O "Gênio" do Mal
Sophofobia & Misosophia
Parte Inicial de um Ensaio que continua em A "AMEAÇA" DO GÊNIO

Uma das maiores misericórdias do mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinitude, e não fomos designados a ir longe. As ciências, cada qual avançando em sua própria direção, até agora nos causaram pouco dano, mas há de chegar um dia onde a junção das peças soltas de nosso conhecimento abrirá visões tão terríveis da realidade, e de nossa assustadora posição nela, que só nos restará enlouquecer perante a revelação ou fugir da luz fatal para a paz e a segurança de uma nova Idade das Trevas.

O Chamado de Cthulhu
H.P.Lovecraft (1890-1937)

Parte Inicial
FOBIA de SOPHIA

Em certa feita, a modelo Daniela Cicarelli, falando sobre jogo de baralho, afirmou: "Roubo profissionalmente, parece que nasci em Brasília". Numa óbvia referência a políticos desonestos, evidente que tal frase provocou reações. A Câmara Legislativa de Brasília pretendeu transformá-la em persona non grata da cidade, e se somássemos outras feitas como seu escandaloso casamento ou a tentativa de censurar o Youtube, bem poderia ser considerada persona non grata do país.

Mais estranha do que a afirmação foi a débil reação dos brasilienses, que em geral a acusaram de ter feito uma generalização injusta. Certa empresa de marketing chegou a publicar uma frase do tipo "Toda modelo é burra. Tá vendo Cicarelli, com o é ruim generalizar?", na Câmara Legislativa disseram "Se é para generalizar, Belo Horizonte é a terra do MarcOs Valério." referindo-se à cidade natal da modelo.

Ninguém em momento algum parece ter se dado conta de que não houve generalização, pois isso exigiria que existissem exemplos factuais que fossem tomados como uma regra geral. Se alguém disser que "todo muçulmano é terrorista", estará sendo injusto, pois sem dúvida a imensa maioria não é, mas não se pode negar que existem muçulmanos terroristas, o que embora não justifique, ao menos torna a generalização inteligível.

Acontece que no caso da frase de Cicarelli, não existe nem mesmo um único caso de político nascido em Brasília que seja reconhecidamente ladrão, ou ao menos não havia até a época. Os Senadores, Deputados, Ministros, etc, são praticamente todos de fora da capital federal, e até mesmo na Câmara Legislativa do DF, que está sim repleta de ladrões e coisa pior, bem como em diversos outros segmentos do governo do DF, não há um único caso de político suspeito que tenha nascido em Brasília. Pedro Passos, Luis Estevão, Vigão, Joaquim Roriz e companhia, NENHUM nasceu em Brasília!

Portanto, não há o quê generalizar, a afirmação da modelo foi baseada num pré-conceito, uma ficção pura, sem qualquer base concreta na realidade. O que é essencialmente diferente de uma generalização.

O "Cientista" Louco

Na mesma tendência a confundir generalização com ficção pura, alguém poderia pensar que deve ter existido um ou outro exemplo de cientista que sirva de base para a construção do curioso símbolo do "Cientista Louco", tão comum nos filmes, desenhos e quadrinhos não somente infanto juvenis. A idéia de um "gênio" maligno que quer dominar o mundo ou coisa pior é tão arraigada no imaginário midiático popular, com sua inconfundível risada maligna, que dispensa exemplos.

Acontece que, mais uma vez, não há em toda a história um único exemplo de cientista que tenha sequer sugerido qualquer fundamento para tal mito. Edward Teller (1908-2003), o principal responsável pela Bomba de Hidrogênio, seria talvez o melhor candidato, mas tudo de questionável que ele tivesse feito, o fez como ativista militar em prol da supremacia americana na corrida armamentista, e quem já ouviu falar de Edward Teller? Não se erguem mitos populares sobre personagens ignorados pelo público.

Enrico Fermi, e Robert Oppenheimer, principais responsáveis pelo Projeto Manhattan, também são pouco conhecidos, e na verdade estão mais relacionados à vitória americana na Segunda Guerra Mundial do que a qualquer outra coisa. Por fim, a estranha e totalmente equivocada crença de que Einstein tenha qualquer envolvimento direto com a Bomba Atômica é na realidade uma consequência, e não uma origem, desse estereótipo, que é muito mais antigo, remetendo na verdade, no mínimo, até o Dr. Frankenstein, da obra de Mary Shelley, escrita em 1816.

E se observarmos o segundo título desta obra, teremos então uma pista mais clara para entender o porquê do mito do gênio maligno, visto que é Frankenstein ou o Moderno Prometeu.

Antes dos cientistas loucos, tivemos estereótipos relacionados aos Alquimistas, dos quais Frankenstein faz a transição para os cientistas, e das bruxas. Sabemos que não existiu quem tenha voado em vassouras, controlado elementos da natureza ou lançado pragas devastadoras, mas as crenças nisso eram fortíssimas, porque eram vistos como detentores de supostos conhecimentos avançados. Astrólogos também não raro despertavam algum temor, e o fato resultante é que ao longo da história a inteligência sempre esteve associada a uma certa periculosidade, mesmo uma constante ameaça, apesar de também à admiração.

