De todas as artimanhas da hipocrisia, merece destaque especial aquela que simplesmente se proclama como moralmente superior sem sentir necessidade alguma de demonstrá-lo. Ao passo que a pessoa sensata espera que sejam seus atos que respaldem sua moralidade, demonstrando pragmaticamente uma conduta ética, o outro tipo apenas reinvindica para si esse título automaticamente fazendo de sua reinvindicação a evidência por si mesma, e plenamente suficiente. É certo que poucas pessoas o fazem diretamente, e os que porventura fizerem tem a vantagem de serem ao menos francos e explícitos, mas na maioria das vezes usa-se artifícios que simplesmente reinvindicam a qualidade moral máxima sob um rótulo comum, em geral a palavra 'Deus'. Assim, quem quer se autoproclamar detentor da qualidade moral máxima, conscientemente ou não, só precisa reinvindicar para si o nome de Deus, e por mágica, se transmuta instantaneamente em representante direto da santidade, dispensando qualquer necessidade de evidenciar pelos atos a sua superioridade moral, e neutralizando incondicionalmente qualquer mácula que condutas anti-éticas possam impingir. Ao intitular um movimento com a palavra Deus, como exemplo "Marcha com Deus pela Liberdade", é possível fazer duas leituras básicas: 1 - O requerente está explicitando sua credencial divina, diretamente investido da autoridade suprema do universo. Nesse caso, dependendo do viés religioso envolvido, é até possível dispensar qualquer valoração ética, visto que a divindade poderia ser até mesmo perversa, o que nada importa, ela é a autoridade absoluta e pronto! Não resta opção a não ser submeter-se. 2 - Mas o mais comum, e mais sutil, é declarar sua qualidade ética suprema, uma vez que, segundo nossa concepção mais comum, Deus seria o Bem Supremo, do qual emana tudo o que puder ser considerado bom, independente do que seja. Assim, uma manifestação mundana que reinvindique Deus para si, está nada menos do que proclamando o monopólio próprio da Ética e Justiça absolutas! Daí, segue-se que qualquer ato que tal manifestação venha a produzir estará automaticamente justificado pela própria divindade, não importa o conteúdo. Que seja bombardear uma cidade matando predominantemente civis, mulheres e crianças, ou torturando e matando subversivos, ou chacinando, pilhando e estuprando aldeias indefesas, não importa, a ação já está justificada como plenamente moral e divina antecipadamente, por reclamar para si a autoridade e qualidade divinas. Essa mesma autoproclamação também pode, e tem sido feita, em nome de outros termos, como Liberdade, Democracia, Igualdade, Revolução, Ideologia e etc. Pode-se então, seguir a mesma fórmula, e praticar toda a sorte de iniquidade em nome de um suposto bem maior que mesmo não estando no além, pode estar simplesmente no futuro. Em síntese, pode-se praticar todo tipo de crime em nome do bem, e da virtude. Aqueles que o fazem em nome de algo que não exatamente 'Deus' tem até a vantagem de serem mais modestos, pois costumam pensar em termos de um 'mal menor' em vista de um 'bem maior', normalmente futuro, e assim ao menos admitem em algum nível sua descompostura, ainda que justificável, bem como ao menos costumam admitir ser seu ideal algo humanamente tangível, ao menos no campo da possibilidade. Já aquele que age em nome do Império Cósmico Supremo não tem necessidade de admitir estar a praticar um mal necessário, pelo contrário, ele pode ter a certeza, absoluta, de que nada mais faz do que lutar contra um mal absoluto, em nome de um bem absoluto, e, é claro, por meio de um ideal suposta e assumidamente não-humano e, por definição, inalcançável. Notável paralelo pode ser detectado nas típicas polêmicas a respeito de ícones da mídia como Harry Potter, Hellboy, Motoqueiro Fantasma e similares. Personagens como esses são curiosos por inverter as tradicionais referências alegóricas. Bruxos, demônios, vampiros e etc, que não são malignos, pelo contrário, praticam atos de heroísmo e justiça, ainda que sempre enfrentando as tentações de fazer mau uso de seus poderes, como qualquer ser humano o faria. Mas para muitos autodenominados guardiões do bem supremo nada disso importa. As atitudes não importam, as obras não importam, o que importa é uma declaração arbitrária que proclama que tal coisa é má ou boa, e assim, pouco importa que personagens heróicos sejam capazes de atos de extrema bravura para ajudar pessoas em perigo, sem nenhuma recompensa em vista, pelo puro e simples impulso de fazer o bem. O monopolista da moral irá solenemente descartar tudo isso como sendo indigno de qualquer valor, pois afinal é ele que determina o que é bom ou mau, segundo seu sistema de pensamento. Em parte abordei esse estranho ponto de vista por meio do conceito que nomeei "Ética do Princípio", isto é, aquela que não tenta definir o Bem de um modo minimamente compreensível, mas sim impô-lo arbitrariamente, inicialmente em minha monografia Relica & Etigião, na página 16, também ao final do nervoso texto 50 Milhões de Cretinos, e mais profundamente na EstÉTICA DOURADA. Aqui, estou meramente mostrando como a aplicação deste conceito é a única capaz de elucidar a irracional atitude de quem se autonomeia baluarte inexpugnável da moral absoluta, atitude esta que, na maioria das vezes, tem origem não numa atitude premeditada, mas sim na pura ingenuidade. Cumpre reproduzir um trecho de uma entrevista com um pastor protestante. Esqueça a especificidade sobre Harry Potter, essa citação resume de forma geral tudo o que acabei de dizer.
