O FANTASMA DE 'CHE'
ou
Introdução ao tema
Da Indestrutibilidade das Idéias

Outubro de 2007

Após décadas de boca miúda, e de fingir que eram tão progressistas e centro esquerdistas quanto um tucano, eis que finalmente chegou a era em que os direitistas decidiram sair do armário. Uma vez que um governo de esquerda já está bem estabelecido no poder, e com a evidência indiscutível que nosso país ainda não se tornou um paraíso, finalmente se assumir como direitista já pode começar a não soar tão incômodo.

A nova cruzada ideológica da direita deveria ser vista como bem vinda, visto que nada há mais nocivo para um sistema de pensamento do que não enfrentar críticas, o que tem sido o caso da esquerda há quase uma década. Infelizmente seria querer demais que tais críticas fossem em geral bem construídas e direcionadas. Eis que os direitistas decidiram abrir fogo contra nada mais nada menos do que um fantasma!

Compreensível. Durante décadas de ditadura, a direita pôde destilar sua ideologia contra um pano de fundo sem qualquer contraste, sofrendo com a falta de uma contra crítica à altura, pois manifestações esquerdistas tendiam a ser recebidas no mínimo com censura, quando não com tortura e morte. Nesse caso, fica fácil dizer o que quiser e tripudiar ideologicamente sobre a opinião adversária, mas isso a longo prazo nem de longe é uma coisa realmente vantajosa, pois acaba acontecendo exatamente o que ocorreu, a falta de combatividade franca torna o discurso estúpido, arbitrário e sem conteúdo.

Não é a toa que quando o clima foi arrefecendo as opiniões direitistas acabaram sendo banidas para fora do âmbito público, pois não estavam acostumadas a combatividade honesta, tendo sido então pisoteadas pelos discursos de esquerda que, treinados nas artes da retórica e da poesia necessárias para garantir a pura e simples sobrevivência do autor, ganharam força incomparável.

O resultado foi uma hegemonia intelectual pública que por décadas só parece ter sido devidamente desafiada por Ovalo de Carvalho, que sempre foi claro em sua posição, diferente de outros recém descobertos "liberais" e "conservadores" que, na maior parte graças a ele, finalmente tomaram coragem de oferecer o outro punho, passando aos mais variados ataques que demoraram a começar a acertar devidamente seus alvos por uma inacreditável incompetência de objetividade.

Mas como exemplo de tal falta de clareza em o quê atacar, tivemos os recentes à figura de Che Guevara, sobre o qual já disse muito a respeito em um post de 22 de Novembro de 2007, e escrevi este texto mas havia decidido não publicado. Tardiamente mudei de idéia e decidi colocar meu ponto de vista sobre as 3 linhas de ataque básicas que veja utilizou para denegrir Che Guevara.

A PRIMEIRA foi tentar macular sua imagem de guerreiro destemido, acusando-o de ter se acovardado diante da morte. Acontece que só mesmo o leitor descuidado não perceberá que a revista apenas enfocou como covardia um mero ato de prudência. Ele não se desesperou, nem chorou e implorou, ele disse, na palavras de veja:

"Não disparem. Sou Che. Valho mais vivo do que morto."

É evidente que a batalha estava perdida, ele se rendia ou morria, mas valia a pena morrer no meio do mato, sem ninguém para testemunhar e contar o aconteceu? O que há de errado em tentar evitar a morte imediata até mesmo para uma possível reviravolta? Viver hoje, lutar amanhã?

Em sua grotesca distorção, os detratores Diogo Schelp e Duda Teixeira só estão invertendo o bom senso e tentando negativar o fato de ele não ter se lançado contra seus captores e suicidado estúpida e inutilmente, sem nem sequer uma platéia para assistir. E tudo isso pra quê?! Pra depois seus captores dizerem que ele chorou e esperneou?!

É a própria reportagem que se contradiz, ao final, quando conta que ao saber que não havia mais esperança e que seria executado, Che solenemente declarou:

"É melhor assim. Eu nunca deveria ter sido capturado vivo"

E o relato do homem que o capturou deixa claro que ele se portou exemplarmente. Como naquele tempo ainda existia decência suficiente na veja para evitar que as palavras do entrevistado tivessem sido totalmente distorcidas, os repórteres não tiveram outro remédio a não ser publicar uma entrevista que termina mostrado o contrário do que o primeiro parágrafo gostaria.

