- A questão... - Eu disse. - É que não consigo ver motivos razoáveis para esse veto Senhor
Governador. É uma garantia científica que oferecemos de que não há risco de efeitos colaterais
significativos.
- Sim... Mas... E o problema da camada de ozônio? Não estamos preparados para lidar novamente com
amplos dias ensolarados, será preciso anos de preparação. - Retrucou o governador, em tom
amigável mas ligeiramente hipócrita.
Respondi emocionado. - Já estamos nos preparando há anos! Anunciamos esse projeto há meia década,
e temos tido progressos notáveis, com isso grande parte da população já está praticamente
contando que em breve poderemos ter céu azul novamente, que poderemos ver as estrelas e a Lua
mais uma vez!
- Você não está entendendo meu jovem. Consolidamos uma nova sociedade, um novo modelo
sócio-econômico e não estamos ainda preparados para uma mudança tão brusca.
- Mas Senhor, o modelo se adapta! Como se adaptou no passado. Não será nenhuma novidade.
Estruturas caíram após a Terceira Guerra, outras surgiram, ainda que o mesmo aconteça, isso não
deve se opor ao progresso! À mudança! Por que privilegiar pequenos grupos que se beneficiam com
essa situação?!
- Grandes grupos. - Disse ele em tom corretivo.
- Que sejam! Tudo muda. Nossa história é uma corrente constante de todos os tipos de mudança. Não
consigo entender esse medo do futuro!
- Ou do passado... - Murmurou o governador fazendo uma expressão que aparentava medo, mas logo
voltou ao sorriso malicioso.
- Você diz isso meu rapaz... Porque almeja estar por cima no próximo modelo que viria. Vocês
desenvolveram essa tecnologia! Vocês irão ganhar com ela! - Ele me disse apontando o dedo.
Me levantei num misto de indignação e oportunidade, pois agora eu lhe revelaria meu trunfo.
- Acontece senhor... Que esse tecnologia é livre! Já liberamos as patentes para o planeta
inteiro, muito diferente da tecnologia do foguetes de perfuração celeste que até bem pouco tempo
atrás eram propriedade de corporações internacionais, até que nós derrubamos essas patentes!
Ele me olhou surpreso, e juro que notei um reflexo estranho nos olhos dele. Se levantou e virou
para sua secretária com visível apreensão e então se voltou para mim. - Vocês o quê?!
- É isso o que senhor ouviu! Nada de exclusividade! Somos idealistas! Tecnologia livre em
benefício de toda a humanidade!
Ele se virou para a secretária novamente e murmurou. - É muito mais grave do que eu pensava. Não
podemos permitir isso.
- O quê?! - Perguntei revoltado. - Nada. - Respondeu ele. E me dispensou rapidamente alegando que
tinha que tratar de assuntos urgentes. Eu sabia que aquela notícia o deixaria embaraçado. Agora
eu tinha certeza da convicção anti-ética daquele político, e de vários outros ao redor do mundo
que também se opunham à idéia, e lamentavelmente detinham a maior parte do poder.
Ele veio me cumprimentar de modo forçado, tomando minha mão e a segurando entre as suas, foi
então que senti... Tocando na pele, além da luva...
As mãos gélidas.
- Algum problema Senhor Governador?! - E então ele me olhou meio assustado, e percebi os dentes
mais pontiagudos que o normal, e o reflexo nos olhos, e então ousadamente toquei o pescoço dele,
no que ele reagiu furioso e com uma força incrível ao segurar meu pulso quase o esmagando e me
empurrando. Gritei. - Arrghh... Meu Deus... O senhor é um vampiro!
Os seguranças se moveram imediatamente, me cercando, a secretária fez o mesmo. Neles eu não podia
ver os olhos devido aos óculos, mas logo notei a bela mulher que se aproximou e me sorriu,
revelando suas presas aumentando visivelmente de tamanho, e os olhos se tornando vermelhos.
O governador passou do susto para o cinismo, e começou a rir.
- Por que é tão surpreendente? Não deveria ser óbvio? Você é um rapaz muito inteligente. Que pena.
Sim. Eu já havia estudado algo sobre o vampirismo. Não aquelas lendas tolas que costumamos ver
nos filmes, mas uma mutação induzida por contágio sanguíneo que fazia pessoais normais ficarem
por um lado mais fortes, resistentes e longevas, e por outro lado anêmicas e incapazes de se
expor ao Sol. Infelizmente era muito difícil separar isso das tolices sobre transformação em
morcegos, não refletir em espelhos ou não poder tocar em cruzes, por isso tão poucas pessoas
levavam o fato a sério e também porque os vampiros, se existissem em grande quantidade, seriam
muito bem organizados e discretos.
- Estivemos nas sombras por muitas eras, desde antes do início da história. Há dezenas de
milhares de anos o planeta ficou coberto por nuvens resultantes de um impacto meteórico, o que
permitiu nosso desenvolvimento. Porém com o tempo as nuvens se dissiparam e então tivemos que
nos adaptar a uma meia vida, nos escondendo de dia. Agora porém tudo mudou. Temos todo o planeta
à nossa disposição durante todo o tempo. Esperamos milênios para isso e agora nossa era chegou!
E não pretendemos deixá-la passar.
