UM LUGAR AO SOL

Sempre detestei aqueles filmes retro futuristas ao estilo Blade Runner que apostavam num futuro escuro e decadente, de cidades com eternas noites e céus nebulosos onde jamais se via o azul. Pode imaginar então o que é para mim acordar as 8:30 da manhã e me deparar com um mundo totalmente encoberto por nuvens negras, sabendo que poderia ser diferente?

Hoje, 27 de Abril de 2048, me reunirei com o governador para protestar contra o veto que eliminou nossa esperança de trazer os dias claros novamente, que se foram desde que os norte-americanos insistiram com aquela guerra estúpida contra o oriente. Por terem arrastado o mundo inteiro junto não consigo repreender os que dizem "bem feito" por eles terem se arruinado, mas nada disso compensa as noites eternas às quais todos fomos submetidos.

Tendo trabalhado a vida inteira no projeto que poderia dissolver as nuvens negras que nos acobertam, tenho certeza plena, assim como os mais de 200 cientistas envolvidos, que finalmente descobrimos a solução para o problema. Uma vez lançada no céu, essa substância que desenvolvemos iria rapidamente neutralizar as nuvens de modo a trazer nosso azul de volta.

Mas o governo alegou riscos para a saúde, primeiro por praticamente inventar possíveis efeitos colaterais, e segundo por insistir que viver na escuridão seja melhor do que nos expormos a raios ultravioletas que atravessam uma camada de ozônio enfraquecida. A maioria da população discorda, assim como a comunidade científica, por que então nos submetermos a essa arbitrariedade política? Ainda por cima de um governo que não tem a melhor das reputações, e faz muitos desconfiarem que interesses econômicos influem nessa decisão.

Faz mais de 30 anos que quase ninguém mais na Terra tomou um banho de Sol. As nuvens negras e densas tornam o mais ensolarado dia de verão numa noite da mais claustrofóbica e sufocante. Foi uma sábia decisão dos governos anteriores termos trocado os dias pelas noites, pois apesar de escuros, os dias passaram a ser insuportavelmente quentes, dada a capacidade das nuvens em transmitir o calor e abafá-lo. Com isso nosso consumo de energia se tornou insustentável, exigindo luzes de iluminação 24hs por dia, e exigindo ainda mais dos equipamentos de ar condicionado e refrigeração. Para piorar, os painéis de energia solar que antes vinham sendo cada vez mais utilizados, se tornaram inúteis.

O racionamento foi inevitável, obrigando os "dias" a se tornarem ainda mais escuros pelo desligamento de mais de metade da iluminação urbana, enquanto isso, fabricar e vender velas tem sido um ótimo negócio, assim como os banhos de Sol aéreos em aviões com clarabóias filtradas que voam a grande altitude, enquanto inúmeros outros setores foram praticamente extintos.

A economia se transformou drasticamente e terminou por se consolidar colocando setores corporativos novos no poder, e é do escuso compromisso com essa nova estrutura que desconfiamos vir a motivação do governo por recusar o nosso programa.





Hoje também é um dia especial. Teremos explosões celestes, disparos de foguetes que por alguns minutos abrem buracos nas nuvens negras permitindo que raios de luz desçam até uma população festiva. Por isso, nesta ocasião, estamos todos acordados num verdadeiro dia, que tem sido geralmente noite, enfrentando esse calor incômodo. Poderíamos até mesmo lançar nossa substância nestes foguetes portáteis, por isso preparei uma possível demonstração caso seja autorizada, fazendo uma abertura nas nuvens muito mais ampla e duradoura do que as das explosões comuns.

Estou agora de frente para o edifício do governo, um dos mais altos da cidade. As praças estão cheias de pessoas esperando pelas explosões, assim como de manifestantes protestando contra o governo e apoiando nosso programa de dissolução extensiva das nuvens, embora haja alguns poucos outros grupos de opinião contrária.

