COMPLEXO DE PARAÍSO PERDIDO
Este esboço pode ser considerado um pré-texto de uma teoria psicossocial que na verdade utilizo há muito tempo, mas que pretendo desenvolver num mestrado ou doutorado, e portanto ainda deverá ser largamente explorado e aprofundado.
Chamo de Complexo de Paraíso Perdido a difundidíssima idéia nostálgica de que "O Passado era Melhor", quando esta é tão forte que afeta a percepção da realidade se associando a problemas psicológicos.
Pode ser numa dimensão apenas pessoal, numa interpessoal mais ampla que pode se estender a toda uma nação, ou em sua amplitude máxima, envolvendo toda a humanidade, com a curiosidade de que a ocorrência no nível mais amplo frequentemente pressupõe a ocorrência em nível pessoal.
O mais comum é chegar ao nível global. Assim, geralmente se trata de uma tendência a crer na piora contínua do mundo no que se refere a certas questões de valor, mesmo diante de evidências contrárias. Por exemplo, alegar que a vida humana atual vale socialmente menos, que o mundo é mais violento, ou que o risco de vida é maior, quando na verdade índices proporcionais de assassinatos, a evolução dos sistemas legais, mentalidade, consensos morais e o próprio crescimento vegetativo mostram o contrário. É inegável a inferioridade das taxas de natalidade atuais e mesmo assim a população cresce, pois as taxas de mortalidade são ainda menores.
Não é Complexo de Paraíso Perdido quando há motivos objetivos para sustentar a percepção pessimista. Como por exemplo associar a impressão subjetiva ao aumento populacional, desmatamento, poluição, ou novas legislações que se considere equivocadas.
Esse Complexo é evidentemente uma das forças motrizes das religiões, retirando seu nome em referência ao Mito abraâmico do Jardim do Éden, o Paraíso Perdido por excelência, e que possui equivalentes mesmo em outras tradições mitológicas, e portanto tem alcance universal, podendo se manifestar independente do tempo e do local.
Vejamos esta declaração:
"...quanto mais eu observava e avançava nos anos, tanto mais parecia difícil que pudesse ocupar-me de política honestamente. Não se podia fazer nada sem amigos, sem companheiros dignos de confiança, e era difícil achar amigos destes tipo entre as pessoas daquele tempo, dado que a cidade não era mais governada com base nos costumes tradicionais, e era igualmente difícil criar novas usanças. Quanto às leis escritas e às regras, elas estavam se corrompendo com extraordinária rapidez, de tal maneira que apesar de desejar me ocupar da vida pública, vendo como tudo estava desgovernado, acabei ficando perdido, me senti desamparado;"
A Verdadeira Verdade
Esse relato, que poderia ser considerado atual, foi escrito por Platão, no século IV aEC, na Antiga Grécia, e a maioria das pessoas ficaria surpresa com a quantidade de depoimentos incrivelmente similares em todos os lugares do mundo ao longo de toda história. Escolhi este relato porque é deste contexto que retiro uma noção muito interessante.
Muitos gregos antigos, assim como muitos teósofos atuais, acreditavam no Mito das Idades de Metal, onde a história se processa da seguinte forma.
Idade de Ouro
Quando os humanos viviam em meio aos deuses, ou eram de certa forma ainda deuses. Nessa época os humanos são imortais, não sofrem doenças, não há fome, crime ou guerras, ou seja, não existe o Mal e não se conhece o sofrimento, ainda que já exista alguma distinção entre esses humanos e seres ainda superiores. Não há necessidade de governo ou este é nada menos que perfeitamente justo e eficiente, o que é equivalente.
Idade de Prata
Mas apesar de praticamente perfeito, por algum motivo há uma decadência, mais comumente vista como um afastamento dos deuses e assim introduz-se a mortalidade. Mas os humanos ainda são imunes as doenças e podem viver indefinidamente. Surgem disputas heróicas, ainda pautadas por grandes valores cavalheirescos, e os problemas ainda podem ser vistos como movimentos que quebram a monotonia e introduzem uma maior animação ao mundo. O governo ainda é incorruptível, mas sujeito a algumas dificuldades e limitações.
Idade de Bronze
Já aqui, a longevidade é limitada e as doenças começam a surgir. As disputas se acirram e o divino só é acessível por meio das religiões. Surgem os crimes e as guerras, porém num âmbito ainda limitado. A ordem ainda se impõe em um governo forte e de grande eficiência, mas que precisa combater o Mal com tanta frequência que começa a fraquejar.
