Junho de 2001 Certa vez, diante da justíssima pergunta de um colega de Lista de Discussão, que queria saber se seria válido interferir em culturas isoladas que praticam atos que consideramos bárbaros, decidi apresentar uma opinião pessoal que certamente gera controvérsia, mas que foi edificada após profundas reflexões pessoais sobre a dictomia entre Relativismo Cultural e a defesa dos Direitos Humanos em amplitude Inter Cultural. Predomina atualmente no ocidente um discurso Humanista Secular, o que significa uma política predominantemente filosófica, isenta de conteúdos dogmáticos e religiosos em geral, visando um bem estar comum, um maior partilhamento de possibilidades e um maior equilíbrio entre indivíduos, do qual a maior representante é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Gostaria de ser poupado de lembretes triviais sobre a disparidade entre e teoria e a prática. Mais informações sobre Humanismo Secular em: http://www.strbrasil.com.br/ Para ler a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o que penso dela: http://www.xr.pro.br/ensaios/DireitosHumanos.html A Declaração possui, como não poderia deixar de ser, seus pontos autoconflitantes, que só podem ser resolvidos particularmente e de acordo com a capacidade humana de entendimento. Um desses conflitos ocorre entre a garantia de direito a certas formas culturais, principalmente religião, e a garantia a direitos humanos pessoais mínimos, com enfoque especial ao direitos das crianças. Como o colega de rede havia colocado, algumas posturas praticadas por certas culturas ferem diretamente a Declaração Universal, mas por outro lado estariam resguardadas por sua liberdade de crença. E se um orgão internacional decidir por impedir certas violações dos Direitos Humanos, estaria nesse caso, interferindo na cultura que pratica tais violações. O tratamento dispensado as mulheres pelo Fundamentalismo Islâmico Taliban é sem dúvida o exemplo mais marcante, ao lado da prática da Clitoredoctomia (extirpação do clítoris), recorrente em algumas tribos africanas. (Obs: Este texto, surpreendentemente foi escrito 3 meses antes dos eventos de 11 de Setembro de 2001) Em ambos os casos a violação de direitos humanos é flagrante sobre qualquer ponto de vista que se considere humanitário, como a Declaração Univeral, que insisto, é em minha opinião O MAIS BELO, NOBRE E MAGNÍFICO DOCUMENTO ÉTICO JÁ PRODUZIDO PELA MENTE HUMANA. Porém ambas essas práticas estão resguardadas pelo seu ambiente cultural. Elas não são violações de suas próprias leis civis, pelo contrário, são sua manifestação. Nesse caso, como exigir o cumprimento da Declaração sem ferir-lhe o Artigo 18? Que é o que garante a liberdade de pensamento religioso. Se qualquer pessoa dentro dessas comunidades declarar claramente sua intenção de não ser submetida a certos tratamentos de sua cultura que resultem em clara violação de direitos humanos perante qualquer orgão internacional, tem direito a ser atendida com base no Artigo 2, que garante a todo o Ser Humano a invocação de seus direitos independente de sua origem. Porém, como esperar que crianças ou qualquer pessoa profundamente inserida em seu contexto cultural manifeste tal liberdade de pensamento, se uma das principais características dessa cultura é inibir-lhe tal capacidade de manifestação? Como garantir-lhe tal capacidade sem interferir na cultura? Mais explicitamente: Como impedir a prática da Clitoredoctomia sem ferir diretamente a cultura onde ela é praticada? E como garantir as mulheres muçulmanas seus direitos humanos sem violar diretamente o respeito a liberdade religiosa? Vou colocar logo de imediato minha posição para então defendê-la. Em minha opinião, o Humanismo deve preceder a Cultura. Sou completamente favorável a intervenção direta de forças internacionais para, dizendo de forma mais emotiva, acabar com tanta esculhambação. Ou, para expressar meu verdadeiro sentimento em relação ao assunto:
Acho perfeitamente válido o uso da força para erradicar essa estupidez chamada Clitoredoctomia!
