PORNOGRAFIA e "MACHISMO"*

Agosto de 2011

(*Uso aqui 'machismo' no sentido específico de androcentrismo.)


Até para exemplificar como a reflexão filosófica pode emergir no mais inusitado meio, devo contar parte de minha trajetória púbere que, como todo bom adolescente masculino ocidental no fim do Século XX, teve farta experiência com o "consumo" de material pornográfico.

Disso explicarei como, décadas depois, cheguei as minhas conclusões sobre o machismo explícito da pornografia de alto escalão, e algumas implicações feministas, simbólicas, éticas e estéticas.

Chamo sempre atenção ao fato de que a maioria dos filmes "adultos" que vi o foram quando ainda não era civilmente adulto, pois graças ao surgimento dos saudosos videocassetes caseiros, qualquer garoto minimamente esperto estava em condições de acessar um imenso acervo de vídeos pornográficos em locadoras.

Passei por 4 estágios.

PRIMEIRO, o fascínio pela pornografia videográfica "tradicional". Deixo de lado a impressa. Qualquer mínimo conhecedor do assunto sabe: os filmes pornô norte-americanos ao menos desde a década de 80 costumam seguir fórmulas incrivelmente padronizadas. Por exemplo, o fato de SEMPRE o ato sexual começar com a felação, e finalizar com a ejaculação masculina obrigatoriamente fora da genitália feminina, e com grande frequência no degradante expediente de "semear" o rosto da atriz.

Era essa a produção com a qual me deparei na primeira vez em que assisti um filme do tipo em meu VHS. Era essa a produção que, por anos, me acostumei, e que devo confessar, teve sua utilidade, ao não me deixar totalmente perdido em minhas primeiras experiências sexuais.

SEGUNDO, o progressivo aborrecimento com tal tipo de produção, sua enfadonha repetitividade, em especial as supra citadas abertura e finalização, das quais principalmente a primeira eu convencionei a passar o mais rápido possível pressionando o FF. Ao mesmo tempo, a progressiva preferência pelas cenas de lesbianismo presentes em praticamente toda produção do gênero.

TERCEIRO, a abolição definitiva da apreciação da pornografia convencional em favor dos filmes exclusivamente lésbicos. Direcionados ao público masculino! Principalmente, pensava eu, pela intolerância cada vez maior em ver homens nus.

QUARTO, a tendência a apreciar o tema das Mulheres Dominantes, quando passei a procurar filmes mistos que invertiam o tradicional modelo da iniciativa e controle masculino sobre as mulheres.

Muito posteriormente fui compreender essa trajetória e identificar que tipo de sentimentos estavam por trás de minhas preferências. Não posso ser hipócrita a ponto de dizer que superei a pornografia, mas até hoje, mais de 25 anos depois de ter visto o primeiro pornô, continuo completamente avesso à pornografia convencional, que continua ditando o tom do gênero.

Cheguei a percepção trágica que ao invés de uma celebração da liberação sexual, e sobretudo da beleza feminina, e gênero dominante não passa de uma perpétua e enfadonha idolatria do falo, não apenas pelo fato deste abrir e fechar a cena. (Nas palavras de alguns, em "gloriosas" ejaculações!) Mas também pelo fato da cena inteira girar em torno da excitação masculina, sem a qual, evidentemente, não poderia ocorrer, destacando o fato de que quando esta acaba, a cena se encerra, sendo aparentemente irrelevante que a atriz tenha se satisfeito ou não.

Pode-se objetar que isto não passa de uma retratação do real convencional, mas qualquer um que pense que não há meio de um homem se preocupar com a satisfação da companheira antes da sua própria, (que ao contrário da dela, costuma ser terminal para o ato sexual) então seria melhor nem continuar a ler esse texto por absoluta falta de condição de entender o assunto. E considerando que os orgasmos por vezes incessantes das atrizes são evidentemente simulados, só é possível levar a sério o prazer masculino, mesmo porque este é obrigatoriamente evidenciado pela ejaculação externa.

A mensagem final é que uma vez que sequer é possível saber se o prazer da atriz não se limitou a apenas vislumbrar o pagamento por seu trabalho, é que um filme pornô convencional é evidentemente uma celebração do prazer masculino por meio do uso das mulheres como objetos. Ou seja, o modelo conservador e moralista que tem se arrastado há milênios.

Ao contrário do que pensa Sandy, a grande maioria dos filmes pornôs vão sim direto ao assunto, ignorando praticamente qualquer contexto que permita ao menos simular uma fantasia mais complexa. Os tais filmes com estória só passam a surgir na indústria de vídeo em larga escala mais de uma década depois da consolidação do setor, e evidentemente almejando atingir o público constituído por mais de metade da espécie humana.

Com relação aos filmes lésbicos, há que se destacar que a maioria é feita para o público masculino, usando e abusando de acessórios para simular o pênis, que por vezes chegam a ponto de serem também idolatrados e felados como estes próprios fossem capazes de sentir prazer. Têm ao menos, curiosamente, evitado o tradicional estereótipo do mundo lésbico onde há papéis masculinos e femininos definidos, sendo o padrão que todas as mulheres sejam visual e comportamentalmente atraentes ao público alvo. Com isso eliminam, ou suavizam, o enfadonho modelo de que a relação sexual se dá em função e controle de uma só parte.

