A Droga da Incoerência

Certa vez recebi um e-mail convidando para um ciclo de palestras sobre drogas e alcoolismo. Baseavam-se em filmes, a serem exibidos um a cada dia, e depois seguir-se-iam palestras e debates.

Havia então uma lista dos filmes temas, uma breve sinopse, e uma frase com o problema abordado. No primeiro, o problema era "Uso de Drogas", no segundo, uma descrição um pouco pior era sucedida do problema "Uso Abusivo de Álcool". Vinha então, na sinopse do terceiro filme, uma descrição basicamente idêntica, com a ênfase dada a "Uso de Drogas", e logo em seguida, mais um vez, o problema do quarto ou quinto filme era "Uso Abusivo de Álcool".

Droga! Alguém poderia dizer por que nunca se usa a expressão "Uso Abusivo de Drogas" ou simplesmente "Uso de Álcool"?!

Qualquer um com um mínimo de experiência de vida sobre o tema sabe que a maioria dos usuários de drogas não chega a ter grandes problemas, tal como a maioria dos usuários de álcool. Por que então o álcool só é considerado ruim quando consumido em excesso enquanto as drogas sempre são ruins mesmo se consumidas com moderação?

Vivemos num mundo onde temos inúmeras "Drogas ilícitas" e algumas "Drogas Lícitas", e somente as primeiras costumam ser chamadas pelo apropriadíssimo nome DROGAS. No entanto, o dano social combinado de todas as Drogas Ilícitas juntas não são uma fração do dano causado pelas Drogas Lícitas, em especial Álcool e Cigarro. Mesmo se considerarmos não apenas as overdoses e afins, mas também as mortes causadas pelas guerras das drogas, em virtude de sua proibição.

Os cigarros matam MILHÕES de pessoas por ano em todo o mundo. Muito mais do que qualquer guerra ou tragédia no último meio século. O Álcool mata muitíssimo mais, com o agravante que enquanto os cigarros em geral matam apenas o usuário, o consumo de Álcool costuma vitimar mais os inocentes do que os próprios usuários, haja visto o número estupendo de desastres causados por motoristas embriagados.

Não há uma só família que não possua um histórico de tragédia pessoal envolvendo consumo excessivo de álcool. Lares destruídos, violência urbana e violência doméstica costumam ser alimentadas e amplificadas pelo álcool. Quando se aplica a Lei Seca, principalmente nas áreas mais pobres, os índices de violência e criminalidade em geral simplesmente despencam. A correlação entre o consumo de bebidas alcoólicas e desvios de conduta está absolutamente fora do alcance de qualquer dúvida.

Mesmo assim, enquanto a sociedade reprime automaticamente qualquer consumo de drogas, e ultimamente e felizmente o tem feito também com o de cigarros, o Álcool não só é permitido. Ele é idolatrado, adorado! Faça qualquer crítica ao seu consumo num âmbito público, e diversas vozes se levantarão em sua defesa, desde o apelo de que uma "cervejinha no fim de tarde não faz mal nenhum", até a tese, não raro defendida mesmo por intelectuais, de que "o direito humano ao arrebatamento psíquico pelo álcool é inalienável", ou que "o uso do Álcool é um teste necessário ao caráter do Ser Humano".

Na minha condição masculina, apesar de detestar o sabor de todas as bebidas alcoólicas que experimentei, principalmente cerveja, fui simplesmente coagido a beber quando estava no limiar da maioridade. Não só por boas ou más companhias, mas pela própria família. Beber faz parte do rito de passagem da Adolescência para a Idade Adulta. O "Homem" que não bebe é covarde. "Deixe a coca-cola para as meninas". Bebendo, você sacramenta sua entrada no mundo "Adulto", afirma "sua liberdade", e "testa o seu caráter", pois segundo muitos, a pessoa embriagada revela "sua verdadeira natureza"! "A Verdade está no vinho", diz certo provérbio, e o álcool é presença obrigatória em todos os nossos ritos sociais, quando não é o próprio rito em si.

É difícil alguém dizer em público que vai "fumar um até ficar ligadão", "que vai cheirar todas" ou "vai se picar até desmaiar". Mas é aceitável, se não desejável e bonito dizer que vai "encher a cara", "tomar todas", "beber até cair"!

Sendo assim, então por que. Por quê?! Tão poucos percebem a ligação inevitável entre todo esse endosso social que o Álcool recebe, e sua capacidade devastadora de arruinar vidas, famílias e lesar a comunidade?

E mais, se é certo que há drogas potencialmente mais nocivas entre as ilícitas, como explicar que sejam ilícitas drogas que são inquestionavelmente menos perigosas, como Maconha e Haxixe?

Por quê essa diferença de tratamento entre Drogas Lícitas e Ilícitas?

Al-Kuhul

Antes que as dúvidas se intensifiquem, este texto não é nem de longe alguma apologia a liberação de drogas, pelo contrário, é um manifesto de repúdio a todo o qualquer tipo de droga não medicinal e mais forte que a cafeína. E a pior delas, em todos os sentidos, acaba sendo o Álcool.

O principal argumento contra a Maconha é que ela serve de passaporte para drogas mais pesadas. Nos meus vários anos de vida, sendo músico e tendo tocado em bandas de rock, apesar de jamais ter me permitido sequer experimentar qualquer droga, convivi com o consumo maciço delas à minha volta. Nunca vi um só caso de alguém que tenha feito a transição "Maconha para qualquer droga mais pesada" devido a um tipo de, "evolução da experiência de entorpecimento". E tenho certeza de que tais casos devem ser muito raros.