Não manifesto a mesma opinião perante o caso referente ao Taliban simplesmente por que isso seria jogar todo o mundo Muçulmano contra o Ocidente, poderia ser o princípio de uma Guerra Global entre o Mundo Cristão e o Muçulmano! Mas minha opinião é basicamente a mesma. Estaríamos interferindo na Cultura? Sim! Mas nesse caso, "DANE-SE A CULTURA"! E agora, como defender essa opinião? Primeiro é necessário, como sempre, especificar algumas definições. Consideremos CULTURA como sendo o conjunto de todo o conhecimento, hábitos, tradições, crenças e etc produzidos por uma certa sociedade. A Cultura é um fenômeno Humano, apesar de haver uma pré-cultura primitiva entre alguns animais. Ela se consolida e se torna autônoma principalmente a partir do surgimento de algum meio de transmissão indireta de conteúdo. O animal pode aprender por demonstração ou experiência direta, mas um não consegue transmitir ao outro uma idéia de forma indireta. Por exemplo, um cachorro aprende por experiência quando seu dono lhe está preparando um banho, e só de observar um balde sendo enchido com água pode ser capaz de antever seu destino nos próximos minutos, que em geral não lhe são muito agradáveis. Mas se ele encontrar outro cachorro, não consegue avisá-lo de que está na hora do banho. O Ser Humano desenvolveu várias formas de armazenar e transmitir seu conhecimento tanto em meios materiais: artefatos, pintura; quanto imateriais: hábitos, tradição oral e etc. Quando duas Culturas diferentes se encontram elas interferem-se mutuamente, reagem, se transformam. Não há como não interferir numa Cultura a partir do momento em que se trava contato com ela, a não ser talvez com técnicas avançadas de observação furtiva, em que uma não terá conhecimento da presença da outra. A Cultura é dinâmica, está em constante transformação e se entranha em todos os nossos níveis psicológicos nos adaptando e condicionando a ela. O Ser Humano e a Cultura mantém uma relação tão íntima e recíproca que é impossível distinguir com exatidão o que seria algo inato, instintivo ou geneticamente herdado, de algo que é aprendido. Com o tempo e a transformação uma Cultura pode evoluir em complexidade, pode se desmembrar em outras ou mesmo se alterar por completo a ponto de que, como era em um certo período de sua existência, poder ser dada como extinta. O ramo do Conhecimento Humano que estuda a Cultura é a Antropologia, que se divide em Etnologia, que estuda as culturas atuais, Arqueologia, que estuda as culturas "extintas", e Antropologia Biológica, que aborda principalmente a base física que interfere na cultura e os primatas pré-humanos. Nossa Antropologia, fruto da Filosofia, é como tudo o que produzimos, produto de nossa Cultura. Sendo assim estamos inseridos num contexto cultural que pensa a si próprio, temos um produto da cultura que tenta se estudar, uma cultura que tenta se Auto-Conhecer. SUPERIORIDADE CULTURAL Sendo recente como um campo do conhecimento organizado, a Antropologia assim como a maioria das "ciências" sociais é um fruto do Iluminismo e não deixou se sofrer forte influência Positivista. Muitos equívocos foram a ainda são cometidos nas premissas, metodologias e conclusões. Um dos mais famosos é o Darwinismo Social, que tentava adaptar as Leis de Seleção Natural nos meios culturais e tentava hierarquizar num nível ascendente todas as culturas estudadas colocando a sua própria no nível mais avançado. Hoje tal postura é inadmissível, mesmo por que sendo um fruto da própra cultura, a Antropologia não deixa de sofrer a ilusão de sua própria superioridade em relação as culturas diversas, e assim a possibilidade de se hierarquizar as culturas de forma objetiva parece ser impossível. Essa é basicamente a postura do Relativismo Cultural A Objetividade plena é uma quimera nas "Ciências" Socias, que ademais, usando definições menos flexíveis dos termos, nem sequer são Ciência e sim Filosofia. Objetividade exigiria uma separação muito grande estre o Objeto de Estudo e o Pesquisador, se o antropólogo é influenciado pela cultura, como pode se distanciar dela para estudá-la? Plenamente não pode, mas isso não inviabiliza a Antropologia. Esse é apenas um dos problemas que implicam a termos uma grande dificuldade em compreender nossa própria cultura, por estarmos demasiado inseridos nela perdendo a objetividade da análise, e as culturas alheias, por estarmos por