Além do mais, como disse Alon Feurwerker, quem está em posição de dizer o que um homem a beira da morte inevitável deve ou não dizer? Principalmente um almofadinha sentado numa poltrona que tem a sorte de nunca ter enfrentado uma situação vagamente similar!

A SEGUNDA via de enxovalhamento é tentar desconstruir o mito mostrando o quando ele foi ruim como ministro da economia, adminstrador ou diplomata. Seguramente é o mais patético. Che jamais foi lembrado como um economista ou burocrata, a imagem dele é a de um guerrilheiro, um homem de ação! A maioria das pessoas jamais sequer soube que ele tinha ocupado posições como essa.

Além do mais, para a imagem de um guerreiro romântico, ter sido um bom economista talvez depusesse mais contra do que a favor, e a própria reportagem coloca uma citação que só vem reforçar essa aura simbólica:

"Che era um utópico que acreditava que as coisas podiam ser feitas usando-se apenas a força de vontade"

E provavelmente era mesmo! É exatamente o que se espera de um herói romântico!

Tentar desacreditar Che com a acusação de que ele desempenhou papéis burocráticos e administrativos, é como tentar desacreditar um talentoso astro de Rock afirmando que ele era um mau empresário!

Por fim, o foco maior da reportagem, a TERCEIRA via de descrédito, foi simplesmente usar uma curiosa mistura de falácia do espantalho com projeção restritivas de conteúdos que são universais. Ao mesmo tempo que distorceram ao máximo seus atos, tentaram fazer com que fossem exclusivamente dele características que são inevitáveis em qualquer um que esteja numa situação parecida.

Numa guerra, principalmente numa guerrilha, não se trata bem quem acabou de tentar de matar, por vezes das formas mais covardes possíveis. Não se tem tempo para oferecer advogados de defesa que fiquem meses tentando salvar alguém que tentou te destruir em segundos, e certamente tentará de novo na primeira oportunidade.

Um outro importante fator que seguramente os autores da reportagem não teriam envergadura mental para detectar, é que o desnível de forças em um conflito, geralmente, é o que de fato determina o nível de violência envolvida. Se uma pessoa for muito maior e mais forte do que a outra, ela tem muito mais facilidade em detê-la sem machucá-la do que se for do mesmo tamanho e força, pois bastaria agarrá-la firmemente. Mas sendo de mesmo tamanho e força, não há como detê-la sem aplicar uma agressividade muito maior.

Por outro lado, a parte mais fraca, só terá alguma chance de sucesso se aplicar o máximo de violência possível em qualquer oportunidade que surja. Numa guerra é a mesma coisa. É por isso que entre duas forças desiguais, a mais fraca inevitavelmente irá apelar para toda sorte de golpes que podem ser considerados baixos, a começar pelo terrorismo, e evidentemente não tem como dispender aos seus prisioneiros quaisquer regalias.

Nessa mesma linha de raciocínio, da parte mais forte, que pode lançar mão de métodos mais eficientes porém menos invasivos, espera-se uma civilidade maior, e é por isso que embora saibamos que criminosos praticam toda sorte de atrocidades, não costumamos tolerar que a polícia ou o exército ajam da mesma forma, porque representam o estado, e o estado É mais forte! Ou, como sabemos por experiência, o forte, no caso o Estado, quanto mais enfraquecido estiver em relação ao crime, mais violento tende a se tornar.

Por isso, criticar a violência de uma parte visivelmente mais fraca numa guerra é um sofisma de pura ignorância e ou má fé.

De qualquer modo, o texto Diogo Schelp e Veja – Assassinos do Jornalismo Ético contesta item por item as acusações da Veja. Quem está certo? Não posso dizer, apesar de que Jon Lee Anderson, que segundo a própria Veja é autor da mais completa biografia de Che, e que foi citado na reportagem, certamente discorda da revista.

Curiosamente, mais uma vez, a própria reportagem tras informações que depõem contra sua pretensão:

"O Exército boliviano estava totalmente despreparado para enfrentar uma guerrilha. A maior parte dos soldados trabalhava na construção de estradas e provavelmente jamais dera um tiro de fuzil. Nos primeiros embates, os guerrilheiros aprisionavam os soldados, tiravam suas roupas e os soltavam. Foi então que o governo boliviano pediu ajuda aos Estados Unidos."

