O MUNDO DA ILUSÃO

Em algum lugar do futuro

Diguinho estava muito empolgado com o novo presente que acabara de ganhar em seu 13o aniversário. Um sistema de Realidade Virtual muito mais sofisticado que o de seus colegas. Colocando o capacete e a veste, totalmente revestida com micro pontos de pressão e temperatura, entrava em um mundo de fantasia onde podia realizar qualquer coisa.

Embora nas lojas já estivessem a venda equipamentos que permitiam até mesmo comer, dormir e fazer as demais necessidades básicas sem sair do mundo virtual, Diguinho, um menino muito inteligente, achava que já era demais. - Desse jeito nunca vão querer sair da máquina! - Ele sempre dizia.

Mesmo assim ele adorava o mundo virtual, seus programas favoritos, feitos por ele próprio, incluíam caçadas na selva, lutas entre ninjas e samurais no Japão medieval e duelo de Cavaleiros Jedi. Também usava muito um programa de relaxamento, que simulava uma praia e belíssimas garotas com as quais ele podia fazer muitas coisas.

Mas jamais quis tirar o outro pé do mundo real, achava perigoso ficar tanto tempo na virtualidade. Tinha medo de perder o senso de diferenciação. Havia sistemas tão completos que poderia se passar a vida inteira sem sair da máquina, não fossem leis de regulamentação que tentavam impedir uma fuga em massa da realidade.

Sua avó, Iara, sabia que o rapaz era muito esperto, e que corria menos risco de acabar tão absorvido pelos sistemas virtuais a ponto de viver uma vida vegetativa. Mesmo assim, diante da sofisticação do novo brinquedo e do ânimo do moço, decidiu intervir delicadamente contando uma história.

- Diguinho meu amor. Venha cá. Quero te contar uma história que sei que você vai gostar.

- Oi vó. Qual é?

- Calma. Empolgado pela nova máquina?

- Puxa vó! Ela é demais. Pena que o sistema não permite mais que 3 horas ininterruptas.

- Por quê?

- São leis aprovadas pelo governo, para impedir que se fique tempo demais na máquina.

- E você queria ficar mais?

- Sei que isso não é muito bom mas... Olha, a realidade virtual é muito útil, nunca aprendi história do Brasil tão bem até o dia que comprei aquele programa que simula o mundo colonial, lá vi como era a vida nos canaviais, nos engenhos. Também já usei um sobre a Grécia antiga, onde até conversei com simulóides de Aristóteles e Platão. Foi daí que passei a gostar de filosofia. Mas é claro que têm gente que passa o dia inteiro com jogos de luta ou em bordéis virtuais fazendo sexo de formas impossíveis.

- É. Como sempre as coisas podem ser usadas de todas as formas, boas ou más.

- É uma pena.

- Bem. Eu queria te contar uma história. Quer ouvir agora?

- Claro! Tenho que esperar a máquina recarregar mesmo!

- Então vamos lá.

- Que história é?

- Bem. Podemos chamá-la de...O mundo da ilusão?

Em algum lugar do passado

Era uma vez uma raça de seres maravilhosos, tão felizes e poderosos que sabiam unir com perfeição o trabalho com a diversão. Viviam num mundo que não eram bem um mundo, mas uma nave, ou uma nuvem, ou um mar de energia.

Eles nem precisavam de formas tão densas quanto os nossos corpos, eram energia luminosa, plasma maleável. Muito inteligentes, todos se ajudavam, se divertiam, cresciam e evoluíam. Se alimentavam da essência pura a sua volta, absorvendo do "ar" tudo o que precisavam.

Havia grandes e sábios líderes que regiam esse mundo, não eram chefes, eram amigos, pais, mães, protetores e guias. Esse mundo era tão bom que nem precisava de leis. A não ser uma.

Havia muitas máquinas fantásticas, não como as nossas, duras, mecânicas e sem vida. Eram máquinas de energia, computadores vivos com consciência, dispositivos diversos muitas vezes construídos só com a força da mente.

