Meu Sexto Século (2486 - 2586) Tenho certeza que ninguém pode avaliar o impacto decisivo que a descoberta do Menton teve na humanidade melhor do que eu, pois vivi quase 500 anos antes e 500 anos depois. As pessoas de hoje simplesmente não tem uma idéia segura de como era a mentalidade anterior, nem mesmo as simulações de época conseguiriam fazer isso. Eu sempre ouvira falar em como o a descoberta do Heliocentrismo, da Evolução Biológica e do Inconsciente foram marcantes, eu presenciei revoluções como a descoberta da Intersecções Quânticas, da 12a Dimensão e dos Chronoprions. Mas tenho certeza que nem mesmo a combinação disso tudo conseguiria todo o revertério advindo da descoberta do Menton. Tendo sido filósofo e cientista de vanguarda eu estive inteirado com as proposições de interferência da Consciência sobre a matéria, ainda que tivesse me esquecido de praticamente tudo, tendo que reaprender. Por sorte, foi nessa época também que percebi mais significativamente que minha memória não se perdia por completo, minha facilidade em reaver conceitos que antes dominava me permitia acumular conhecimento de forma muito eficiente. Nos 200 anos anteriores porém, com a nova Micro Física, tais hipóteses da Mente sobre a matéria estavam em baixa, e o determinismo experimentou um período de incentivo incomparável. Os avanços tecnológicos pareciam coroar o vigente paradigma científico dominante de um Universo mais previsível e ordenado do que se pensava nos séculos XXI e XXII, um número cada vez maior de ateístas, céticos e materialistas eram o resultado natural de um mundo onde a Ciência parecia ser capaz de realizar qualquer coisa e dava golpes cada vez mais devastadores nas crendices, religiões e supertições. Nesse quadro, descobrir objetivamente que o Universo não só é instável e desordenado, como ainda por cima que sequer é existente por si mesmo, foi um choque quase fatal. Só depois pôde-se constatar o óbvio, de que o Menton nunca havia sido descoberto antes porque nunca se havia comparado entre si os resultados de pesquisas subatômicas de grande extensão realizadas apenas por computadores eletrônicos e das realizada com alguma interferência humana. Qualquer ser humano que avalie diretamente qualquer experiência irá introduzir Mentons no sistema, que se confundem com outras subpartículas, por isso eles sempre estão presentes. Quando se pôde finalmente isolá-los percebeu seu verdadeiro e avassalador significado. É assustador que hoje em dia haja tantas divergências e controvérsias com relação aos modelos mentônicos, a ponto de haver quem afirme que uma só consciência individual poderia alterar toda a realidade, ao mesmo tempo que outros afirmam que poderíamos ignorar sua existência sem qualquer prejuízo. É impossível negar o fato de que após a descoberta dos Mentons nossas espaçonaves ficaram mais rápidas, nossas telecomunicações praticamente instantâneas e pudemos enfim dominar os métodos de Fusão Sub Nuclear pura, mas também é impossível não perceber que os modelos mentônicos abrem espaço para a mais variadas concepções de realidade, mesmo as menos plausíveis, aliás plausível, provável ou possível, são coisas que praticamente não fazem sentido no mundo Mentônico. Religiões sepultadas há séculos foram ressuscitadas, teorias anteriormente aniquiladas foram revitalizadas. Nos primeiros 25 anos após a divulgação do primeiro modelo Mentônico aconteceu de tudo, desde a teoria de que o Universo havia sido criado apenas há alguns anos antes, até as propostas de que todos não passávamos de personagens num imenso jogo de interpretação na mente de um ser supremo. Nesse período, ao mesmo tempo que o determinismo desabava, que esperanças como o controle dos fluxos de tempo ou da geração espontânea de matéria se perdiam, bilhões de pessoas voltaram-se novamente para suas religiões, a única coisa capaz de fornecer certezas tranquilizadoras. Foi nesse interím, e tendo uma percepção melhor do que significa a descoberta do Mentom, que me convenci a agir. Ninguém mais do que eu presenciara os problemas que a combinação de crenças primitivas e tecnologias avançadas poderiam trazer, portanto, tendo recuperado boa parte de minha memória decidi deixar o poder público e fundar um movimento no sentido de esclarecer as massas sobre o que significava afirmar que o Universo aparentava ser uma imensa projeção de mentes individuais. Resgatei teorias até do milênio passado e com a ajuda de alguns amigos, criamos um síntese de explicações capazes de garantir não só algum determinismo à Ciência, como manter as perspectivas espetaculares da manipulação mentônica da realidade, e ao mesmo tempo fornecer uma direção segura no sentido ético, que servisse ao progresso humano sem cair no risco de se perder nas legislações rígidas e autocráticas que a maioria das religiões tende a induzir. Foram mais de 50 anos de trabalho árduo e durante todo esse tempo vivi na Terra, numa recém criada cidade no continente africano. Pela primeira vez ser o Homem Imortal não me dava tanto prestígio, não num mundo onde a maioria das pessoas agora tinha dúvidas de