"ÁGORA AUT NUNC"
Se você não entendeu o título, não se preocupe, mesmo com alguma noção de Latim pode demorar para captar a infâmia deste trocadilho bilíngue. (Tenho essa mania de colocar títulos duvidosos em alguns textos.) O que pretendo é chamar a atenção para o interessante filme ÁGORA
(significa "praça central", "espaço público")
do diretor chileno Alejandro Amenábar, que também dirigiu
o polêmico Mar Adentro, o assombroso
Os Outros, com Nicole Kidman, e o ótimo
Abre Los Ojos, que depois foi refilmado nos EUA com
Tom Cruise sob o nome de
Vanilla Sky.
Se você nunca ouviu falar deste épico que se passa em Alexandria nos séculos III e IV dEC, não se impressione, pois o mesmo
não foi exibido em nossos cinemas, nem lançado em vídeo, nem passou em nenhum canal por assinatura, e foi completamente ignorado pelo Oscar, embora tenha ganho outros prêmios no cinema europeu. E não é só o diretor que
é famoso e renomado, inclusive entre os brasileiros, pois a atriz principal é ninguém menos que
Rachel Weisz, estrela de filmes bem conhecidos como o recente
Um Olhar do Paraíso,
Eragon, o impressionante
A Fonte, com Hugh Jackman, e dos dois primeiros e divertidíssimos filmes da Múmia, entre outros.
E por que um filme tão bem cotado, de 2009, com elenco de primeira linha e produção espetacular, acabou sendo completamente desconhecido não somente aqui no Brasil, mas em todas as Américas, e também na Itália? Bem, só isso já nos dá a dica.
Ocorre que
Á G O R A (Muito após este texto o filme foi lançado com o nome Alexandria.) retrata alguns dos fatos históricos mais embaraçosos para o cristianismo, pois nesta época, em Alexandria, os cristãos massacraram e expulsaram Judeus, vandalizaram uma biblioteca e assassinaram de forma brutal a filósofa HIPATIA (355-415dEC), personagem principal do filme. Tal último fato, ainda que pouco conhecido pelo senso comum, marcou a história como o evento que finaliza, de modo trágico, a era da Filosofia Antiga, assim como a execução de Giordano Bruno (1548-1600), nas fogueiras da Inquisição, finaliza a Filosofia Medieval.
Tendo sido considerado anti cristão*, o filme foi vítima de campanhas, em especial católicas, e acabou tendo sido prejudicado do modo muito eficiente. Tanto que é difícil achar referências de qualidade em português até mesmo na internet. E como este não foi precedido por um best seller como O Código da Vinci, acabou recebendo o destino que seus detratores certamente consideram o ideal, ficar na obscuridade. (*1,
2,
3)
É de se entender alguns maus humores. O filme exagera em alguns pontos, misturando realidade com ficção. Hipátia, que era filósofa, matemática e astrônoma, é retratada como alguém que praticamente deduziu um sistema heliocêntrico elíptico mil
anos antes de Kepler (o que até poderia ter acontecido, mas não há evidência sobre isso). Também usa um pouco do lugar comum de distorcer os antagonistas, de modo a elevar ainda mais os protagonistas. Mesmo assim, apresenta muitas cenas que compensam, como o fato de terem sido os pagãos que deram início a uma investida violenta contra cristãos (apesar dos apelos de Hipatia), embora tenham acabado se dando mal. Bem como algumas ações de violência dos judeus contra os cristãos. E mostrando inclusive que o problema estava mais em alguns indivíduos, e em suas posturas, e não exatamente na religião em si.
A REVOLUÇÃO DAS MASSAS
Como era de se esperar, isso não costuma ser suficiente para quem acredita que religião é algo que deve ser isento de críticas, mesmo que estas venham pela simples exposição de fatos históricos.
Mas os motivos por trás de tais tragédias são essencialmente políticos e sociais, a religião apenas os torna mais graves, por dificultar acordos e entendimento, e se corrompe por acabar se tornando o contrário do que deveria ser, ou seja, uma doutrina libertária e purificadora, ao invés de um instrumento a mais de opressão e ódio.
