MONOGRAFIAS
Por uma
ESTÉTICA DOURADA

Marcus Valerio XR

Segunda
Parte

 

 

  PRIMEIRA PARTE

 

 

  INTRODUÇÃO AO TEMA

DEFINIÇÕES

INTUIÇÕES FUNDAMENTAIS

REFLEXÕES AFORÍSTICAS

 

 

 

INTRODUÇÃO

Talvez aquele que produza um texto sobre estética deva fazê-lo belo, tanto quanto o que produz um texto sobre lógica deve fazê-lo rigoroso, portanto, um texto sobre ética deve ser honesto, pretendo então deixar claro minhas pretensões, que, admito, podem ser consideradas ousadas. Esse texto não é exatamente sobre o que sejam os preceitos éticos, visto que ao menos os mais importantes são de fácil consenso, mas, principalmente, sobre como eles podem ser melhor entendidos em seu funcionamento, e como podem ser melhor aperfeiçoados em sua eficiência. Ele pretende ser uma Teoria Ética, baseada no sentimento de Empatia.

Segue, então, uma descrição sumária das proposições principais:

1 - Que a Ética ocupa local privilegiado no campo filosófico, pela sua abrangência histórica, densidade abstrata e concreta, importância social e inesgotabilidade conceitual;

2 - Que os preceitos éticos, embora possam ser compreendidos de um ponto de vista essencialmente racional, a exemplo da ética deontológica, são mais diretamente apreendidos por meio de emoções e intuições que, subjetivas, atingem de imediato consensos que às vias racionais consomem mais tempo e esforço;

3 - Que o elemento primordial do ‘senso ético’ é a Empatia, e que tal idéia já foi explorada na tradição filosófica moderna, especialmente por David Hume e Adam Smith, embora com outra nomenclatura e com baixo grau de disseminação;

4 - Que a empatia tem fundamento biológico demonstrável, mas atinge sofisticação exclusivamente humana por meio de estados mentais meta representativos;

5 - Que embora latente em qualquer ser humano, a empatia pode ser desenvolvida ou reprimida por uma série de contingências;

6 - Que devemos contribuir de forma ativa para o desenvolvimento dos sentimentos empáticos a fim de contribuir para o bem comum e a felicidade geral;

7 - Que a melhor forma de fazê-lo é pelo apelo estético.

Fica então estabelecida uma nítida pretensão normativa, além da meramente descritiva, que pretendo justificar pelo simples fato de sustentar a impossibilidade de uma ética puramente descritiva, e assim, assumir tal natureza normativa ao invés de dissimulá la ou meramente sugeri-la.

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Estruturalmente, esta monografia está divida em partes.

A Primeira, envolvendo esta introdução, índice, definições, e uma série de reflexões preliminares com o objetivo de delinear questões fundamentais das quais algumas deverão ser sintetizadas e desenvolvidas na parte final.

A Segunda promove uma abordagem das obras Tratado da Natureza Humana, de David Hume, que foi pioneiro na elaboração de uma Ética com base emocional, e da Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith, mais tardia, mas de abordagem similar, bem como alguns apontamentos relativos a outras obras de Hume. O objetivo é demonstrar que o conceito central dessa monografia, a Empatia, já foi em parte levantado e desenvolvido por esses dois filósofos, e outros, sob o nome de “Simpatia”, e que apesar de sua fertilidade, acabou não recebendo a posterior importância devida.

A Terceira é o desenvolvimento de uma teoria ética que, partindo de uma autobiografia intelectual, e em consonância com os autores supra citados, incorpora novos elementos, presentes entre os sete itens acima, acrescentando uma pragmática estética.

No Anexo I acrescentei um desenvolvimento que aprofunda questões levantadas principalmente no início da Terceira Parte, levando o tema num sentido paralelo não necessário à compreensão da teoria exceto por aqueles que exijam uma justificação maior do valor da existência e do otimismo. Sua leitura pode ser dispensada sem prejuízo ao restante da monografia, mas é recomendável para quem se interesse pelos temas, em especial o pessimismo. Já o Anexo II é por completo desvinculado, servindo apenas para facilitar a consulta, caso interesse, pois faço diversas referências ao mesmo.

Enfim, eu não poderia deixar de acrescentar uma confissão. Todo esse trabalho tem um profundo e apaixonado componente de piedade e compaixão. Assaltado pelas imagens e idéias de sofrimento no mundo, além do que eu próprio e meus próximos vivenciamos, experimentei ao longo da vida as mais diversas reações, até que a partir de certa idade a reação intelectual se tornou uma constante. Não se tratava apenas de um compadecimento, uma revolta, um desespero, era preciso buscar a explicação causal, pois só o conhecimento da causa permite a anulação do efeito. Por que tanto sofrimento? Como combatê-lo? Como diminuí-lo?

O mesmo impulso que me lançou para religiões e abordagens políticas, me impulsiona para a Ética. Penso que uma abordagem esclarecida do problema do mal e das relações humanas pode contribuir para tornar o mundo melhor. Eu jamais me interessaria pelo campo da Ética por motivos pura e simplesmente intelectuais. Por mais que pretenda articular um sistema filosófico coeso, racional e inteligível, insisto que a motivação fundamental por trás de tudo é um forte sentimento de piedade por todos os seres que sofrem.

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ÉTICA

Talvez seja defensável considerar a Ética como a área mais importante, e primordial, da Filosofia, ao menos levando em conta sua completa amplitude histórica. Embora a Física dos pré socráticos tenha sido a primeira grande manifestação filosófica, esta acabou sendo absorvida pelas ciências empíricas, bem como diversas outras ramificações posteriores também o foram pelas “ciências” humanas, como a Antropologia, Psicologia ou Política. Seguidas às filosofias elementais, passaram a ser enfatizadas as abordagens humanistas, onde teorias da felicidade, do ser humano, do conhecimento e do Bem Viver tiveram importância capital, e portanto a reflexão ética está entre as mais antigas da tradição.

Por outro lado, novas vertentes da filosofia, como Fenomenologia, Linguagem ou Existencialismo são recentes demais, e em paralelo, disciplinas como a Teologia ou a Lógica podem ser absorvidas por áreas concorrentes e bastante isoladas das Faculdades de Filosofia. E se o progresso intelectual desmembrou o “amor à sabedoria” em áreas distintas, a maioria das quais se rotulando como uma “ciência” específica, o mesmo não tem como ocorrer com a Ética, pois esta, em seus fundamentos, é flagrante e excessivamente metafísica, ontológica, para ser mascarada como uma disciplina de “ciência” humana qualquer.

