Texto desenvolvido entre 16/07/2007 e 14/01/2008.

Ano passado, uma certa apresentadora de conteúdos "esotéricos" da TV Bandeirantes havia recomendado o abandono de qualquer gato preto de olhos amarelos, sob a alegação de que eles vinham ao mundo para a prática de feitiçarias demoníacas. (Coincidentemente, pouco depois uma de minhas gatas, preta e de olhos amarelos, chamada LILITH, fugiu de casa.) Eu jamais me rebaixaria a perder tempo rebatendo essa idiotice, comento somente que, infelizmente, essa idiota ainda é menos pior do que os imbecis que acreditam nela.

Esse episódio porém me fez lembrar de um tema que há muito me propus a escrever, mas que por vários motivos negligenciei, sobre a estranha relação entre os seres humanos e um dos mais populares animais domésticos, os gatos. Uma relação que, se observada em seus níveis mais ocultos, revela um quadro perturbador da mentalidade humana, com tremendas implicações sócio-culturais.

Não estou exagerando, por trás desta questão se esconde, ao menos em parte, a chave para a compreensão de boa parte dos problemas da humanidade. Mas antes de discutir isso, temos que discorrer primeiro sobre essa relação em si.

HUMANOS e GATOS

Quem não adora cães? Praticamente todas as pessoas tem alguma simpatia por esses adoráveis animais. Mesmo porque são considerados companheiros fiéis, 'O Melhor Amigo do 'Homem." Comigo não é diferente, tive ao longo da vida dezenas de cães, sofri muito com a morte de vários deles, e acumulei diversas e interessantes experiências.

Pessoas que declaram não gostar de cães são raríssimas. Há quem nunca teve nem pretenda ter, não se sinta à vontade. Mas é difícil encontrar quem os deteste.

Infelizmente não podemos dizer o mesmo dos gatos. Embora existam muitas pessoas que os adorem, eu incluso, a quantidade de pessoas que os odeiam é enorme, muitas das quais assumem isso abertamente. Gatos sempre foram as vítimas preferenciais de crueldades contra animais, a violência contra essa espécie se manifesta das mais diversas e estranhas formas.

Milhares de gatos foram queimados em fogueiras, não só pela Caça às Bruxas, mas por revoluções populares variadas. Foram responsabilizados por toda a sorte de mazelas, inclusive de disseminar doenças, quando eram exatamente eles que as controlavam, caçando os reais disseminadores.

Em muitos momentos históricos a civilização humana seria inviável sem os gatos, visto que eliminam a terrível praga dos ratos, que além de espalharem as mais diversas doenças, destroem depósitos de alimentos, e roem a própria infra-estrutura das cidades.

Apesar disso, na maioria dos desenhos de gato e rato, são os ratos, e não os gatos, os heróis!

Há muitas justificativas para que não se goste de gatos, mas além do mero fato de quem não gosta deles raramente ter convivido com um, é interessante notar que todas essas justificativas são baseadas em preconceitos, equívocos, ou mesmo completamente fantasiosas.

A mais famosa de todas é a que taxa o gato de um animal traiçoeiro, interesseiro e que não gosta realmente de seus donos. É curioso que só quem pensa isso é quem nunca os teve na vida. Pergunte aos criadores de gatos o que eles pensam disso, e descobrirá que não passa de uma bobagem.

Assim como os cães, há diversos comportamentos nos gatos, que variam não só de raça pra raça, mas mesmo entre indivíduos de uma mesmíssima raça e ninhada. É verdade que há alguns pouco carinhosos e mesmo agressivos, mas não são nem sequer maioria. Há tanto carinho e afeição entre gatos e humanos quanto em humanos e cães.

Comparando os gatos com os cães, por sinal, é que notamos o quanto os argumentos contra os gatos são furados. É claro que muitas pessoas já foram machucadas por gatos, mas quantas também não o foram por cães? Inclusive os próprios donos? No entanto os cães jamais levaram a fama de traiçoeiros, e sim o contrário, de fiéis.

Curiosamente, porém, o máximo que um gato poderia fazer contra um humano seria furar-lhe um olho, o que no entanto é tão difícil que desafio qualquer um a mostrar um exemplo comprovado. Por outro lado, milhares de pessoas já foram mortas por cães, algumas totalmente destroçadas. Os ataques dos pobres pit bulls, por culpa da estupidez de seus donos, tem sido recorrentes nos jornais. Mesmo assim, nem os pit bulls foram taxados de animais traiçoeiros, ainda que volta e meia um mate o próprio dono.

