O "GÊNIO" NA LÂMPADA
Sophofobia & Misosophia
Parte Final de um Ensaio iniciado em O "Gênio" do Mal, e intermediado em A "Ameaça" do Gênio

"Frequentemente ele considerava misericordioso que a maioria das pessoas mais inteligentes zombasse dos mistérios mais profundos, porque, dizia, se as mentes superiores fossem colocadas integralmente em contato com os segredos preservados pelos cultos antigos e inferiores, as anormalidades resultantes não apenas arruinariam o mundo logo, mas ameaçariam a própria integridade do universo."

O Horror em Red Hook
H.P.Lovecraft (1890-1937)

Parte Final
SOPHIA, Temida e Odiada

A Sophofobia se transforma em Misosophia, das formas mais variadas. Mas, como parece acontecer com várias outras coisas, há uma relação inversa com o mesmo objeto, gerando constante conflito. Em suma, o conhecimento, a inteligência, a sabedoria, são todos objetos frequentemente simultâneos de amor e ódio. (E para não nos perdermos na terminologia, basta considerarmos que CONHECIMENTO pode ser entendido no sentido mais "teórico", o saber sobre fatos e idéias, a INTELIGÊNCIA em geral é vista como capacidade de solucionar problemas de ordem prática, e a SABEDORIA é normalmente vista como de ordem moral, mais profunda, sobre nossos sentimentos e nossas relações.)

Frequentemente são associadas, mas alguém pode ser intelectualmente visto como inculto, porém detentor do que chamamos de "sabedoria de vida", capaz de dar úteis conselhos de conduta. Uma pessoa pode ser brilhante na resolução de problemas e nas estratégias de obtenção de resultados, inteligente, mas não ser boa em considerar as melhores opções existenciais que não puderem ser facilmente reduzidas a dados técnicos. Alguém pode ter uma vasta cultura intelectual, dominar tópicos históricos, filosóficos e literários, mas ser incompetente para solucionar problemas do dia a dia.

No entanto, é comum uma coisa puxar a outra. O sábio pode não ser intelectualmente sofisticado, mas não rejeita nem despreza conhecimentos. O Inteligente sabe ver utilidade nos dotes intelectuais, e o intelectual (que evidentemente já vimos como relacionado ao 'conhecimento') sempre reconhece as virtudes das demais. Em suma, podemos dizer que a cientista natural, a inventora, o técnico, são inteligentes. Que o literato, a filósofa, o erudito, têm grandes conhecimentos, e que o guru, o preto velho, a mística, têm sabedoria.

Assim, o que deveria ser mais vítima de medo e ódio seria a inteligência e o conhecimento, mas ocorre que uma das principais características da ignorância é exatamente a incapacidade de distinguir as coisas, e assim, tudo acaba sendo considerado "a mesma coisa", e rejeitado em bloco.

Causa e Efeito

De qualquer modo, pode-se resumir todo o conhecimento, sabedoria e inteligência a um denominador comum. É que todos são basicamente uma capacidade de reconhecer as devidas relações entre as coisas, em especial seus nexos causais. Quanto mais alguém souber dizer o quê deu origem a quê, mais inteligente será, quanto mais entender qual a razão por trás de certos eventos, mais sábia será, quanto mais for capaz de associar informações distintas numa conexão válida, mais conhecimento terá.

Pelo lado oposto, podemos inferir que a principal característica da estupidez é exatamente a incapacidade de perceber as causas reais dos eventos, atribuindo-os causas errôneas ou mesmo fictícias, até se recusando a pensar sobre o assunto. Mas aquele que é apenas incapaz de fazê-lo é o mais perdoável, um mero ignorante. O caso mais grave é aquele que, mesmo tendo todos os elementos para descobrir as relações verdadeiras, deliberadamente se recusa, preferindo criar associações fantasiosas do que encarar as conexões racionalmente mais evidentes.