Por exemplo, na Sociologia pode-se discorrer muito sem discutir termos essenciais como etnia, indivíduo ou coletivo, ou defini-los de formas mais ou menos consensuais. O mesmo não ocorre na Ética, onde deve-se enfrentar a dificílima definição de Bem, ou se pautar em um outro conceito sutilmente relacionado, mas que consiga se manter mais estável, como Justiça ou Utilidade, e então, mais uma vez permanecer perpetuamente às voltas dessa definição. Em outras palavras, talvez nenhuma outra disciplina de pensamento cuja aplicação seja tão essencialmente pragmática, seja também tão restrita a seu núcleo conceitual, e tão difícil de se desligar da especulação metafísica.

Outrora era muito comum estabelecer essa divisão na Filosofia, entre a Especulativa e a Prática, e frequentemente a Ética foi vista como fazendo parte da última. No entanto, penso que ela esteja num delicado e peculiar meio termo, impossível de se desvencilhar de sua dimensão social, bem como de sua dimensão abstrata, e provavelmente por isso seja uma disciplina perpetuamente indissociável do departamento de Filosofia e do mundo, e por isso mesmo, que faz a devida ligação entre o mundo ‘onírico’ dos filósofos, e o mundo ainda mais surreal da realidade concreta.

É possível que a Filosofia da Linguagem seja absorvida pela Linguística, que a Filosofia da Mente o seja pela Psicologia, bem como a Epistemologia, ou se emancipe como uma nova “ciência” humana. Bem como é possível que Filosofia da Religião esteja mais para a Teologia, ou Filosofia Política migre em definitivo para a ‘Ciência’ Política. Mas nada disso, dificilmente, acontecerá com a Ética, ou o Direito já teria se encarregado de tal apropriação.

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Caso o atrelamento da ética à metafísica ainda não seja suficientemente convincente, basta lembrarmos questões contemporâneas da bioética, cujas discussões jurídicas inevitavelmente enveredam por tópicos sublimes como definição de ‘vida’, ‘humanidade’, ‘liberdade’, e tentam pesar tais valores de acordo com sua adequação ao que é o Bem, quer seja de ordem jurídica ou social. Embora problemas como eutanásia, aborto, contracepção e similares, sejam evidentemente de ordem prática, é impossível discuti-los sem cair em fundamentos, ao passo que programas econômicos inteiros podem se suceder, com ampla discussão especializada, sem sequer um único questionamento sobre o que venha ser o mercado, o dinheiro ou o trabalho, bem como programas políticos e gerenciais podem se arrastar por décadas sem jamais se preocupar em enfrentar a definição de bem comum ou igualdade.

E por que não se dá um único passo numa discussão ética sem enfrentar definições complexas? Provavelmente porque o objeto central de discussão é metafísico em excesso para admitir esgotamento. Pode-se mover campanhas jurídicas, para defender a propriedade intelectual, por exemplo, apenas apontando sua violação como crime, mas em algum momento alguém irá questionar porque tal conduta em si é crime, que mal ela realmente traz, que impacto ela terá na liberdade e na propriedade, até o ponto da pura especulação. Em suma, qualquer discussão ética tende a um recuo até um núcleo fundamental que, em geral, as outras disciplinas não precisam enfrentar.

 

Sintetizando, também podemos considerar a finalidade de qualquer área do conhecimento. Ora, todas visam o entendimento de algo, mas para que serve tal entendimento? É muito provável que a resposta terminal mais aceitável esteja no simples fato de que o conhecimento nos é útil, nos traz benefícios, e, afinal, visa o Bem.

 

Portanto, todas as áreas do conhecimento podem estar de um modo ou de outro conectadas à Ética, que é onde afinal pode-se discutir a respeito do Bem em si, tal como somente na ontologia pode-se discutir o conceito mais fundamental do universo, o Ser.

 

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EMPATIA E SIMPATIA

Esta monografia pretende apresentar uma teoria ética cujo fundamento se assenta não num conceito tradicional de virtude, não num puro imperativo racional, e nem mesmo num apelo às conseqüências das ações, embora, certamente se conecte a todas essas dimensões. Seu núcleo é a emoção, mas não somente enquanto fenômeno subjetivo, mas sobretudo como emulação, que empresta um caráter de intersubjetividade entre os indivíduos. Especificamente, utiliza o conceito de Empatia como uma pedra fundamental de nossos sentimentos éticos, sobre o qual construímos nossos sistemas morais, códigos de conduta e leis cívicas.

O termo “simpatia”, bem como seu associado “sentimento moral”, já estão presentes na tradição ética, embora com menor recorrência que consagrados termos como “virtude”, “dever” e “utilidade”. No entanto, há motivos para considerar que tal termo, simpatia, perdeu grande parte de sua aplicabilidade, principalmente devido a conotações paralelas, especialmente em língua portuguesa, por isso, adotei o uso do termo “empatia” como um sucedâneo mais adaptado ao nosso universo linguístico. Tal mudança pode ser justificada pelas seguintes definições.

Simpatia. [do Gr. sympátheia ‘confirmidade de gênios’, pelo lat. sympathia.] S. f. 1. Tendência ou inclinação que reúne duas ou mais pessoas. 2. As relações que há entre pessoas que instintivamente se sentem atraídas entre si. 3. Sentimento caloroso ou espontâneo que alguém experimenta em relação a outrem. 4. Primeiros sentimentos de amor. 5. Faculdade de compartir as alegrias e tristezas de outrem. 6. Atração que uma coisa ou uma idéia exerce sobre alguém. 7. Bras. Interesse em atender às pretensões de alguém. 8. Pessoa muito simpática. 9. Bras. Tratamento intencionalmente amistoso dado a alguém. 10. Bras. Ritual posto em prática, ou objeto supersticiosamente usado, para prevenir ou curar uma enfermidade ou mal-estar. 11. Ant. Tendência que se julgava existir entre as qualidades de certos corpos.

Nota-se, então, uma miríade de significações para o termo, dos quais poucos são relevantes ao conceito de “sentimento moral”. Por outro lado, observemos a precisão da definição seguinte, do mesmo Dicionário Aurélio.

Empatia. [Do gr. empátheia.] S. f. Psicol. Tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa.

Já o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa também lista vários significados para “simpatia”, a maioria desinteressantes, ao passo que para “empatia” temos:

empatia, s. f. (em+pato+ia). Psicol. Projeção imaginária ou mental de um estado subjetivo, quer afetivo, quer conato ou cognitivo, nos elementos de uma obra de arte ou de um objeto natural, de modo que estes parecem imbuídos dele. Na psicanálise, estado de espírito no qual uma pessoa se identifica com outra, presumindo sentir o que esta está sentido.

É muito útil a primeira significação, visto que uma abordagem estética da empatia é muito importante para uma compreensão maior do mecanismo de transmissão desse sentimento, claramente associado à apreciação artística. Na realidade, apesar de sua origem grega, o termo Einfühlung foi popularizado a partir do século XIX pelos filósofos

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alemães Robert Wischer (1847-1933) e Theodor Lipps (1851-1914) 1, num sentido de esthetic sympathy, originalmente dirigido para a noção de apreciações de obras de arte. Termo que também foi explorado por Edmund Husserl e que serviu de referência para outros idiomas na terminologia contemporânea.