Muitos pensam que o fascínio masculino pelo Lesbianismo se dá em função de uma obviedade como a capacidade de se imaginar caindo no meio de uma vistosa relação entre mulheres atraentes, de preferência com várias participantes. De certo há esse componente, com a complexidade maior que mistura o sonho de um harém com o da hiperatividade sexual feminina. Mas esse pensamento, mais uma vez, esconde um notável preconceito de gênero, visto que a tal relação lésbica parece estar sendo vista como uma mera falta de homens.

Um tanto mais sutil é pensar que tal fascínio ocorra exatamente por uma rejeição ao modelo tradicional pornográfico falocêntrico, e ainda que os tais filmes lésbicos para homens ainda possuem componentes da mesma mentalidade, de certo estes se encontram em grau muitíssimo menor.

Bom também é notar que os homens se excitam facilmente apenas com a visão da beleza feminina, por que não se excitariam podendo ver várias beldades nas mais ousadas exibições? E o fato de que os filmes lésbicos direcionados para o público lésbico serem radicalmente distintos, e o fato de não existir filmes homossexuais masculinos direcionados ao público feminino, diz muito sobre a diferença na percepção sexual de homens e mulheres.

Por fim, concordo com as feministas que criticam a indústria pornográfica tradicional na medida em que esta objetiza o papel feminino. No pornô convencional, é sempre o homem que dirige a ação. Ele coloca a mulher na posição que quer, a hora que quer, ou ao menos é raro vermos as mulheres tomando uma iniciativa mais autônoma.

Há que se considerar que normalmente essa indústria tradicional ao menos não retrata violência, sempre mostrando mulheres dispostas e ao menos simulando prazer. Existem produções especializadas em mostrar estupros, torturas e até assassinato de mulheres, que a mim não só deveriam ser proibidas mas severamente punidas, mas elas correm por fora do pornô tradicional, além de que produções focadas na fantasia das mulheres dominadoras são bem mais comuns.

No entanto, a forma mais evidente de mostrar o típico "machismo" do pornô tradicional é no que certos de seus recorrentes elementos representam a nível simbólico.

Na já referida felação, pode-se notar uma representação da submissão feminina, onde o rosto, a parte mais expressiva e identificatória do corpo humano, é colocado em contado direto com o pênis e toda a sua carga simbólica subjugadora. Mais revelador ainda é perceber que se a felação é ABSOLUTAMENTE obrigatória na pornografia tradicional, por outro lado o cunnilingus não só é opcional, estando ausente em cerca de metade das cenas, como sempre é breve, e raramente leva a mulher ao orgasmo, ao passo que frequentemente as cenas são finalizadas com a ejaculação masculina no rosto ou na boca da mulher.

Uma evidência mais direta pode ser vista pesquisando sites especializados em vídeos e imagens pornográficas, não citarei links, onde a procura por resultados diretamente relacionados à felação, em geral em termos de baixo calão (repare a sutileza do termo blowJOB), retorna resultado MILHARES de vezes mais numerosos do que o cunnilingus, para os quais sequer há termo chulo popularizado. E isso porque grande parte destes cunnilingus são realizados entre mulheres, visto ser o lesbianismo comuns em pornô tradicionais, enquanto as felações jamais são realizadas entre homens, havendo para isso filmes exclusivos para o público homossexual masculino.

Deixo de lado questões intrigantes como a opção estética pelos atores pornôs sarados e garanhões numa produção que é inexoravelmente voltada a um público masculino que de certo pouco se identifica com eles. Por que gorduchos como Ron Jeremy ou o magrelinho com cara de nerd Tom Byron, em início de carreira, foram gradualmente substituídos por Bad Boys bombados até o ponto do pior estilo troglodita de Alexandre Frota? Por que a produção pornô norte americana não é, nesse sentido, como a japonesa, que coloca atores que retratam seu público alvo como eles realmente são e se identificam?

Embora haja outras explicações, isso também pode ser visto como um dos exemplos simbólicos de expressar a dominância masculina na pornografia tradicional, mostrando homens enormes e musculosos que por vezes "tomam" a cena, em especial de câmeras incompetentes, que acabam aborrecendo o consumidor mostrando uma anatomia cabeluda em primeiro plano ao invés daquilo que realmente os interessa.

E sobre isso, pensemos da seguinte forma. Todo homem ama ver a beleza feminina, e o que a pornografia ofereceria de diferencial é ver principalmente aquela beleza menos acessível, das partes mais íntimas. A beleza do rosto pode ser livremente contemplada em qualquer lugar, inclusive ao vivo. Não é estranho que um homem se delicie assistindo uma sequência interminável onde a única coisa que vê é exatamente o rosto da mulher e um maldito pênis?! O que ele está de fato apreciando ali além do símbolo de uma bela mulher se submetendo ao seu serviço?

Alguns freudianos diriam que a fixação pela felação reflete uma má superação da "fase oral" na infância, e que a simples atração excessiva por sugar um órgão à maneira que um bebê suga o bico de um seio, indica alguma carência afetiva resultante de uma criação incompleta.

Se assim for, a leitura final soa trágica, pois ainda que certamente inconsciente disso, a indústria pornô tradicional estabeleceu de um modo quase tirânico que as relações sexuais devem ser entre homens que teriam superado tal fase, visto que quando prestam qualquer forma de carícia oral à parceira, o fazem breve e burocraticamente, ao passo que as mulheres são vistas como eternas carentes, desperdiçando sua beleza em infindáveis felações.

Marcus Valerio XR
Agosto de 2011


Lesbianismo

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