Há uma triste relação direta entre a falta de conhecimento e sua necessidade, bem diferente daquela que há entre outras virtudes. Normalmente alguém que é covarde sabe que gostaria de ser mais corajoso. Alguém que é muito nervoso costuma reconhecer que deveria ser mais calmo. Mas embora seja comum reconhecer que se deveria ser mais inteligente, existe um nível de ignorância que começará a ter efeito contrário, e quanto mais estúpida for a pessoa, menos ela reconhecerá que deveria reverter essa situação. O resultado disso, exatamente inverso aos que costumam dizer que ignorância traz felicidade, é um interminável e perpétuo sofrimento, salvo nos casos raros de sorte luminosa. O indivíduo cometerá erros que lhe trarão mais e mais desgraça, perpetuando sua miséria, mas nunca lhe ocorrerá reverter a origem disso tudo, sua estupidez, pondo sempre a culpa em algum bode expiatório externo.

Em outras palavras, quanto mais conhecimento se adquire, mais se fica consciente da própria ignorância, levando a sentir vontade de se progredir ainda mais. E o oposto também acontece. A maior mazela da ignorância é a incapacidade de reconhecê-la em si próprio.

Uma palavra que costuma resumir bem os conceitos de inteligência, sabedoria e conhecimento / intelectualidade, é SENSATEZ, ou BOM-SENSO. Embora isso costume estar mais relacionado a questões práticas e morais, talvez seja a qualidade suprema da racionalidade. Trata-se de uma 'sensibilidade' para desvendar as relações causais. É nesse sentido que deve ser entendida a famosa ironia de Descartes de que "O Bom-Senso é o dom mais bem distribuído entre as pessoas, pois ninguém acha que precisa tê-lo em maior quantidade." Ou seja, costuma-se muito querer ser mais corajoso, mais paciente, menos preguiçoso, menos triste etc. Mas ninguém parece querer ser mais sensato.

Mas a ignorância tem limites, muitos, e por mais que não se queira ser mais sensato por si próprio, acaba sendo inevitável reconhecer que as pessoas de gênio mais notável gozam de claros benefícios. Ocorre então um dilema. A pessoa gostaria de usufruir dessas mesmas benesses, mas não quer ela própria ser capaz de obtê-las por si mesma. O que fazer? Arranjar alguém para fazê-lo por ela. Em suma. Arranjar um...

...Gênio da Lâmpada!

A palavra árabe djin refere-se a uma série de espíritos elementais e criaturas sobrenaturais dos mitos e superstições do deserto. Do latim temos o termo genius, mais associado a espíritos guardiões de pessoas ou locais. As similaridades permitiriam até mesmo torná-las equivalentes, e inclusive compará-las aos anjos da guarda. Mas o que interessa aqui é que herdamos essa curiosa expressão de usar um mesmo termo para designar uma pessoa brilhante e um ser sobrenatural.

Quem nunca quis encontrar um famoso Gênio da Lâmpada? Um ser super poderoso, praticamente um Deus, mas que se coloca a nosso serviço, realizando nossos desejos? Não sendo isso possível, não é a toa que muitos façam o seu equivalente real, usufruir dos serviços de pessoas mais inteligentes em certas áreas. E isso não será problema algum enquanto houver alguma reciprocidade, ou ao menos algum reconhecimento.

Nas lendas do Gênio da Lâmpada, os benefícios que o felizardo recebe costumam ser desproporcionais aos que ele oferece, mas o gênio ganha a liberdade após o serviço. Isso não costuma ocorrer nos casos mais graves de ingratidão e menosprezo pelas pessoas que, por sua genialidade, empenho e dedicação, dedicam suas vidas para desvendar mistérios e criar coisas que tornam nossas vidas melhores.

Nenhum empreendimento humano é mais vítima de ingratidão do que a Ciência. Atualmente é difícil haver quem não deva a vida ou o bem-estar direta ou indiretamente a algum avanço científico dos últimos séculos. Mas quem já viu alguém agradecer por tais dádivas?

Já houve alguém que, após ter tido uma filha salva por algum recente avanço medicinal, tenha em retribuição doado dinheiro para instituições de pesquisas ou financiado a formação de estudantes nas áreas de ciências ou medicina? Enquanto isso, igrejas recebem milhões em doações por qualquer benefício que o avanço científico e tecnológico tenha trazido em suas vidas. Os humanos, os pesquisadores, o método científico, fazem o trabalho. Mas a glória é de Deus! Pra depois virem dizer que NÃO DEVEMOS BRINCAR DE DEUS!!!