- Uma era de trevas! - Gritei quando os capangas me puxaram os ombros, e notei que eles também
eram vampiros. Protestei. - Então é isso!? Vocês... Vampiros estão no poder! Mas que droga!
- Sim meu jovem... Pena que você descobriu. Agora teremos que levá-lo para um local especial.
- Disse ele com um sorriso maligno.
- Acho que não. - Eu disse. - Não está ouvindo lá embaixo?
E então ele olhou pela janela e viu a multidão se agitando furiosa, protestando ao tomar
conhecimento daquilo.
- Mas... O quê... Ele tem uma escuta! O que aconteceu com nosso neutralizador de transmissões?!
- Gritou ele olhando para os seguranças. Mas eu mesmo respondi.
- Seu neutralizador só afeta certos tipos de frequências. Minha escuta é meu próprio micro
aparelho de surdez, que envia um sinal sutil direto para meu cérebro e que pode ser captado por
equipamentos especiais. Agora é tarde! Meus amigos acabam de retransmitir tudo ao vivo em sinal
aberto! Hum! Incrível! E eu que esperava flagrar algum tipo de esquema de corrupção qualquer.
Lá embaixo não só a multidão já queria invadir o prédio, mas algumas autoridades já se preparavam
para tomar providências, pois apesar da incredulidade de muitos, os vampiros já eram reconhecidos
por divisões especiais da polícia.
- Muito bem meu rapaz. Muito esperto! - Disse ele em tom de desprezo e se virou para os
seguranças. - Chamem o aerocarro e preparem uma retirada! - Se virou para a secretária.
- E você, traga ele! - E se retirou.
Só ficamos eu e a vampira, que agarrou meu braço com força sobre humana, apontou a comprida e
afiada unha para meu pescoço e disse com voz rasgada. - Não tente nenhuma bobagem!
Então me puxou para a ante-sala onde vi minha maleta, e percebi que eu só tinha uma chance.
Peguei-a num movimento rápido e acertei a cabeça da vampira com um golpe inesperado. Surpreendida
ela se desequilibrou e foi ao chão mas logo se recuperou e com um salto voou por cima de mim me
arranhando o rosto e caindo na frente da saída. Mas eu não pretendia sair.
Corri para a mesma porta onde antes ela me levava, que dava acesso ao terraço. Ela não se
apressou, gritando. - Você não tem para onde escapar!
Cheguei ao terraço onde o governador já aguardava e fiquei entre ele e ela, enquanto o aerocarro
já se aproximava. Corri para o outro lado mas me deparei com um dos seguranças, com os dentes
arreganhados, vindo em minha direção. Abri a maleta e peguei o que me interessava, fugi para lado
oposto mas logo o outro segurança surgiu, e fiquei cercado pelos 4, enquanto o aerocarro já
pairava sobre nós pouco abaixo das nuvens negras, que escondiam totalmente o Sol a pino de
meio-dia.
O Sol! Armei então a pequena pistola e disparei o foguete para o céu. O governador olhou e riu.
- Jovem tolo! Acha que será qualquer brecha nas nuvens que irá nos deter. Podemos resistir a
alguns segundos de luz solar. - Disse ele colocando óculos e se preparando para cobrir o rosto,
contando que a explosão seria como as outras, que liberavam um Sol parcial, por um breve período
de tempo.
- Mas será que você nem teve a curiosidade de ler os detalhes do projeto?!
Perguntei em voz alta mas não houve tempo para resposta, logo o estrondo se fez ouvir logo acima
do aerocarro, e então as nuvens se dissolveram rapidamente, abrindo um buraco nas nuvens que foi
subindo kms de altura até finalmente revelar o céu azul. E o Sol.
Mais radiante do que nunca, o astro rei no alto do céu iluminou o prédio com força total, o cone
de luz queimou até a mim, que dizer dos vampiros, que imediatamente começaram a gritar e não
tiveram tempo sequer de chegar até as portas que davam acesso ao prédio, caindo ao chão e se
debatendo enquanto eu pude ver suas peles se dissolvendo, borbulhando e enegrecendo, mesmo a
roupa não os protegeu dos raios solares muito mais fortes do que eu esperava. Nada daqueles
espetáculos pirotécnicos dos antigos filmes de vampiros, mas não menos chocante.
O aerocarro, como pude notar, também parecia conter vampiros, pois logo começou a se desorientar,
e pude ver o piloto cobrir o rosto, ou talvez fora só o susto. Mas de qualquer modo ele deu meia
volta e fugiu para as sombras, ao mesmo tempo que o terraço foi invadido por dezenas de pessoas
tão surpresas e impressionadas quanto eu. Repórteres, policiais e alguns de meus colegas.
E ficamos ali. Vendo aquilo que a maioria de nós só vira em filmes, e os mais velhos mal se
lembravam. Era verdade que seria difícil nos readaptarmos à aquela nova situação, o que
percebemos ainda melhor quando inúmeros foguetes, inclusive alguns dos lançados por meus colegas,
foram dissolvendo as nuvens para o delírio de milhões de pessoas. A camada de ozônio
enfraquecida, e nossas décadas de costume a escuridão, nos tornaram vulneráveis ao Sol, quase
tanto quanto os vampiros.
Mas nós vamos conseguir. Vivemos assim por milhares de anos e viveremos de novo.
Todos merecem um Lugar ao Sol.
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