por meio da religião, que unindo o povo em torno de um ideal, os identificasse como semelhantes sob um mesmo princípio absoluto, a submissão a Deus.

Nesse caso, o movimento vai de encontro à Liberdade, visto que derruba a base do liberalismo, que é o religioso, e também de encontro à Igualdade, visto derrubar a base mais primária de igualdade entre os humanos, a de gênero, ainda que em outros níveis possa promover alguma igualdade relativa, ao derrubar certas castas sociais. Nesse caso, como podemos ver, é possível haver choques em "igualdades distintas".

E, finalmente, embora reflita um ideal fraternal, unindo todos sob uma denominação religiosa, mais uma vez trata-se de uma fraternidade restrita, visto excluir automaticamente qualquer identidade não islâmica, e no caso até algumas islâmicas de tendência diferente.

A força desse movimento reside antes de tudo em atender uma necessidade, a de fornecer valores absolutos de forma clara. Valores Universais, livres das dificuldades intrínsecas do relativismo, que obriga os seres humanos a assumirem de forma radical o desafio de promover, por si próprios, sua visão e ação no mundo.

Enfim, para sistematizar melhor, voltemos a alguns pontos principais.

1 - As tendências ideológicas atuais costumam ser definidas por dicotomias como Esquerda e Direita, ou Progressismo e Conservadorismo, ou Conservadorismo ou Liberalismo. Em outros contextos, como Secularismo e Religiosidade, Coletivismo e Individualismo ou Neoliberalismo e Estruturalismo.

2 - Tais dicotomias, ou em alguns caos "tricotomias", não costumam ser suficientes para um entendimento claro dos ideais em jogo. O panorama atual tende a ser muito mais complexo do que esses simples rótulos.

3 - Rótulos muito mais eficientes podem ser invocados para agrupar as tendências em questão, e são os lemas da Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade, acrescentando-se um quarto elemento, que tem origem no Absolutismo, que pode também ser nomeado de Universalidade.

4 - Todos esses quatro grupos podem ter aspectos visto como positivos e negativos, e o desequilíbrio entre eles tende a gerar modelos de sociedade reconhecidamente problemáticos.

5 - Assim, uma estruturação ideal deveria refletir um equilíbrio não só entre Igualdade e Liberdade, por meio de um apelo a Fraternidade, mas também com o reforço de uma noção que tenha tendência ao absoluto, no caso, uma Fraternidade Universal.

E essa Fraternidade Universal é algo que só poderá ser obtido por meio de uma base consensual, um norte direcionador, que não deve proceder de revelações divinas nem de ideologias que preguem vieses específicos que privilegiam um ou outro dos lemas revolucionários.

Esse norte direcionador, essa base universal, a meu ver, só poderá ser obtida de forma satisfatória num sistema democrático, por meio da Razão Pública, que integrará elementos racionais compartilhados e suficientemente bem construídos para ter apelo racional universal. Tema do próximo, e último capítulo.

Marcus Valerio XR
29 de Julho de 2008
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