Portanto, o uso do termo “empatia” em língua portuguesa parece muito mais apropriado do que “simpatia”, e embora em língua inglesa seus equivalentes sejam bem mais próximos, podemos notar que mais uma vez, “empathy” é tão ou melhor adequado do que “sympathy”, como exemplo o Oxford Dictionary of Current English.

empathy .n. the ability to understand and share the feelings of other people. – ORIGIN Greek empatheia. sympathy .n. 1 the feeling of being sorry for someone. 2 understanding between people. 3 support for or approval of something. ORIGIN Greek sumpatheia.

Por fim, The New Michaelis Illustrated Dictionary English-Portuguese também fornece para empatia uma definição mais sintética e objetiva, que mais uma vez remete a uma bem vinda associação com a psicologia.

sympathy s. 1. Simpatia, harmonia, concordância, afinidade f. 2. Compaixão, comiseração, condolência f. 3. Aprovação f., acordo, favor m.

emphaty s. (Psicol.) empatia f.: capacidade de compreender e interpretar as manifestações da vida psíquica alheia.

Tendo visto tais definições em dicionários lingüísticos normais, podemos inferir que o uso do termo na linguagem geral é bastante harmônico, mas devemos agora observar o mesmo termo em dicionários de filosofia, onde notaremos uma peculiaridade intrigante. Primeiro, vejamos a definição mais simples, Dicionário Abbaganano, perfeitamente de acordo com os dicionários anteriores.

EMPATIA (in. Empathy; fr. Empathie; AL. Einfühlung; it. Empatia). União ou fusão emotiva com outros seres ou objetos (considerados animados.) (...) A reprodução das manifestações corpóreas alheias (devido ao instinto de imitação) reproduziria em nós mesmos as emoções que costumam acompanhá-las, colocando-nos assim no estado emotivo da pessoa a quem essas manifestações pertencem.

A ênfase na experiência estética, suprimida entre parêntese no trecho que cita Lipps, é altamente relevante para os propósitos desta monografia, mas é interessante chamar a atenção para uma afirmação mais adiante, ao final do mesmo verbete.

O conceito de empatia foi abandonado por estar em conflito com certo número de fatos, sobretudo com o fato evidenciado por Scheler, de que os fenômenos compreensão ou de simpatia não tem a ver com a empatia ou a fusão emotiva. (cf. Scheler, Sympathie, I, cap. I.).

Na realidade, a crítica de Scheler se aplica mais a uma outra abordagem sobre a empatia. Trata-se de sua invocação como forma de abordar o Problema de Outras Mentes, em sua época, conhecido como o Problema do Outro. Max Scheler tem como principal alvo questões epistêmicas. Além disso, boa parte de sua recusa deve-se também à preferência pelo termo simpatia, que à época, ainda disputava significações com empatia.


1. en.wikipedia.org/wiki/Robert_Vischer, en.wikipedia.org/wiki/Theodor_Lipps. ABBAGNANO, Nicolau. Dicionário de Filosofia. Ed. Martins Fontes São Paulo 2007.

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Essa citação é mais útil, porém, para mostrar evidências do quanto o termo tem sido negligenciado, pois como diz The Stanford Encyclopedia of Philosophy:

In its philosophical heyday at the turn of the 19th to the 20th century, empathy had been hailed as the primary means for gaining knowledge of other minds and as the method uniquely suited for the human sciences, only to be almost entirely neglected philosophically for the rest of the century. 2

Como se vê, houve muita resistência contra o uso do termo, mas esta parece estar em franca retração, visto a popularização do conceito nos últimos anos, em várias áreas do conhecimento, o que leva o mesmo texto a concluir:.

…it is important to emphasize that empathy is the topic of an ongoing interdisciplinary research project that has transcended the disciplinary and subdisciplinary boundaries, (…). Specifically, the addition of a neuroscientific perspective has been crucial in recent years. (…) researchers in psychology nowadays tend no longer to conceive of empathy exclusively either in affective or cognitive terms but as encompassing both. Such a unified conception of empathy is further supported by the above mentioned neuroscientific research on mirror neurons.

Esse vanguardismo explica porque o termo ainda está pouco presente mesmo em alguns dicionários filosóficos recentes 3, embora já seja largamente abordado em outros. E como citado acima, boa parte disso pode ser explicado devido à relação interdisciplinar do conceito, que vem sendo estudado amplamente na psicologia, neurologia e biologia. Pesquisas científicas recentes já têm até mesmo apontado o hormônio ‘ocitocina’ 4, cujas funções mais comuns estão relacionadas à gestação e amamentação, como relacionado ao sentimento de empatia, o que reforça a tese de que uma base biológica garante a potencialidade humana inata para esse sentimento.

O conceito também tem adentrado o senso comum com uma certa precisão de significado que promete resistir a distorções, sendo uma das não muitas palavras que possui harmonia de significados tanto no contexto leigo quanto no ambiente acadêmico. Característica muito desejável a uma teoria que pretende fazer uma ligação entre a reflexão profunda e os sentimentos mais simples, pois como disse Hume:

…podemos observar uma gradação entre três opiniões (...) as do vulgo, da falsa filosofia, e da verdadeira (...) a verdadeira filosofia se aproxima mais dos sentimentos do vulgo que daqueles de um conhecimento equivocado. (Tratado da Natureza Humana, Livro I, Parte IV, Seção III. Página 255, parágrafo 9)


2. Stueber, Karsten, "Empathy", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition), Edward N. Zalta (ed.), plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/empathy.

3. Por exemplo, A Internet Encyclopedia of Philosophy (www.iep.utm.edu) e A Dictionary of Philosophical Terms and Names (www.philosophypages.com/dy) sequer trazem um verbete para empatia, e o Dictionary of Philosophy (www.ditext.com/runes/index.html) reduz sua definição unicamente à parte estética.

4. www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/11/071109_generosidademl.shtml

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INTUIÇÕES FUNDAMENTAIS

ÉTICA e MORALIDADE

Embora ‘Ética’ e ‘Moral’ sejam termos etimologicamente equivalentes, e sejam com frequência usados de modo indiscriminado, creio que distingui-los é útil em vista a uma melhor terminologia. Em primeiro lugar, porque embora haja usos equivalentes, também há, com frequência, usos distintos.

Possuímos uma disciplina que nomeamos ‘Filosofia Moral’, ou ‘Ética’, nunca chamando-a meramente de ‘moral’, ou ‘filosofia ética’. Acostumamo-nos a usar expressões como ‘comissões de ética’, e não costumamos dizer ‘comissões de moral’, o que certamente nos sugeriria outra coisa. Após ouvir uma fábula, nunca enunciamos a ‘ética da estória’, e sim sua ‘moral’, e não é raro que discordemos dela, e muitas vezes usamos o termo ‘moral’ num sentido até depreciativo, quando nos referimos a certas atitudes tidas como retrógradas como sendo ‘moralistas’, uso que jamais ocorre com o termo ‘ética’, que é sempre usado num sentido positivo, até mesmo como uma palavra de ordem, a exigir em altos brandos que precisamos de mais ‘ética’ em nossa sociedade.