Mais me incomoda é que muitos verão esse filme com os tradicionais olhos rasos de quem já está acostumado a lugares comuns anti religiosos, ao invés de perceber que o que está em jogo é muito mais do que uma nova fé, uma nova teologia ou um "novo" deus (embora seja bom destacar que não possuir imagens é um dos grandes trunfos do monoteísmo abraâmico, o que fica claro no filme, uma vez que os pagãos não podem revidar na mesma moeda quando os cristãos desrespeitam e destroem seus ídolos). O que está em jogo, afinal, é uma revolução social. A cena dos cristãos entrando e depredando a biblioteca de Alexandria não deveria ser vista apenas como um sinal de vandalismo, mas como um dos mais intensos rituais simbólicos de derrubada da ordem estabelecida.
Apesar de tudo, a sociedade da época era escravista, e a religião tradicional, greco-romana-egípcia, era a religião dos nobres, que viviam às custas de uma imensa massa trabalhadora sem direito a praticamente nada. O cristianismo surgiu como uma religião emancipadora, inicialmente, e por isso mesmo fez enorme sucesso entre os escravos. Em certo momento, é possível perceber que não está havendo exatamente uma mera luta entre cristãos e pagãos, mas também entre escravos e senhores.
O padrão de desenvolvimento do cristianismo é típico de uma revolução, sobretudo, de mentalidade. Começou como um fenômeno pequeno, resultante de uma heresia judaica, que por vez incorporaria elementos filosóficos, em especial neoplatônicos, e se tornaria um sistema de pensamento vasto e abrangente, que se propunha a explicar o mundo, o além, a vida, a moral e o destino. Essa nova mentalidade rompia radicalmente com suas predecessoras, pregando uma visão de mundo incrivelmente inovadora, que subvertia toda a ordem estabelecida.
Não à toa, foi proibida, brutalmente perseguida. Seus seguidores eram atirados aos leões. Mas nada disso impediu que continuasse crescendo, pois as causas, no sentido social, jamais foram atacadas, isto é, os principais motivadores que impeliam as massas a aderir ao cristianismo permaneceram intocados. A brutal desigualdade, injustiça e miséria moral de uma civilização que apesar de toda pompa e glória, e de inegáveis virtudes, estava em decadência e era incapaz de rever seus fundamentos. Não sendo atacada a causa, o efeito não pode ser detido, até que o crescimento acabou por se impor, permitindo inicialmente a legalidade do cristianismo, e posteriormente sua ascensão ao poder.
É mais que evidente que se misturar com o poder político resultou na terminal corrupção do cristianismo, mas a força motriz que o fez crescer permanecia, e não demorou para passar de perseguido a perseguidor, devolvendo toda a intolerância que sofreu.
Mas o mais importante é observar que tratou-se de um fenômeno social, que viria a se repetir na história, como na ascensão do Islamismo, e ainda mais precisamente na revoluções socialistas dos séculos XIX e XX.
Nesse sentido, Cristianismo e Socialismo / Comunismo são incrivelmente similares, apesar do ódio mortífero que, frequentemente, um nutre pelo outro. Praticamente todo anti-comunista visceral é católico, e todo revolucionário de extrema esquerda também é visceralmente anti-católico. O que faz muito sentido, visto serem extremos que se tocam. Sua diferença mais específica é serem um espiritualista e outro materialista, mas compartilham inúmeras outras características.
(Dois times para serem arqui rivais tem que jogar o mesmo esporte.)
Ambos são resultado da fusão de forças sociais populares e de reflexão filosófica. Ambos surgem anunciando uma nova era de esperança e dignidade, ambos se iniciam por movimentos de "desobediência civil" e confrontamento pacífico, e mesmo assim são duramente perseguidos, e depois se tornam violentos e devolvem na mesma moeda, e com juros altíssimos, tudo o que receberam. Ambos se corrompem, abandonando seus ideais originais e passando a copiar a mesma estrutura política autoritária que antes combatiam. Ambos se dividem em várias facções distintas, algumas tentando preservar sua integridade original, outras se afastando ainda mais. E por fim, ambas deram origem tanto a coisas boas, como novas ordens sociais por vezes mais justas e solidárias, quanto a coisas ruins, erigindo impérios de terror e opressão.
E, talvez o mais importante. Ambos transformaram definitiva e irreversivelmente as civilizações em que surgiram.