Portanto, dizer que os gatos são traiçoeiros é no mínimo tão sem fundamento quanto dizer que os cães o são. O mesmo pode-se dizer de que são interesseiros, como se qualquer cão também não o fosse, ainda que num estilo diferente.

Costuma-se também dizer que os gatos são mais apegados à casa do que aos donos, ao contrário dos cães. Curiosamente ninguém parece perceber que isso decorre apenas do simples fato de que é quase impossível prender um gato dentro de casa. Eles saem com facilidade, e voltam. Já os pobres cães são fáceis de serem aprisionados e mantidos cativos num local específico. Mas se lhes for dada a oportunidade, eles agem de modo muitíssimo parecido.

De fato é mais difícil levar gatos para passear, pois eles são mesmo mais independentes, e é exatamente nesta independência que reside a primeira pista de porque existe tanto preconceito contra gatos.

Outra queixa frequente contra gatos se deve ao barulho que podem causar, em especial quando copulam. Mas os cães não ficam nada atrás, por vezes latindo inutilmente a noite inteira, e são tão ou mais escandalosos quando cruzam. E se é certo que diferente dos cães, os gatos costumam subir em telhados, tente comparar a quantidade de ocorrências de gatos fazendo baderna em telhados, com a muitíssimo maior de cães fazendo algazarras equivalentes.

O que se notará é que por algum motivo só os gatos levam a má fama. Chega-se ao ponto de serem considerados animais insalubres quando apenas por acaso são nada mais nada menos do que OS MAIS LIMPOS dentre todos os animais! E ainda por cima ajudam a tornar os ambientes, inclusive as ruas das cidades, mais limpos, eliminando animais realmente insalubres.

Então, por que tantas pessoas não gostam de gatos?

VÍTIMAS DO ÓDIO

Quem, ao passear em uma feira popular ou qualquer local onde haja comerciantes ambulantes, já não se deparou com aqueles vendedores que simulam espancamentos de gatos dentro de sacos? Com o propósito de vender um dispositivo que imita o som do animal, esses vendedores nunca utilizam uma imitação mais criativa, alguma coisa simpática, ou uma abordagem meramente divertida. Ao menos para mim.

Causa-me revolta notar que muitas pessoas acham isso engraçado! Eu sei que não é real, mas da mesma forma como sei que uma cena chocante num filme é uma mera encenação, ainda assim ela não perde seu potencial de causar desconforto, que é exatamente o que eu sinto ao me deparar com esse espetáculo de péssimo gosto.

Por que é engraçado? Por que simular o espancamento cruel, e o sofrimento de um animal, consegue divertir certas pessoas?

Agora façamos outra pergunta: Alguém ja viu simulações de tortura de algum outro animal?

Não! É sempre o gato! Esses rituais de perversão na realidade não sugerem por acaso única e exclusivamente um gato como vítima, mas sim revelam que existe uma enorme aceitação social pela agressão a gatos. É fácil localizar na internet, a começar pelo infame Orkut, blogs, comunidades e outras inutilidades voltadas ao ódio aos gatos, alguns até mesmo ensinando a torturá-los. Gatos já foram queimados aos milhares em fogueiras públicas na Europa, e não somente por qualquer preocupação sanitária equivocada, e continuam sendo os únicos animais que são vítimas de assassinos seriais.

O ódio aos gatos tem até um hino popular, Atirei o pau no gato....

Nunca, nada nem parecido, aconteceu com cães, e já temos, na questão dos assassinos seriais, uma pista para entender o porquê de tanta demência. Alguém já ouviu falar em assassinos seriais de lutadores de jiu-jitsu? De halterofilistas, ou de homens fortes em geral?

Claro que não. Assassinos seriais só matam crianças e mulheres, quando muito, adolescentes e homens homossexuais. Vale lembrar também, que é um padrão comum entre os assassinos seriais começarem na infância matando e ou torturando animais, preferencialmente, gatos.