que sequer existiam fisicamente, e tinham razões matemáticas para afirmar não haver diferença significativa entre o que vemos no sonho ou durante a vigília. Fomos bem sucedidos, após quase um século de árdua reprogramação mental na sociedade, conseguimos resgatar boa parte da antiga estabilidade científica e filosófica que parecia definitivamente perdida, e conseguimos evitar convulsões sociais capazes de por em risco os então 17 Bilhões de habitantes do Sistema Solar, 13,5 só na Terra. Em 2580, me surpreendi quando lembrei estar com quase 600 anos. Como a situação planetária estava estabilizada, decidi voltar a Vênus, o que na época, com os avanços da Física graças aos Modelos Mentônicos, podia ser feito em naves que já se deslocavam com velocidades superiores a mil kms por segundo. Voltei para minha antiga ilha em Vênus, agora uma luxuosa colônia onde viviam centenas de famílias. Tive direito a um privilégio mínimo, um espaçoso apartamento de cobertura. Um regalia num planeta já com 2 bilhões e meio de habitantes. Realizei minha festa de seculário em companhia familiar, meus netos, filhos de Alpendra, com muito menos pompa do que eu mesmo esperava. Num Sistema Estelar abalado em suas convicções existenciais devido a revolução mentônica, nada mais parecia impressionar.
Meu Sétimo Século (2586 - 2686) Passada a euforia que levava muitos a crer que podia-se transformar completamente o Universo com uma corrente de pensamento, e outros a achar que não fazia a menor diferença estar vivo ou não, a sociedade Solariana retomou suas posturas mais comedidas. Mesmo sem o mesmo determinismo científico pôde-se produzir avanços inimagináveis, um deles que viria a ter, um século depois, um impacto devastador em minha vida. Apesar de recuperar a auto estima como agente ativo e marcante perante o Universo que nos cerca, a Humanidade agora se via na perspectiva de nunca se livrar de um fantasma que há muito cria-se, antes da descoberta do Menton, estar extirpado, a Incerteza. A impossibilidade de se ter segurança definitiva sobre o que existe, ou aparentemente existe, a nossa volta. Dessa forma, muitas religiões antigas, até mesmo as que chegaram a não ter mais um só adepto registrado em todo o Sistema Solar, reassumiram suas posições como referencial existencial. Muito menos perigosas do que antes, mesmo assim incômodas para qualquer em que não aceite, e não sinta necessidade, de certezas insofismáveis. Parte desse fantasma me atingiu, mais uma vez o grande mistério voltou a me assombrar. A possibilidade da existência pós morte física. Se antes eu devia me conformar com o fato de a Ciência ser desfavorável e a Filosofia favorável a essa hipótese, agora tudo ficara mais confuso embora a possibilidade tenha sido reforçada. Decidi mudar novamente de identidade, me escondendo sob novo e muito mais convincente disfarce. Voltei a me dedicar a metafísica, as questões transcendentes, esperançoso de talvez, finalmente ver alguma luz que me garantisse fora do corpo, aquilo que todos os seres humanos desejam no corpo, a imortalidade. Apesar de estar convencido de que minha vida física permaneceria indefinidamente, isso não me satisfazia, pois eu era tão vulnerável quanto qualquer Ser Humano normal. Em 2601, apesar de viver uma fase intemerata com relação a morte, decidi, graças a insistência de um amigo, um dos poucos que sabiam quem eu era, a me submeter a um tratamento muito popular há 150 anos atrás, e que agora ganhava novo fôlego graças a descobertas da micro biologia. Praticamente ganhei um novo corpo, quase todos os tecidos musculares foram substituídos por versões aperfeiçoadas geneticamente, meu ossos foram completamente substituídos por um novo composto calciforme, dez vezes mais resistente que o normal. Completamente invulnerável a qualquer tipo de efermidade, com uma capacidade de regeneração 6 vezes maior e fisicamente muito mais forte, me sentia um verdadeiro super homem. Curiosamente, poucos anos depois vivi uma experiência que quase me custou a vida, e contra a qual nenhum corpo reforçado faria qualquer diferença. Visitando uma das luas de Saturno, a nave em que viajava se chocou contra cristais de gelo, tendo o casco rompido de tal forma que os sistemas automáticos de reparos não conseguiram impedir um colapso total. Com trajes de emergência, eu e vários outros passageiros acabamos sendo ejetados para o espaço, onde para meu azar fui pego pelo campo gravitacional do planeta. Os impulsores não foram capazes de me sustentar e acabei entrando em queda livre rumo ao lado escuro do gigante gasoso. Fui resgatado por um rôbo minutes antes da fricção começar a explodir a atmosfera inflamável do planeta. O fato de possuir um corpo reforçado não fez diferença significativa, uma vez que se ocorresse um vazamento em meu traje, e os gases atmosféricos reagissem com os típicos gases do sistema vital interno, eu poderia ter sido completamente vaporizado. Foi no período de recuperação que recebi uma das mais assustadoras notícias que já tive. Meu novo corpo apresentava um problema sério. Mesmo tendo sido baseado na mesma