Prometeu & Lúcifer

É antiga nossa tradição cultural de estigmatizar o conhecimento. Ela está no primeiro livro da Bíblia, onde a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal detinha o fruto proibido. Por tê-lo comido, a humanidade foi severamente punida, e se deu conta de sua própria vergonha. Foi Lúcifer, em outras versões Lilith, que na forma da serpente incentivou Eva a violar a proibição. Em síntese, as gêneses do Conhecimento e a do Mal são a mesma.

Na mitologia grega, Prometeu deu o conhecimento aos humanos, também sendo severamente punido, e a entrada do Mal no mundo, embora tenha uma origem diferente, é resultado da força motriz de toda forma de conhecimento, a Curiosidade, que levou Pandora a abrir a caixa que espalhou todas as mazelas.

Há no entanto algumas ambiguidades, pois a mesma Bíblia incentiva certos tipos de conhecimento, bem como na mitologia grega, o mesmo Zeus que puniu Prometeu e os humanos, também é pai ou irmão de deuses do conhecimento, como Hermes, Apolo ou Atena. A diferença é que o conhecimento só é encorajado enquanto servir de caminho para a adoração do divino. "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria.", diz o Salmo [111:10].

Coisa bastante diferente de dizer que a Sabedoria é fruto do medo, diz a Filosofia, cujo próprio nome significa literalmente "Amor (philo) à Sabedoria (shopia)", o que em parte explica a curiosa dissonância que tem permeado nossa civilização. Ao mesmo tempo que temos uma tradição religiosa afirmando que o Conhecimento está na Raiz do Mal, Sócrates dizia que a Ignorância é a Raiz do Mal.

Aristóteles dizia que é natural aos humanos quererem "conhecer". Não necessariamente algo específico, mas todos, realmente, sempre se interessam por algo, quer seja estudando altos tópicos, lendo romances, se interessando pela privacidade alheia, ou mesmo olhando na direção de algum som.

Fato é que a inclinação para saber as coisas é claramente natural, e considerando as típicas variações de intensidade que se manifestam nas pessoas, é evidente que uns buscarão saber mais que outros.

Para o Bem ou Para o Mal?

Ninguém nega que o conhecimento é útil, alguns podem até não ser, mas geralmente é fácil demonstrar a correlação direta entre o domínio de saberes e benefícios práticos. São também flagrantes os danos que a ignorância pode causar, e assim, deveria ser bastante espontâneo que considerássemos que ter grandes conhecimentos é algo desejável, louvável e benéfico.

Mas não é tão simples assim. Em nossa produção cultural, quer seja clássica, mítica, popular ou comercial, abundam exemplos da temática onde o conhecimento é perigoso, reprovável, e deve ser punido, mas nunca pelas outras pessoas, geralmente quem aplica tal punição são as divindades, as circunstâncias, o acaso ou a natureza. É como se um certo excesso de conhecimento representasse uma violação de algum domínio que não deveria estar aberto às pessoas, e os detentores de tal domínio promoverão a devida retaliação.

Exemplos não faltam. Como disse certa vez Stephen Jay Gould ao comentar Jurassic Park, Hollywood parece conhecer um único tema quando trata da relação humano e natureza por meios científicos, o do cientista que se atreve a alterar algum tipo de "ordem natural" das coisas, o que acaba resultando numa tragédia.

Para citar só mais alguns filmes que pensam da mesma forma, temos: A Mosca, Enigma do Horizonte (Event Horizon), Eu Robô, Eu Sou A Lenda, GATTACA, Linha do Tempo, Minority Report, O Homem sem Sombra (Hollow Man), O Núcleo, O Pagamento (Paycheck), O Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man), Renaissance. (E eu gosto da maioria deles!)

São todos filmes de Ficção Científica, que evidentemente tratam de algum tipo de descoberta ou invenção científica marcante, a maioria inicialmente bem intencionada, mas que terminam por resultar em vários tipos de tragédia, desde o simples mau uso individual de poder obtido por tal conhecimento e ou tecnologia, até a ameaça à própria existência da humanidade.

Com essa recorrente mensagem, muitos poderiam pensar que deve ter havido alguns casos similares, na história da ciência, para que fossem generalizados. No entanto, NÃO HÁ! Nunca uma inovação científica ou uma nova tecnologia fez qualquer outra coisa do que beneficiar a humanidade, o máximo que se pode dizer contra elas é que podem ser mal utilizadas, mas isso acontece com absolutamente qualquer coisa.

Claro que pode-se levantar mais uma vez a questão da Energia Nuclear. Mas lembremos que apenas dois artefatos nucleares foram efetivamente usados contra pessoas, e terminaram uma guerra que provavelmente mataria muito mais, ao passo que milhares de artefatos nucleares têm sido usados desde então para fins benéficos. Se ao menos a temática da ameaça científica tivesse se desenvolvido somente após a Guerra Fria, haveria uma boa justificativa histórica, mas ela é muitíssimo anterior.