Falta até mesmo a mínima consideração por aqueles benefícios do dia a dia. Lembro-me sempre de uma cena de algum filme de high school americano onde uma dondoquinha discorre sobre seu desprezo e ojeriza pelos nerds ao mesmo tempo que parece muito feliz com seus aparelhinhos eletrônicos (na época um walkman e um relógio digital, mas hoje poderia ser um I-Pod ou um celular), e por outro lado era admiradora enveterada dos garanhões da escola e dos jogadores de football (no caso, aquele football que não se joga nem com o pé, e nem com uma bola).

Sabendo que isso representa situações reais, fico imaginando se uma criatura dessas alguma vez pensou sobre que tipo de gente é responsável por esses belos aparelhos, ou pelas tecnologias envolvidas em todos os demais benefícios que ela usufrui. Será que ela pensaria que eles estão mais próximos dos esportistas das quadras de basquete ou dos graciosos garotos cool ao melhor estilo New Kids on The Block ou High School Musical? Nada contra nenhum desses. Mas sim contra o desprezo contra aquele perfil de pessoa que seguramente é responsável pelo avanço científico e técnico de nossa civilização.

A Vingança dos Nerds

Há 20 anos, computador era coisa de "nerd", seja lá o que isso signifique. Os 'micreiros', do tempo que a expressão "microcomputador" ainda fazia sentido, eram pouco populares, visto como apreciadores de um hobby específico e desvinculado de qualquer abrangência mais séria. Isso se não eram tidos como excêntricos, por vezes tendo que justificar porque gostavam, compravam e usavam essas coisas chatas de computadores, principalmente numa época em que não existiam mouses, sistemas operacionais visuais e nem HDs.

Hoje tudo mudou. Saber operar bem um computador passou de uma atividade exótica e obscura para uma necessidade vital de qualquer cidadão moderno. Condição primária para ingressar, e sobreviver, na maior parte do mercado de trabalho qualificado, e diferencial decisivo na ascensão profissional e competência técnica geral. Enquanto ainda existem os velhos dinossauros que não conseguiram se adaptar a essa nova fase ocupando boa parte dos postos de trabalho mais antigos, restam as últimas resistências. Mas seguramente em menos de 20 anos não haverá qualquer possibilidade de uma pessoa produtiva não depender em grande parte de seus conhecimentos informáticos.

Somando-se isso ao fato óbvio de que aqueles usuários de computadores antigos, dos tempos em que "família" de computadores era um termo usual, estão hoje entre os melhores usuários, e que invariavelmente os menos versados vivem recorrendo aos mais desenvoltos na área, e o resultado é que os nerds, nesse sentido específico de geek, levam uma tremenda vantagem.

O homem mais rico do mundo ser um nerd típico é só a coroação simbólica disso.

O Guia dos Sábios

Mas não é de hoje que as pessoas que se dedicam a estudos específicos e árduos, por vezes mais por vocação natural que por obrigação, assumem posições de destaque na sociedade. Além de cientistas e engenheiros, juízes e promotores, investigadores, técnicos e uma miríade de trabalhos e cargos importantes estão intimamente relacionados à afinidade com o conhecimento. Ignorância sempre teve como resultado o fracasso, associada a violência, maldade e toda sorte de desgraça.

Mas nada disso impede que a preguiça de pensar, a lassidão de raciocínio e a estupidez por escolha sejam curiosamente admiradas, principalmente quando associadas à truculência que só a falta de disposição para o diálogo consegue produzir. O principal motivo pode ser simplesmente um "instinto" de horda. As pessoas têm uma forte necessidade de ser aceitas por grupos, de preferência grandes, e os grupos dos piores sempre são maiores que os dos melhores, em qualquer aspecto.