O trabalho deles incluía pesquisa, construção e compreensão dos mistérios do universo. Para aprender sobre o cosmos, sobre o infinito, a natureza, sobre Deus e sobre eles mesmos, podiam usar grandes recursos mentais, e algumas máquinas que ajudavam.

Poderosos e bem intencionados cientistas criaram grandes inventos que eram de livre utilização. Propriedade, posse, dinheiro ou qualquer coisa parecida não fazia o menor sentido nesse mundo, tudo era de todos, todos tinham tudo.

As máquinas podiam ser usadas por qualquer um, desde que aprendessem a usá-las, e que todos deveriam reverter algum benefício para a sociedade, para todos.

Tudo era livre e permitido, era apenas orientado e aconselhado, não havia proibições. A não ser uma.

Como todos eram conscientes e bem intencionados, todos queriam o melhor para seus semelhantes, não havia necessidade de restrições. A não ser uma.

Havia uma máquina muito especial, que só era usada pelos mestres. Era uma máquina que a maioria nem sabia o nome ou para que servia, apenas que os mestres aprendiam muito com ela e também se divertiam.

O grande Líder Mãe/Pai disse uma vez.

- Ninguém usará desta máquina até que tenha atingido o estado de mestre!

Intrigados por isso os jovens queriam saber por que, pois buscar o porquê era sua missão, sua vida e a coisa mais importante. Aprender.

- Por que para quem ainda não domina totalmente a si próprio, essa máquina é muito perigosa, pode trazer até a morte! - Diziam os sábios anciãos.

Morte! Isso não fazia muito sentido para eles, viviam para sempre, apenas se renovavam voltando a ser crianças de vez em quando, para que o mundo sempre fosse maravilhoso e desafiador e para que não existisse o tédio. Mesmo que muitos esquecessem da maior parte de seu passado quando se renovavam, todos sabiam que a verdadeira e grande vida continuava, que aprender de novo era sempre um prazer, uma benção.

Os jovens aceitavam a regra, um pouco tristes e intrigados mas obedeciam, pois sabiam que os antigos eram muito inteligentes e sapientes. E que eles, os jovens, ainda precisavam aprender muito.

Mas nem todos se conformavam, alguns embora bem intencionados, eram curiosos demais e precisavam saber o que era. Sabiam que os jovens aprendiam e cresciam cada vez mais rápido e talvez já estivesse na hora de descobrirem o grande mistério.

Justificavam sua inquietude dizendo que as vezes seus pais e mães os subestimavam, e embora não gostassem de desobedecê-los acreditavam que seria benéfico para todos se eles também usassem a máquina.

Um jovem dizia. - Talvez precisem saber que já somos crescidos.

Outro achava. - Talvez seja um desafio, para ver se temos coragem de descobrir por nós mesmos.

E outro - E se na verdade for um teste? Talvez queiram que desobedeçamos.

- Acho que devíamos dar uma olhada. O que há para temer? A tal de morte?

E assim muitos jovens decidiram escondidos, ir até uma destas máquinas proibidas. Não eram vigiadas, os líderes contavam com a obediência e compreensão de todos, não foi difícil para os espertos e engenhosos jovens enganarem a todos e se apoderarem de algumas máquinas por pouco tempo.

Eles se reuniram em um lugar secreto e contemplaram uma das máquinas. Ela poderia ser chamada de "Máquina dos Sonhos", "Máquina de Ilusão", e era maravilhosa. Os jovens logo perceberem que podiam entrar na máquina e lá dentro qualquer desejo se tornava realidade. Eles imaginavam uma nave, e ela surgia. Queriam um planeta, e ele aparecia. Desejavam se tornar estrelas flamejantes, e conseguiam.

Mas nada era real, apenas dentro da máquina tinham essa sensação fantástica. Sabiam que do lado de fora tudo era como antes mas nela, no interior dessa máquina proibida, eles podiam ser o que quisessem, podiam crescer de um instante ao outro, podiam ser líderes, criar mundos para governar sabiamente, era apenas diversão é claro. Mas também podiam aprender muito.

- Mas o que é que têm de perigoso nessa máquina? - Era o que eles se perguntavam.

- É só uma brincadeira!

