A MORTE NEGRA

Era uma cidade pequena, não mais que 10 mil habitantes, que vivia da extração de alguns minerais e do turismo em suas belas cachoeiras. Na noite quente de fevereiro a maioria já dormia, mas o proprietário do Sítio das Palmeiras ainda não desistira de seu intento, com dois ajudantes insistia na perfuração de um cada vez mais profundo e menos promissor poço artesiano.

O velho relógio da praça já anunciava com suas badaladas a virada da meia-noite, e os 3 homens após perfurar 90m de profundidade, já não eram tão insistentes. Passavam do dobro da profundidade do poço mais fundo da cidade. Já com a decepção estampada no rosto, o velho proprietário se preparava para se render ante a fama de secura e aridez daquela área do município.

Mas de repente, um tremor.

- Atingimos alguma coisa! - Disse o não muito experiente rapaz que manuseava a perfuratriz que de repente começava a tremer anormalmente. - Finalmente! Água! - Exclamou o outro, mas seu companheiro ficou mudo.

O proprietário ficou impaciente. - Afinal o que aconteceu!

- Não sei. Está subindo mas... Não tão rápido quanto devia e...

O insistente tremor aumentava, e todos se afastaram da máquina, mantendo os olhos bem abertos e usando suas lanternas para auxiliar a parca iluminação improvisada com fios que vinham desde a velha casa. A expectativa não durou tanto. Logo o tremor diminui e então, da forma mais calma e suave possível, um grosso e escuro líquido escorreu pelo chão.

- Ah... Meu Deus! É petróleo?!

Incrédulos, os rapazes se aproximaram do agora calmo equipamento, tentando sentir o odor típico que caracterizaria aquele óleo negro se espalhando pelo chão a pela perfuratriz, como a cobiçada substância que move os motores a explosão do mundo.

- Acho que não. - Disse um deles, lenta e hesitantemente levando o dedo até a substância.

Ao tocá-la, um susto terrível o atingiu, e seu grito misturava surpresa, e horror. Se espalhando instantaneamente por todo o seu braço, uma mancha negra parecia escurecer-lhe totalmente o sangue, por um momento petrificando seu membro.

Recuando e gritando de pavor, os outros pareciam ainda mais assustados, mas tentaram ajudá-lo até que perceberam seu braço simplesmente se dissolver como areia, liberando um odor insuportável.

Sua distração foi fatal, quando olharam novamente para a perfuratriz, a mancha negra já emergia da terra as dezenas de litros. Mal tiveram tempo para gritar.

*

Foram os vizinhos que primeiro avistaram melhor as disformes criaturas. Ao chegar aos portões do sítio após ouvirem os breves mas perturbadores gritos das pessoas e dos animais, se depararam como uma cena de fato difícil de descrever. Eram como lamacentos fantasmas negros que se arrastavam pelo chão, geralmente lentos mas por vezes velozes, e onde quer que passassem deixavam algum estrago. Plantas e madeira simplesmente desapareciam, concreto e metal resistiam um pouco mais porém logo estavam em flagrante dissolvição, vidro e plástico não pareciam afetados mas eram quebrados em frangalhos pelo peso das criaturas.

Foi preciso uma criança com experiência em desenhos animados e quadrinhos de super-heróis para definir melhor a cena:

- "Protoplasmas" negros!!!

Quando toda a casa e evidentemente todos que estavam nela já haviam sido reduzidos a frangalhos, as indefinidas criaturas, na verdade massas maleáveis as vezes consistentes como argila, outras fluidas como azeite, já formavam uma assustadora montanha que apesar de escura era notável na noite estrelada. O pânico não demorou muito.

Em alguns minutos toda a rua já estava em polvorosa, as casas sendo evacuadas e as pessoas gritando. Muitas não tiveram tempo de agir e sucumbiram quando suas casas eram invadidas e engolfadas pelas criaturas de forma e volume aparentemente indefinível.

Estas por vezes se juntavam umas as outras criando breves grupos homogêneos que edificavam um ameaçador gigante, mas geralmente se moviam separadas embora agrupadas, como em bandos, se movendo com inexplicável precisão e destreza, invadindo janelas engolfando pessoas que ora desapareciam, ora eram deixadas para trás enquanto dissolviam-se horrendamente num monte de areia negra.