Empurrei meu minúsculo aparelho de surdez mais para dentro do ouvido e realizei os ajustes finais com um de meus amigos. A assessoria do governador permitiu apenas a minha presença, como eu já desconfiava, e portanto vim devidamente preparado para certas possibilidades.

Subindo pelo elevador panorâmico vejo a cidade se perder de vista em suas luzes coloridas. Os dirigíveis invadindo os céus, os raios dos holofotes se perdendo na nuvens escuras, e milhões, milhões de pessoas esperando para, ainda que por uns minutos, conseguir um lugar ao Sol durante as explosões.

Tudo acertado, a secretária do governador me fez esperar um pouco e então me pediu para entrar, e lá fui eu encarar aquele mal afamado político, ao qual eu pessoalmente jamais ofereci meu voto, mas que sempre contará com a ignorância populista para se eleger.

Sensores de todos os tipos me sondaram a procura de armas ou outros dispositivos estranhos. Acharam apenas meu micro aparelho de surdez que evidentemente não lhes preocupara, porém minha pasta, com vários equipamentos científicos, teve que ficar na ante-sala.

Fui bem recebido, apenas dois seguranças enormes, uma secretária bonita, e o próprio governador, um homem de idade mas muito bem conservado. Não abria os lábios ao sorrir, ou abria muito pouco, o que dava uma impressão de um sorriso forçado. Bem vestido e usando luvas, ele me cumprimentou e nos sentamos para discutir a questão.





- A questão... - Eu disse. - É que não consigo ver motivos razoáveis para esse veto Senhor Governador. É uma garantia científica que oferecemos de que não há risco de efeitos colaterais significativos.

- Sim... Mas... E o problema da camada de ozônio? Não estamos preparados para lidar novamente com amplos dias ensolarados, será preciso anos de preparação. - Retrucou o governador, em tom amigável mas ligeiramente hipócrita.

Respondi emocionado. - Já estamos nos preparando há anos! Anunciamos esse projeto há meia década, e temos tido progressos notáveis, com isso grande parte da população já está praticamente contando que em breve poderemos ter céu azul novamente, que poderemos ver as estrelas e a Lua mais uma vez!

- Você não está entendendo meu jovem. Consolidamos uma nova sociedade, um novo modelo sócio-econômico e não estamos ainda preparados para uma mudança tão brusca.

- Mas Senhor, o modelo se adapta! Como se adaptou no passado. Não será nenhuma novidade. Estruturas caíram após a Terceira Guerra, outras surgiram, ainda que o mesmo aconteça, isso não deve se opor ao progresso! À mudança! Por que privilegiar pequenos grupos que se beneficiam com essa situação?! - Grandes grupos. - Disse ele em tom corretivo. - Que sejam! Tudo muda. Nossa história é uma corrente constante de todos os tipos de mudança. Não consigo entender esse medo do futuro!

- Ou do passado... - Murmurou o governador fazendo uma expressão que aparentava medo, mas logo voltou ao sorriso malicioso.

- Você diz isso meu rapaz... Porque almeja estar por cima no próximo modelo que viria. Vocês desenvolveram essa tecnologia! Vocês irão ganhar com ela! - Ele me disse apontando o dedo.

Me levantei num misto de indignação e oportunidade, pois agora eu lhe revelaria meu trunfo. - Acontece senhor... Que esse tecnologia é livre! Já liberamos as patentes para o planeta inteiro, muito diferente da tecnologia do foguetes de perfuração celeste que até bem pouco tempo atrás eram propriedade de corporações internacionais, até que nós derrubamos essas patentes!

Ele me olhou surpreso, e juro que notei um reflexo estranho nos olhos dele. Se levantou e virou para sua secretária com visível apreensão e então se voltou para mim. - Vocês o quê?!

- É isso o que senhor ouviu! Nada de exclusividade! Somos idealistas! Tecnologia livre em benefício de toda a humanidade!

Ele se virou para a secretária novamente e murmurou. - É muito mais grave do que eu pensava. Não podemos permitir isso.