demais afastados delas e sem capacidade para apreender todos os elementos necessários para uma real compreensão de seu funcionamento. Esse dilema já fora levantado nos primóridos da Antropologia, como dizia Malinowsky, o antropólogo não pode estar nem muito distante nem muito inserido da Cultura que estuda. Sendo assim a pergunta crucial é, como definir um paramentro se não objetivo pelo menos aceitável que possa estabelecer uma relação de superioridade de uma cultura sobre outra? E isso implica naquilo que é o ponto chave de toda a discussão. Como saber se temos ou não o direito de interferir deliberada e radicalmente numa cultura alegando sermos superiores a ela? Pois se intervirmos com base em nosso próprios preceitos éticos, seria hipocrisia negar que nos consideramos melhores do que ela, caso contrário tentaríamos nos aproximar dela para aprender, não para mudá-la. Então, qual seria o Parâmetro? Eu proponho, pelo menos Dois. SOBREVIVÊNCIA O Darwinismo Social pode ter sido desastroso em suas conclusões e em suas implicações morais, mas há ponto a se considerar. Na falta de um critério qualquer que defina o que é melhor, o que é bom ou ético, o que é superior ou evoluído, podemos apelar para um critério prático. A capacidade de sobrevivência. Num olhar frio, não importa quais eram os valores de tais ou quais tribos indígenas ou povos que tenham sido conquistados, assimilados ou totalmente exterminados pela civilização cristã, o fato indiscutível e que elas não se sustentaram, sucumbiram ante uma cultura mais "poderosa". O que conferiu tal poder é evidentemente a Tecnologia, que como tal também é fruto da cultura, que a desenvolve intimamente ligada a sua produção científica, filosófica e ao modo de disseminação de suas artes e crenças místicas, que influenciam fortemente em toda a sociedade. O Universo é movido pelo fluxo entre Diferença de Potenciais, que vai do mais forte para o mais fraco. Uma "lei" imutável em todo o nosso Universo manifestado é a "Lei do Mais Forte", num sentido mais racional. Quer gostemos de seu conteúdo ou não, a capacidade de uma cultura em sobreviver, se ampliar e se adaptar lhe confere uma certa superioridade sobre outras, afinal não importando em curto ou médio prazo suas implicações morais e éticas, ela vence e prospera. Hoje em dia apesar da internacionalização e globalização cultural, ainda temos muitos focos distintos de cultura, cada qual com seus potenciais diferenciados. As mais fortes, é óbvio, dominam. E são as mais propícias a continuarem dominando e se mantendo apesar de suas constantes transformações e adaptações. As culturas mais avançadas tecnicamente não por acaso também o são em produção científica e diversidade de conteúdos pelo menos teoricamente difundidos, e as mais garantidas em termos de auto preservação. A famosa AIDS está fazendo estragos severos em muitas culturas menores na África, sem recursos, sem chance de defesa. Tribos inteiras correm o risco de desaparecer e com elas milenares tradições. Mas qual estrago a AIDS conseguiu fazer em nossa civilização ocidental? Principalmente nos países ricos e mesmo no Brasil? Apesar de tudo ela não afetou nossa infra estrutura sequer significativamente. E por quê? Por que temos tecnologia e informação para lidar com ela. Diante disso, não se pode concluir que a cultura ocidental seja melhor que a africana em qualquer quesito moral ou ético, que ademais são extensamente relativos, mas pode dizer claramente qual tem mais chances de sobreviver e prosperar. Agora pergunto em especial a aqueles que como eu, tem um mágoa ressentida e mal trabalhada em relação aos expoentes da dominação mundial. Se um Asteróide vier em rota de colisão com a Terra ameaçando toda a vida no planeta, quem irá detê-lo? Com certeza não serão as tribos africanas adeptas da Clitoredoctomia e nem mesmo o Taliban. AUTO CONHECIMENTO Mas o critério de Sobrevivência não satisfaz a nossas inquietações morais e chega a ser doloroso para nossa consciência humanista. Por isso procuro um quesito bem diferente. A melhor coisa que um Ser Humano pode fazer por si próprio é se Auto Conhecer. Só quem se conhece, pode se controlar, e então escapar do controle alheio. O AUTO CONHECIMENTO É A