Idade de Ferro
Por fim, chega-se à degeneração total. As guerras, os crimes, os vícios descontrolados, tudo explode levando a civilização ao um constante caos que os governantes mal conseguem conter. A vida humana agora é limitada, frágil e efêmera, ou para abreviarmos, a Idade de Ferro é nosso mundo real.
As 4 Estações
Agora podemos fazer uma leitura freudiana, relacionando a superação das fases da vida. Do fim da infância e a simbólica expulsão do “paraíso” até o oblívio da vida.
A infância seria como a Idade do Ouro, onde ao menos as crianças ditosas vivem diretamente protegidas por seus pais, os “deuses”, sem a necessidade de trabalhar, e onde a perspectiva de toda uma vida pela frente enche de esperanças as mentes sadias e promissoras. Até a noção de morte é difusa, distante, e a mente jovem e receptiva colore a realidade das mais diversas e fascinantes formas.
A adolescência seria a Idade de Prata, em parte ainda sob a proteção dos pais, isso, é claro, se levarmos em conta principalmente as camadas sociais mais abastadas e famílias mais estruturadas. Nessa fase, o futuro ainda está em aberto, embora em geral com direcionamentos e potencialidades em plena atualização. O adolescente ainda é psicologicamente imortal, inconsequente, e frequentemente se vê com muito maior brilho do que realmente tem. Muitas vezes acha que se tornará rico e famoso, que é talentoso e destinado ao sucesso.
A Idade do Bronze seria a vida adulta, onde o agir no mundo é posto à prova, com todos os revezes entre realizações e frustrações. Se por um lado a maior parte dos sonhos ingênuos são abandonados, ao menos as expectativas mais realistas permitem uma vida mais equilibrada. Ainda há futuro pela frente, a realização profissional e familiar é recompensadora,
a independência é gratificante, mas é já evidente que a grandiosidade do futuro do pretérito, quase sempre, não é mais cabível. Nem o sentimento de proteção dos "deuses".
Obviamente, a senilidade seria a Idade do Ferro, quando não mais há possibilidade de projetos futuros e o corpo está em evidente decadência.
Mas é importante lembrar que essa leitura descreve apenas um quadro geral. Muitas pessoas podem não ter vivenciado essas fases de tal forma. É perfeitamente possível que uma infância infeliz, submetida a maus tratos, seja sucedida por uma juventude ou maturidade recompensadoras, e até mesmo que o fim da vida seja de fato a "melhor idade".
Fica a possibilidade de averiguar se as pessoas que sofrem de Complexo de Paraíso Perdido tiveram uma trajetória existencial compatível com essa leitura teórica, o que na minha percepção é bastante defensável.
Enfim, essas idades também podem ser simbolicamente vistas numa analogia com as estações do ano, sendo a infância, evidentemente, a PRIMAVERA. O calor da juventude, os hormônios em alta e as fortes emoções são o VERÃO. A maturidade o OUTONO, nem tão quente nem tão frio, e por fim INVERNO do fim da vida.
O conceito de Complexo de Paraíso Perdido, embora ainda esteja sujeito a revisões e aperfeiçoamentos, já tem uma base teórica que foi utilizada em minha Dissertação de Mestrado, no conceito de
PESSIMISMO ESSENCIAL, e só hesito em considerá-lo como uma psicopatologia porque ao menos em parte, ele parece ser mais a regra que a exceção.
Até pela força psicossocial das religiões e do pessimismo em geral, o Complexo de Paraíso Perdido é muitíssimo disseminado. Apenas sua versão mais grave é mais incomum, estando associado à depressão e posturas antissociais.
Ademais, o próprio senso comum é contaminado por essa noção, sendo extremamente popular a idéia de que o mundo atual é mais violento e perigoso do que nunca, o que, sob qualquer abordagem histórica, antropológica ou estatística é completamente falso.
Por sorte, já está traduzida para o português a mais vasta obra de referência sobre esse assunto, abordando detalhadamente todos os aspectos desta largamente equivocada noção. Recomendo muitíssimo a obra
Os Bons Anjos de Nossa Natureza,
de Steven Pinker.
Embora este livro tenha sido uma contribuição importante para este tema, o Complexo de Paraíso Perdido vai muito mais além, ao propor uma teoria psicossocial não exatamente desta crença errônea, mas principalmente de como ele é sustentada mesmo quando confrontada com fortíssimas evidências que contradizem seus fundamentos, o que leva a um direcionamento mais passional que racional, mostrando a predominante tendência humana de subordinar sua racionalidade aos seus humores viscerais.
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