Ademais seria muito estranho. Uma droga ilícita comum e muito mais perigosa, inclusive do que o álcool, é a Cocaína. Mas esta, bem como a maioria das drogas pesadas, tem um efeito totalmente inverso ao que pretende o usuário de maconha. O maconheiro quer ficar num estado mais relaxado, calmo, um tanto sonolento, débil e melhor humorado. Não faz sentido que de repente comece a consumir uma droga que tem o efeito absolutamente contrário.

No entanto, se essa ameaça da maconha é discutível, é fora de dúvida a ligação do Álcool com diversas outras drogas ilegais e muito mais perigosas. O viciado em cocaína por exemplo, quando em recuperação, não pode consumir álcool sob hipótese alguma. Um puxa o outro obrigatoriamente, o Álcool sempre acompanha lança-perfumes, ecstasy, cocaína, heroína e a própria maconha, que por sua vez costuma estar intimamente relacionada ao consumo de cigarros.

Com possíveis raras exceções, todo consumidor de qualquer tipo de droga ilícita, também consome álcool. No entanto ninguém fala sobre a ameaça do álcool levar à drogas mais pesadas!

Tudo isso decorre do fato de que o Álcool é vigorosamente protegido pela nossa cultura. Por mais danos que cause, por mais sofrimento que traga, por mais pessoas que mate, nem em sonho alguém pensaria em mover uma campanha pela proibição de seu consumo.

E porquê? Porque os plantadores da cana, as usinas de destilação, os bares e etc, não são perseguidos pela polícia como criminosos? Por que o Álcool é legal? Dizer que ele não traga malefícios e não seja um problema social, seria um hipocrisia ultra hedionda, então por quê?

Por que se consumido em doses moderadas não trás problemas. Mas e então, idem para todas as drogas! Elas são mais perigosas? Algumas sim, outras não.

Al-Ghawl

Aqui está a droga de INCOERÊNCIA de nossa mentalidade. O mesmo argumento que se usa a favor do álcool não se usa a favor das drogas. O mesmos argumentos que se usam contra as drogas não se usam contra o Álcool.

Somente uma tremenda cegueira pode permitir alguém achar que nosso perpétuo combate às drogas ilegais possam um dia vir a ter qualquer sucesso real. As pessoas querem se drogar! É simples! Enquanto houver alguém que queira, livre e espontaneamente, usar drogas, necessariamente haverá alguém a fornecê-las, nem que seja ele mesmo. O Tráfico de Drogas é absolutamente impossível de ser erradicado. Elas são ademais uma das válvulas de escape de uma sociedade enferma.

Mas o que faz nosso combate às drogas ser inútil é a Incoerência, metade dos jovens usuários de drogas quando são pressionados pelos pais, reagem com a acusação de que os pais consomem álcool, o que sinto dizer, é um argumento irrebatível. E todos sabemos disso.

Nosso combate ao tráfico de drogas não faz o menor sentido enquanto houverem drogas lícitas causando danos imensamente maiores que as drogas ilícitas. Se todas as drogas ilícitas simplesmente sumissem num passe de mágica, os mesmo usuários simplesmente recorreriam ao álcool, que é muitíssimo mais difícil de tratar devido a ser onipresente em nossa sociedade.

No entanto a tendência atual é considerar o usuário de drogas cada vez mais como um mero doente, uma vítima, como se os traficantes alguma vez tivessem obrigado as pessoas a usarem seu produto, ou sequer feito divulgação, muito menos propagandas na mídia. Enquanto isso comerciais de álcool são exibidos livremente no horário nobre dos grandes canais de televisão.

Por ser uma instituição cultural, o álcool é plenamente aceito, apesar de seu histórico de autênticas destruições ao longo da história, onde civilizações indígenas foram simplesmente aniquiladas após tomarem contato com o próprio. A maioria das pessoas não se apercebe disso, chega a dar como presente garrafas de bebidas alcoólicas sem nem sequer procurar tomar conhecimento se o presenteado bebe, ou se não é um ex-acoólatra em recuperação. As incitações ao seu uso vão desde as ingênuas brincadeiras, até intimidações. Não tomar um drink na casa de alguém pode ser considerado uma desfeita, e segundo um filme de Woody Allen, declarar que não se bebe devido a uma proibição do médico é preferível a declarar que não se bebe por puro e simples bom senso.

Al-Ghawl = The Ghoul = O Fantasma

Mas nem em todo o lugar o combate à drogas é infrutífero, ou ao menos tem ótimas possibilidades de sucesso. Nos países muçulmanos as drogas possuem um nível de penetração muitíssimo menor que nos demais países. O motivo? Óbvio! Eles TAMBÉM NÃO CONSOMEM ÁLCOOL! Por isso não sofrem de nossa estúpida incoerência, e os fumos que usam, diluídos nas águas dos nargilés, são leves. Bem como foram os árabes também os descobridores do café, que em muitas ocasiões chegou a salvar contextos sociais ao substituir o álcool, não sem apresentar alguns problemas também, afinal também é uma droga, mas tão mais leve que não merece maior preocupação.

Curiosamente foram os árabes a batizar o Álcool com o nome que conhecemos, que deriva da palavra Al-Kuhul 'o 'antimônio". No entanto para eles a palavra atualmente é Al-Ghawl, em inglês The Ghoul, literalmente 'o 'espírito/fantasma"

O próprio Al Corão contra indica fortemente o uso de álcool, e sendo assim, os muçulmanos são abstêmios. Talvez isso seja devido a percepção que os árabes tem de seu próprio vocabulário. Eles foram os precursores do Álcool, e também os primeiros a abandoná-lo.

E de acordo com uma interpretação comum no islã, similar a interpretações comuns da bíblia, esse "espírito" no caso, AL-GHAWL pode ser traduzido como: O DEMÔNIO.

Marcus Valerio XR
Janeiro de 2005
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