A "AMEAÇA" DO GÊNIO
Sophofobia & Misosophia
Parte média de um Ensaio iniciado em O "Gênio" do Mal, e a finalizar em O "Gênio" na Lâmpada

"A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido."

H.P.Lovecraft (1890-1937)

Parte Intermediária
ÓDIO à SOPHIA

Vimos no ensaio anterior que existe um evidente preconceito contra o conhecimento em nossa cultura, apesar de todo o benefício que ele nos causa, permanece viva e forte a noção de que ele é potencialmente danoso apesar de completa ausência de evidência histórica para isso. Veremos agora porque isso ocorre, lembrando que na realidade, somente um tipo de conhecimento é realmente visto com maus olhos por uma certa ordem social.

Se concordarmos com a frase do autor acima, podemos desconfiar então que não é o conhecimento que nos assusta, e sim o desconhecido, apesar da declaração contrária do mesmo autor no ensaio anterior, que na verdade é dita num contexto bem diferente. Todos já experimentaram situações onde temíamos algo enquanto não o conhecíamos, e perdemos tal medo na medida em que o conhecemos. Do que temos medo afinal? Do Conhecimento, ou do Desconhecimento?

Por outro lado, talvez não tenhamos medo do desconhecido, pois diante do vazio de algo que não sabemos o que é, costumamos paranoicamente preenchê-lo com coisas conhecidas que tememos. Ninguém fica apavorado diante de um presente embrulhado de uma pessoa amiga, por exemplo, apenas pelo fato de não sabermos o que há lá.

De um modo ou de outro, o medo frequentemente se torna ódio, visto que sendo mais extensivamente destrutivo, o ódio nos é menos doloroso do que o medo e o desespero. Preferimos odiar algo do que temê-lo, e então o medo da Sabedoria se transforma no ódio à mesma.

Mas o mais importante é que podemos notar que não é todo tipo de conhecimento que inspira medo em nossos preconceitos, a própria Bíblia o vê de forma ora positiva, ora negativa. E governos totalitários incentivam aquisição de conhecimentos técnicos para enriquecer seu poder material, mas reprimem conhecimentos críticos que podem levar ao questionamento do estado de coisas. O conhecimento temerário então é aquele que nos permite aumentar diretamente nosso próprio poder, e não somente o de nossos superiores, e que pode nos levar à conquista da liberdade e independência.

O Sub Homem

Não se trata apenas de uma mera rejeição ao conhecimento, na verdade, trata-se de uma rejeição ao poder. Conhecimento é poder, e se temos o poder de penetrar em domínios que antes consideraríamos sagrados, parecemos condenados a enfrentar a repressão cultural de tradições que querem nos manter sempre cegos, mudos e paralíticos perante a aparente brutalidade irracional de um universo sem sentido que tantos gostam de considerar como cuidadosamente guiado por mãos divinas que devem monopolizar o poder.

Por isso, o modelo do herói típico da mídia é o do sujeito que admite os lugares comuns em que foi criado e que parece ter ojeriza à idéia de assumir a direção de sua própria existência, estando sempre pronto a se submeter a um sistema prévio de coisas ao mesmo tempo que vê claramente que ele é falho, se não perverso.

Essa antítese do Super Homem Nietzschiano está presente nada menos do que no próprio personagem homônimo de Lois & Clark - As Novas Aventuras do Superman, onde por um erro policial e jurídico o Super Homem é acusado de um crime que obviamente não cometeu. O que ele faz então? Apesar de ser o mais indicado para descobrir o verdadeiro culpado, ele prefere se deixar prender porque "acredita na justiça", acha que poderá provar sua inocência. Ou seja, um ser que estaria totalmente além dos poderes do mundo, que não poderia ser subjugado nem mesmo pela humanidade inteira, se deixa dominar por uma força claramente falha, se não corrupta, como se tivesse a obrigação moral de se submeter ao sistema.

É algo totalmente diferente do que faz Hancock, o Super Homem de Will Smith, que se deixou prender porque reconheceu que fez mesmo uma besteira.

Por essas e outras que decidi chamar estes "super-heróis" contemporâneos de Sub-Heróis, em minha Monografia Heróis da Areia, pois ao invés de, como os heróis clássicos, eles virem para revolucionar uma ordem de coisas para um nível superior, acabam existindo para manter tal ordem, como se esta fosse a melhor possível. É curioso que certos universos de Super-Heróis, mesmo repletos de seres com poderes divinais, estes ainda preferem se submeter aos governos do mundo como se estivessem fazendo o seu melhor.