matriz genética original, a imortalidade não pôde ser reproduzida, e agora eu era um tipo de meio imortal. Tomei providência rápidas, ordenei a reversão da operação, total substituição das partes aperfeiçoadas por cópias normais. Passei quase todo o ano de 2608 imerso em tanques amnióticos, num lento e complicado procedimento nano cirúrgico inédito. Por fim, voltei a ser o que era, fisicamente normal, mas me sentindo incrivelmente fraco em relação ao que rapidamente me acostumara, mas completamente imortal. Vinte anos depois, após eu ordenar um vasta investigação baseada em denúnicas anônimas, veio a tona um notável segredo. Mesmo já tendo sido tentando em vão uma clonagem que reproduzisse minha imortalidade, descobri inúmeros clones meus não autorizados espalhados pelo Sistema. O caso teve grande repercussão e mais uma vez voltei à popularidade. Nenhum de meus clones obteve minha imortalidade, pois a mesma não estava em nível apenas genético, mas sub genético priônico, cuja reprodução ainda não era eficaz, mesmo assim foi tentado várias vezes. Muitas pessoas sofreram penalidades legais, mesmo assim nunca conseguiu-se impedir que novos clones e novas tentativas fossem feitas. Inclusive posteriormente descobri que o mesmo laboratório que cuidou de minhas mudanças de corpo, forneceu sem meu consentimento material priônico original de meu organismo para um recém-formado laboratório em Marte. Foi outro conflito legal de proporções Sistêmicas, obriguei o laboratório a se retratar, me indenizar e cumprir um série de punições, mas não foi possível sequer localizar para onde foi o material priônico original, mesmo porque nessa época a legislação da Nação Martiana de Cydonia, não me permitia uma busca mais ostensiva. Em 2652 adotei como filho um de meus clones mais recentes, novamente não autorizado, já com 21 anos de vida. Foi um período extremamente marcante. No começo fiquei fascinado e pude perceber, pela primeira vez em 666 anos, o que em minha personalidade podia ser considerado genético ou ambiental. Foi uma experiência única de auto conhecimento, que muito eu já ouvira falar. Era comum pessoas observarem seus filhos clones como forma de se conhecer melhor. Ele tinha praticamente todos os meus defeitos, mas algumas virtudes que eu jamais tive, mesmo sem fama, sem riqueza ou experiência, era um gênio inclusive no plano sentimental. Posso ter sido subjetivamente influenciado em meu julgamento, mas cheguei a considerá-lo como um dos mais elevados seres humanos que já conheci. Entretanto isso não me fez exatamente feliz. Um dia ele decidiu ir embora, apesar de meus esforços em mudar-lhe a idéia. Com isso despertei de uma espécie de embriaguez existencial. Como se estivesse imerso numa viagem ao passado. Percebi, com pesar profundo, que eu era muito mais uma obra do acaso. Não fosse minha imortalidade, completamente casual, eu teria morrido como um ser humano completamente insignificante, ainda que amável. Descobri que o ambiente que me cercava parecia muito mais determinante do que meus genes, e nunca a sensação de ser um produto do acaso me atingiu tão em cheio. Pior, havia elementos desconhecidos, impossíveis de ser associados ao genético ou ao ambiental, que ele possuia em vantagem sobre mim, e que me faziam sentir algo de inferioridade. Nunca desejei tanto acreditar em Reencarnação quanto nessa época, queria muito crer que vivi uma vida anterior e que meus atos tivessem de algum modo influenciado minha vida atual, isso tiraria a angustiante sensação de ser um joguete impotente nas mãos dos eventos fortuitos. Em 2678 a inenarrável tragédia venusiana viria a por em xeque minha esperança de reencontrar meu filho. Praticamente todas as pessoas em todo o Sistema Solar conheciam um dos 1 bilhão e 120 milhões de mortos na pior desgraça que já se abateu sobre a humanidade, e da qual eu nunca consegui me livrar de um sentimento de culpa. Se eu tivesse prestado mais atenção às controversas experiências no capacitor mentônico que tantas maravilhas prometiam, se eu tivesse dado atenção aos alardes de alguns cientistas que foram capazes de antever o risco de tentar manipular forças mentônicas, talvez tivesse influenciado os eventos de modo a evitar a tragédia. Todos os meus descendentes até quarto grau, que estavam todos em Vênus, foram mortos. Senti de repente minha família ser completamente extinta. E tudo isso associado a sensação ainda maior de vazio e abandono que se abateu sobre mim, e as terríveis consequência que tal tragédia teve sobre todo o Sistema Solar. Além de tudo isso perdi o controle sobre mim mesmo, me tornando uma pessoa amarga e desesperada. Afastei todos a minha volta e me isolei novamente. Completei 700 anos naquele que é sem dúvida a mais infeliz fase de minha vida, por muito pouco não cometi suicídio, e tenho até hoje dificuldades em recordar os eventos. E pouco dias antes de meu Seculário vivi a sofrer um novo e totalmente inesperado atentado, por parte de um louco que simplesmente achava que minha existência de alguma forma punha o Universo em risco. Na época, eu achei que ele estava certo.