É claro que os policiais atiraram, e é mais claro ainda que de nada adiantou, mas deve ser também claro que alguém tinha que tentar. Um senhor que havia assistido "A Bolha Assassina" teve a idéia de usar um extintor de incêndio de Gás Carbônico, e outro tentou com Pó Químico. As criaturas pareceram de fato até capitular por alguns instantes, mas logo investiram violentamente contra seus breves adversários legando-lhes também a Morte Negra. Ao esmagar geladeiras porém, em certos casos, as criaturas pareciam hesitantes, mas em geral mostravam que o frio não era seu ponto fraco.

Uma artista plástica lançou mão de um maçarico, mas caiu por terra a última possibilidade de que aqueles horrendos seres tivessem algo de petróleo em sua constituição. Reagiram ao fogo com a mesma insensibilidade que reagiram a jatos d'água lançados por outros moradores.

Nada podia abatê-las.

*

Em menos de uma hora a cidade já estava em clima de guerra. A invasão de manchas negras já dominava 3 quarteirões enquanto centenas de pessoas, lançando mão de todos os recursos disponíveis o que incluía coquetéis molotovs e outras bombas caseiras, e inofensivos mas eficientes jatos d'água, pareciam pelo menos retardar o avanço das criaturas.

Mas a batalha a cada segundo se inclinava a favor dos monstros, já eram pelo menos uns 100 e que pareciam aumentar de tamanho a cada ser vivo de dissolviam.

Somente ao raiar do dia a cidade fora sitiada pelo exército. Jipes e tanques de guerra que vieram de uma base felizmente próxima, não demoraram a abrir fogo, mas os helicópteros confirmavam que apesar das manchas negras se atrapalharem com a artilharia, não pareciam ser afetadas.

Pelo menos 4 mil pessoas já haviam sido mortas e nada indicava que aquelas criaturas demonstrassem sinais de enfraquecimento. Pelo contrário, pareciam cada vez mais fortes.

Quando toda a cidade já estava dominada, as forças armadas, agora já sob o comando da Guarda Nacional e do próprio Presidente da República, dobraram a área de sítio. As cidades vizinhas já estavam em processo de evacuação.

Ao cair da noite, já chamando a atenção do planeta inteiro, as manchas negras já dominavam uma área de cerca de 1000km2. Aviões militares de outros países vieram se juntar à luta usando todo um arsenal de explosivos que não raro espalhava uma das manchas em milhares de minúsculos pedaços, mas eles não demoraram para se juntar.

Cientistas de todo o mundo tentavam entender o fenômeno. Infelizmente não fora possível colher sequer uma amostra mas pelos menos algumas coisas já ficavam claras:

* As manchas negras eram indivíduos e não uma única criatura como por vezes pareciam, elas podiam se juntar mas ainda conservavam suas individualidades.

* Elas se dividiam, tal como amebas, em períodos de cerca de 6 horas e após consumir cerca de uma tonelada de organismos vivos que podiam ser desde plantas a pessoas. As criações de gado locais foram o banquete favorito dos monstros mas estes também pareciam se satisfazer até mesmo com árvores.

* Sua composição química não correspondia a nada parecido, o que levou a inúmeras suposições, ampliadas pela falta de análise direta do material. Mas todos os especialistas concordaram que era melhor tentar algum tipo de solvente.

Ácido Sulfúrico, ácido Clorídrico, ácido Perclórico e Soda Cáustica foram usados, mas nada fazia efeito. Gases tóxicos e abrasivos foram letais apenas ao meio ambiente e as poucas e infelizes pessoas que não conseguiram se proteger além do limiar estabelecido pela Guarda Nacional.

Quando os monstros já se aproximavam de outra cidade, as surpresas se tornaram ainda mais desagradáveis. Eles passaram a se deslocar com frequência embaixo da terra, surpreendendo os militares. Tanques foram perfurados e seus soldados consumidos, centenas de homens morreram em ataques traiçoeiros e imprevisíveis e mesmo helicópteros foram atingidos. Um deles foi derrubado quando uma das manchas negras aparentemente arremessou-lhe uma pedra, outro foi surpreendido por um inusitado salto de uma das criaturas que o trouxe ao chão. E com outro foi pior, envolvido pelos disformes monstros negros, o piloto passou a voar as cegas transcendendo em muito o limite relativamente contido pelo exército e foi cair numa cidade a kms de distância.