- O quê?! - Perguntei revoltado. - Nada. - Respondeu ele. E me dispensou rapidamente alegando que tinha que tratar de assuntos urgentes. Eu sabia que aquela notícia o deixaria embaraçado. Agora eu tinha certeza da convicção anti-ética daquele político, e de vários outros ao redor do mundo que também se opunham à idéia, e lamentavelmente detinham a maior parte do poder.

Ele veio me cumprimentar de modo forçado, tomando minha mão e a segurando entre as suas, foi então que senti... Tocando na pele, além da luva...

As mãos gélidas.

- Algum problema Senhor Governador?! - E então ele me olhou meio assustado, e percebi os dentes mais pontiagudos que o normal, e o reflexo nos olhos, e então ousadamente toquei o pescoço dele, no que ele reagiu furioso e com uma força incrível ao segurar meu pulso quase o esmagando e me empurrando. Gritei. - Arrghh... Meu Deus... O senhor é um vampiro!

Os seguranças se moveram imediatamente, me cercando, a secretária fez o mesmo. Neles eu não podia ver os olhos devido aos óculos, mas logo notei a bela mulher que se aproximou e me sorriu, revelando suas presas aumentando visivelmente de tamanho, e os olhos se tornando vermelhos.

O governador passou do susto para o cinismo, e começou a rir.

- Por que é tão surpreendente? Não deveria ser óbvio? Você é um rapaz muito inteligente. Que pena.

Sim. Eu já havia estudado algo sobre o vampirismo. Não aquelas lendas tolas que costumamos ver nos filmes, mas uma mutação induzida por contágio sanguíneo que fazia pessoais normais ficarem por um lado mais fortes, resistentes e longevas, e por outro lado anêmicas e incapazes de se expor ao Sol. Infelizmente era muito difícil separar isso das tolices sobre transformação em morcegos, não refletir em espelhos ou não poder tocar em cruzes, por isso tão poucas pessoas levavam o fato a sério e também porque os vampiros, se existissem em grande quantidade, seriam muito bem organizados e discretos.

- Estivemos nas sombras por muitas eras, desde antes do início da história. Há dezenas de milhares de anos o planeta ficou coberto por nuvens resultantes de um impacto meteórico, o que permitiu nosso desenvolvimento. Porém com o tempo as nuvens se dissiparam e então tivemos que nos adaptar a uma meia vida, nos escondendo de dia. Agora porém tudo mudou. Temos todo o planeta à nossa disposição durante todo o tempo. Esperamos milênios para isso e agora nossa era chegou! E não pretendemos deixá-la passar.

- Uma era de trevas! - Gritei quando os capangas me puxaram os ombros, e notei que eles também eram vampiros. Protestei. - Então é isso!? Vocês... Vampiros estão no poder! Mas que droga!

- Sim meu jovem... Pena que você descobriu. Agora teremos que levá-lo para um local especial. - Disse ele com um sorriso maligno.

- Acho que não. - Eu disse. - Não está ouvindo lá embaixo?

E então ele olhou pela janela e viu a multidão se agitando furiosa, protestando ao tomar conhecimento daquilo.

- Mas... O quê... Ele tem uma escuta! O que aconteceu com nosso neutralizador de transmissões?! - Gritou ele olhando para os seguranças. Mas eu mesmo respondi.

- Seu neutralizador só afeta certos tipos de frequências. Minha escuta é meu próprio micro aparelho de surdez, que envia um sinal sutil direto para meu cérebro e que pode ser captado por equipamentos especiais. Agora é tarde! Meus amigos acabam de retransmitir tudo ao vivo em sinal aberto! Hum! Incrível! E eu que esperava flagrar algum tipo de esquema de corrupção qualquer.

Lá embaixo não só a multidão já queria invadir o prédio, mas algumas autoridades já se preparavam para tomar providências, pois apesar da incredulidade de muitos, os vampiros já eram reconhecidos por divisões especiais da polícia.