Meu Oitavo Século (2686 - 2786) Vergonhosamente vivi mais de 40 anos de um modo indigno de ser lembrado, sem qualquer interesse no que quer que fosse, esforcei-me novamente para me esquecer de tudo, já convencido que a vida perpétua não era afinal nenhuma benção. Se a transexistência for verdade, e os seres humanos tiverem de fato a oportunidade de recomeçar trazendo apenas um mínimo reminiscente da existência anterior que lhes garanta elementos de personalidade, então minha existência física indefinida poderia ser, pensava eu, mais encarada como uma maldição do que como uma dádiva, pois eu perderia o recurso principal para o desenvolvimento supra mental, que é a erradicação da maior parte do conteúdo anterior, em prol de um novo processo de aprendizado. Somente em 2729, de modo súbito e avassalador, algo viria acontecer. Uma paixão. Fiquei completamente obcecado por uma mulher. Praticamente esquecido de quem eu era, e acreditando ser um dos muitos desmemoriados voluntários que querem uma nova vida, participava da recriação de Vênus, numa aventura de construção e recuperação planetária inesquecível. O Cataclisma Venusiano não fora aniquilador apenas em termos quantitativos mas também qualitativos. As nações desintegradas eram simplesmente as mais avançadas em todos os sentidos. As mais ordeiras e harmônicas socialmente, as mais produtivas artística, filosófica e cientificamente. A vanguarda, o supra sumo de tudo o que havia de melhor na humanidade Solariana. Com isso, os esforços no sentido de reconstruir tudo e recuperar não apenas Vênus, mas todo o Sistema Solar, eram no mínimo heróicos, ainda que por vezes ingênuos. Engajado, ironicamente, num grupo de resgate de históricos pessoais de famílias mortas, eu e Kelteria éramos colegas. Me apaixonei por ela instantaneamente e após uma resistência inicial, fui correspondido. Era uma mulher muito inteligente mas misteriosa, convicta da transcedência mística do Universo e que garantia se lembrar de muitas de suas existências anteriores, tendo certeza de que eu não estava envolvido nelas. Acidentalmente nós descobrimos quem eu era ao estudar meus familiares, e após alguma resistência, acabei me rendendo novamente ao fato de ser eu o Homem Imortal, ainda que sem me lembrar de quase nada. Com isso, ela decidiu terminar nosso relacionamento com um argumento inesquecível. Não estava preparada para se relacionar com alguém tão longevo, não queria envelhecer e me ver indefinidamente jovem, mas sim desejava um parceiro que envelhecesse normalmente com ela, morresse, e pudessem se reencontrar em outra vida. Ela não aceitava os métodos de aumento da longevidade e não só queria ter um período de vida natural, naquela época por volta de 120 anos, mas além disso, sempre intuiu, ou desejou, morrer mais jovem. Tinha uma convicção de que não passaria muito dos 40. Na época ela tinha 29. Sabia que nossos destinos não se cruzavam, embora eu tenha insistido que sentia ser ela a reencarnação de Chian-Wuan. Antes eu achava que esse tipo de rejeição seria devastador, mas algo inusitado ocorreu, de repente, ao invés de entrar em depressão, minha mente se abriu, e eu simplesmente despertei de um sono de 40 anos. Minha memória voltou subitamente, embora poucos dias depois eu praticamente tenha me esquecido de Kelteria. Imediatamente então, quando entrei contato com as atualidades, fui surpreendido por uma das mais espetaculares façanhas da Ciência, a Observação do Passado. Meu desinteresse por tudo me isolou dos