HIPATIA
Também pode ser grafada como Hypatia, ou Hipácia.
Era uma mulher excepcional, especialmente para a época. Pensadora brilhante, dava aulas de filosofia e ciências para homens, era muito bonita e cativante, mas recusava qualquer proposta de casamento. É difícil reconstituir exatamente por que motivo foi executada de forma tão trágica e humilhante, como consta nos relatos históricos. Curioso é que o filme terminou por praticamente omitir os detalhes da execução. É bem possível que tenha servido de exemplo. Não apenas contra a tradição pagã filosófica, mas também contra a idéia de que uma mulher pudesse ser qualquer outra coisa que uma escrava submissa ao marido.
É possível também que sua morte tenha sido uma retaliação contra a morte anterior de um destacado ativista cristão.
Mas é fato que não se curvava a homem algum, e não admitia a idéia de uma fé irrefletida e muito menos do terrorismo teológico. Ainda que com alto grau de dúvida, à ela atribuí-se a seguinte frase:
“Governar acorrentando a mente através do medo da punição em outro mundo é tão baixo quanto usar a força.” (A wikiquote atribui essa frase a Elbert Hubbard (1856-1915), mas no senso comum ela é vastamente atribuída a Hipatia, e parece refletir bem seu pensamento.)
Há muito material sobre ela na internet, e não vou me alongar aqui, esta interessante Crítica ao Filme é extensa, detalhada e abrange todos os aspectos, contendo evidentemente spoilers. Além do já citado verbete da Wikipédia (sempre examine também a english version), se souber inglês não deixe de verificar
Hypatia of Alexandria, que tem alguns dos registros históricos mais antigos, todos pequenos, sobre o assunto. Inclusive o de um certo Bispo de Nikiu, que justifica o assassinato.
Fato é que o assassinato de Hipatia, bem como outros eventos narrados pelo filme, podem estar distorcidos, mas são historicamente atestados sem dúvida razoável e que é completamente espúrio se propor a censurar a história por excesso de afetação religiosa.
O escapismo, frequentemente repetido pelos críticos católicos de que Hipátia teria sido morta por uma turba "supostamente" católica parece não se dar ao trabalho de pensar porque qualquer outra turba, de religião egípcia, grega, romana ou judaica, se daria a tal empreitada, e solenemente ignora que as fontes históricas, inclusive as cristãs, citam explicitamente o papel do Bispo Cirilo de Alexandria no ocorrido, bem como que ela foi arrastada e morta dentro de uma igreja cristã.
De certo não cabe querer condenar o cristianismo de hoje pelos erros do passado, ou condenaríamos praticamente qualquer tipo de tradição, e é claro que se deve ver os eventos históricos sob um prisma mais amplo, despido ao máximo de afetações. Mas negar tais eventos definitivamente não é o caminho honesto da crítica, principalmente de quem depende de uma fraquíssima evidência histórica para sustentar a mera existência do "suposto" messias fundador de sua religião. E no caso, apenas a existência de um homem comum que teria dado origem ao mito!
É evidente também que qualquer cristão decente de hoje lamenta esses ocorridos, e o catolicismo romano, pela figura do Papa João Paulo II, já manifestou o arrependimento público pelos crimes cometidos em nome da fé. Há também muitos pontos positivos cultivados ao longo da história, e uma contribuição inestimável que não pode ser esquecida. O que mais resta para a absolvição, então, do que a simples confissão?
Marcus Valerio XR
9 de Maio de 2010
Sobre o título, literalmente agora aut nunc seria "praça ou agora" (Ágora é um local público, de livre acesso), o que evidentemente não faz sentido. Mas o termo "ágora" evidentemente se assemelha à "agora". Por diversas vezes usei o trocadilho "é Ágora ou Nunca", com meus conhecidos e familiares antes de ver o filme, e "agora ou nunca" em latim é literal e respectivamente nunc aut nunquam. Portanto "agora" em latim é nunc! Cuja similaridade sonora é inversa ao do parônimo em português. Enfim "Ágora ou Nunca" seria, em latim, agora aut nunquam, que faz sentido apenas de um modo forçado. Portanto, o título é um trocadilho bilíngue baseado no paronismo das palavras. Em suma, uma bobagem.
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