PRECONCEITO MESMO ENTRE AS CAMADAS ESCLARECIDAS

O maior sinal de que um preconceito é forte não é obtido somente ao avaliar o comportamento da população mais humilde, mas sim quando observamos que o mesmo preconceito é mantido mesmo nas camadas mais esclarecidas da sociedade. Para mostrar isso, e também para adicionar alguns dados acadêmicos ao tema, vejamos um trabalho desenvolvido por colegas meus da Universidade de Brasília, intitulado Matança de Gatos na UnB.

Embora os autores nem passem perto de examinar as causas fundamentais do problema, como eu pretendo fazer, eles apresentam dados interessantíssimos, em especial, quando se pedem motivos pelos quais os gatos devem, e se devem, ser removidos ou exterminados do campus universitário. O argumento que mais aparece contra os felinos é disparado o mais falso de todos, o de que eles transmitem doenças, em segundo lugar, o de que causam danos à limpeza, em especial rasgando sacos de lixo, e que destroem equipamentos de laboratório.

O mais curioso entretanto é que essas últimas reclamações são quase exclusivas das pessoas que não estão envolvidas nem na limpeza, nem na manutenção dos laboratórios. Entre os verdadeiros responsáveis por essas incumbências, as mesmas reclamações foram muito menores.

O que salta aos olhos, é que as pessoas procuram argumentos para tentar validar sua repulsa aos gatos, e como a maioria dos que os fazem não conhecem o animal, acabam recorrendo a preconceitos e equívocos injustificáveis, como o de afirmar que gatos sujam o ambiente com excrementos quando na realidade são os únicos animais domésticos que não só fazem suas necessidades sempre na terra, ou areia, como ainda enterram suas fezes! Na realidade, são os únicos animais domésticos que aprendem até a usar vaso sanitário! (Não acredita? Veja também AQUI)

Mais interessante ainda é notar que nesta mesma pesquisa, listou-se a reação predominante das pessoas aos gatos, e o que se vê é uma apresentação estatística daquilo que é óbvio quando se examina o assunto. Os gatos são amados OU odiados, quase sem meio termo. Vale a pena reproduzir os números. Os entrevistados em questão, no âmbito universitário, vêem nos gatos:

1) Afeição (223 entrevistados)

2) Aversão (215 entrevistados)

3) Admiração (193 entrevistados)

4) Medo (75 entrevistados)

5) Indiferença (46 entrevistados)

6) Superstição (11 entrevistados)

7) Utilidade (10 entrevistados)

Repare que a indiferença aparece em quinto lugar, e a superstição em sexto, acima, PASMEM, da utilidade, que é conhecida da humanidade desde o Egito Antigo!

É interessante notar que muitas pessoas que não tem afeição ou interesse em se relacionar com gatos, ainda assim os admiram, e isso é a última dica que vou dar antes de explicar o porquê de existir tantas excentricidades a respeito dos gatos.

POR QUE OS GATOS SÃO TÃO TEMIDOS E ODIADOS?

Como vimos, nada parece responder racionalmente a esta pergunta. Preste atenção nas pessoas que não gostam de gatos, e notará que a maioria delas age assim porque foi ensinada. Em geral são filhos de pessoas que também não gostavam, e até repetem frases feitas como "Gosto muito de gato, eu cá, e ele lá".

A resposta que dou a essa questão, obtida após uma longa reflexão e discussão com minha esposa, outra amante de gatos, é a seguinte:

Os gatos são odiados porque são um SÍMBOLO da FEMINILIDADE.

Para sustentar essa afirmação, tudo que eu preciso é mostrar que os gatos são um símbolo do Feminino, e que o Feminino, isto é, o aspecto existencial da Feminilidade, presente em toda nossa experiência humana, é uma característica que sofre preconceitos e dificuldades de aceitação.

GATOS e FEMINILIDADE

A primeira afirmação é a mais fácil. Simbolicamente, o gato é sempre associado às mulheres. A divindade egípcia Bastet, onde os gatos chegaram a ser adorados, é uma deusa, equanto a divindade chacal, um parente do cão, é um deus (Anúbis). Os gatos foram fortemente associados às bruxas, morrendo com elas nas fogueiras da ignorância e sendo responsabilizados por crimes sobrenaturais, como roubar a alma de crianças. [Até hoje, há quem afirme o absurdo de que gatos transmitem asma, curiosa e especialmente, para crianças. Visto que asma nem sequer é contagiosa, e ainda que fosse, o seria tanto contra crianças quanto contra adultos, essa afirmação é tão fantasiosa que só pode ser a versão moderna desta superstição.]