CHAVE DA FELICIDADE, DO PODER E DA LIBERDADE! Embora provavelmente ninguém em nosso mundo se conheça plenamente, há aqueles que pelos menos tentam se conhecer. São esses que visam distinguir o que são seus desejos dos "desejos" despejados em sua mente pelas elites dominantes, são esses que podem discernir de fato o que é melhor para si e consequentemente para o próximo em lugar daquilo que o governo, a religião e a Cultura em geral determinam que se considere. Sem o Auto Conhecimento, o destino do Ser Humano é um estágio pouco superior ao do animal, uma mero reflexo daquilo que poderia ser. Não passa de um joquete nas mãos do destino, das forças sociais e da vontade alheia. Não será capaz de distinguir sequer quando está sendo explorado e usado em benefício de outrem e em prejuízo próprio. Pior, não age, apenas reage a estímulos ambientais, não passando de um brinquedo na mão dos eventos descontrolados do mundo que o cerca. Infelizmente assim caminha a maior parte da humanidade. Os benefícios do Auto Conhecimento também são válidos para a Cultura. A Cultura que tenta se conhecer, que pensa a si própria, cresce exponencialmente em termos de poder. Nossa cultura ocidental pensa a si própria com mais intensidade a partir da renascença, após afastar as sombras da Idade Média. A Antropologia, a Sociologia, a Psicologia e a Filosofia e Ciência em geral são nossos veículos para o auto conhecimento inclusive sócio cultural. A capacidade de sobrevivência de uma cultura será sempre amparada pela força, mas há diferenças entre a força "Bruta" e a força mais "inteligente". Os Cristãos dominaram o ocidente devido principalmente a força Bruta. Maioria populacional, fanatismo, algum desenvolvimento tecnológico mais artesanal do que científico. O muçulmanos fizeram semelhante no oriente embora com mais vigor científico. Mas só na libertação da Ciência e da Filosofia a civilização se desenvolveu no nível que nos trouxe a hoje. Esse autoconhecimento sobre nossa própria civilização, sobre nossa própria cultura, nos deu as bases das estruturas sociais e políticas que incentivaram a produção científica e o progresso. Esse auto conhecimento é benéfico em diversos sentidos apesar de em muitos casos problemático. Com ele veio o questionamento dos dogmas religiosos que oprimiram o mundo por milênios, com ele veio a tolerância com outras culturas. Antes desse auto conhecimento, nós destruíamos as culturas que encontrávamos, queimávamos suas imagens e seus livros como "heresias do diabo". Agora nós pensamos em estudá-las, o que implica em preservá-las pelo menos na memória. E agora, estamos aqui, numa discussão, dando um pequeno exemplo do efeito desse novo paradigma cultural, estamos tentando saber "se temos o direito" de intervir na cultura alheia em defesa dos direitos humanos, questionamos os próprios direitos humanos, pomos em dúvida as bases de nosso pensamento científico e filosófico, pensamos e repensamos se estamos fazendo o melhor. Agora voltando nossas atenções ao tão falado Taliban, que já virou figurinha carimbada, naquele país que deveria ter saudades dos tempos de ocupação soviética. Quem acha que eles fariam o mesmo? O Fundamentalismo religioso não promove o Auto Conhecimento, pelo contrário, ele sobrevive as custas de sua repressão, ele não permite o questionamento de suas próprias bases. Enquanto estamos aqui, sob o paradigma de uma filosofia humanista secular, indagando se estamos mesmo certos, no Taliban ninguém pode levantar qualquer dúvida. "Não há nenhum Deus senão ALAH é Maomé é o seu profeta!!!" E ponto final!!! Não há chance para ser condescendente com outras culturas, não há reflexão profunda, não há possibilidade de questionar os ensinamento do Corão como aqui pomos em dúvida a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Enquanto vacilamos em saber se deveríamos ou não intervir numa prática tão claramente nociva quanto a Clitoredoctomia, o Taliban não pensa duas vezes antes de erradicar por completo o simples direito de uma mulher em consultar um Ginecologista! Se o Taliban dominasse o mundo, adeus preservação cultural! Eles não iriam estudar as culturas indígenas, iriam aniquilá-las, destruiriam não só estátuas mas todo o