O nível de tal cooptação do super poder pelo estado de coisas é tal que era simbólico que os super-heróis sempre impedissem um assalto a banco ou uma tragédia envolvendo o presidente. E na excelente estória em quadrinhos Cavaleiro das Trevas, é o próprio Batman que critica a disposição do Super Homem de estar a serviço do governo Reagan, na guerra contra a União Soviética. Ainda assim, enquanto combate a criminalidade em Gotham City, Batman jamais atacou as causas, e sim os sintomas, numa guerra sem fim.

Essa mesma tragédia é explorada ricamente em Watchmen, onde mais do que nunca fica explícita a dicotomia política e ideológica. Os vigilantes mascarados, os super heróis, são normalmente vistos como tendentes ao extremismo de direita, por vezes totalmente fascistas, o que está perfeitamente de acordo com uma tradição ideológica de que o crime, e o mal, é intrínseco ao indivíduo, que merece ser punido, ao mesmo tempo que desconsidera, ao contrário da ideologia oposta, a desordem social como principal geradora dos males.

Tudo isso apenas para mostrar que na realidade não há uma repreensão contra o poder, e o conhecimento, em si, mas ao seu potencial como emancipador e libertador da humanidade. Seu Poder como força que pode mudar a estrutura do mundo. Enquanto ele servir para justificar a ordem pré-estabelecida, será bem vindo, mas costuma ser notório que isso cabe à esfera de um conhecimento limitado, pois quando o mesmo se expande, sem rédeas, tende a questionar os próprios pressupostos fundamentais de tudo o que encontra, o que pode ameaçar o Estado de Coisas.

O problema é que só esse último tipo de conhecimento costuma realmente elevar o indivíduo, a sociedade, a humanidade, a níveis maiores de realização. Todas as grandes invenções, sem exceções, resultam de uma revolução de pensamento.

O Herói Americano

Daí é fácil entender porque o típico herói americano, e também o japonês, para citar os maiores produtores desse tipo de cultura popular, não costuma se destacar pelo pensamento e o discurso. Normalmente ele apenas encarna os valores consagrados pela sociedade, em geral defendendo-os com chavões e lugares comuns, e quase sempre totalmente incapaz de argumentar contra os vilões, que praticamente monopolizam qualquer coisa que se possa dizer de interessante.

Um dos melhores exemplos está em Matrix Reloaded, quando o super herói NEO se encontra com o que há de mais próximo ao grande vilão do império das máquinas, o auto intitulado ARQUITETO. Não é possível sequer resumir todas as idéias interessantes ditas pelo Arquiteto, mas o herói, além de uma ameaçazinha banal, tem ao longo do extenso "diálogo" praticamente um única frase: Bullshit!

Tom Cruise em O Último Samurai, expõe com perfeição um dos perfis mais típicos do herói padrão americano, embora mais característico dos heróis policiais e detetives, e militares. Sofre de um grande trauma que prefere não compartilhar, muitas vezes resultado de sua dedicação ao sistema que acabou resultando numa tragédia. Extremamente defensivo, chega a recusar apertos de mão a pessoas com as quais não vai com a cara, tendo baixíssima habilidade interpessoal. Sua incompetência para o diálogo é crônica, fato que é claramente questionado por outro personagem do filme, o samurai japonês que acaba se tornando seu mestre. Com o tempo, ele acaba sendo convertido pela virtude dos nipônicos que o haviam capturado e se torna um deles, passando a lutar ao seu lado, mais uma vez, sem ser capaz de dizer por quê.

Para citar um exemplo mais antigo, vejamos De Volta ao Planeta dos Macacos, 1970, onde o astronauta americano está tão convencido da absoluta superioridade de seus valores morais em comparação com uma cultura radicalmente diferente milhares de anos no futuro, e é tão invulnerável a qualquer forma de diálogo, que se dá ao luxo de esbravejar e ofender verbalmente uma força infinitamente mais poderosa do que ele, que poderia esmagá-lo como um inseto, mas que no entanto, só quer conversar civilizadamente.