Gatos são animais sensuais, eles se esfregam, se roçam, são sedutores, e por isso consideramos as mulheres bonitas como "gatas", ou "panteras", que são versões macro dos gatos. A beleza é uma virtude que sempre nos soa feminina, Afrodite, a deusa da beleza, é uma mulher. Mesmo quando se chama um homem de "gato", faz-se alusão à uma característica feminina. No nordeste brasileiro há até a estranha expressão "gato véio" (assim mesmo, no masculino), para se referir à mulher de vida sexual ativa.

Passeando no supermercado, observe as capas de ração para animais. Você notará que nas de rações caninas encontram-se mais homens do que mulheres, e muitas vezes o cão olha diretamente para o dono. Na capas de rações felinas, quando há humanos, SEMPRE são mulheres, e o gato jamais está olhando para a dona.

A parceria gato-mulher e cão-homem pode ser quase tão antiga quanto a humanidade, visto que os cães eram companheiros de caça, ou guardiões de território, atividade que também cabia aos homens. Já os gatos, sendo mais caseiros, ficavam mais próximos das mulheres.

Em inglês, essa associação é ainda mais flagrante. O andar rebolado, atitude tipicamente feminina, é catwalk, e a palavra pussy se aplica tanto ao felino quanto à genitália feminina. Por outro lado, o andar dos cães é bem mais "másculo", muitas vezes um trote, e eles nunca cruzam as pernas ao andar, característica fundamental do rebolado feminino, pelo contrário, andam com as pernas abertas, característica típica do andar masculino.

Vamos insistir na comparação gatos e cães e veremos como essa associação vai ainda mais longe. Os cães, como já foi dito, são na língua inglesa frequentemente chamados de buddies, um termo sem tradução literal que significa um amigo/parceiro masculino de um homem. E não é só na caça que cães e homens têm andado juntos, mas em praticamente todos os símbolos.

O lobisomen, sendo o lobo uma versão do cão, sempre é um homem, mas quando se pensa em associar um gato a um humano, a mulher é colocada automaticamente. Os poucos 'homens-gatos' e 'mulheres-lobo' só apareceram quando o imaginário já estava saciado com 'mulheres-gato' e 'homens-lobo', lembrando que as mulheres só são associadas a lobas em idades pós-balsaquianas.

Uma estória que capturou bem essa relação de gênero é The Cat that Walked by Himself do escritor britânico Rudyard Kipling, (autor de Mogli, o menino-lobo) que no livro Just So Stories conta esta estória, cujo título significa "O Gato que Andava Sozinho/Por conta própria", e é apresentada uma forma lendária muito comum, que remonta a um fabuloso passado onde os animais falavam, e onde os eventos decorridos explicam suas características atuais.

Os animais eram todos livres, mas o cão trocou sua liberdade pela parceria com o homem na caça, recebendo costela de carneiro assada como pagamento. A vaca também o fez em troca de receber a mais suculenta das relvas ao passo que fornecia leite para os humanos, o cavalo também, passando a ser montaria do homem.

Evidentemente cavalo e cão passaram a trabalhar com o homem, e a vaca e o gato com a mulher, na casa. O gato, entretanto, não abriu mão de sua liberdade, fazendo um pacto secreto com a mulher, sem o conhecimento do homem, no qual se encarregava de divertir e acalmar as crianças, e eliminar os ratos, tão temidos pelas mulheres. Não ter cedido sua independência, no entanto, teve um preço, e o gato foi condenado a ser odiado por 3 a cada 5 homens bons, e a ser perseguido pelo cão.

Enfim, os exemplos são tão vastos que não parece necessário citá-los mais, no entanto essa estória reflete a clara divisão de papéis sociais, a mulher em casa, na vida doméstica, e o homem vai ao trabalho, à caça, e se os cães estão em harmonia com a atividade masculina, e os gatos com a feminina, por outro lado, há um anacronismo no fato do gato permanecer livre para andar por onde quiser, tendo o direito de ir e vir.

E é aí que está a chave para o entendimento do problema, pois embora seja um símbolo do feminino, o gato não é um representante direto da feminilidade típica socialmente sacramentada, mas sim da feminilidade oculta, livre e independente, que nossa civilização, há milhares de anos, tem lutado para reprimir.