Os mais persistentes são menos numerosos que os mais desistentes, os menos belos existem em quantidade superior aos mais belos, e assim por diante. Não é surpresa que os mais inteligentes e bem sucedidos também sejam minoria. Assim, uma das formas de se afirmar como pertencente ao grupo maior é por meio do destaque de suas principais características. No caso em questão, afirmar a ignorância de modo a frisar seu local garantido no grupo maior dos menos inteligentes.

Percebi isso desde muito cedo, na escola, ao observar aquelas leituras em grupo, em sala de aula, quando a maioria dos alunos segue aquele ritmo lerdo da leitura coletiva, ou apenas um lê enquanto os demais acompanham. Ao primeiro sinal de uma palavra técnica mais complicada, o mais comum é o leitor fazer questão de mostrar que não conhece e não entende o termo, e a maioria acha muito engraçado afirmar sua estranheza e falta de disposição em entendê-lo.

Já a estudante que tem vocação para o conhecimento, lê as palavras antecipadamente, tenta ao menos pronunciá-las sem maior dificuldade, para mostrar que o termo não lhe é um problema. Não raro, ante um termo novo e difícil, não hesita em consultar o dicionário para descobrir seu significado. Por outro lado, os preguiçosos jamais se dão a esse trabalho, podem até perguntar para quem estiver próximo sobre o significado da palavra, mas se não forem ajudados, não tem disposição suficiente para pesquisar por si próprios o conceito.

Tudo isso para ao final acusar os colegas mais aplicados de serem esnobes. Interessante que a ostentação de riqueza, especialmente a que não se fez por merecer, parece incomodar menos que a demonstração de conhecimentos que se adquiriu pelo próprio esforço.

CURIOSAMENTE! E tragicamente! O dicionário foi apelidado pelos ignorantes de "Pai dos Burros"! Como se 'burros' consultassem dicionários! Quando é óbvio que a principal característica da ignorância é exatamente a preguiça e acomodação com a própria falta de conteúdo, e por isso jamais abre um dicionário, uma enciclopédia, ou hoje em dia, consulta um site de busca para conhecer algo. Isso sempre foi tarefa das pessoas curiosas, que querem aprender, por isso não hesitam lançar mão de todos os recursos disponíveis para enriquecer seus vocabulários.

Daí nota-se aquela outra, e das mais paradoxais, característica da estupidez. Sua pretensa auto suficiência. Os ignorantes não se esforçam para mudar seu estado, e é isso, e não a quantidade de conhecimento que possuem, que os qualifica como ignorantes. O não-ignorante está sempre buscando progredir e expandir seus conhecimentos, e é isso, e não a quantidade de conhecimento que possui, que o qualifica como não-ignorante, ou 'inteligente', ou qualquer designação.

Portanto, o que caracteriza a ignorância, ou a estupidez, não é o quanto de conhecimento o indivíduo possua, mas sim sua postura diante do conhecimento. Em geral, de uma estranha auto suficiência. É o Não-Saber, somando ao "Não Querer Saber". Por isso ao invés do ridículo apelido de "pai dos burros", dicionários e similares deveriam ser reconhecidos como guias para o conhecimento.

Infelizmente, falta um bom termo para caracterizar essa pessoa que busca o conhecimento. Chamá-la de "Sábia" soa presunçoso, até mesmo 'Inteligente' tem sua inadequação. 'Intelectual' seria menos problemática, mas soa um tanto restrito. O ideal seria algo que significasse "os que buscam conhecimento / sabedoria".

Curioso, é que é exatamente isso que significa "Filósofo".

De Volta ao Cientista Louco

Vejamos outro ponto de vista sobre o cientista louco. É que os grandes vilões fictícios costumam ser criados de modo a serem os únicos responsáveis por todo o mal que causam. Diferente de, por exemplo, os grandes ditadores, tiranos, gangsters, que naturalmente dividem a responsabilidade de seus atos com seus comparsas, subordinados, seguidores etc.