Ademais, temos os usos típicos distinguidos como sendo a ciência, Ética, e o objeto de estudo, a Moral, ou Moralidade, distinção esta que inclusive é utilizada por Hume, mas, para edificar alguns elementos mais específicos de minha proposta teórica, será vantajoso estabelecer uma distinção operacional que já venho utilizando em trabalhos anteriores 5, e que associa Ética ao Universal, e Moral ao Particular.

Ou seja, ético é tudo aquilo que diz respeito a preceitos, percepções e sensibilidades que têm apelo a qualquer ser humano, em qualquer contexto, e moral seria algo mais restrito. A restrição ao roubo, por exemplo, é encontrada em qualquer cultura humana, mesmo nos mais reduzidos grupos isolados, por isso podemos dizer que “não roubar” é um preceito ético. Já a restrição ao consumo de carne encontra respaldo somente em alguns segmentos da humanidade, sendo então um valor moral.

Portanto, a valoração Ética tem uma pretensão de universalidade, pois estabelece parâmetros que podem ser discernidos para qualquer contexto humano, e que se relacionam diretamente com disposições compatíveis com qualquer pessoa, como por exemplo, o simples apego à vida, que se relaciona diretamente com as restrições ao assassinato, ou a aversão à dor, relacionada com restrições à violência física. Já valores morais não podem ser abrangentemente universalizados. Posso desejar usar somente cabelos curtos, mas não posso esperar que todos desejem o mesmo, ao menos não tanto quanto todos desejam não ser roubados.


5. RELICA e ETIGIÃO – Desfazendo a Confusão. www.xr.pro.br/monografias/Relica&Etigiao.html

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Tal distinção fica ainda mais acentuada se observarmos que é possível contrapor, nesses termos, Ética à Moral, por exemplo: os sacrifícios humanos praticados por certos povos primitivos em geral estavam de acordo com seus padrões morais, mas podemos questioná-los pelo ponto de vista de uma universalidade que invariavelmente os reprova. É exatamente a tensão inerente a essa questão que estou colocando como exemplificadora desta distinção entre Moral e Ética. Nesse caso, podemos dizer que um ato apesar de legalmente instituído numa sociedade, tanto por suas leis, escritas ou não, quanto por seus costumes, inevitavelmente será moralmente válido, mas não necessariamente o será por um sistema de pensamento mais abrangente que tenha atingido certo grau de universalidade e que possa fornecer argumentos para condená-lo como anti-ético. Enfim, atos éticos tendem a ser assim considerados por qualquer agente racional que disponha das devidas informações sobre o contexto de tais atos, e esteja operando em condições ditas normais de humor e sanidade.

PRECEITOS ÉTICOS

Na realidade, seriam poucos, a saber: Sendo a mera existência o valor humano primário, desta derivam as restrições ao assassinato. Como a existência exige recursos para a manutenção, temos as restrições ao roubo. Associadas à nossa natural aversão à dor, corpórea ou psicológica, deduzem-se as restrições à agressão física ou verbal. Tendo em vista nossa tendência à diferenciação e especialização em modos distintos de existência, derivamos nosso direito a escolhas livres, com o objetivo principal de busca pela realização pessoal.

É provável que a quase totalidade dos preceitos éticos sejam variações destes, em especial sensíveis a uma escala de complexidade. Pois os humanos, a cada satisfação plena de necessidades de nível básico, adquirem necessidade de níveis mais elevados, e além da mera manutenção da vida desenvolvemos interesse numa vida mais plena de realizações, produtiva, prazerosa, reprodutiva, o que inclui o acúmulo de uma série de bens. Essas necessidades então, sendo universais, resultam em restrições sociais às atitudes que as ponham em risco.

O imperativo biológico que nos ordena à reprodução não poderia deixar de ser contemplado caso queiramos garantir a todos os humanos, ou à maioria, ou ao menos ao grupo considerado relevante, a conservação de suas necessidades primárias, e por isso todas as civilizações, em todos os tempos, criaram regras para regular os casamentos e grupos familiares. No entanto, há diversas formas de fazer isso, de modo que sentido não faz defender um modelo específico como se este tivesse apelo universal. Portanto, o casamento monogâmico perpétuo é um valor moral, ao passo que a responsabilidade dos pais sobre os filhos, ou ao menos da mãe, em vista a garantir suas necessidades, é um valor ético, visto que a todo ser humano cabe o desejo de ter suas reservas existenciais garantidas. No caso, os filhos têm tal direito assim como seus pais o tiveram, caso contrário, não teriam sobrevivido.

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As incitações às virtudes em geral são inversas às restrições, criando “deveres” de prestar ajuda, orientação, abrigo, que visam a aumentar ainda mais a disponibilidade de meios de defesa contra violações das necessidades humanas. Uma sociedade de altruístas é mais desejável porque ajuda a garantir as necessidades de todos, e se é fato que um egoísta pode tirar vantagens desmedidas em relação aos altruístas, também é factual que a quantidade de egoístas tem um limite máximo, além do qual a sociedade desmorona.

Quaisquer que sejam as subdivisões que possamos extrair destes parâmetros orientadores básicos, todas têm a característica de serem ações que contemplam a típica Regra de Ouro 6, de modo que as restrições funcionam na forma do “não faça aos outros o que não deseja que lhe façam”, e as prescrições ao inverso, “faça aos outros o que espera que façam a você”.

A MENTIRA

Esta merece um destaque especial devido a uma complexidade que pode ser esclarecida de acordo com uma relação às necessidades. Não estou, aqui, tentando antagonizar mentira a algum conceito de verdade, exceto o da pura e simples correlação entre o que se profere a outrem por qualquer via e o que se tem em pensamento consciente.

Assim, é possível dividir a mentira, isto é, a não compatibilidade entre o que se pensa internamente e o que se profere intencional e externamente, em ao menos três tipos: as Inofensivas, as Defensivas e as Nocivas.

As primeiras, as INOFENSIVAS, são aquelas sem as quais é praticamente impossível viver em sociedade. Certas cortesias, cumprimentos, formalidades e códigos de etiqueta exigem que frequentemente façamos declarações orais que nem sempre correspondem ao que estamos de fato pensando ou sentindo, mas em geral tais mentiras não têm impacto contra as necessidades humanas, na verdade até o contrário, servem para diminuir certas tensões e evitar constrangimentos que uma sinceridade radical inevitavelmente provocaria. Embora possa ser mentira, por exemplo, dizer que achei bonito o vestido novo de minha tia, dificilmente haverá qualquer necessidade de confessar isso francamente, de modo que a mentira inofensiva se faz necessária, ou ao menos, não condenável.