- Podemos aprender e nos divertir! Só isso!

- Viram só! Eu não disse!

- Vamos contar aos antigos?

- Acho que não há problema.

- Não! Melhor não! E se eles nos tomarem as máquinas e as esconderem?

- Têm razão. Melhor usarmos em segredo.

- Ninguém vai desconfiar e se depois alguém descobrir e só dizer que...

- Usamos muitas vezes e nunca aconteceu nada perigoso!

- É isso!

- Eu sabia que não tinha problema.

E no princípio não houve mesmo, eles estudavam, trabalhavam e iam brincar com as máquinas escondidos. Um criava mundos com criaturas maravilhosas e se divertia vendo-as brincar, outro criava cidades e templos tão bem detalhados que aprendia como melhorar as construções em que ele trabalhava no mundo real, alguns brincavam que eram líderes e até criavam personagens que os obedeciam alegremente.

Tudo era só brincadeira, mas era tão boa que se tornou importante demais para eles.

O sonhos, as ilusões da máquina, eram tão perfeitos e maravilhosos que a sensação de estar nela era muito melhor que estar no mundo real, que ainda era muito bom, mas eles cada vez queriam ficar mais na máquina.

Com o tempo o passatempo virou hábito, rotina, vício, e ficavam mais e mais criando ilusões e simulações espetaculares. Até que um dia seus protetores e guias perceberam que apesar deles parecerem aprender mais, estavam se tornando desinteressados pelo trabalho, estudo e lazer reais.

Chamaram-lhes a atenção mas de pouco adiantou, continuaram mais e mais dependentes do mundo de ilusão que eles mesmos criavam, afinal realizavam todos os seus sonhos lá dentro, e já não viam mais graça em estudar, trabalhar ou construir no mundo de verdade, pois a ilusão superava tudo. Afinal, no mundo dos sonhos eles eram deuses.

Um dia foram descobertos.

- Vocês desobedeceram! E usaram a máquina proibida! Por quê?!

- Queríamos saber o que era, e descobrimos que não há perigo.

- Sim, já as usamos há muito tempo e como podem ver não aconteceu a morte!

- Vocês sabem o que é morte!

- ???

- Acho que é...

- Quando alguma coisa acaba?

- Sim! Quando algo termina ele morre. O que morreu em vocês foi sua vontade, sua colaboração, de brilhantes estudantes passaram a alunos relapsos, de grandes trabalhadores passaram a obreiros desinteressados, de perspicazes inventores tornaram-se sonhadores medíocres. Essa é a morte!

Os mestres perceberam que as idéias destes jovens eram agora tão diferentes que seus colegas se confundiam. Não podiam mais continuar trabalhando, precisavam de uma recuperação. Então conciliaram.

- Eles precisam recuperar sua vontade e eficiência.

- Precisam parar de usar a máquina, não estão preparados.

- Vamos destruir as máquinas?

- Não, elas são muito úteis para nós visualizarmos nossos futuros projetos.

- Sim, a culpa não é da máquina.

- O que faremos? Reeducação?

- Para jovens como eles a privação repentina da máquina poderia ser muito prejudicial.

- Acho que não temos escolha. Se quisermos o bem para nossos filhos teremos que ser severos.

- Sim! Vamos lhes tirar as máquinas. Escondê-las e vigiá-las.

- Sim. Não temos escolha.

Talvez tenha sido um erro dos anciãos mas o fato é que eles decidiram proibir os jovens de entrar na máquina. Foi um terrível choque para eles, sem perceber tornaram-se tão dependentes da máquina que não suportavam a idéia de viver sem ela.

- E agora?! Como vamos fazer!?

- Vão nos tirar as máquinas de sonho!

- Não é justo!

- Teremos que voltar a trabalhar e estudar.

- Mas como vamos nos divertir?

- Nada mais será como antes.

- Não consigo me imaginar sem meu mundo ilusório de luas coloridas.

- E eu sem minha montanhas encantadas.

- E como ficarei sem poder rever minhas crianças douradas do mundo dos sonhos?

- Não podemos aceitar isso.