avanços científicos, de modo que aquela nova tecnologia era totalmente imprevista por mim. Fiquei repentinamente sabendo dos novos métodos de hiper deslocamento de sondas automáticas que podiam cruzar 4 Anos-Luz em 27 dias, e que já estavam viajando há décadas. Tomei conhecimento dos novos hiper capacitores fotônicos, capazes de visualizar em detalhes milimétricos a superfície de um planeta há mais de 250 Anos-Luz de distância. Já havia vários destes capacitores a centenas de Anos-Luz da Terra vendo as imagens de nosso passado, que eram compiladas e enviadas por ultra comunicação brânica, que eu também nem tinha ouvido falar, e já chegavam nos laboratórios Solarianos há anos. Associados aos registros e a todo um cálculo de modo a reconstituir as imagens fragmentadas, eram criados os simuladores de época que acessei no mesmo dia. Já em 2732 fui um convidado de honra para entrar na mais recente simulação de passado, que já remontava até 1954. E pude, após anos de uso incessante do simulador, rever por completo toda a minha vida na Terra, como se eu estivesse de volta no tempo. Jamais havia sentido sensação tão fantástica, eu pude me ver nascendo, engatinhando, dando os primeiros passos. Pude acompanhar quase todos os momentos importantes de minha infância e adolescência. Depois fui revendo todas as fases de minha vida. Era notório que ninguém mais do que eu tinha um extenso passado a ser revisitado. Tanto que me foi concedida licença especial para mais de 4 dias seguidos dentro do simulador num período total de quase 20 anos, 9 vezes mais que o permitido para a maioria das pessoas para evitar problemas psicológicos. Ninguém estranhava o fato de eu quase nunca sair do simulador, e de fato nada poderia me ter sido melhor. Pude me ver do ponto de vista externo, como se pudesse me tocar, embora as imagens fossem originalmente intangíveis e eu não apreciasse as simulações táteis. Os sons pudiam ser reproduzidos com altíssima fidelidade graças aos arquivos históricos e a simulação superava em realismo todas as que eu já havia experimentado. Rever toda a minha trajetória multi centenária teve um efeito magnífico em minha mente. Recobrei minhas identidades, lembrei de coisas que há muito havia esquecido, pela primeira vez eu pude, de uma forma simultânea, recordar de quase todos os fatos importantes de toda a minha existência. Mas foi aí também que uma percepção ficou como nunca antes, notável para mim. Eu realmente não fui uma só pessoa, eu fui muitas, pelo menos 5 personalidades muito diferentes ao longo de minha existência. De um modo todos eram eu, de outro modo eram seres humanos distintos. E o melhor, pela primeira vez eu me orgulhei de todos. Consegui a façanha de incorporar em minha mente todos aqueles eus que eu fui, sem qualquer dano para minha sanidade. Melhor! Eu os conhecia profundamente. Tinha certeza total de que sabia, e podia reproduzir, o modo como cada um reagia. Eu era capaz mesmo de estabelecer um diálogo entre essas minhas personalidades. Com isso, fui ivadido de imensa felicidade, me senti um ser quase divino, abençoado, assim como foi nessa época, graças a esses simuladores de passado, que uma legião de pessoas passou a me estudar e como não ocorria há 400 anos, milhares de fãs passaram a me adorar, e voltei a ser a maior celebridade do Sistema Solar. As comemorações de meus 800 anos em 2786 chegaram a ser exageradas, e como eu já esperava, o impacto psicológico de fazer mais um século produziria seu efeito novamente.