Isso ajuda a explicar a "misteriosa" autoridade das nossas religiões tradicionais ocidentais, que tanto preocupam Richard Dawkins. Elas podem fazer algo que ninguém mais pode, que é criticar o que quer que seja, reinvindicando o direito de livre expressão religiosa. Um médico não pode dizer que homossexualismo é doença, um neo-nazista não pode justificar o extermínio de um povo, um fazendeiro não pode defender a escravidão e nem um machista pode afirmar abertamente que as mulheres são seres inferiores. Não sem correr risco de sofrer um processo judicial. Mas o religioso pode, com TOTAL LIBERDADE, dizer isso tudo, e ensiná-lo para suas crianças. Basta selecionar alguns versículos bíblicos e invocar sua liberdade de expressão religiosa. Como estão, por definição, investidos da autoridade moral divina, não precisam se justificar nem se auto questionar, e como estão amparados constitucionalmente, estão automaticamente imunizados de qualquer ação judicial. Ficam coibidos somente, é claro, de usar tais fundamentos para ações práticas diretas contra direitos civis garantidos por lei. Felizmente, a maioria dos religiosos é bem mais sensata do que isso, e não faz um uso tão descarado de suas peculiaridades morais e legais. Mas poderiam fazê-lo, alguns o fazem, ou ao menos pretendem fazer, caso contrário não faria sentido todo o estardalhaço a respeito do polêmico Projeto de Lei 5003/2001, mais conhecido como PL 122/06. Trata-se de uma lei que regulamenta as penas para o crime de discriminação contra a livre opção sexual. Trata-se de uma iniciativa que pretende, em parte, dar um severo limite a essa regalia do pensamento religioso. Não pretende afetar o livre pensamento e a pregação religiosa, como muitos detratores costumam dizer, pois quem for contra o homossexualismo poderá inclusive manifestar isso na forma de opinão pessoal. O que a lei criminaliza é que, baseado ou não em tal opinião, se promova uma ação direta discriminatória, incluindo um discurso público que, condenando abertamente a livre conduta sexual, pretenda promover algum resultado prático, como constrangimento ou mobilização com vista a atos discriminatórios. Os oponentes da medida, como não poderia deixar de ser, são todos religiosos, cristãos na quase totalidade. Eles baseiam-se nos conteúdos bíblicos que abertamente condenam a homossexualidade como uma "Abominação aos olhos do Senhor." Mas esses conservadores gostam de usar a má e velha tática da falácia do espantalho, temperada pela invariavelmente constante falácia do declive progressivo. Alegam que a lei vem instituir uma espécie de ditadura do homossexualismo, dando à prática a prerrogativa única de ser imune a críticas. Uma simples leitura no Projeto de Lei torna difícil ver isso com clareza. Para o leigo no assunto, fica a nítida impressão de um mau entendido, do tipo decorrente do simples fato de que os artigos não foram lidos com a devida atenção. Fica difícil entender porque os religiosos são tão severamente contrários ao projeto. Ledo engano. Creio que os principais opositores leram sim, com muita atenção, e sabem muito bem o resultado prático de tal lei. E o resultado será uma restrição a esse privilégio dos religosos em invocar liberdade de expressão e opção religiosa para se lançar para fora de sua esfera religiosa privada rumo às liberdades civis públicas. O que ofende o religioso, neste caso, é que trata-se de mais um passo rumo à secularização do estado, e da não aceitação da interferência direta de crenças religiosas dogmáticas na conduta civil. Nesse sentido, é apenas mais um previsível capítulo da boa e velha evolução de mentalidade histórica, que aos poucos foi eliminando os abusos que a religiosidade exacerbada, em geral esquecendo-se de sua mais sublime dimensão, pratica ao confundir crenças pessoais subjetivas com práticas objetivas. Para que isso fique claro, basta ir até o pomo da discórdia, que é:
Art. 8º-A. Impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos
ao público, em virtude das características previstas no artigo 1º;
(Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.)