- Mas eles vigiarão as máquinas, se entrarmos nos tirarão.

- Esperem! Eu tenho uma idéia. Vamos entrar nas máquinas e não sairemos mais.

- Como? Eles podem nos tirar!

- Só se quisermos sair!

- Só se permitirmos.

- Uma vez na máquina podemos desejar firmemente não sermos tirados.

- Mas de que jeito?

- Eu tenho a solução!

Havia algo nas máquinas, que era a única coisa que não permitia que as ilusões fossem absolutamente reais e perfeitas. O fato de se saber que se está num mundo de fantasia, desvaloriza o sonho por melhor que ele seja, e isso era simbolizado por uma minúscula luzinha branca que estava sempre em algum ponto do mundo de ilusão que qualquer um criava, era a saída.

Todos sentiam que aquela luzinha as vezes quebrava o encanto, era uma implacável lembrança de que aquilo que eles viviam não era real. As vezes eles gostariam de esquecer da realidade, e se entregar totalmente aos mundos maravilhosos que criavam.

Houve uma vez quem sugerisse. - Por que não fechamos a saída? Apagamos a luz?.

- Por que é muito perigoso. - O outro respondia. - Poderíamos ficar presos ao mundo do sonho e nunca mais voltar a realidade.

Mas foi isso que decidiram fazer, enquanto a luz estivesse ali, alguém poderia vir atrás deles e convencê-los a voltar. E importante saber também que nas máquinas de ilusão os mundos se mesclavam, um podia viver no sonho do outro, misturando suas realidades. Se um ancião viesse poderia destruir sua ilusão para força-los a voltar, talvez até criar uma ilusão desagradável para faze-los querer voltar ao mundo real.

Depois de conseguirem pela última vez entrar na máquina, era inevitável que em breve seus guias e protetores viessem buscá-los. Então discutiram.

- Se fecharmos a saída podemos ficar presos!

- Podemos nunca mais voltar a ver nossos pais e mães, nossos amigos.

- Mas se deixarmos nos tirarem daqui não mais voltaremos à máquina.

- Eu não posso viver seu meu mundo.

- Nem eu.

- Podemos recriar nosso mundo real aqui, melhorado.

- Até mesmo nossos amados líderes podem ser simulados, perfeitos e menos severos.

- Está decidido. Nós preferimos ficar.

E apagaram a luz, fecharam a porta.

 

Os anciãos entraram em desespero, sabiam que era questão de pouco tempo até que os jovens se esquecessem totalmente de quem eram. A saída, a luzinha, nada mais era senão o símbolo do desejo de voltar e a lembrança da realidade. Com ela apagada, as crianças se esqueceriam, e mesmo que quisessem, não poderiam mais voltar, não achariam o caminho.

Depois de muito tempo e discussões, decidiram enviar mensageiros para dentro das máquinas, para convencê-los a voltar. Sabiam que não podiam trazê-los a força, tinham que tentar um outro meio.

 

Os seres deste belo mundo, mesmo os jovens, eram dotados de grande poder de concentração e visualização. Conseguiam compreender as coisas numa velocidade absurda para nós seres humanos.

Se um jovem daquela raça viesse para o nosso mundo, a Terra de hoje, desvendaria facilmente grandes mistérios que intrigam nossa ciência, seria capaz de realizar instantaneamente cálculos difíceis até para nossos computadores e compreenderia as leis que regem a natureza com a espontaneidade de quem entende as regras de um jogo simples.

Por isso eles usavam a máquina de ilusão tão bem. A máquina não seria fácil de utilizar para nós simples mortais, pois requeria grande potencial imaginativo e de concentração.

Tente imaginar um carro, você consegue simultânea e imediatamente visualizar todas as suas peças?

Consegue ao mesmo tempo se concentrar em detalhes do motor, dos mecanismos elétricos, até mesmo os desenhos dos sulcos das rodas?

Nós não vemos isso com clareza, teríamos que imaginar parafuso por parafuso, porca por porca, e ir lentamente montando tudo até termos um carro completo.