- Muito bem meu rapaz. Muito esperto! - Disse ele em tom de desprezo e se virou para os seguranças. - Chamem o aerocarro e preparem uma retirada! - Se virou para a secretária. - E você, traga ele! - E se retirou.

Só ficamos eu e a vampira, que agarrou meu braço com força sobre humana, apontou a comprida e afiada unha para meu pescoço e disse com voz rasgada. - Não tente nenhuma bobagem!

Então me puxou para a ante-sala onde vi minha maleta, e percebi que eu só tinha uma chance. Peguei-a num movimento rápido e acertei a cabeça da vampira com um golpe inesperado. Surpreendida ela se desequilibrou e foi ao chão mas logo se recuperou e com um salto voou por cima de mim me arranhando o rosto e caindo na frente da saída. Mas eu não pretendia sair.

Corri para a mesma porta onde antes ela me levava, que dava acesso ao terraço. Ela não se apressou, gritando. - Você não tem para onde escapar!

Cheguei ao terraço onde o governador já aguardava e fiquei entre ele e ela, enquanto o aerocarro já se aproximava. Corri para o outro lado mas me deparei com um dos seguranças, com os dentes arreganhados, vindo em minha direção. Abri a maleta e peguei o que me interessava, fugi para lado oposto mas logo o outro segurança surgiu, e fiquei cercado pelos 4, enquanto o aerocarro já pairava sobre nós pouco abaixo das nuvens negras, que escondiam totalmente o Sol a pino de meio-dia.

O Sol! Armei então a pequena pistola e disparei o foguete para o céu. O governador olhou e riu. - Jovem tolo! Acha que será qualquer brecha nas nuvens que irá nos deter. Podemos resistir a alguns segundos de luz solar. - Disse ele colocando óculos e se preparando para cobrir o rosto, contando que a explosão seria como as outras, que liberavam um Sol parcial, por um breve período de tempo.

- Mas será que você nem teve a curiosidade de ler os detalhes do projeto?!

Perguntei em voz alta mas não houve tempo para resposta, logo o estrondo se fez ouvir logo acima do aerocarro, e então as nuvens se dissolveram rapidamente, abrindo um buraco nas nuvens que foi subindo kms de altura até finalmente revelar o céu azul. E o Sol.

Mais radiante do que nunca, o astro rei no alto do céu iluminou o prédio com força total, o cone de luz queimou até a mim, que dizer dos vampiros, que imediatamente começaram a gritar e não tiveram tempo sequer de chegar até as portas que davam acesso ao prédio, caindo ao chão e se debatendo enquanto eu pude ver suas peles se dissolvendo, borbulhando e enegrecendo, mesmo a roupa não os protegeu dos raios solares muito mais fortes do que eu esperava. Nada daqueles espetáculos pirotécnicos dos antigos filmes de vampiros, mas não menos chocante.

O aerocarro, como pude notar, também parecia conter vampiros, pois logo começou a se desorientar, e pude ver o piloto cobrir o rosto, ou talvez fora só o susto. Mas de qualquer modo ele deu meia volta e fugiu para as sombras, ao mesmo tempo que o terraço foi invadido por dezenas de pessoas tão surpresas e impressionadas quanto eu. Repórteres, policiais e alguns de meus colegas.

E ficamos ali. Vendo aquilo que a maioria de nós só vira em filmes, e os mais velhos mal se lembravam. Era verdade que seria difícil nos readaptarmos à aquela nova situação, o que percebemos ainda melhor quando inúmeros foguetes, inclusive alguns dos lançados por meus colegas, foram dissolvendo as nuvens para o delírio de milhões de pessoas. A camada de ozônio enfraquecida, e nossas décadas de costume a escuridão, nos tornaram vulneráveis ao Sol, quase tanto quanto os vampiros.

Mas nós vamos conseguir. Vivemos assim por milhares de anos e viveremos de novo.

Todos merecem um Lugar ao Sol.





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Marcus Valerio XR
Janeiro de 2003