significado que elas representam, as fogueiras de livros queimados seriam do tamanho de montanhas, não haveria nem Internet e nós não teríamos mais o direito de montar listas de discussão. É claro que o fundamentalismo pode até ter vantagens, mas me perdoem os mais meticulosos relativistas, como eu próprio o sou: MAS EU NÃO CONSIGO DEIXAR DE ACHAR QUE SOMOS MELHORES DO QUE ISSO!!! Não consigo deixar de crer que melhoramos ao permitirmos que cada um professe sua própria crença, que todos possam expressar sua livre opinião e que as mulheres tenham se emancipado. Não consigo deixar de considerar que seja mais ampla, mais inteligente e mais promissora uma Cultura que ao pensar a si própria não mais permite que bruxas sejam queimadas por acusações delirantemente fantasiosas, do que uma cultura que ainda determina que mulheres que não se submetem a regras tirânicas sejam apedrejadas até a morte. E é claro, pagamos um preço caro por tudo isso. Superpopulação, degradação ambiental, violência urbana e exploração comercial para citar só alguns. Mas não se muda 6.000 anos de ignorância em menos de 300 de Auto Conhecimento. Poderia até por em dúvida tudo isso, admitindo que eu, como produto da minha cultura, seja mais uma vítima da implacável ilusão que faz cada cultura se achar melhor, mas acumulamos milhares de anos de experiência em registros históricos e não exterminamos mais as opiniões contrárias, há sempre alguém disposto a preservá-las pelo menos para estudo. Se erradicássemos o fundamentalismo religioso, mesmo daqui a mil anos, alguém poderá achar os velhos livros sagrados e as idéias dos fundamentalistas do passado e ressuscitá-las, pois não estariam literalmente extintas. Mas como achar que ocorerria a mesma coisa com relação ao Humanismo Secular após mil anos de Fundamentalismo Religioso? Foi a libertação do dogmatismo que deu a humanidade a chance de começar a se organizar melhor, mesmo por que se não fizéssemos, nossa tecnologia seria o veículo de nossa auto destruição. Possuímos hoje um poderio de destruição inigualável. Há milhares de armas nucleares espalhadas pelo mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Porém desde essa mesma guerra surgiu uma Organização das Nações Unidas, cujo único "pecado" estrutural é sediar-se nos E.U.A. Ela tem inúmeros problemas, mas representa a intenção, ainda que ingênua, de buscarmos o distante sonho da paz mundial. De qualquer modo até hoje só dois artefatos nucleares foram efetivamente usados contra seres humanos, e o maior motivo disso é que tais armas estão nas mãos de sociedades onde imperam Culturas que tentam se Auto Conhecer. Alguém duvidaria de que essas mesmas armas nas mãos de terroristas fundamentalistas religiosos já não teriam sido usadas? Se não tivéssemos de certa forma "evoluído" culturalmente não teríamos sobrevivido. Basta imaginar esse mesmo poderio nuclear nas mãos de déspotas do século retrasado. Por fim apelo ainda para o seguinte recurso. Assim como não acredito que qualquer pessoa sã gostaria de voltar aos "bons e velhos tempos" da caça as bruxas, das cruzadas ou da escravidão, não acredito que algumas décadas após a abolição da Clitoredoctomia as pessoas desta mesma cultura tenham vontade de retomá-la. Ficará a mesma pergunta que fazemos hoje em dia com relação as tiranias teocráticas medievais: "Devíamos ter acabado com isso antes." O mesmo vale para as pessoas que vivem sob os ditames do Taliban, ainda que poucas pessoas mais do que eu, adoraria viver num mundo onde não existisse drogas e alcóol. Outro ponto. Podemos ter certeza de que muitas pessoas que vivem sob tais sistemas não sonham em um dia vê-lo cair? Não inclusive esperam ou mesmo requisitam pessoalmente um intervenção externa? Mesmo nós fazemos isso. Muitos gostaríamos que uma poderosa civilização extraterrestre viesse nos libertar de nosso próprios males que são sem sombra de dúvida, frutos de nossa cultura. Será que alguém consegue levantar algum argumento que pelo menos suavize a hedionda impressão que temos sobre a Clitoredoctomia? Será que alguém acha que se deixada a escolher por livre e espontânea vontade, fora do alcance das pressões de seu grupo e tendo esclarecimento, como se isso fosse possível, alguma