EVA X LILITH

A segunda afirmação, de que a nossa cultura tem uma relação difícil com a feminilidade, também não é difícil de demonstrar, mas merece mais esclarecimento aos não familiarizados com um certo tema, que é central neste texto.

Ao longo de milhares de anos, 50% da humanidade, a metade feminina, esteve relegada a uma importância secundária. A condição feminina ao longo da maior parte da história, na maior parte do mundo, sempre foi desvantajosa em vários sentidos, e isso é ponto pacífico.

No entanto, as mulheres são parte integrante da humanidade, a feminilidade faz parte de nossa vida, com plena aceitação social, porém na realidade apenas até certo ponto.

Enquanto a masculinidade foi preservada de modo mais ou menos coeso, a feminilidade foi dividida em duas partes, uma aceita e dignificada, e a outra desprezada e marginalizada, porém, cobiçada. A esses dois aspectos femininos distintos utilizo os nomes de aspecto EVA e aspecto LILITH.

EVA é o aspecto socialmente aceito e dignificado. A figura feminina da Mãe, esposa fiel e zelosa, guardiã do lar, submissa e obediente, e ainda que bela, deve ser discreta e recatada, passiva. Ainda que, simbolicamente tenha levado a culpa pela expulsão do paraíso, da mesma forma como Pandora, na mitologia grega, foi a culpada pela entrada dos males no mundo, Eva ainda assim é reconhecida como uma criação divina ao lado de Adão.

LILITH é o aspecto oculto, marginalizado. A figura feminina livre, independente, que não se submete ao masculino, sexualmente ativa, sedutora, que exerce seu poder sobre o masculino de forma direta. Na maioria esmagadora dos contextos sociais ao longo da história, isso significa estar arbitrariamente associada à prostituição, independente disto ser verdade ou não. Mulheres livres que escaparam do domínio masculino sempre foram acusadas de meretrício, visto que era uma forma de depreciá-las, mas também uma consequência natural do símbolo.

Lilith é um ser mitológico hebráico. Ela foi, na verdade, a primeira mulher de Adão, tendo sido criada em pé de igualdade com este. Porém, recusando-se a ser submissa, acabou fugindo, ou sendo expulsa, do paraíso, sendo então substituída pela obediente Eva.

Não se surpreenda quem nunca tiver ouvido falar de Lilith, embora ela seja personagem largamente reconhecida no folclore hebráico, estando presente nos livros religiosos da Cabala e na tradição Midrash. Todavia, entre as punições que recebeu por sua insubordinação, a mais 'notável' foi justamente o esquecimento, por meio da exclusão de qualquer referência à sua existência na Bíblia.

O observador atento no entanto, poderá notar que é possível ver claramente "lacunas" nos primeiros capítulos da Gênese que sugerem a existência de uma mulher anterior a Eva. Quem quiser uma análise mais detalhada, recomendo o texto Jardim do Éden Revisitado, ou o verbete na wikipédia, mais simplificado.

O que nos importa aqui é que, quando estou falando da feminilidade renegada, não estou falando nas mães de família, na rainha do lar ou na donzela, mas sim na mulher insubmissa, que em nossa civilização sempre sofreu a pecha de praticar a profissão que um delirante ditado da burrice popular insiste em dizer ser a mais antiga do mundo.

Portanto, os gatos simbolizam o feminino Lilith, a sensualidade, beleza e sedução, associados à independência, insubmissão e autonomia. O arquétipo Lilith, numa sociedade machista, é uma ameaça ao estado de coisas, e portanto, será perseguido e desprezado das mais variadas formas, no entanto, jamais poderá ser extirpado, pois a humanidade depende dele tanto quanto do aspecto Eva, que representa antes de tudo a maternidade, quanto também do aspecto Adão, a masculinidade.

INSUBMISSÃO FEMININA

Os gatos são odiados, porque simbolizam exatamente isso, a Feminilidade Indomável, insubmissa, sensualmente livre e autônoma. Para manter um estado de coisas androcentrista, isto é, centrado na parte masculina da humanidade, é inevitável reprimir e controlar essa feminilidade, embora seja impossível destruí-la, mesmo porque a masculinidade facilmente sucumbe à sua sedução.