Acontece que um indivíduo sozinho jamais poderá ser capaz de causar uma ameaça à sociedade em si, não sem compartilhar objetivos e ganhos com associados. Portanto, para que uma só pessoa possa ser considerada um grande vilão capaz de por em risco a própria humanidade, ele deve ter um grande poder em especial, e é aí que entra a "ciência", como uma espécie de porta para o domínio da natureza, promessa de realizações que tragam tecnologias superiores capazes de subjugar uma civilização. Poderiam ser magos, bruxas, ou super poderes, mas no caso, só o "super cientista" seria capaz de feitos similares.

Antes de funcionar como uma desculpa, essa percepção apenas agrava a noção de que o conhecimento seja apenas um instrumento para a obtenção do poder, com objetivos escusos, como se alguém que fundamentalmente é um candidato a ditador, ou um psicopata qualquer, fosse capaz de penetrar nos domínios do conhecimento aplicado para realizar essas pulsões primitivas. Ou seja, ao invés de achar que o Conhecimento, a Ciência em especial, necessariamente levará ao Mal, pensasse que o Mal é capaz de promover e produzir Conhecimento avançado.

Ocorre que a única coisa que de fato resulta no desenvolvimento do saber é a busca do saber em si mesma, algo mais próximo da curiosidade do que da mera utilidade. Quem faz pesquisa, em geral, faz porque gosta! O filósofo investiga o pensamento, na maioria das vezes, por prazer. A cientista estuda a natureza por vocação. Ninguém entra em qualquer um desses campos para ganhar dinheiro, conquistar parceiros ou ficar famoso. É claro que isso pode acontecer e ninguém se opõe, pois é possível unir o útil ao agradável, mas o talento necessário para ser um cientista, um intelectual ou pensador em geral, é mais específico. É seguramente mais fácil ficar rico e famoso cantando funk do que se envolvendo com a produção de saber.

Howard Philips Lovecraft

Iniciei os textos dessa trilogia com citações de H.P.Lovecraft (1890-1937), escritor norte-americano de FC, Terror e Fantasia, do qual sou grande admirador. Não é a primeira vez. Na verdade, iniciei minha Monografia KOSMOS & TELOS, com a qual me formei em filosofia, com ele. E o que esse autor tem para nos dizer?

Lovecraft frequentemente enfatiza a noção do medo do desconhecido, embora em geral o que é mesmo aterrorizante é aquilo que se acaba de conhecer. É frequente em sua obra o personagem que se inicia em mistérios antigos e conhecimentos secretos descortinando um mundo totalmente novo, que reduz nossas certezas, seguranças e orgulho a frangalhos. Também é muito frequente em suas estórias os narradores terem passado por grandes traumas, e queiram desencorajar outros de penetrar nos mesmos mistérios. Em síntese, não se deve mexer com certos conhecimentos, pois podem levar ao pânico e a loucura.

É bem diferente de nossa tradição cultural, onde o conhecimento é restringido em respeito a alguma instância sagrada, quer seja uma natureza divina, ou um Deus, que deveria zelar por nosso bem estar, e se sente ofendido por nossa pretensão de querer ser como Ele. Em Lovecraft, a restrição visa evitar chamar atenção de forças terríveis que devem ser deixadas intocadas, deuses monstruosos para os quais a humanidade, o mundo e as leis da natureza são brinquedos, e que não possuem compromisso nenhum conosco.

Bom lembrar também que para Lovecraft o conhecimento a se restringir é bem específico. Nada há contra a ciência ou o pensamento convencional, mas sim contra certas ciências ocultas, alquímicas, algumas formas de bruxaria e outras artes que podem conectar-nos com essas instâncias antigas. Há também notável medo de escavações arqueológicas que podem desenterrar terrores antigos.

Iniciei O "Gênio" do Mal com uma citação de sua obra mais famosa. O Chamado de Cthulhu, pelo mesmo motivo que o usei em minha monografia. Trata-se de um retrato que pode ser aplicado ao nosso caso mundano, de achar que o conhecimento poderá nos levar a enfrentar uma realidade para a qual não estamos preparados. E há algo de muito sério nessa percepção, visto que seguramente muitas pessoas não estão preparadas para enfrentar certas concepções de realidade que as obrigam a assumir a responsabilidade por suas próprias existências.