Curiosamente, o mesmo é afirmado pela antiga reportagem de Veja de 1997, além de diversos outros relatos de ações altruístas dos guerrilheiros. Ou Diogo Schelp e Duda Teixeira acham que deixar um soldado pelado é pior do que torturá-lo e matá-lo, ou fica claro que estão tentando tirar veneno de água para enxovalhar a imagem do sujeito.

Mas isso pouco importa. Para o mito de Che, a acusação de assassino sanguinário soa ridícula, como se em alguma situação de guerra, quanto mais guerrilha, fosse possível ser um guerreiro sem matar os inimigos! E com quanto maior eficiência você fizer isso, melhor guerreiro será considerado.

Curiosamente, as críticas tentaram fazer sensação exatamente com o fato de Che ser responsável por muitas mortes de inimigos, quer fossem soldados ou camponeses que estavam na facção adversária, como se a população nunca tivesse admirado figuras como Rei Arthur, Joana D'arc, El Cid, ou personagens como Rambo, Braddock, e mais recentemente o Capitão Nascimento!

Pessoalmente nunca levei Che muito a sério, eu jamais teria me ocorrido usar uma camisa com sua imagem, mas após ver essa ridícula tentativa de "desconstruir" o mito, acabei adquirindo uma só pra protestar!

É que este é um excelente exemplo para introduzir um tema muito mais sério. Existem muitos relatos glorificando Che como um grande homem, existem outros denegrindo-o. Algo que parece favorecer a primeira versão é que a revista Veja certamente teria usado os piores relatos possíveis se tivesse confiança em sua fidedignidade, como apesar de ferrenhamente anticomunista, e sempre ardilosa, a veja tem uma exigência mínima (mínima mesmo!) de qualidade e seriedade de fontes, e acabou se contentando com relatos que nunca parecem mostrar mais do que um Che puramente humano, sujeito a falhas, e que aparece de uma forma simpática até pelo ponto de vista do homem que o prendeu.

Não dá mais pra acusá-lo de comer criancinhas ou fazer sabão com os velhos, não é mesmo?

No entanto, isso pouco importa, pois para cada dado histórico glorificante, haverá um ultrajante, e não está em poder da grande maioria das pessoas checar a validade factual destas fontes.

O fato de todos os relatos negativos provirem de seus adversários ideológicos não contribui para pressupormos imparcialidade, quanto menos os relatos positivos virem de seus aliados. Assim, mesmo que alguém se lance pessoalmente numa pesquisa de campo sobre o assunto, enfrentará a loteria de confiar nos relatos pessoais dos que tiverem algum conhecimento de causa, sem jamais saber se estão falando a verdade, fantasiando, delirando, ou mentindo descaradamente.

Enfim, onde está a verdade afinal?

Se a mera busca sistemática da evidência histórica seguisse uma metodologia realmente científica, a tendência seria os historiadores chegarem a um consenso, mas é evidente que isso não acontece, porque diferente da natureza nua e crua, a histórica só fornece elementos a serem obrigatoriamente interpretados. Quando a interpretação não afeta nossas paixões, o consenso tende a surgir, e é por isso que a tendência é o consenso aumentar como o tempo, pois quanto mais distante ficar o passado, menos ele nos afeta emocionalmente.

POR TRÁS DO MITO

Uma grande sacada de Che Guevara é exatamente sua ambiguidade. Para cada relato positivo, há um negativo, e possivelmente eles até se neutralizem indefinidamente. Em termos históricos, parece um empate técnico inigualável. Numa coisa a veja acertou em cheio, se não tivesse morrido relativamente jovem, e por seus inimigos, não seria o símbolo que é hoje.

Ele certamente não teria se tornado um mártir e ícone da liberdade se não tivesse deixado para trás uma lista visível de atos que podem ser considerados heróicos, mas é inegável que esteve envolvido em toda a sorte de violência. Porém, acho que a balança final pesa a seu favor pelo simples fato de que é impossível a vida de um guerrilheiro sem a prática de atos violentos, inclusive o extermínio sumário de inimigos.