menina iria desejar ter seu clítoris amputado? Será que após aniquilarmos tantas culturas magníficas como as do Navajos, deveríamos protelar tanto antes de interferir numa cultura bem menos notável em qualquer sentido? Antes de ser um produto da cultura, um homo sapiens é antes de tudo um Ser Humano, se tiver chance em tempo hábil poderá se adaptar a qualquer ambiente cultural. Se lhe for dada a oportunidade, poderá escolher seu destino. Duvido que por livre espontânea vontade qualquer mulher queira viver sob as burgas impostas pelo Taliban. Hesitar em tomar providências para ajudar pessoas que sofrem devido ao fato de estarem inseridas numa cultura, é condenar o ser humano por ter nascido em tal tempo e local. É puní-lo pelo que não fez. POR QUE NÃO AGIMOS? Infelizmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos é como ela própria coloca "um ideal a ser atingido". Ela é um ponto de partida e de referência de onde mais da metade dos países do mundo, todos integrantes da ONU, tentam desenvolver suas constituições civis. Afirmar que ela tem sido desrespeitada, lembrar a distância que existe entre intenção e prática é constatar o "evidente por si mesmo". O grande paradigma ocidental ainda é comercial, baseado antes de tudo na sobrevivência e "supervivência" ainda que em detrimento da simples vivência alheia. Mas seria injusto afirmar que mudança alguma ocorreu após a consolidação da ONU. Nenhum déspota hoje em dia pode abertamente praticar atrocidades sem sofrer alguma repreensão internacional, sem o apoio desta Declaração seriam impossíveis as conquistas obtidas pelo feminismo, com ela, e as constituições civis que inspirou, pudemos enquadrar o estupro marital como crime, podemos argumentar contra abusos governamentais e apelar a ajuda internacional. Lamentavelmente essa postura internacional ainda está manchada pelos interesses econômicos. As "Forças de Paz da ONU" ainda são as "Forças de interesse da OTAN" sempre prontas a atender os desmandos dos grandes déspotas da economia mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda é usada de forma condicional, quando se há benefício próprio em fazê-la. Se houvesse alguma perda econômica sensível advinda da prática da Clitoredoctomia que atingisse os países ricos, podemos apostar que ela já teria sido abolida, mas em compensação se não possuíssemos o apoio ainda que teórico da Declaração e algum incentivo de orgãos internacionais, não haveria ninguém sequer tocando no assunto. O Taliban, que preocupa bem mais a opinião pública internacional inclusive a outras formas de Islamismo, está na mira dos países do Primeiro Mundo há muito tempo. Se dependesse dos interesses econômicos ele já poderia ter sido severamente atacado, porém trata-se de um problema muito mais complexo. Desafiá-lo seria correr o risco de um incidente internacional com vários países militarmente significativos e ainda capazes de fazer estragos mesmo no seleto Grupo dos 7. Não tenhamos dúvida que interesses ilícitos interferem na decisão de se tomar tal ou qual providência no sentido de levar ajuda internacional a várias pessoas que tem seus direitos primários de sobrevivência violados, inclusive as populações famintas e doentes, mas declaro que se não tivéssemos tanta hesitação no sentido de uma ação direta, a possibilidade de agir seria mais promissora. É essa dúvida, essa hesitação que o incomodava o colega de Lista de Discussão, assim como a mim e com certeza a inúmeros outros, que lançou esse assunto. Minha intenção aqui foi ajudar a tomar uma decisão, a sair de um postura de inação devida a um dilema ético sócio cultural. Tenho certeza de que se essa postura se disseminasse pelos órgãos internacionais, se todos se posicionassem favoráreis a uma ação mais direta, práticas torpes como a Clitoredoctomia já teriam sido abolidas mesmo contra a feroz resistência sócio cultural local. Nesse sentido, espero ter ajudado. Junho de 2001 Obs: Esse ensaio foi profético, pois curiosamente, menos de 3 meses depois ocorriam os eventos de 11 de Setembro. Infelizmente dada as circunstâncias, o processo de derrubada do Taliban me agradou bem menos do que eu esperava.
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