A DEFESA DO "DEMÔNIO"

Em A Droga da Incoerência expressei minha crítica à apologia do Álcool, a droga "legal" que, sozinha, causa muito mais desgraça social do que todas as drogas ilícitas combinadas jamais causaram. E expliquei também que em árabe, língua dos "descobridores" do álcool, este pode ser informalmente traduzido como "O DEMÔNIO".
Em Droga de ELITE centrei a questão da necessidade constante de entorpecimento mental, que é a força motriz do consumo e CAUSA PRIMEIRA, necessária e suficiente, de todo o tráfico de entorpecentes e do consumo de álcool. Sem a qual, nem toda a oferta de drogas do mundo, gratuita, conseguiria jamais promover.
E em A Lei Sóbria X Adoradores do "Demônio" elogiei a Lei 11.705/08, vulgarmente chamada "Lei Seca", como uma das melhores coisas que já ocorreram em nossa história sobre esse assunto, bem como rebati argumentos que lhe fossem hostis.
Agora é hora de ir mais fundo nesta questão, e ver no que se baseiam os argumentos que, judicialmente, pretendem derrubá-la.

De todos os textos que conheço que criticam a Lei Seca juridicamente, definitivamente o mais objetivo, sintético e claro é Embriaguez ao volante; exames de alcoolemia e teste do bafômetro, da revista Âmbito Jurídico. Este artigo, que não é dos mais fáceis de ser lido embora de tamanho modesto, especifica detalhadamente todos os princípios jurídicos em que se baseiam as acusações de Inconstitucionalidade contra a Lei 11.705/08, em especial a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4103, que está sendo movida por ninguém menos que a Abrasel.
Este texto será, então, minha referência básica, pois nunca tive muito gosto para enfrentar adversários fracos.
Espero mostrar, no entanto, que por baixo de toda a pompa jurídica, por trás de todas as referências numéricas e de toda a erudição estampada não só neste, mas em diversos outros textos similares, se esconde nada menos do que uma dos maiores EMBUSTES CONCEITUAIS de todos os tempos, comparável às empregadas pelas campanhas contra a Pirataria Digital.

Qualquer um que se aventure sobre assunto já terá percebido que praticamente todo o argumento se baseia na proteção a um princípio constitucional:
"Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo."
Este irrepreensível princípio estaria previsto na Constituição Federal, em especial no Artigo 5. Essa informação está tão largamente disseminada, tão vastamente difundida, que até leigos totais no assunto não tem dúvidas de que o mesmo constitui um princípio constitucional legítimo, cláusula pétra da constituição, e que não poderia ser, sob hipótese alguma, ferido.
Aqueles, no entanto, que tiveram a curiosidade de examinar tal princípio diretamente, tiveram uma espantosa surpresa: O TAL PRINCÍPIO NÃO EXISTE!!! Ao menos, não diretamente.
Tal "princípio constitucional" que está tão popularizado, é uma mera interpretação dos seguintes parágrafos:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; Direito a Ampla Defesa

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; Princípio da Presunção de Inocência

LIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; Direito de Permanecer Calado

Portanto, o tal princípio de "ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo", por vezes também considerado "depor contra si mesmo", não é algo evidente, tendo que ser deduzido de outros princípios legais.
Mas a Constituição Federal de 1988 não é a única fonte do direito constitucional, e para reforçar a idéia, costuma-se também recorrer à Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que em seu Artigo 8o das Garantias Judiciais, Parágrafo II, Inciso g, declara que toda pessoa tem: "direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;...".
Daí, entende-se que ao realizar o teste do bafômetro, a pessoa estaria de algum modo depondo contra si, ou produzindo prova contra si. Quanto a depor, soa muitíssimo estranho, tanto que não é o termo mais utilizado, pois depoimento por definição pressupõe uma declaração oral, e a não ser que se considere o ato de abrir a boca e soprar como um tipo de depoimento, ou violação do Direito de Permanecer Calado, carece de sentido equivaler o teste do bafômetro com um tipo de depoimento contra si próprio.
Por isso, o que tem sido exaustivamente repetido é o "direito de não produzir prova contra si mesmo", apesar do mesmo não ser claro nem na Constituição Federal nem na Resolução Internacional. Ademais, já pesa em nossa legislação, há mais de 10 anos, o Código de Trânsito Brasileiro, sobre o qual devemos ver os seguintes artigos:

"Art. 165 - Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. (...) Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277."

"Art. 276 - A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor. Parágrafo único. O CONTRAN estipulará os índices equivalentes para os demais testes de alcoolemia."

"Art. 277 - Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. Parágrafo único. Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.".