6. Também conhecida como Ética da Reciprocidade, está presente em praticamente todo sistema religioso e filosófico. RELICA e ETIGIÃO – Desfazendo a Confusão

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Pulemos para a terceira classe de mentiras, que são as NOCIVAS, ou OFENSIVAS. São as quais, por outro lado, podemos dispensar completamente, sendo não somente possível e perfeitamente praticável, mas também obrigatório nunca lançarmos mão delas, visto que têm como objetivo causar deliberadamente danos a outrem, ou assumem tal consequência de forma inevitável. São desta classe as fraudes, os golpes, e todo o tipo de ações criminosas que se configuram no sentido de infringir às restrições primárias, visto que em geral visam o roubo ou o acesso a possibilidades de violência. Portanto, enquanto as mentiras de primeira classe, as inofensivas, não causam dano algum às necessidades humanas, estas de terceiro tipo promovem exatamente isso, necessariamente.

Toda a dificuldade, e dilema ético, da mentira estará na segunda classe, das mentiras DEFENSIVAS. Nesta, a pessoa tem a intenção de proteger algo de alguma ameaça, e seu grau de justificação tem enorme elasticidade. Por exemplo, uma pessoa de etnia judaica que negue ser judeu diante de um bando de neonazistas furiosos estará apenas tentando se preservar. Dizer a verdade, nessa situação, não trará benefício algum, e não parece possível recriminá-la por isso. Já a pessoa que após cometer um deslize, ou mesmo um crime, negue tê-lo feito, também estará visando sua própria defesa, mas neste caso, recusando-se a assumir a autoria de um mal feito. Isso não significa, porém, que tal mentira seja necessariamente condenável, visto que ela pode ter motivos para considerar que a verdade lhe renderá uma punição desproporcional.

Mesmo um criminoso pode ser justificado se declarar inocência perante uma multidão enfurecida, visto que esta não iria julgá-lo de acordo com um mínimo de civilidade, e mesmo diante de tribunais legais é possível vislumbrar situações onde a negação sistemática de uma confissão seja justificável, visto que nem sempre os poderes legais estão agindo de acordo com preceitos éticos universais. Muitas mulheres tiveram que negar suas práticas xamânicas e pagãs para escapar da pena capital contra bruxaria, por exemplo, e muitos cidadãos alemães tiveram que violar leis durante o nazismo para proteger cidadãos judeus.

É claro, porém, que há limiares nebulosos entre o campo das mentiras defensivas e das ofensivas, se a simples proteção de alguém incorrer no prejuízo factual do outro. Bem como podemos também considerar que mentiras inofensivas têm como objetivo proteger os sentimentos alheios, e o bem estar da sociedade. Todavia, cabe lembrar que o termo ‘inofensivo’ não está sendo usado por acaso, mas sim sendo evocado exatamente como característica principal desse tipo de mentira, que não apenas não prejudica alguém como ninguém costuma exigir seu desmascaramento, mesmo tendo plena consciência de sua ocorrência. Posso estar ciente do que realmente pensa uma pessoa sobre outra, no que se refere a algum afeto estético sem importância considerável, mas nem eu, nem essa pessoa, nem a outra, tem qualquer interesse em exigir a verbalização desse pensamento.

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Voltando ao extremo oposto, as mentiras ofensivas, ou nocivas, tem como objetivo primário obter alguma vantagem pela qual o prejuízo de outro é inevitável, ou meramente o prejuízo gratuito e deliberado deste outro. Ou seja, elas tomam a iniciativa da mentira, não estando condicionadas a uma mera resposta ou reação, mas sim, sendo a ação original. Por outro lado, as mentiras defensivas são sempre reativas, e não ocorreriam caso uma situação anterior que as desencadeasse diretamente não tivesse se dado. Assim, provavelmente a maior parte das suspeitas referentes à ofensividade de uma mentira defensiva se dão devido ao fato de esta estar conectada a uma mentira ofensiva, ou a alguma violação de necessidades básicas, como o criminoso que nega a autoria de um crime, especialmente no caso deste ser certamente anti-ético, no sentido universal, que pode ser inclusive uma fraude, mentira ofensiva.

Não estou aqui considerando uma possível outra forma de mentira, a ironia, porque esta normalmente é uma pseudo mentira. Quando se faz uma afirmação que é evidentemente falsa, mas que tem apenas o propósito de divertir ou provocar, não estamos na realidade contando com a crença irrestrita do ouvinte. Assim como os autores de ficção não esperam que seus leitores realmente acreditem na veracidade factual de suas obras, o irônico também não espera que seus espectadores realmente acreditem em seus gracejos, de modo que embora a ironia seja uma ruptura na relação discurso e pensamento, ela prevê que seus interlocutores tenham consciência disto.

Voltando ao segundo grupo, a consideração de tipos distintos de mentira poderia impedir o erro de Kant, que ao absolutizar a verdade num nível que não admite qualquer distinção, chega ao resultado inaceitável de exigir como dever moral a entrega da localização das vítimas para seus algozes mesmo quando estes são assassinos psicóticos flagrantemente investidos da pretensão de violar as necessidades primárias sem qualquer justificativa.7

Kant pretende que uma mentira defensiva, como afirmar que não se sabe o paradeiro de alguém que você escondeu por saber que corria risco de vida, seria uma violação de seu princípio de universalidade. Mas isso só ocorreria com a não distinção desses tipos de mentira, como se ao proteger um inocente de um homicida, você estivesse automaticamente autorizando toda forma de fraude, calúnia e falso testemunho.

O que estaria sendo universalizado é apenas o caso específico, que poderia ser colocado numa forma similar à já sugerida por Benjamim Constant 8, o dialogante contra qual Kant sustentou sua tese, que poderíamos formular como “Sempre mentir ao malfeitor sobre a localização do pretendido objeto de seu crime.” Essa universalização teria salvado milhares de judeus, ciganos, russelitas e homossexuais durante a Segunda Guerra Mundial.


7. Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens. Kant, 1986
8. Lá onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade, portanto, só é um dever em relação àqueles que têm um direito à verdade. Ora, nenhum homem tem direito a uma verdade que possa prejudicar os outros”.

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Assim, é necessário não confundir a pretensão universalista que se propõe aqui, com a forma de universalismo absoluto da ética kantiana, pois o que estou propondo como um preceito ético é a restrição contra a mentira ofensiva. Ademais, todo o sistema kantiano, bem como todo sistema idealista e realista em geral, pode ser confrontado pelo ceticismo, que exija a fuga da circularidade de suas petições de princípio ao evocar o termo ‘verdade’ ao mesmo tempo que se pergunta ‘como podemos conhecer’ 9.