Não fica a impressão de que o conservador religioso em questão está se queixando da perda de seu direito de proibir, impedir ou restringir? Não está dito que os homossexuais poderão se agarrar nas igrejas, mesmo porque isso também costuma ser restringido aos heterossexuais, o que não poderá é permitir que ao mesmo tempo que casais hetero se acariciem abertamente, os casais homo não o possam. Tanto em locais públicos quando locais de acesso público, que é o caso da maioria das igrejas. É verdade que pode ocorrer de uns ou outros engraçadinhos adentrarem igrejas só pra provocar, mas isso seguramente será tão raro quanto um ateu entrar na Igreja para pregar o ateísmo, ou um cristão entrar numa mesquita para pregar a bíblia, condutas que, a princípio são também possíveis, o que não significa que sejam feitas. Para mostrar o descabimento de tamanha preocupação com esse projeto de lei, basta fazermos o seguinte: Art. 8º-A. Impedir ou restringir a expressão e a manifestação de ________________ em locais públicos ou privados abertos ao público, em virtude das características previstas no artigo 1º; Agora é só substituir o sublinhado, que originalmente é afetividade por equivalentes como liberdade de crença, opinião política, apologia feminista ou discurso anti-escravidão. E também: Art. 8º-B. Proibir a livre expressão e manifestação de ___________ do cidadão __________, _________ ou __________, sendo estas expressões e manifestações permitidas ao demais cidadãos ou cidadãos. Substituindo as lacunas por algo como "rituais religiosos do cidadão islâmico, judáico ou hindu, ..." Ou talvez: "afetividade do cidadão hetero, macho pra caramba ou cabra-ômi, ..." Ou seja, nada há de errado na forma da lei, nem no conteúdo, que simplesmente dá maior especificidade e regulamentação a um grupo social que demorou um pouco mais para chamar a atenção. Mas o objetivo deste texto não é defender o PL 122/06, e sim criticar a postura de auto-proclamação de divindade de certas tradições e posturas religiosas. Esse é só um exemplo que pode ser melhor entendido sob tal ponto de vista. O que o conservador religioso em questão está defendendo não é, como gostam de dizer, sua liberdade de expressão, de crença, ou o absurdo de uma prática legalmente imune a críticas, o que nem seria uma novidade, já que o Holocausto judáico é legalmente imune a críticas. O que estão defendendo é seu direito a atacar, livremente, direitos civis secularmente garantidos, com base numa reivindicação de autoridade suprema. Há meio século, um dos maiores responsáveis pela derrota da Alemanha Nazista, e um dos maiores matemáticos da história, o britânico Alan Turing, foi preso e condenado pela legislação de seu país por prática de homossexualismo privado. Nem sequer foi por manifestação pública, mas particular e íntima. Não há dúvida de que tal restrição legal é influência direta da religião na esfera política do estado, a mesma influência que fazia a Inglaterra ter leis contra bruxaria até 1951, e a Irlanda até 1983! Voltando ao nosso Brasil, o que está em jogo, afinal, não é o simples fato de que muitos conservadores não querem abrir mão do direito de condenar, criticar e promover posturas contrárias à homossexualidade. Uma vez que ninguém jamais será obrigado a ser, apoiar ou admirar o homossexual, e uma vez que sequer se está pedindo que o homossexualismo não seja criticado, o que afinal esses opositores pretendem? Tenho alguma experiência no assunto, especialmente no caso da questão Evolucionismo X Criacionismo. Aprendi que muitos religiosos, em parte embriagados pelo saudosismo do poder secular do passado, se acham no direito de não só atacar livremente, como também no direito de achar que o atacado não tem direito a se defender! Mais da metade das mensagens de apologetas religiosos que recebo não faz outra coisa que não reclamar do fato de que eu reajo a ataques do fundamentalismo religioso. Uma lei como essa vai no máximo diminuir um pouco o desequilíbrio de proteção legal às opiniões religiosas, dando ao outro lado um pouco da mesma proteção. Se forem criminalizar os atos de constrangimento público que certas senhoras católicas gostam de promover em frente a cinemas que exibem filmes supostamente ofensivos, como o inócuo Dogma, (que comentei em meu texto sobre O Código da Vinci) não duvido que irão bradar pelo seu direito de expressão que na prática é o direito de agredir o direito de expressão alheio. Ocorre que, todo aquele que está absolutamente certo de que tem a verdade, de que tem acesso ao divino, e de que é um representante legítimo de Deus, não tem motivo algum para se refrear em suas atitudes, no entanto, são refreados pelas atitudes externas, e no caso, em especial pela legislação. Houve muita resistência religiosa ante todos os movimentos emancipatórios da história. Abolição da escravidão, secularização do estado, liberdade de crença, emancipação feminina e etc, todos sofreram sua conta de desaprovação dos religiosos. No entanto, após a tempestade vem a bonança, e a religiosidade aprendeu não só a conviver sem maiores problemas com essa realidade, como até mesmo a defendê-la. Essa resistência à PL 122/06 é, nesse sentido, previsível. Não que isso seja tão importante quanto os avanços supra citados. Na realidade, pessoalmente acho essa medida pouco significativa, uma vez que nada mais vem do que enfatizar conteúdos que já estão em exercício. Mas quem não tem Alemanha Nazista ou U.R.S.S. para combater, nem tem coragem de desafiar a China, vai brigar com Afeganistões e Iraques da vida, e esse projeto de lei apenas foi escolhido como um bom catalizador de contenda. E não sem alguma razão. Deve ser mesmo desagradável sofrer um impedimento por meio das leis humanas, quando se crê estar exercendo as leis de Deus. 24 de Abril de 2008
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