E as leis físicas que regem o comportamento do carro? Você consegue compreendê-las perfeitamente? Gravidade, inércia, atrito, e tudo que tornaria uma simulação de um carro numa pista perfeita.? Quanto tempo demoraria para conseguir criar algo assim numa máquina que faz absolutamente tudo o que você imaginar?

Esses jovens podiam! Eles conseguiam se concentrar tão profundamente que em segundos criavam prédios, em minutos criavam vales e rios, em horas planetas e em alguns dias seres vivos altamente complexos.

Os mundos de ilusão criados por eles eram absurdamente complexos e completos, algo inimaginável para nós seres humanos. Mas havia um problema.

Esse grande poder de concentração era fruto da prática e treinamento no mundo real, lá apesar de ser um lugar maravilhoso, inimaginável para nós atuais terrestres, ainda tinha suas dificuldades, obstáculos que precisavam ser vencidos, desafios a serem superados, que mantinham a mente treinada.

No mundo de ilusão tudo era mais fácil, e com o tempo suas capacidades de visualização e concentração foram atrofiando por falta de prática. E eles não eram mais tão bons.

Enquanto antes imaginavam e criavam uma catedral com 7 belas torres, agora a catedral surgia com 8 ou 6, quando antes visualizavam uma montanha na forma perfeita do rosto de uma pessoa querida, agora o rosto já surgia lembrando outra pessoa, quando um deles pedia uma fruta com um sabor rico de muitas misturas, agora o sabor vinha apenas parecido, mas não igual.

Mais e mais as coisas no mundo dos sonhos iam ficando difíceis, não era mais tão simples criar.

- Estamos perdendo a prática.

- Sim, não consigo mais fazer criaturas tão bem quanto antes.

- Está tudo mais difícil.

- Não temos mais a mesma técnica.

- Que faremos? Como aperfeiçoaremos nossa mentes?

- Vamos tornar tudo mais desafiador!

- Como?

- Precisamos de um pouco de dificuldade, para nos obrigar a um maior esforço.

- Só mesmo voltando ao mundo real.

- Correria o risco? De não poder voltar?

- Podemos treinar aqui mesmo!

- Sim, podemos estabelecer regras.

- Dificuldades propositais para nos manterem afiados sempre solucionando problemas.

- Boa idéia, vamos criar regras de limitação, isso nos obrigará a pensar mais.

E então eles passaram a se impor dificuldades, criaram obstáculos a serem vencidos, num mundo onde tudo era possível, tudo continuou a ser possível, só que menos fácil. Para evitar a confusão entre criações de diferentes criadores estabeleceram que duas coisas não podiam ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Para obrigar a reaproveitar criações antigas, e não apenas entulhar as velhas sempre criando novas, determinaram que nada poderia ser criado ou destruído, tudo deveria ser transformado. Para que todos partilhassem dos mesmos benefícios e que suas criações pudessem se interrelacionar, concordaram que tudo deveria interagir, atraindo-se em maior ou menor grau de acordo com a quantidade de energia contida em cada coisa.

Precisavam de soluções mais elaboradas, tiveram mais desafios e realmente funcionou, suas mentes recuperaram um pouco da suas esplêndidas faculdades, ou pelos menos passaram a perdê-las mais lentamente. Mas ainda assim, não era a mesma coisa.

Um dia alguns anciãos vieram.

- Vocês precisam voltar! O mundo real está lá fora, tudo aqui é ilusão.

- Não queremos voltar.

- Aqui temos de tudo.

- Mas vocês estão cada vez menos brilhantes, suas capacidades estão degenerando!

- Estavam! Conseguimos remediar a situação.

- Sim. Criamos regras, leis, diretrizes.

- O quê? Vocês desobedeceram a única lei em nosso mundo, e agora estão dispostos a se submeter a várias?

- É diferente, são leis maleáveis e de outra natureza, possuem um objetivo diferente.

- Não queremos proibir, apenas tornar tudo mais interessante.

- Ah! As proibições tornam as coisas interessantes não é?

- Jamais devíamos ter proibido a máquina.

- São leis de outra natureza.

- Vocês não entendem.