O Bafômetro é um teste de alcoolemia, e caso o condutor se recuse a fazê-lo, pode ser enquadrado no Artigo 330 do Código Penal, que tipifica a desobediência. Como sabemos, a "Lei Seca" tornou o teste obrigatório, ou no caso de recusa, é aplicada a mesma sanção máxima que seria aplicada no caso do resultado positivo do teste. Além de ter reduzido a taxa de 0,6 decigramas para 0,2.
A questão da direção alcoolizada não é a única onde isso acontece, pois o Código Civil, no Artigo 232 declara que "A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame." Esse princípio costuma ser usado nas ações de reconhecimento de Paternidade, quando o acusado se recusa a realizar o teste. Assim, embora o suposto pai possa se recusar a fazer algo equivalente a "produzir prova contra si mesmo", isso não o exime da punição.
Apesar disso, têm havido apenas ações isoladas na questão do reconhecimento de paternidade, por defesas que apelando ao "direito de não produzir prova contra si mesmo", recusam-se a fazer o teste, e ao mesmo tempo utilizam o Princípio de Presunção de Inocência para impedir a atribuição automática de culpa. Ou seja, trata-se de realizar, por acrobacias jurídicas, aquilo que tem contribuído para que o Brasil seja visto como o País da Impunidade.
No caso da "Lei Seca", tem ocorrido o mesmo procedimento, levanta-se o insistente "princípio" de "não produzir prova contra si mesmo", para se esquivar da obrigatoriedade do teste da alcoolemia, quer seja bafômetro ou outros, e ao mesmo tempo apela-se à Presunção de Inocência, e para se proteger dos demais recursos legais pretende-se entrar com Habeas Corpus preventivos.
O objetivo óbvio é paralisar a lei, transformá-la em letra morta. Deixar o estado sem meio algum para realizar aquilo para o qual todos, a princípio, concordam que é sua obrigação, que é legislar, vigiar, prevenir e punir os infratores.
Mas antes de tudo, quero deixar claro o seguinte. No que se refere aos exames de paternidade, as ações são isoladas, e pode-se nunca ouvir falar delas. Durante 10 anos, no Brasil, o Código de Trânsito também vigorou de modo discreto. Mas agora, com pouco mais de um mês de "Lei Seca", temos um verdadeiro levante civil. Uma autêntica cruzada que, sob o pretexto de proteger as garantias individuais do cidadão, nada mais faz do defender com unhas e dentes o direito ao hábito irrestrito do consumo de álcool, que sob esse ponto de vista, não pode ser cerceado nem mesmo em nome da segurança pública, e da preservação da vida.
O que quero dizer é que bastou uma legislação realmente afetar o "direito" ao alcoolismo, e uma autêntica rebelião jurídica se armou. Rebelião esta que não veio em defesa dos réus sob processo de reconhecimento de paternidade, e nem de nenhuma outra das recorrentes violações dos direitos individuais, nem mesmo dos cerceamentos contra o tabagismo.
Isso é só uma amostra da força da apologia do álcool. Pressupõe-se um direito ao alcoolismo que pretende passar por cima do interesse público, estar acima da preservação da vida, acima da segurança no trânsito. O resultado é inevitavelmente comparável ao de um fanatismo religioso, daqueles que, como eu já disse antes, tem no Álcool o seu Ídolo, e na embriaguez a sua Musa.

Mas agora voltemos à questão jurídica. Ora, examinando qualquer texto sobre o tema, o núcleo central de todo o argumento é o mesmo: "Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo." Se este "princípio" for derrubado, todo o edifício conceitual desaba. E é exatamente isso que iremos fazer agora.
Já vimos que esse "princípio" não é óbvio em nossa constituição. Há uma clara diferença entre Direito de Ficar Calado, ou de não Depor Contra Si Mesmo, e o fato de se submeter a um exame de alcoolemia, que só poderia ser considerado um tipo de depoimento caso pretenda-se nublar distinções entre uma Confissão e uma Perícia, que são modalidades distintas de prova segundo o Artigo 212 do Código Civil.
Portanto, o exame de alcoolemia seria um tipo de prova pericial, ao qual não podem ser aplicados os princípios acima. Também não faz sentido evocarmos a questão da Ampla Defesa, visto que esta em momento algum é negada ao réu, que mesmo tendo seu alcoolismo demonstrado, poderá ainda contar com todos os recursos legais cabíveis.
A Presunção de Inocência pode parecer mais aplicável ao caso, mas somente se não repararmos que a mesma se aplica ao processo penal como um todo, e em especial à questão da condenação. Ou seja, é presumido inocente o réu somente no que se refere à sua culpabilidade no transitado em julgado, caso contrário, seriam impossíveis as prisões preventivas, a prisão em flagrante (pois mesmo na evidência do crime, ainda haverá o devido processo legal), bem como a prisão inafiançável e até mesmo a intimação judicial.
Ou seja, A Presunção de Inocência não pode ser usada para impedir os processos investigativos legítimos, o que é o caso do exame de alcoolemia, pois o suspeito, no caso, continuará sendo presumido inocente até que se prove o contrário.
Mas até agora, ainda não entramos no cerne da questão, que é a produção de prova.
Ora, PRODUZIR é claramente criar, dar origem, fazer vir à existência. Trata-se de passar do Não-Existente para o Existente.
Por outro lado, PROVA, nesse sentido, é demonstração, evidência, mostrar o existente. Ou seja, a PROVA simplesmente evidencia algo que é existente, e assim, não poderia, jamais evidenciar algo que não existe!
A PROVA de um crime nada mais é do que a evidência de ligação entre o fato e o agente, no caso de uma prova pericial, trata-se de uma ligação MATERIAL, portanto, a ÚNICA COISA que pode produzir de fato uma Prova Material de um crime, é o crime em si!
Assim, realizar um exame comparativo de DNA NÃO É PRODUZIR UMA PROVA, é simplesmente extrair algo que JÁ EXISTE.
Da mesma forma, realizar um teste de alcoolemia não pode ser JAMAIS "Produzir uma Prova", porque a Prova em si já existe materialmente, e o exame em si nada mais faz do que coletá-la. Analogamente, seria como afirmar que ao permitir que a polícia entre em uma residência com o devido mandato judicial, o morador estaria sendo obrigado a depor ou produzir prova contra si mesmo, caso seja achado algum item incriminatório. Ora, a ÚNICA coisa que alguém pode fazer no sentido de não produzir uma prova contra si mesmo, é não cometer crime algum!
Fora isso, a expressão "ninguém é obrigado a produzir prova contra a si mesmo" NÃO FAZ SENTIDO, é nada menos do que um ENGODO, pois no caso, o motorista já produziu essa prova no momento em que, alcoolizado, assumiu a direção de um veículo. Se essa prova vai ser extraída ou não é outra estória.