ÉTICA X MORAL

De volta ao elemento mais exemplificador desta distinção, vejamos como poderemos considerar anti-ético um ato plenamente de acordo com o contexto moral de uma cultura. Retomando o exemplo dos sacrifícios humanos, ou das questões atuais da clitoridectomia, do uso obrigatório da burca, ou temas similares, sabemos que tais procedimentos estão de acordo com a moralidade de seu contexto, estando por vezes em sintonia até mesmo com a legislação vigente, e não raro sendo praticados com o pleno consentimento, e até aparente aprovação, das próprias partes mais afetadas.

Podemos considerá-las prejudiciais pelo simples fato de atentarem contra as necessidades humanas mais básicas. A própria existência, a liberdade, a atração pelo prazer, e todas as condições básicas para a busca da felicidade.

O simples fato de tais práticas serem locais já deveria apontar para sua característica moral, mas isso por si só não as torna anti-éticas. De mesma forma, práticas que ocorram universalmente não podem, apenas por isso, ser consideras éticas, e não apenas pelo fato de serem também universalmente reprovadas, caso sejam. O que deve então ser considerado é, em primeiro lugar, não somente se a parte prejudicada consente ou não com a prática, mas se tal consentimento teria apelo universal. Ora, essa subserviência ao costume é facilmente explicada pelo condicionamento promovido pelo próprio contexto cultural, e que, em geral, não somente as partes correlatas em outras culturas as repudiam diretamente, bem como uma mudança de contexto já costuma permitir enfraquecer ou mesmo eliminar esse consentimento.

Ou seja, se uma jovem numa remota tribo africana está plenamente de acordo em ter seu clitóris extirpado, isso se dá devido à contingência de sua criação. A mesma jovem, mesmo após tal criação, se for movida de contexto e lhe for oferecida possibilidades existenciais distintas, que lhe permitam benefícios equivalentes sem a necessidade de se submeter à prática, tende de não concordar mais com ela, e caso não tenha sido submetida a uma doutrinação suficiente, certamente irá repudiá-la. Ou seja, não apenas tal prática vai contra a disposição de praticamente qualquer mulher que,


9. Tratei deste tema especificamente em A Verdadeira Verdade www.xr.pro.br/monografias/VERDADE.html (produzida para a disciplina de Seminários de Filosofia Antiga 1/2008), e Um Voto de Fé ( para Tópicos Especiais em Teoria do Conhecimento) www.xr.pro.br/monografias/Um_Voto_de_Fe.html. 1/2006

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tendo um leque de opções mais amplo, possa escolher livremente, bem como, ainda mais importante, pode ser completamente erradicada sem qualquer prejuízo existencial para a sociedade, como prova o simples fato de haver muitas outras possibilidades existenciais plenas que não a utilizam.

Este último é, em segundo lugar, um critério que pode determinar a não universalidade de um preceito. Isto é, se o mesmo é realmente necessário para a manutenção de uma civilização qualquer.

No outro exemplo, o do sacrifício humano, é possível que haja voluntários a tal prática, de acordo com seus sistemas de crenças, em geral acreditando em recompensas vindouras transcendentes que a doutrinação cultural lhes garantiu serem verdadeiras. Entretanto, uma abertura conceitual costuma mostrar a fragilidade de tais crenças, de modo a reduzi-las de uma certeza total a uma mera improbabilidade, o que seguramente não animaria alguém a se submeter a um sacrifício. Ademais, diversas outras sociedades não fazem uso desta prática, o que mostra sua característica contingente.

Um autêntico preceito ético deve ter então não somente um apelo universal, mas uma necessidade universal, visto que sua remoção inviabilizaria qualquer civilização, o que seguramente não é o caso de um preceito moral. O teste definitivo é, então, além de perguntar pela desejabilidade em qualquer contexto, indagar também se a completa eliminação de tal preceito é possível sem a autodestruição de qualquer ordem social.

RELATIVISMO X UNIVERSALISMO

Enfim, é evidente que tal argumento se põe em imediato confronto com o relativismo, mas este se baseia na impossibilidade de apresentar parâmetros seguros e isentos pelos quais podemos julgar contextos culturais. Além de responder ao traumático sentimento de culpa histórico pelo fato de nossas tradições culturais mais imediatas terem exterminado culturas menores deliberadamente.

A pretensão aqui é apresentar tais parâmetros, em especial o da circunscrição de um sistema cultural em torno de outro. É claro que vivemos não numa cultura específica, mas numa multi cultura que reúne inúmeras tradições distintas, de diversas épocas, se preocupando em preservá-las, sintetizá-las, analisá-las, dando-lhes sempre que possível voz, sendo fortemente autocrítica, revisionista, e tecnologicamente superior. Se isso tudo não nos permitir uma posição vantajosa pela qual julgar culturas restritas e isoladas, que não têm qualquer dessas características, e que jamais poderiam sobreviver por si próprias no contexto global sem a ajuda da multi cultura, estaríamos cedendo a um relativismo que se absolutizou como parâmetro único, com tendência inegável a ser autodestrutivo.

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A multi cultura nunca pretenderia a destruição deliberada de uma cultura local, ao menos preservando-a como registro histórico. Já a cultura local dificilmente teria essa consideração. Enquanto nos perguntamos se temos ou não o direito de intervir nas tradições do Taliban, este não hesitaria um segundo em nos aniquilar completamente, até mesmo da memória, se tivesse a oportunidade.

O parâmetro tecnológico e científico, por si só, já nos permite uma pressuposição de superioridade pelo simples conceito de uma seleção natural. Nossa multi cultura não pode bruscamente ser destruída por nada menos que um evento catastrófico planetário, mas as culturas locais podem facilmente ser destruídas por eventos ambientais locais, sem qualquer participação de outras culturas. E isso só não acontece com maior frequência graças à intervenção da multi cultura.

O parâmetro da autocrítica, e do auto conhecimento, também é relevante, visto que culturas locais raramente são capazes de discernir suas origens históricas, e invariavelmente se vêem pelo prisma mitológico. Ademais, é característica universal das culturas menos desenvolvidas, ao mesmo tempo que não possuem qualquer reflexão profunda e crítica sobre sua fundamentação e estrutura, querer universalizar seus valores para todas as outras, julgado-as pelos seus próprios parâmetros e condenando-as sem qualquer consideração relativista. E não raro exterminando-as se necessário e possível.

Enfim, o simples fato de sermos parte não de uma cultura específica, mas de uma malha intercultural resultante da soma sinérgica de inúmeras tradições, já deveria nos mostrar que não podemos nos colocar num grau de equivalência a qualquer pequena tradição restrita, que é uma das mais estranhas decorrências de um abuso do relativismo.