Sentido da Vida

Não podemos saber se existem deuses ou um plano sobrenatural, mas isso pouco importa, porque podemos claramente saber que não devemos abandonar nossas vidas e nosso mundo à sorte de fenômenos naturais sem significado como se estes fossem caprichos divinos. Temos que encarar a possibilidade de ausência de sentido existencial, o que nos obriga a determinarmos o sentido de nossas próprias vidas.

Um grande número de pessoas não quer isso. Querem receber o sentido pronto, de graça. Querem que alguém lhes diga o que fazer, o que pensar, para que não se preocupem com nada a não ser seguir regras claras ditadas por líderes confiantes de que estão seguindo mandamentos divinos. Enfim, recusam-se a assumir plenamente aquilo que são potencialmente: seres humanos com plena capacidade de se auto determinar.

Uma das mais tristes realidades de nosso mundo é a imensa quantidade de pessoas que perguntam pelo sentido da vida, como se alguém pudesse lhes dizer, em poucas palavras, o que elas são, por que nasceram, e o que devem fazer! Mas acontece que é exatamente isso que nós temos que fazer! Nos definir! Assumir nosso próprio destino!

É exatamente isso que a humanidade deve fazer. Se conscientizar de sua condição existencial, decidir por si própria, diretamente, como entender seu passado, o que fazer em seu presente e que esperar em seu futuro. Sem ficar sonhando que um dia um salvador descerá dos céus para resolver os nossos problemas, e, por mágica, tudo será melhor.

Essa conscientização, no entanto, exige a reformulação de alguns modelos tradicionais de mundo. Não significa a derrubada completa das tradições, mas sua reinterpretação. No entanto, algumas interpretações se tornaram modelos tão rígidos que se proclamam como a própria realidade em si, não tolerando qualquer forma de reavaliação. E é aí que surge a Sophofobia, visto que o conhecimento nos obriga a um novo ponto de vista, nos mostra que devemos nos responsabilizar por nós mesmos e sobre tudo nos dá os meios para isso. Mas, ao mesmo tempo, nos demonstra que não será nada fácil, que vai dar muito trabalho!

Preguiça mental não tolera isso, quer continuar confortável em crenças comodistas, cheias de ilusões, crendo em fadas, duendes, ETs, anjos e espíritos nos amparando. Mas por que achar que isso justificaria a indolência de cuidar de nós mesmos?

Dependendo do modo como se apegue às próprias e confortáveis crenças, e do medo que se tenha da capacidade do saber em mostrar como elas são frágeis, surge então a Misosophia, que é o ódio contra o saber, repudiando tudo aquilo que possa nos levar a uma reflexão séria e nos fazer encarar com franqueza nossa realidade. Realidade esta que é provavelmente desamparada de seres sobrenaturais, mas ao mesmo tempo livre de ameaças sobrenaturais.

Se não há anjos para nos proteger, ou ao menos estes sejam duvidosos, também não há demônios para nos ameaçar. Se não há fadas e duendes para nos agraciar, também não há vampiros e ogros para nos atormentar. Pode não haver extra terrestres benevolentes prontos a nos proteger contra nossas próprias ameaças, mas também não temos abduções sem sentido aterrorizando nossas noites.

Enfim, o conhecimento tem o poder de nos libertar do medo das superstições, da escravidão mental da irracionalidade, e de todos os terrores que assombram as mentes ignorantes. Só isso já deveria nos fazer admirá-lo e buscá-lo, ou ao menos respeitá-lo. Mas muitas pessoas são tão apegadas a suas fantasias, tão absolutamente certas da realidade inquestionável de seus mitos e lendas, e tão convencidas de que estão do lado certo, e portanto protegidas das ameaças invisíveis, que não suportam a idéia de sentir que todo esse universo fantástico seja posto em dúvida. Por isso temem, e até odeiam, o saber.

Então, toda a campanha que menospreza e rebaixa a inteligência, a curiosidade, a indagação e o saber, é apenas consequência natural da aversão à luz que têm os que estão acostumados a viver nas sombras.

Marcus Valerio XR
16 de Outubro de 2009

Parte Intermediária - A "AMEAÇA" DO GÊNIO
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