- Todas as leis são iguais. Não passam de proibições.

- Apenas algumas são mais difíceis de violar do que outras.

Não foram poucos os jovens que fugiram para o mundo da máquina dos sonhos. Era um número muito grande. Pouquíssimos concordaram em voltar, alguns não perdiam tanto suas capacidades quanto os outros mas a maioria, estava regredindo.

Passaram a se casar e se reproduzir e seus filhos, acostumados a viver num mundo de ilusões onde apesar das novas leis, tudo ainda era mais fácil, cresciam sem os desafios que fizeram seus pais ser o que eram. E embora incomensuravelmente mais dotados que as pessoas de nosso mundo real, não mais se comparavam as pessoas daquele mundo real, fora da máquina dos sonhos.

Mesmo com as dificuldades as mentes iam enfraquecendo, mais leis foram criadas na tentativa de impedir a degeneração, num dado momento perceberam que tais leis estavam aprisionando as mentes, impedindo-as de usar suas reais capacidades, aboliram muitas delas e perceberam que muitos não mais viviam sem elas. Eram suas guias num mundo onde cada pensamento, até mesmo uma distração, podia resultar em alguma criação desagradável, maligna. E surgiram coisas realmente ruins.

Sem as leis alguns degeneravam ainda mais e mais rápido, outros perdiam totalmente o senso de direção, não sabiam mais como fazer ou o quê fazer. Novas leis foram criadas e modificadas.

Havia aqueles que se mantiveram livres, com a mente livre e poderosa, se tornaram guias para os demais, líderes. Alguns conseguiram voltar ao mundo real, outros seguiram os antigos que jamais desistiram de vir buscá-los. Mas a maioria das crianças nascia cada vez mais atrofiada mentalmente, afinal nem precisavam mais criar, já havia tantas coisas criadas, era só reaproveitar ou pedir. - Crie um brinquedo para mim mamãe! - Poucos respondiam. - Por quê você mesmo não cria meu amor?

Se antes era preciso muito esforço mental para construir do nada uma casa, agora só era preciso pegar pedaços de outras, ou pedaços de outras coisas como árvores, pedras. E o poder de criação foi diminuindo geração após geração.

Eram comum alguns contarem que os antigos criaram a terra em que viviam, os rios, as nuvens, e esses antigos passaram a ser divinizados. Muitos dos que conservavam seus dons antigos, na verdade agora verdadeiros super poderes para os atrofiados, tentavam resgatar o dom de seus companheiros, ensinando-os a redescobrir suas capacidades.

- Olhem para dentro de vocês mesmos! O poder de criação está aí! Em vocês! O resto tudo é ilusão!

Alguns ouviam e aprendiam, alguns recuperavam seus dons e eram considerados semideuses, feiticeiros, magos. Mas a maioria apenas venerava seus novos mestres, achando que libertariam sua mente apenas seguindo-os cegamente.

Os puros, não atrofiados pela ilusão, diziam.

- Conheçam a si mesmos, lembrem-se de quem vocês são! Lembrem-se de onde vieram!

Mais e mais as pessoas nasciam degeneradas, haviam criado corpos para si mesmos não sabiam quando, tão densos que eram difíceis e desconfortáveis mas não mais sabiam viver sem eles, a maioria.

Havia leis que os aprisionavam no chão, tudo que era jogado para cima caía. Agora absorviam energia ingerindo coisas, não mais transmutavam a essência pura.

Os dirigentes do mundo da ilusão, ainda pouco degenerados, criaram leis radicais na tentativa de reverter a situação, quanto mais o tempo passava mais as pessoas atrofiavam suas mentes. Tentativas terríveis foram feitas para abrir os olhos dos demais.

Foram mandados acontecimentos desagradáveis, além do controle daqueles que haviam adormecido, para que através do sofrimento vissem que havia alguma coisa errada e se voltassem para a libertação. Mas muitos se apegavam a suas "coisas", entravam em desespero e apenas imploravam ao "deuses" que tivessem piedade.

Cada vez mais as mensagens dos ainda iluminados eram menos entendidas, e ao invés de seguir seus exemplos, eles apenas os seguiam.