Ser vulnerável aos encantos das Liliths, porém, não as torna mais aceitáveis para a mentalidade androcêntrica, pelo contrário. É comum os homens não resistirem às prostitutas, e sempre procurarem seus serviços, mas mesmo assim, as desprezam, manifestando isso das mais diversas formas possíveis.

No mundo de hoje as mulheres estão cada vez mais reclamando o espaço que lhes foi negado historicamente, e isso, entre outras coisas, envolve fundir os aspectos Eva e Lilith numa matriz única, o que torna a feminilidade tão ou mais poderosa que a masculinidade, passando a estar então em pé de igualdade em todos os aspectos. Algo que a mentalidade conservadora e retrógrada não pode suportar.

Não é à toa, que não é difícil achar uma notável intercessão entre pessoas machistas, tanto homens quanto mulheres, e a indisposição por gatos. Não significa que todos os machistas detestem gatos e vice-versa, porque, como já disse, basta a mera convivência com eles para dissolver o preconceito e suavizar o símbolo, mas minha experiência, ao menos, sugere isso na maioria dos casos.

Também não significa que quem deteste gatos necessariamente seja machista, mesmo porque o ódio a gatos é inconscientemente transmitido sempre que possível, mesmo que quem o receba não tenha tendências a androcentrismo exacerbado. Para um apoio estatístico veja esta interessante pesquisa nos EUA que associa a preferência por gatos ou cães entre homens e mulheres levando em conta sua inclinação político-social, Conservadora ou Liberal. Fiz uma versão traduzida do gráfico, onde temos L de Liberais e C de Conservadores, com um "+" para indicar um grau maior de tendência.

Esse é apenas uma das evidências que suportam essa tese, de que a matriz do preconceito, a origem do ódio, seguramente é associar ao animal um símbolo da feminilidade independente, a feminilidade LILITH.

O nome, então, para mim foi profético. Ninguém pode dominar as liliths, e minha gatinha preta de olhos amarelos, chamada Lilith, fugiu de casa e nunca mais voltou, enquanto a gatinha branca e cinza, que até tentamos apelidar de Eva, continua uma fiel matrona do lar até hoje, linda e gorda.

Enfim, você pode não acreditar nessa teoria, mas experimente observar sob esse ponto de vista e prepare-se para algumas surpresas. Exceções à parte, ela funciona!

Basta aceitar que os gatos são símbolos da Feminilidade Independente, que chamei de Lilith, e que esta é renegada pela nossa cultura, o que é exemplificado principalmente por sua completa omissão na Bíblia.

Se você ainda acha incrível, perceba que Lilith não é a única coisa que foi deliberadamente excluída dos textos sagrados judáico-cristãos, mas qualquer suporte a idéia de uma mulher ser independente e livre. Se os entusiastas de O Código da Vinci estiverem certos em alguma coisa, os Evangelhos também terão excluído toda a importância de Maria Madalena, reduzindo-a de uma líder influente a uma mera prostituta arrependida. A Bíblia é inequivocamente um livro androcentrista, e quando surgem mulheres poderosas, geralmente são feiticeiras pagãs no Velho Testamento que acabam sendo derrotadas.

E além de eliminar não só o símbolo da liberdade feminina, Lilith, e qualquer outro exemplo similar, a Bíblia mesmo citando frequentemente inúmeros animais, entre cães, ovelhas, morcegos, hipopótamos, leões, porcos, cavalos, ratos, etc, sempre destacando sua importância em relação aos humanos, ainda assim...

Apesar de se preocupar em ser um registro amplo da história humana, inclusive envolvendo o Egito, em todos os mais de 4 milhões de caracteres dos 66 livros canônicos da Bíblia, não há, absolutamente, nenhuma referência à existência de gatos!

Marcus Valerio XR
Iniciado em 16 de Julho de 2007 - Concluído em 14 de Janeiro de 2008

Interessante mensagem de Rafael A.B. Pavani sobre esse texto,
onde fiz alguns acréscimos sobre Lilith e o Malleus Maleficarum.


mensagem de Luis Gustavo Neves da Silva, onde acrescentei
outras reflexões, inclusive na cultura japonesa.
ENSAIOS



MONOGRAFIAS
Sobre o mito hebráico
Eve, and the Identity of Women