Concluindo, não devemos confundir o Universalismo com um Absolutismo, visto que o primeiro não se propõe imutável. Tendência universalista todas as culturas têm, mas curiosamente, quando mais desenvolvida e multi integrada, mais a multi cultura tende a abrir mão de sua pretensão universal, sendo justamente a que mais teria tal capacidade. Tal cuidado é precioso, claro, para evitarmos uma pretensão totalitária disposta a submeter toda a humanidade a uma ideologia que, invariavelmente, não representa devidamente a multi cultura. Mas também deve ser moderada para não incorrer no risco de condená-la a inação, permitindo que culturas primevas floresçam não apenas em suas pretensões existenciais, mas também absolutistas, sem qualquer autocrítica quanto a seus dogmas e certezas inquestionáveis baseadas na pura relação inversa entre conhecimento e certeza.

 

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PARÂMETRO EMPÁTICO

O princípio de reciprocidade da Regra de Ouro é basicamente uma pressuposição de caráter universal, ou ao menos tendente ao universal, visto que é possível encontrar exóticas exceções, que não alteram o fato ainda óbvio de que a maioria das pessoas na maioria das situações não deseja para si própria os males mais evidentes, bem como deseja os bens mais óbvios.

É interessante utilizar os termos “restrições”, e “incitações” ou “prescrições”, para não cairmos no erro de considerar “proibições” ou “imposições”, visto que para todos os preceitos éticos, quase todas as culturas admitem violações em circunstâncias especiais. Algumas até possuem ampla aceitação de inobservância, mas jamais podem chegar ao nível de uma completa desconsideração, sendo então necessária uma observação mínima. Em geral, tais exceções quase sempre resultam da escolha por um mal menor, isto é, permite-se a violação de uma necessidade humana primária para preservar outras em quantidades mais significativas.

Normalmente, a intersecção entre ética e moral é grande, podendo esta última, muito mais ampla, até englobá-la completamente, bem como por outro lado se distanciar ao ponto da insustentabilidade. Há um grau limítrofe de separação entre os domínios da moral, que em geral incluem os costumes, religiões ou o próprio sistema jurídico do contexto, e a universalidade da ética, além do qual a civilização é insustentável.

O parâmetro da Universalização é essencial para definir o que é Ético ou não, distinguindo-os do que é meramente moral, que ao contrário, pode apresentar infinitas variações, das mais exóticas possíveis, muitas vezes incompreensíveis e injustificáveis para pessoas externas ao seu contexto. Mas esse apelo também tem dificuldades intrínsecas, em especial a dependência a um plano mais amplo que nem sempre pode ser acessível. É fácil para nós considerar culturas mais restritas do ponto de vista de nossa multi cultura bem mais ampla e universalizada, mas como proceder uma melhor autocrítica? Como podemos apelar para algo maior?

Por isso, apelo a algo mais fundamental, a empatia, o que terá papel importante no esclarecimento de como pode ser feita uma valoração tendente ao universal que ressoa aspectos invioláveis da natureza humana íntima, pois nada é mais universal do que aquilo que é inato ao ser humano, e assim, essencialmente privado.

 

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PSICOLOGIA

Outrora, acreditei que a mais fundamental de todas as ciências era a Psicologia, e ainda acreditaria se a entendêssemos por algo distinto do que normalmente entendemos. Visto que seria a ciência da “essência” humana, e que é essa essência que conhece quaisquer objetos, sentido não faria supor que a área de conhecimento que investigasse o Inteligente tivesse menos prestígio do que as que investigassem os Inteligíveis.

Mas a psicologia que a Academia conhece é mais voltada para um exame empírico de comportamentos observáveis, estruturas lógicas cognitivas ou coletâneas de complexos nomeados com personagens fantásticos, e apesar da inegável utilidade e sucesso de todas essas abordagens, parece que o núcleo que caracteriza o ser humano, a Mente, ainda é difícil de ser circunscrito.

A Filosofia da Mente e a Psicologia Cognitiva parecem-me o par mais promissor para estabelecer uma poderosa área que investigue a essência humana, a não ser talvez por um ameaçador paradoxo que paira como promessa de abismo intransponível ao pleno domínio desse objeto último do conhecimento: A idéia de que qualquer avanço no sentido de entender o objeto, a Mente, será automaticamente acompanhado num aumento de complexidade e dificuldade do mesmo. Bem como qualquer simplificação poderia refletir como uma diminuição da capacidade do sujeito, que mais uma vez é a mente. Visto que sujeito e objeto são o mesmo, é possível que a mente humana seja um poço sem fundo de mistérios, maior do que qualquer outro.

Disso tudo emerge, todavia, uma vantagem. A de que sendo a objetividade pura e completamente impossível, o estudo da essência humana seja o mais imediatamente acessível a qualquer pessoa, visto que todas dispõem intimamente de um exemplar. É inconcebível que o estudo da idéia de mente em si, dispense o estudo do objeto mental factual em si, que nada mais é do que a própria mente de quem investiga.

Disso tudo decorre o que deveria poder resumir todo esse raciocínio. Se o estudo da mente é o conhecimento fundamental para todos os outros, então toda e qualquer forma de conhecimento deve estar subordinada ao Auto Conhecimento, e não se pode ter um bom entendimento do exterior sem um bom conhecimento do interior, tal como o incauto que, não consciente da imperfeição de nossa visão, acredita que qualquer ilusão de ótica corresponde a um fenômeno factual.

 

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DESCRIÇÃO e PRESCRIÇÃO

Não acredito na existência de uma Ética meramente Descritiva, a não ser que a consideremos como mera Psicologia. Toda Ética é, necessariamente, Normativa, ainda que não o assuma. Os utilitaristas defendem que uma ação “é” boa na medida em que atende ao Princípio de Utilidade, sendo isso uma inegável valoração, é inevitável que já se esteja deixando claro que tipo de ações são louváveis ou não, ao menos nos casos pouco problemáticos. Os deontologistas, pelo simples uso do conceito de “dever”, já estão evidentemente expressando normas, e os perfeccionistas, embora mais obscuros em suas concepções, também tem opiniões razoavelmente definidas que podem ser diretamente aplicadas a casos concretos.

Para que em qualquer um desses casos se negue estar normatizando, seria preciso assumir uma postura onde não importasse se os exemplos factuais que encontram no mundo estariam de acordo ou não com o sistema teórico, de forma similar ao etólogo que não está se importando se o gorila macho alfa irá matar ou não o gorila recém-nascido (e já é difícil imaginar que assim seja). Mas a tarefa deste último é claramente objetiva, porque o comportamento observado em questão não é o humano, e então o comportamento do próprio pesquisador não está em questão, ele pode se distinguir completamente, ou quase, de seu objeto de estudo. O etologista está claramente distanciado do objeto de pesquisa, já partindo do pressuposto de sua distinção, pelo simples fato de pertencer a uma outra espécie, e não estar moralmente obrigado, por exemplo, a impedir a morte de um filhote de gorila.