Continuam raros filmes como Project X, onde o protagonista dá um banho de bom senso e perspicácia no antagonista ao desmontar o argumento que sustentava uma experiência da Guerra Fria que sacrificava e torturava chimpanzés expostos à radiação letal. Ou mesmo breves momentos como o de X-Men, quando Wolverine, com uma única frase, põe abaixo toda a moral de Magneto, pretensamente baseada numa meticulosa visão de futuro que justificava um massacre. O mais comum é vermos situações como a de Eu Robô, onde um computador central quer controlar a humanidade para o seu próprio bem, sacrificando um grande número para salvar um número maior, repetindo ad nauseam que sua lógica é impecável enquanto qualquer um que pense um pouco percebe-a como completamente furada, esquecendo-se que os humanos, pura e simplesmente, têm uma natureza avessa à segurança por meio da falta de liberdade imposta de cima!

Mas certamente ninguém mais foi tão longe na incompetência argumentativa, e na associação entre heroísmo e burrice, do que a série muitíssimo apropriadamente batizada com o nome de HEROES (Segunda Temporada), que transformou "We can't play God." num lema existencial. O personagem Hiro, que pode viajar no tempo, termina por concluir que não pode usar seus poderes para impedir as tragédias que presenciou, porque assim estaria brincando de Deus. Curioso que tais tragédias sequer foram causadas pela ordem natural, mas por poderes equivalentes aos dele, que envolviam profecias, previsões, imortalidade e uma série de outros dons.

É certo que a viagem no tempo é algo mais profundo do que isso, mas chama atenção a apatia do personagem ao se deixar vencer por um destino supostamente traçado por forças superiores, e isso depois de já ter feito inúmeras alterações na história. Já na Terceira Temporada, a trama mais uma vez envolve as tortuosas viagens no tempo, e um Peter do Futuro, o mais poderoso de todos os personagens que também pode viajar no tempo, leva o Peter do Presente para mostrar-lhe a tragédia que aconteceu com o mundo. Todos têm super poderes!

A única coisa mostrada é que as pessoas podem dispensar seus carros e ir voando pro trabalho, ou correndo a super velocidade, e em momento algum é dito por quê todos terem super poderes é uma coisa ruim, a não ser o chavão de que somos egoístas e arrogantes, como se precisássemos de super poderes para isso. Segue-se daí uma situação insólita. Duas forças se degladiando, uma que quer dar poderes a todas as pessoas, e outra que acha que isso não pode ser feito, e NENHUMA DAS DUAS se dá ao trabalho de argumentar porque o está fazendo, ou justificar sua opinião. O resultado é uma autêntica discussão oral de surdos-mudos.

A maioria esmagadora desses típicos heróis segue essa fórmula, a mensagem subjacente é que o conhecimento não é atributo dos heróis, e sim dos vilões. As novelas brasileiras, por sua vez, consagraram em definitivo que Inteligência é um atributo da Maldade. Nem tanto pela inteligência dos vilões, mas pela incrível estupidez dos mocinhos. Uma recente bola da vez foi a superlação de uma tolice que vem sido reforçada há tempos em nosso senso comum. A idéia de que psicopatas são seres altamente inteligentes, perfeitamente racionais e sem emoções! (Em referência ao final da novela Caminho das Índias.)

Como é de se esperar, elementos típicos da burrice popular combinam-se para o pano de fundo. Achar que todos os grandes criminosos serem psicopatas, permite afirmar o consequente e dizer que todo psicopata é um grande criminoso, ignorando que a maioria esmagadora deles está nas cadeias ou no cemitério, porque não vão muito longe, e os que logram aparecer nos jornais ou entrar para a história, merecendo filmes a seu respeito, são uma minoria tão ínfima quanto a quantidade de duplas sertanejas famosas em relação à quantidade de existentes.

É um erro terrível pensar que seria possível alguém promover crimes brutais como estupro, tortura, esquartejamento, canibalismo ou terrores afins, sem obedecer a impulsos emocionais, como se todas essas atitudes fossem resultado da pura reflexão racional! E também achar que o fato de que um único psicopata pode brincar por anos com toda uma força policial, a mídia e a sociedade é um sinal puro de sua superioridade racional, como se sozinho fosse mais inteligente do que todos juntos, ignorando vergonhosamente o fato de que a covardia, vilania, mentira e toda sorte de golpes baixos sempre levam vantagem imediata em relação ao respeito às leis e a honestidade. O criminoso pode matar qualquer pessoa, torturar, mentir, e não tem responsabilidade alguma. Já a polícia e a sociedade são o contrário, têm que obedecer as regras. E isso sem contar que toda a sociedade tem que localizar e deter um único indivíduo, enquanto esse indivíduo pode atacar qualquer um! É essa radical assimetria o principal motivo da vantagem dos raros psicopatas que conseguem brincar com a polícia, e não sua inteligência.