Meu Nono Século (2786-2886) A metamorfose psíquica que me atingiu também já me era esperada. Eu sabia, que depois de tudo, estaria na hora de voltar a abordar as grandes questões. Dessa vez porém não havia ilusões de qualquer tipo com relação a possibilidade de descobrir algo transcendente, eu me sentia definitivamente amadurecido. A grande questão não é se o Universo é Eterno, como surgiu, no que se tornará. Nem mesmo se existe um Ser Supremo, ou uma consciência Universal. Na verdade, só existe uma única coisa que realmente importa. A nossa própria existência. E para abordar isso, é imprescindível solucionar a primeira e única grande questão. A Meta Continuidade da Mente. Pois se a Mente, de algum modo, não permanecer, tudo o mais é inútil, pois nada poderá ser contemplado por sua consciência. Portanto, eu sabia, mais do que nunca, que apesar da grande importância dos avanços materiais, e de progresso humano, no íntimo, a única coisa que importa é: Nossa mente permanece sem nosso corpo? Em meus oito séculos pude perceber que a Ciência se inclina extremamente desfavorável a hipótese da Meta Continuidade Mental, com a exceção de alguns modelos mentônicos onde a precedência do Menton sobre toda a realidade seria a evidência de sua pré existência potencial, mas isso não soa muito diferente do clássico HoloPanteísmo, e o que me interessava seria a conservação de algum nível de individualidade. Por outro lado a Filosofia se inclinava favoravelmente, mesmo por um motivo quase tautológico. A Mente e a Matéria seria uma dualidade de dependência unilateral segundo os melhores modelos mentônicos, e dessa forma é mais do que impossível que da Matéria seja possível detectar a Mente, sendo a Mente um nível superior. Restava agora, além de usar a Razão e a Intuição da melhor forma possível, vasculhar arduamente desenvolvimentos de respostas na Física Mentônica. Investi todos os meus recursos e meu tempo no estudo de Física e em experiências. Visitei todos os laboratórios do Sistema Solar e participei de centenas de experimentos. Pela primeira vez visitei as colônias nos satélites de Júpiter, onde realizavam experiências Mentônicas arriscadas a despeito das críticas e advertências de alguns que relembravam o Cataclisma Venusiano. Graças aos novos métodos de hiper deslocamento, tive pela primeira vez a experiência de deixar o Sistema solar, e me aventurar nos Sistemas Eridani, Kruger e Vega, numa peregrinação de 32 anos. Voltei ao Sistema Solar somente em 2864, e é curioso que apesar de fascinante, ver a estrela dupla de Sirius, presenciar um cataclisma estelar em Alfa Centauro, ver a formação de anéis de gelo no Gigantesco planeta gasoso recém formado entra Vega 6M2 7M3, nada disso conseguia mais me impressionar, e nem mesmo consegue me despertar um espírito de fascínio suficiente para descrevê-los neste pequeno Seculário. Também não consigo dar a nenhuma das exóticas personalidades que conheci, que tinham corpo e mente adaptados às diferenciadas condições de vida de mundos muito distintos da Terra ou Vênus, maior importância que dei a todas as pessoas já citadas. Em 2869 morei novamente na Terra, próximo ao lago artificial onde está submersa a área em que outrora existiu a cidade onde nasci, e lá abri uma escola de Filosofia dedicada unicamente a questões da existência da Mente. Tive nada menos que 27 mil estudantes em menos de 14 anos. Obras brilhantes foram produzidas, as bases de sistemas de pensamento que viriam a se disseminar por todo o Sistema Solar e nos Sistemas Vizinhos foram lançadas nesta escola. Completei 900 anos em pleno evento cultural comemorativo, o que incluia vários campeonatos esportivos e artísticos, e onde conseguiram me fazer participar de uma campeonato de Artes Marciais como em meu Quinto Século de vida, onde fizeram questão de me permitir uma cortês vitória. Poucos dias após meu nonagésimo centésimo aniversário uma notícia viria a causar alvoroço em meus alunos. Novas descobertas no campo de trasmissão de matéria ofereciam pela primeira vez a perspectiva concreta do teletransporte de materiais compostos altamente complexos, como os orgânicos. Alguns teóricos garantiam que em menos de um século já seria possível desintegrar e reintegrar completamente um organismo humano. E tantas teorias variáveis e secundárias se desenvolveram que um antigo sonho passou a ser levado mais a sério. O de que um dia todas as pessoas poderiam ser ressuscitadas. Eu não me impressionava com nada disso, assim como nada em todas as experiências mentônicas em que participei me impressionou mais do que uma boa reflexão filosófica. Mas meus alunos fundaram um movimento pró ressurreição, e fizeram uma lista das grandes personalidades que mereciam ser ressuscitadas no dia em que tal sonho vier a se tornar possível. É claro que, mesmo sem um consentimento expresso de minha parte, eu encabeçava a lista.
Meu Último Século (2886-2986) Hoje já se passou 10 vezes o tempo em que se esperava realizar o teletransporte de humanos, ainda não é possível, e as perspectivas não são muito animadoras. Também se passou quase mil anos desde que este meu organismo foi concebido no ventre de minha mãe, e mesmo com os Hiper Visualisadores atuais não mais é possível captar com precisão as imagens da minha época a ponto de, de acordo com as teorias de ressurreição, recriar com absoluta precisão a estrutura cerebral das pessoas que conheci na infância. Portanto, não tenho bons motivos para acreditar que irei rever essas pessoas, além de suas imagens no simulador ou de recriações virtuais que jamais serão realmente fiéis. Não espero em vida, contemplar muito mais realizações do que contemplei até agora, porque sei que finalmente meu tempo de existência se aproxima do fim, e apesar de eu ter tido essa certeza inúmeras vezes, posso garantir que desta vez é diferente.