Alguns diziam. - Desejar o que está a nossa volta e desejar ilusões, jamais serão satisfeitos, olhem para seu próprio interior, a resposta, a libertação está dentro de vocês. Precisamos destruir os bloqueios que aprisionam nossas mentes e voltar para o mundo real, da felicidade, o mundo de nossos pais.

Mas a maioria achava que era apenas se submeter a eles que voltariam a esse tão falado mundo maravilhoso, a esse paraíso.

Alguns antigos, do mundo real também tentavam ajudar. - Conheçam vocês mesmos, conheçam seu EU verdadeiro, só ele e a libertação.

Mas a maioria não entendia.

Um deles disse. - O EU, o verdadeiro "eu", é o caminho, a verdade e a vida.

Mas a maioria entendia que o eu era ELE, o mestre, que era o caminho a verdade e a vida, e passaram a adorá-lo, a venerá-lo, bajulá-lo, pois só por ele voltariam ao mundo original, ao mundo real, ao Pai.

O mestres estavam em toda parte, poucos discípulos conseguiam se libertar e voltar ao mundo original, ao paraíso. A maioria apenas venerava os mestres, exigindo demonstrações de poder, levando oferendas a deuses que a muito tinham ido embora.

Muitos mestres ainda manipulavam os fundamentos do mundo da ilusão, conseguiam criar e transformar, violar a gravidade e levitar, sumir em um local e surgir em outro, mover as águas só com um gesto, pois ainda compreendiam como funcionava a máquina dos sonhos.

Mas ainda assim esses demais evoluíram, cada vez mais esquecidos de sua origem mas mais aplicados em compreenderem seu mundo ilusório que para eles era real, não todos claro, mas aprenderam a dominar as leis físicas e criar coisas com outras coisas, ilusão acima de ilusão, mas que funcionavam. E para eles essa era a única verdade.

Os mestres eram poucos e sabiam que poucos voltariam ao mundo original, um dia talvez a máquina da ilusão teria que ser desligada, mas que diferença faria? Seu mundo real também não tinha leis? Seria seu mundo real também outra ilusão com regras?

Deixaram muitos ensinamentos para a posteridade, a maioria em livros que nada mais eram que objetos de ilusão, contendo palavras que podiam ser proferidas por gargantas ilusórias e se perdiam no ar que também é ilusão, elas podiam apenas apontar a Verdade mas muitas pessoas as tomavam como "a" verdade. Como se palavras pudessem aprisionar a essência da mente.

Os restantes não mais controlavam a máquina do sonho, eram controlados por ela. Cada vez mais acreditavam que a ilusão era o real, até por fim estarem tão condicionados as leis, que não mais concebiam algo diferente. Estavam presos a matéria, até por fim duvidar de que eles mesmos existiam, achar que na verdade sua vontade, sua consciência, nada mais era que um fenômeno resultante da matéria.

E alguns inverteram a única verdade...

De que apenas a mente existe, o resto é ilusão.

De volta para o futuro

Diguinho terminou de ouvir a história de sua avó. E foi de volta a sua máquina de realidade virtual que apesar de tão sofisticada não se comparava a aquela tal máquina do mundo da ilusão.

E agora? Sentia uma culpa ao se reintegrar ao mundo virtual, mas ele era muito melhor que o mundo real, não foi assim que os jovens da história pensaram?

Ele poderia ir brincar na rua, jogos de verdade, mas e o risco? De ser assaltado numa cidade cada vez mais violenta, de ser agredido por aquelas inumeráveis gangues de idiotas, ou ser atropelado por um motorista maluco?

Isso sem falar naqueles carros aéreos que vivem batendo nos céus e despencando em cima dos outros. Pilotos embriagados! Pelo menos em casa era mais seguro.

Ele sabia que estava longe o dia que os sistemas de realidade virtual seriam tão bons quanto aquela máquina dos sonhos. Ele queria ter uma máquina como aquela apesar do perigo.

E evidentemente ele já tinha, assim como todos nós.

 

Marcus Valerio XR
27 de agosto de 1999

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