Para mostrar isso, vamos citar alguns livros: Admirável Mundo Novo 1932 Aldous Huxley, Homem Invisível 1897 H.G.Wells, A Ilha do Dr. Moreau 1896 H.G.Wells, 20 Mil Léguas Submarinas 1870 Júlio Verne, O Médico e o Monstro 1886 Robert Louis Stevenson, As Viagens de Gulliver 1726 Jonathan Swift (na Terceira Viagem, à Laputa.). E merece destaque a obra de Goethe, Fausto 1806, baseado em lendas ainda mais antigas, sobre um pacto com o demônio para adquirir conhecimento.

Esses poucos exemplos mostram que a associação entre o conhecimento e o desastre, ou que seu mau uso parece inevitável, é bem mais antiga sequer do que nossos sonhos de Energia Nuclear. Se quisermos voltar ainda mais, lembremos que um dos motivos pelo qual a lendária Atlântida teria sido destruída foi exatamente seu desenvolvimento científico, que ofendeu os deuses, bem como sua degeneração moral, que curiosamente parecem estar sempre associados.

A própria Bíblia, mais uma vez, faz tal associação. Como diz o profeta do Juízo Final "...até o fim do tempo; muitos correrão de uma parte para outra, e a ciência se multiplicará." Daniel [12:4]

Brincando de Deus

Para colocar em uma só frase essa estranha e insistente fixação, existe a máxima "O Homem não deve brincar de Deus." É basicamente essa lição que por algum motivo, grande parte de nossa tradição cultural, da qual Hollywood é apenas uma parte, parece achar que é uma missão sagrada ensinar o mais exaustivamente possível. É, em síntese, uma alerta contra qualquer forma de progresso no conhecimento, que nos torna inevitavelmente mais próximos do divino.

Se hoje setores conservadores se levantam contra a pesquisa com Células Tronco, Clonagem ou Engenharia Genética em geral, não deveríamos nos esquecer que também se levantaram contra conquistas científicas que hoje somente a um louco caberia contestar. As vacinas, cirurgias corretivas, cura de certas doenças e medicina preventiva já foram vistas como afrontas à ordem natural ou divina, recebendo sua cota de repreensão.

Essa estúpida frase, que não só pressupõe Deus, como também uma providência autoritária e insensível que não devemos nos atrever a mexer, é especialmente defendida no filme Efeito Borboleta, de uma forma nem tão explícita, mas que fica horrivelmente evidente quando se assiste os comentários dos produtores do filme sobre os finais alternativos.

Nessa estória, o protagonista tem a capacidade de "voltar no tempo" e refazer as coisas, sempre alterando radicalmente o presente para o qual retorna. À medida que vai tentando ajudar a todos, evitando as mazelas para o maior número possível de pessoas, variáveis imprevisíveis acabam piorando tudo, até que enfim uma alteração específica é aceita como o menor dos males, quando o autor volta no tempo e desiste da menina que deveria ser seu grande amor.

Ao final do filme, anos após tudo ter terminado, ele se encontra fortuitamente com a mesma moça, já adulta, que não o reconhece, e prefere passar direto, com medo de começar tudo de novo. Tudo bem que o sujeito tenha preferido não arriscar, uma vez que ela lhe parecia ser a constante da tragédia. O problema foi ver que os finais alternativos, onde ele decidia enfim conhecê-la, foram descartados pelos produtores como "finais babacas", porque davam a impressão que o protagonista não havia aprendido nada!

E o que havia para aprender? "YOU CAN'T PLAY GOD!" Nas palavras do pai do personagem, que acabou enlouquecendo por ter o mesmo poder, e até tenta matar o filho! É isso! A sabedoria do assassino que acabou no hospício é a grande lição do filme! Só que ninguém pareceu ter se incomodado com o fato de que o encontro final estava fora da linha de eventos que compuseram a trama da estória, e que se conhecer a moça geraria de novo todos os problemas, então só se pode deduzir que há uma "força superior", um "destino", ou algo que o valha, ao qual devemos nos submeter humildemente, não importa quão cruel seja. Em síntese, a velha lição dos antigos poetas gregos que se conformavam com a crueldade dos deuses, que passou por toda idade média e que encontra defensores em plena era da informática, onde já devia estar claro que não temos que temer deuses pelo fato de estarmos cuidando de nós mesmos.

Que falta faz um pouco de Existencialismo em algumas cabeças semi-pensantes.

Até aqui, vimos então que há um nítido e inequívoco estereótipo do medo ao conhecimento em nossa cultura. Um preconceito que se estende à intelectualidade em geral e especialmente à ciência. A próxima questão é o porquê deste medo, que veremos no próximo texto, onde espero mostrar o que acabei de sugerir, que o problema não é o conhecimento em si, mas seu potencial para o Poder. Bem como algumas demais consequências que isso nos traz.

Marcus Valerio XR
Julho/Agosto de 2009

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