Com 912 anos decidi me despendir novamente da Terra, para o lamento de milhões de pessoas. Primeiro voltei a viver novamente em Vênus, e mais alguns anos depois de lá também me despedi. Vivi então novamente alguns anos em Marte, nessa época já com dois bilhões de habitantes fisicamente bem diferentes dos Terrestres e Venusianos devido a exposição prolongada à baixa gravidade. Por fim habitei por alguns meses algumas colônias em Júpiter, Saturno, as Colônias de Urano e de Netuno, e com isso posso garantir ser uma da poucas pessoas que já viveu em todos os mundos habitáveis do Sistema Solar. Parcialmente saciado em minha sede de conhecimento, voltei então para Vênus, para viver numa região pouco habitada, na zona tropical do planeta embora nessa época no lado escuro, e vivi de forma consideravelmente hedonista por quase 30 anos. Achava nunca mais coseguir me envolver sentimentalmente, Xalisa, Chian-Wuan e Afrodite pareciam me assombrar de modo a que mais nenhuma outra tivesse lugar em meus sonhos mais íntimos. Mesmo assim Flion merece o crédito de ser minha última grande paixão, ainda que tenhamos estado juntos apenas dois anos, foi tão intenso que quase me esqueci de mim novamente. Mas esse breve descanço tinha data certa para terminar, quando finalmente, em 2956, os resultados de um série de experiências que eu havia financiado em várias partes do Sistema Solar, e em outros, foram por fim compilados e apresentados. Decidi que aquele seria o meu último modelo teórico de Física Mentônica e minha última tentativa de conciliá-la aos modelos metafísicos da permanência da Mente. Por fim, após milhares de debates e muita reflexão, aceitei o desanimador resultado. Que a Mente transcende o mero cérebro físico ninguém mais podia duvidar, mas parecia ainda mais certo que essa transcendência é temporária, e a Mente se desvanece após o fim do cérebro. Mais uma vez a Ciência depunha contra a vida pós morte ainda que pressionada pelo terrível paradoxo da pré-existência do Menton, e a temível questão: De onde veio o Menton Original? Qual era a Mente que deu origem às bases físicas de todas as outras? Não me admira que ultimamente a idéia de um Ser pré existente, que em minha juventude seria imediatamente interpretada como Deus, tenha voltado a ser tão popular. Ou isso, ou admitimos que vivemos mesmo num mundo completamente ilusório e que nossas mentes são eternas. Por certo não se pode negar que nossa existência é mais garantida do que a do mundo que nos cerca. Os filósofos já sabiam disso milhares de anos antes de eu nascer, uma frase que vindo de mim, tem seu peso exponenciado. Mas até agora nada consegue garantir que existimos de modo totalmente independente. Ou existe um campo mentônico inconsciente que sustenta o plano físico, ou nos rendemos ao velho Holoteísmo, e acabamos admitindo que como seres individuais somos tão impotentes perante a esmagadora maioria do que sériamos se fóssemos meras máquinas biológicas no velho, e as vezes saudoso, mundo do materialismo científico determinista, e o pior, que nossa estrutura mentônica é completamente desintegrada numa tipo de Narva que lembraria o Nirvana budista assim que nosso cérebro de desintegrar. Talvez buscando tardiamente o único tipo de existência perpétua acessível a todos, tencionei
me reproduzir novamente, desta vez criando um clone voluntário e esperando que ele, ou outro,
faça um bom uso de todo o material cultural que lhe leguei principalmente em meus simuladores
pessoais. Preferi não esperar a concretização da promessa de que em menos de um século, já seria
possível, graças em parte ao estudo de meu material priônico roubado, produzir corpos
completamente imortais como os meus. Ainda que não tenha dúvidas de que isto seja possível e eu
perca o título de único ser imortal conhecido. Acredito que em breve a humanidade terá novos
imortais assim como já possui seus vice campeões de longevidade, já passando de 500 anos de vida.