Mas seria pouco pararmos por aqui, pois é preciso uma boa explicação de porque tantos juristas, por mais mal intencionados que alguns possam ser, poderiam insistir numa afirmação tão paradoxal quanto essa, que simplesmente confunde conceitos primários como PRODUZIR ALGO e DETECTAR ALGO.
É simples. O que esse conceito na realidade aponta, de modo razoável, é uma restrição contra as "provas forjadas". Tivemos nas américas um histórico de ditaduras que foram notórias por suas violações ao direitos humanos, nas quais práticas como tortura, investigações ilegais, e obtenção de confissões sob ameaça foram, e ainda são, práticas comuns. São exatamente esses países que assinaram a CADH de 1969.
Portanto, o que o Legislador pretendeu ao estipular os princípios de Presunção de Inocência, do direito de Ficar Calado e de não Depor contra si mesmo, foi evitar que pessoas pudessem ser obrigadas a confissões forçadas, mediante tortura ou ameaça, ou que seu silêncio fosse tomado como evidência de culpa ao mesmo tempo que qualquer coisa que dissessem pudesse ser usadas contra elas.
Assim, esse "direito de não produzir prova contra si mesmo" só faz sentido quando o produzir em questão está sendo entendido no sentido de FORJAR, isto é, construir uma FALSA PROVA, o que, definitivamente, não é o caso das perícias técnicas em questão.

Com tudo isso, como sempre, ficamos na incerteza entre o que é mais explicativo de toda essa campanha contra a "Lei Seca". Se é a pura má-intenção, no sentido de distorcer a literalidade da lei para destruir-lhe a essência em benefício do vício alcóolico, ou se é mais a pura e simples incompetência intelectual, no caso não exatamente jurídica, mas principalmente semântica. Mais provável, também como sempre, é um coquetel dos dois.
Infelizmente é muitíssimo comum em diversos segmentos profissionais acharem que por supor dominar um vocabulário, não precisam prestar atenção ao significado das palavras, e como sempre afirmo, a ausência de uma formação filosófica mínima pode fazer estragos colossais como esse.
Mesmo que esse princípio de não produção de prova contra si mesmo existisse de forma clara e inequívoca em nossa constituição, e já vimos que não existe, ele não passaria de uma aberração conceitual, um grotesco erro na lei resultando nas mais diversas distorções. E se ele for aceito, nada mais será do que uma vitória da fraude intelectual a serviço do iteresse econômico escuso, e, sobretudo, do vício, em ambos os sentidos.
Mas isso tudo é simples de se entender quando pensamos sobre em prol do quê todo esse esforço está sendo feito. Tudo isso nada mais é do que uma das manifestações fanáticas da idolatria do demônio Al-Gwhal, tão irracional quanto o é o estado mental de quem está embriagado.
De tanto adorar o vício, e de transformar a dependência psíquica ao álcool numa virtude, não é de se admirar que grande parte da irracionalidade da embriaguez acabe transbordando para os estados mentais supostamente sóbrios dos seus adoradores, e por pressão memética, até para aqueles que nem sequer são tão dados a constantes porres.

Só isso explica a força assombrosa que esse flagelo civilizacional, o fascínio pelo álcool, consegue ter sobre nossa sociedade.

Marcus Valerio XR
2 de Setembro de 2008

Para críticas a esse texto ver
Mensagens 731, 732, 733, do advogado Reinaldo Gonello,
e Mensagem 734, do estudante de Direito Diego Barros Maia.

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