E é aí que está o erro de qualquer um que tentar desconstruir a imagem do sujeito. É totalmente inútil tentar macular a memória de um herói de ação pelos feitos desesperados, desesperantes e mesmo atrozes que ele cometer, pelo simples fato de que uma coisa que o povo entende é o axioma guerra é guerra!

Se não bastassem todos as difamações que comunistas sofrem serem escritas pelos seus inimigos diretos, algo que jamais irá convencer ninguém, ainda por cima todas são feitas num contexto de guerra. Todos sabem que os americanos praticaram toda a sorte de atrocidades em guerras, e ainda praticam, mas isso em nada afeta sua auto imagem.

Enfim, a imagem que o Che passa é de um sujeito intemerato, determinado, e capaz de assustar até os EUA. Se até o Bin Laden gozou de alguma admiração por isso, porque não o gozaria alguém que nem sequer tinha a família Bush na folha de pagamento?

Me faz lembrar do Olavo sempre acusando os esquerdistas revolucionários do tempo da DitaCuja de serem terroristas, serem cruéis e etc, como se em algum tempo espaço em alguma dimensão existencial tenha alguma vez existido um conflito onde uma parte imensamente mais fraca não tenha lançado mão de toda sorte de ação reprovável. Qualquer seriado americano sabe disso, e não tem dificuldade alguma de justificar os fins pelos meios.

Por outro lado, é muito mais difícil justificar as atrocidades cometidas pela ditadura, pois afinal ela era o Estado, e o estado, como entidade impessoal, tem que estar acima dos vícios humanos. Não pode ser cruel, nem apelar para golpes baixos. Olavo de Carvalho constantemente rebate as acusações de torturas da ditadura com a contra acusação de que os comunistas faziam muito pior. Parece até o Stallone Cobra!

Mas enfim, ninguém jamais se importou realmente com homens por trás de mitos. O que eram ou foram Sócrates, Cristo, Joana D'arc, Einstein ou Che, é cada vez mais obscurecido pelas areias da subjetividade e natural ocaso do tempo. Fatos históricos não passam de memórias, costurados por frágeis camadas de causalidade facilmente confundíveis, e são tão destrutíveis e vulneráveis quanto papéis.

Mitos, por outro lado, são estruturas meméticas imateriais, e por definição, indestrutíveis.

Ou se cria um outro mito memético para confrontá-lo, ou se destrói absolutamente todas as suas bases materiais de sustentação, sem exceção.

Imagine se um dia, no futuro, alguém num mundo onde jamais se tivesse ouvido falar em Che Guevara, achasse aquela sua famosa imagem simbólica, cujo jogo de luz e sombra são suficientes para desenterrar arquétipos na cabeça de qualquer um?

A simples pergunta "Quem foi esse cara?" reconstruiria o mito imediatamente, pois a pergunta seria fruto da imediata impressão estética causada na pessoa, sem a qual ela nem se daria ao trabalho de perguntar. Uma vez dado esse passo, é quase inevitável que se dêem os seguintes. Mesmo que só se depare com toneladas de informações negativas sobre o homem por trás da imagem, há de ficar a incômoda sensação de que há algo errado, caso contrário ninguém teria feito uma imagem daquela, da mesma forma como não há ícones e bustos de Charles Manson ou Jim Jones por aí.

A sensação conspiracionista tenderá a emergir espontaneamente, e a simples desconfiança de que tudo o que se escreveu para denegrir aquele personagem, na cabeça de um inquiridor esperançoso e imaginativo, ter sido obra se seus inimigos, é o suficiente para alçá-lo quase imediatamente à estatura de personagem no mínimo admirável.

O símbolo de Che é tão forte que há estabelecimentos comerciais que não tem a menor idéia do que ele seja, que entretanto usam sua imagem. Já vi um pictograma de banheiro masculino que, à distância, todos acharam ser a famosa imagem de Che Guevara, tamanha a força dessa imagem no imaginário coletivo.

Tentar desconstruir um mito assim, é, nas devidas proporções, tão improvável quanto desconstruir a imagem de um Cristo, mesmo que surjam evidências históricas de que ele praticou terríveis atos de violência, o que é de se desconfiar, visto que alguns escaparam até no Evangelho.

É tentar enfrentar uma imagem com palavras, que nesse caso, realmente valem mil vezes menos.

Da Indestrutibilidade das Idéias

Marcus Valerio XR
Outubro de 2007

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