Tudo isso, mais uma vez, apenas para mostrar que o medo do conhecimento acaba se tornando ódio. Como se fosse a inteligência em si que transformou o indivíduo num psicopata, justificando assim mitos de nossas tradições religiosas.

Mais uma vez, a série HEROES é emblemática. Sylar, o pior dos vilões da série, que é um assassino serial, não apenas é muito inteligente como o seu poder original, que é a mesma fonte de toda sua maldade, é uma capacidade inata de compreender imediatamente como as coisas funcionam!

Conhecimento é Poder

Toda esta "propaganda" recai não sobre qualquer forma de conhecimento, e sim mais àquele que nos dá um poder evidente. O conhecimento científico nos dando um poder sobre a natureza é apenas uma alegoria do conhecimento que realmente assusta: O Conhecimento CRÍTICO.

Trata-se daquele capaz de questionar a tudo, inclusive a si próprio, nada poupando, especialmente a ordem de coisas na qual se desenvolveu, e muito menos os poderes estabelecidos, e para o qual nada é sagrado. Assim, a ameaça é o potencial que o conhecimento carrega para reverter a estrutura social de dominação, não importa em que conceito ela se apóie. Se na Bíblia o conhecimento como fruto do Temor é reverenciado, o é porque este apenas irá consolidar a estrutura simbólica de dominação teocrática.

Desde os primórdios da humanidade sempre foi evidente que deter o poder é deter diversas formas de conhecimento. Uma vez que ser humano algum é fisicamente mais forte que todos os demais, é evidente que seu poder deriva da manipulação da força alheia, da capacidade de orientar, canalizar e manipular a força social a seu favor. Há inúmeras formas de fazer isso, mas todas se baseiam em deter informações que são negadas aos outros, ou sua base de poder não dura muito.

Em minha monografia O CAOS E OS ANJOS esbocei uma teoria a respeito dos modos que os segmentos dominantes de uma sociedade usam para restringir o desenvolvimento de conhecimento de seus dominados. Tais modos, nem sempre conscientes e deliberados, se resumem a de alguma forma constranger a possibilidade de um ou mais dos passos necessários para o desenvolvimento pleno de uma massa crítica fora da elite dominante, quer seja a capacidade de ler e escrever, o acesso à educação, à conteúdos essenciais ou avançados, etc, que como sabemos já foram e tem sido em maior ou menor grau censurados das mais diversas formas.

Em nossa sociedade democrática atual não mais é possível proibir a aquisição livre de conhecimento, nem censurar os conteúdos, de modo que gozamos de um potencial de liberdade de pensamento jamais visto na história. Mas a Inércia Sócio-Cultural, bem como algumas ações deliberadas, estão longe de nos deixar totalmente à vontade no que se refere à produção intelectual e científica em geral.

Há basicamente duas formas de sabotar a liberdade mental de uma civilização. Uma delas é dar demasiada ênfase a conteúdos avessos a qualquer forma de reflexão crítica, sobrecarregando a mídia de temas e formas de expressão que incentivam os instintos mais básicos, ao consumo mais irrefletido e à aceitação acrítica de chavões e modismos. Mesmo a pessoa com ampla propensão a se desenvolver intelectualmente é vulnerável ao apelo dos sentidos, podendo ter sua atenção capturada e sua potencialidade consumida com as emoções mais primárias. Ao invés de dar espaço na mídia a obras artísticas que ao menos sugiram algum tipo de crítica ou reflexão, por mais pueril que seja, dá-se espaço por exemplo à mera contemplação de partes sensuais do corpo.

A outra forma é a que tem sido explanada ao longo deste texto, criar uma associação entre Conhecimento e Mal, entre Sabedoria e Melancolia, entre Inteligência e Perversidade, entre Lucidez e Pessimismo, empurrando as massas incautas ao desânimo, medo, repulsa ou mesmo ódio à sua capacidade de ser mais do que um mero membro de rebanho, a única coisa que o separa definitivamente dos animais.

No próximo, e último, capítulo, veremos mais algumas consequências dessa campanha misosófica.

Marcus Valerio XR
22 de Setembro de 2009

Parte Final - O GÊNIO DA LÂMPADA
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Em Defesa da Humanidade