Termino este seculário hoje no ano de 2986, pouco dias antes de completar finalmente meus Mil Anos. Continuo não apresentando qualquer sinal de que um dia irei envelhecer. Todos os meus outros registros, de cada uma de minhas personalidades, todas as minhas memórias e obras estão compiladas e registradas num dos maiories acervos holográficos do Sistema Solar. O motivo que me levou, após todo esse trabalho e tempo, a escrever esse breve Seculário pode ser considerado como excêntrico, mas era algo que eu tinha que fazer. Como um estudante de história dos costumes entre o século XX e XXX, dos quais sou, naturalmente, a maior autoridade, você deve ter estranhado o fato como redigi este texto de modo arcaico, como se escrevesse para leitores de meu próprio tempo. Isso foi deliberado, e não viso apenas criar uma breve introdução para ser lida por meus conterrâneos e contemporâneos caso um dia o sonho da ressuscitação se torne realidade. Escrevi este texto com todo este linguajar do ínicio do século XXI primeiro para estabelecer um contato íntimo e de cumplicidade com o jovem ingênuo e ordinário que eu fui antes de me dar conta de minha imortalidade, e somente para ele eu realmente devo alguma explicação para o que estou prestes a fazer, não sem levar em consideração qualquer pessoa que me admire. Eu gostaria de agradecê-lo. Hoje estou certo que tive a mais adequada existência possível para me tornar o que sou, de nada mais me arrependo, assim como não me arrependerei deste ato que será lamentado por muitos. Não estou desesperado se é o que querem saber, embora me confesse desgostoso com os rumos intelectuais tomados nas últimas décadas, e principalmente do fato de a juventude atual, alguns com mais de 200 anos, estar se tornando aparentemente menos séria e responsável. O que deixa claro que nem mesmo eu consigo me livrar da sensação de saudosismo que acomete qualquer pessoa de idade mais madura. Sim. Pela primeira vez me sinto idoso, não apenas no sentido mais claro da palavra, mas me sinto suficientemente sábio para entender que farei o melhor para a humanidade. Mesmo com minha fama de mutável, e capaz de acompanhar e inovar, sou um tipo de representante do antigo. Sou um símbolo da tradição, haja visto as comuns expressões linguísticas que invocam meu nome para se referir a coisas antigas. Também temo os rumos que a idolatria que se produziu em torno de meu nome pode gerar numa época onde misteriosamente superstições e novas religiões começaram a se proliferar, algumas apresentando um comportamento digno de preocupação. E por fim quero antes de tudo golpear severamente a inaceitável profecia que surgiu em torno de minha personalidade, e que associa eventos cósmicos com o meu aniversário de Um Milênio.
Não darei esse prêmio aos fanáticos que se associaram a tal movimento profético. Alguns podem achar que uma vez realizados os cálculos, hoje já tenha mais de mil anos, e outros acham que ainda faltam mais alguns dias, mas trabalhei arduamente para calcular com absoluta precisão minha idade, considerando as distorções temporais do hiper deslocamento. Além do mais, tal cálculo não necessita de tanta precisão, uma vez que para efeito prático, a tal profecia se refere ao período de tempo decorrido na Velha Terra. Outros podem achar que trata-se de mais um de meus truques, e que estou novamente a me disfarçar, mudar de indentidade e simular minha morte. Não me importa. De qualquer modo, a humanidade não terá em mim seu Homem Milenar.
Nesse momento minha nave sobrevoa a imensa cachoeira que deságua sobre o recém implantado rio corrente artificial em torno do lago artificial onde há mil anos atrás, nascia a criança que viria a se tornar o homem que sou. Fecho o ciclo de minha existência, que pelos meus cálculos, completará 999 anos 354 dias e 1361 minutos, para compensar as distorções de tempo causadas pelas mudanças do calendário solar da Terra. Por outro lado minha vida biológica completará 999 anos 353 dias e 312 minutos desde minha concepção intra uterina, graças em parte aos retardadores temporais que tive que me utilizar nos últimos anos. Não me foi possível chegar a uma maior aproximação chronológica. À aqueles que achem que posso fornecer aos supersticiosos um evento mártir, peço paciência. Assim como rogo a todos coragem para enfrentar as aparentemente inevitáveis conurbações sociais que podem afetar todo o Sistema Solar nos próximos anos. Não se surpreendam se tivermos guerras. Reitero a autorização para que meu organismo seja clonado a nível priônico, assim como para que eu seja ressuscitado, se um dia isso for possível. Fiz a minha parte, dei à humanidade muito do que eu podia, e não abandono a vida por medo, preguiça ou tédio. Nada disso.
Daqui a alguns minutos abrirei a porta contemplarei as revoltosas águas abaixo de mim, e lançarei meu corpo num mergulho rumo ao fim de minha aventura existencial. Minha nave está programada para destruir qualquer robô que tente me salvar e além disso, já acionei uma bomba que explodirá em meu corpo assim que o tempo limite tenha sido atingido, caso milagrosamente eu não venha a morrer no impacto com a água. Termino tudo onde começou, do pó ao pó. Agradeço a todos os que me acompanharam, as pessoas que amei e que me amaram e peço que entendam que faço isso por um maior e insuperável motivo.
Curiosidade.
A mesma curiosidade que levou os primeiros humanos a perguntarem o que eram as estrelas, quem criou o mundo, ou para onde iremos após a Morte.
Só isso me interessa.
Adeus a todos e obrigado. E deixo a vida para partir para a maior de todas as aventuras.
Finalmente estou pronto para descobrir aquilo que todos os que viveram e morreram antes de mim talvez já tenham descoberto.
Parto agora para desvendar o GRANDE MISTÉRIO.
SIG CC-99874 Julho de 2002 |