Agora as manchas negras furaram o cerco. O uso de artefatos nucleares já estava sendo considerado.

*

A pouco maior cidade vizinha ainda não havia sido totalmente evacuada, a julgar por pelo menos 4 jovens que desesperadamente tentavam recolher alguns pertences no prédio onde moravam. O helicóptero caíra lá perto e logo não apenas um, mas um grupo de manchas negras se arrastava pela cidade.

A fama das criaturas já lhes precedia, os dois jovens casais, um tanto inconsequentes por furarem o bloqueio militar e ir buscar objetos em suas casas, não tardaram a ver os monstros, como sempre se deparando com algo bastante diferente daquilo que lhes fazia crer o noticiário. O dia claro não as tornava menos assustadoras.

Logo se aperceberam numa péssima situação, o carro que utilizaram estava mais próximo dos monstros do que deles, e agora rápidos como felinos, os protoplasmas negros avançaram contra as únicas fontes de alimento disponíveis naquela ampla área.

Um velho cão vira-lata e uma barraquinha de cachorro quente não saciaram a fome das manchas negras, que avançavam ao encalço dos dois casais. Correndo para o único abrigo que podiam alcançar, se refugiaram num supermercado que por sorte estava aberto. Entre as extensas prateleiras de mercadorias tiveram alguns minutos de sossego, tentando imaginar com muito sangue frio, aliás não teriam voltado a cidade se não fossem corajosos, ou estúpidos, como poderiam escapar de tal situação.

- Armas?! - Perguntou o loiro. Havia muitas na sessão de caça e pesca mas logo todos concordaram que seria inútil.

- Fogo?! - Perguntou a moça negra. - Extintores de incêndio?! - Indagou o nissei. Mas logo a menina morena lembrou que já havia sido tentado.

Não tiveram mais tempo de pensar, as criaturas destruíram as portas e rumaram ameaçadoramente para eles. Correndo em desespero por entre as pratelerias de produtos de limpeza, não tiveram sequer tempo de pensar se alguns dos detergentes poderiam ser eficazes.

Encurralados na seção de frios, notaram que as criaturas avançavam mais devagar. - Elas temem o frio?! - Gritou a jovem negra. - Não! Veja! - O rapaz loiro mostrou um dos protoplasmas investindo contra o refrigerador de carnes, dissolvendo metal e gelo e consumindo rapidamente as carnes congeladas.

De costas para uma geladeira os aventureiros acidentais se deparavam como uma cena grotesca, as criaturas pareciam indecisas entre avançar sobre eles ou devorar os produtos depositados nas geladeiras. Queijos, iogurtes e carnes não pareciam ser diferentes para os monstros, mas logo eles pareciam apenas dar indícios de que apenas comiam o aperitivo antes do prato principal.

- O que podemos fazer?! - Gritou o nissei já a beira do pânico. Não houve resposta, apenas uma reação instintiva quando um dos monstros ao terminar de dissolver um enorme pernil de porco, passou a se mover ameaçadoramente rumo a eles.

Os restos de carne animal petrificados e se dissolvendo foram o elemento último de terror necessário para uma defesa desesperada, quando os 4 passaram a arremessar garrafas que encontraram na geladeira atrás deles.

Vinhos, sucos e refrigerantes não pareciam muito eficazes contra seres insensíveis às mais poderosas armas militares.

Até que de súbito...

*

Uma garrafa de vidro se quebrou, não deu para saber de que era, mas o milagre aconteceu.

A criatura parecia gritar quando aparentemente, sofria o mesmo destino de suas vítimas. Se dissolveu em fumaça e fuligem escuras numa velocidade impressionante. Em segundos, a mancha que se elevara a mais de 2m de altura, fora reduzida a uma poça inerte e de líquido ressecado e fumacento.

- O que foi?! - Perguntou a morena. Ninguém soube dizer, tentando olhar para as garrafas de refrigerantes e cervejas diversas que tinham nas mãos. Mas uma das criaturas lhes requereu atenção, após se saciar, ela acabara de se dividir em duas outras manchas ainda mais famintas. E as outras pareciam irritadas com a morte de sua companheira.

Elas avançaram rápido, os jovens não hesitaram em arremessar combinações de garrafas de vidro diversas que ao se espatifar no chão espalhavam o líquido gaseificado. Mas nada de extraordinário aconteceu até que...

- Coca-Cola!!! - Gritou o loiro após a rápida e espetacular dissolvição de outra das criaturas.

- O quê?! - Perguntou a morena. Mas não tiveram tempo de confabular. As 3 outras criaturas hesitaram alguns segundos contemplando a morte de sua parceira mas logo voltaram ao ataque. Uma garrafa de Coca-Cola atravessou uma delas se espatifando logo atrás, bastaram os respingos para desencadear a violenta reação em cadeia.

A moça morena sacudiu uma lata e a abriu quando a criatura já estava quase sobre eles. O efeito não demorou mais que alguns segundos. As criaturas que traziam a Morte Negra, encontravam a sua própria Morte Negra. A última chegou a recuar mas logo tocou em uma poça do refrigerante mais famoso do mundo e teve o mesmo destino de suas companheiras.

Os jovens não tardaram a fugir. - Coca-Cola!!! Eu não acredito!!! Coca-Cola. - Gritavam os jovens enquanto faziam ligação direta num carro que encontraram, rumaram rapidamente para fora da cidade levando todas as garrafas e latas do mais do que nunca precioso refrigerante.

No caminho foram obrigados a parar ao verem um pequeno grupo de soldados tentando proteger um grupo de civis do avanço dos monstros. Eles estariam perdidos.

Mas os heróis chegaram. Subindo num prédio mais alto descarregaram garrafas de 2 litros sobre os monstros que não reagiram de forma diferente. Os soldados ficaram abismados ao verem as temíveis criaturas desaparecerem num piscar de olhos.

*

Logo todos estavam chegando ao cerco militar. O comando estava preparados para prender os que furaram o bloqueio mas logo um dos soldados deu a notícia. - Tenente! O senhor não vai acreditar!

Ele não precisou explicar. Uma mancha negra surgiu repentinamente cintilando sob o sol. O nissei pegou uma latinha e arrancou o anel do fecho como se fosse o pino de uma granada, arremessando-a na criatura.

Nada aconteceu.

-Droga! Lata errada?! - Perguntou assustado, era Coca-Cola, Light.

- Light não serve! Nem Pepsi! Tem que ser Coca de verdade! - Gritou a moça negra. Três latinhas da legítima e original Coca-Cola voaram rumo ao monstro que se dissolveu tão rápido que parecia atingido por um raio.

Todos olharam atônitos. A Arma Secreta fora descoberta.

*

A notícia se espalhou rápido. Logo todos os supermercados e bares das redondezas estavam sendo esvaziados de seus estoques e dezenas de caminhões de Coca-Cola estavam sendo convocados. Carros de bombeiro encheram seus tanques com o líquido negro e dispararam contra as criaturas exterminando-as completamente.

Aviões e helicópteros despejaram toneladas de Coca sobre as manchas negras e então, soldados armados com espirradores de água cheios do líquido decisivo percorriam as ruas eliminado as últimas criaturas.

Em menos de 24 horas a situação estava controlada. A cidade onde tudo começou foi invadida por tropas e o poço no Sítio das Palmeiras foi localizado, centenas de litros de Coca foram despejados buraco a dentro e em diversos outros pontos. Algumas pessoas tiraram Coca de suas cisternas particulares.

O cientistas conseguiram diversas amostras e passaram a analisar a curiosa combinação química que oferecia um comportamento tão grotesco. As opiniões divergiam.

Com isso a aceitação do produto para consumo pessoal caiu muito, as pessoas passaram a ver o refrigerante como algo perigoso, mas as vendas da Coca-Cola não diminuíram, pelo contrário, aumentaram, pois agora estoques constantes do famoso refrigerante estavam sendo aumentados devido as denúncias de que criaturas negras como aquelas estavam surgindo em outras partes do mundo. As forças armadas mundiais se tornaram os maiores consumidores de Coca de todos os tempos.

Num certo dia, num pronunciamento para todo o mundo, um secretário da ONU declarou: "Ainda não sabemos o que são exatamente estas criaturas, mas se elas voltarem, se essa Morte Negra voltar a nos ameaçar, estaremos preparados."

*

A Coca-Cola Company continuou mantendo a fórmula em segredo.

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Marcus Valerio XR
3:00 da manhã de
8 de Fevereiro de 2001