A Ética, por outro lado, não pode ter outro objeto de estudo que não o próprio ser humano, que é intrinsecamente ético e moral. Objetividade plena, isto é, o perfeito distanciamento entre o filósofo e seu objeto de estudo, exigiria a desumanização do sujeito ou do objeto, o que é evidentemente inviável, pois ou o objeto também se torna sujeito, ou, pior, o sujeito deixa de ser sujeito. Ao estudar a ética, o investigador estará também estudando a si mesmo. Assim, só restaria, para viabilizar uma ética meramente descritiva, que o filósofo não tivesse qualquer expectativa que as demais pessoas concordassem ou não com a adequação de seu sistema, o que seria simplesmente absurdo, e inviabilizaria até mesmo qualquer pretensão acadêmica. Uma ética puramente descritiva seria uma Etologia humana.

Mas o motivo mais forte para a impossibilidade de uma Ética descritiva talvez seja meramente linguístico. É impossível formular qualquer frase relevante de um sistema ético sem utilizar termos essencialmente comprometidos com a normatividade. Não há como afirmar se tal situação está ou não de acordo com um certo princípio, lei ou virtude, sem automaticamente expressar uma valoração, e não há como simplesmente descrever um comportamento, a não ser etologicamente, sem apontar qualquer elemento eticamente relevante que automaticamente já seja prescritivo.

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Isso se harmoniza com o simples fato de que, não sendo para prescrever, não faz sentido criar um sistema ético. Ele seria mera psicologia behaviorista. Também explica a seguinte passagem de Hume:

Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. (Tratado da Natureza Humana, Livro III, Parte I, Seção II, página 509, parágrafo 27)

Hume então detecta essa tendência espontânea com certo espanto, nem tanto pelo fato de ocorrer, mas sim pelo modo em que ocorre, sem uma devida justificação, e por vezes de modo impercebido pelo próprio autor. Compreendo que essa transição é apenas uma evidência da dificuldade de se distinguir com nitidez as dimensões descritivas e normativas da ética, que embora estejam sempre interligadas, podem sim ser distinguidas dependendo do enfoque. Posso descrever os rituais de apedrejamento praticados por certas culturas da atualidade sem, é claro, prescrevê-los, visto que, segundo meu entendimento, eles são um exemplo de preceito moral, não ético. Mas se tento descrever algo que segundo meu sistema representa uma manifestação universalmente presente na natureza humana, um juízo intrínseco e geral, é praticamente impossível me livrar da normatização, pois como poderia me posicionar com conselhos e admoestações que vão contra nossa natureza?(A não ser que estivesse, como acusa Hanna Arendt, pretendendo um sistema que visasse nada menos que subverter a natureza humana, o que já implica outra circularidade, pois só poderia fazê-lo com base num sistema que também emerge do ser humano.)

Do ponto de vista aristotélico, seria perceber a devida realização máxima humana, e a virtude faz parte daquilo que realiza o fim humano, que evidentemente, só pode estar em sua natureza. Num ponto de vista kantiano, a conformidade com algo intrínseco ao humano, no caso um imperativo categórico, só pode mesmo estar se referindo a algo que melhor realiza nossa própria natureza racional. Numa ética cristã, pretende-se detectar elementos que constituem a forma original, no caso sobrenatural, do ser humano, e a conformidade com essa natureza, que é definida pelo criador, é exatamente o que se espera da criatura.

Realmente, a transição do 'é' para o 'deve ser' é tão espontânea que só pode apontar para a disposição inata de qualquer ‘ético’ em criar sistemas, talvez até mesmo de modo inconsciente, que não podem ter apenas uma mera intenção descritiva.

Mas Hume vai ainda mais longe, pois após recomendar atenção para essa sutil transição, acredita que ela:

...seria suficiente para subverter todos os sistemas correntes de moralidade, e nos faria ver que a distinção entre o vício e virtude não está fundada meramente nas relações dos objetos, nem é percebida pela razão. (Livro III, Parte I, Seção II, parágrafo 27)

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Nesse momento, Hume está mais interessando em mostrar uma evidência de que os sistemas éticos se enganam ao fundar as distinções morais na razão, visto que a simples irracionalidade da transição é e deve ser já é evidência da impropriedade de tal fundamento, pois o filósofo já estaria operando sob uma tendência tão intrínseca que sequer é trazida à consciência.

Mas a passagem também serve para nos mostrar que nossa incapacidade de separar o descritivo do prescritivo, em ética, é algo mais que uma simples dificuldade argumentativa, pois o grande erro não está em ser prescritivo, mas sim em não ser capaz de distinguir uma descrição de uma prescrição.

Em suma, um sistema ético irá sim, sempre, prescrever, mas não tudo o que descreve, visto que por sua própria natureza, deverá tomar partido sobre o que deve e não deve, que é exatamente a metade do 'é' e 'não é'.

TENDÊNCIA NATURAL

Há três pressupostos fundamentais que permitem o desenvolvimento de sistemas éticos distintos, e disputam sobre a natureza da tendência humana. Se o ser humano é intrinsecamente tendente ao Bem, ao Mal ou é Neutro. Daí, o que se pode esperar em termos de Filosofia Moral tende a ser significativamente divergente.

Em geral, me parece que a ética de Virtudes pressupõe uma humanidade tendente ao Bem, por mais que esteja sujeita a desvios por ignorância ou fraqueza. Por isso mesmo estabelece o valor do ato ético com base no sentimento, visto que agir bem por prazer nada mais é do que a realização plena de nossa natureza intrínseca.

Éticas deontológicas, por outro lado, enfatizam a tendência humana ao vício, visto que a correção moral advém do apego ao cumprimento de regras, que visam domar uma natureza tendente ao Mal, única forma de explicar porque a ação correta com base no prazer seria menos valiosa que a baseada no dever, pois se a inclinação espontânea ao Bem não é intrínseca, a associação Felicidade e Bem soa acidental, não realizando plenitude natural alguma.

O pressuposto Neutro, por sua vez, caracteriza o Consequencialismo, visto que ao julgar as ações com base nos resultados, há desconsideração daquilo que é intrínseco, as motivações e intenções. Entretanto, os resultados objetivos, por si, não podem ser considerados bons ou maus exceto com base num critério aparentemente subjetivo, o que trás de volta ao sistema à consideração da associação Felicidade e Bem, e nesse sentido, a ética Consequencialista acaba sendo arrastada de volta ao pressuposto da tendência à bondade intrínseca.

Por fim, a ética de deveres também pode ser trazida de volta ao mesmo pressuposto, simplesmente pela demonstração de que, em última instância, qualquer sistema ético não pode ter outra razão de ser que não a realização máxima do Bem, e o aparente pressuposto da tendência espontânea ao Mal é apenas um recurso teórico de ordem normalmente mitológica.

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O Cristianismo tem como dogma fundamental a idéia de que todos os humanos nascem naturalmente corrompidos só podendo ser restaurados mediante a associação com o divino, mas estabelece que a origem do ser humano é intrinsecamente boa, e que sua corrupção é contingente, além de propor uma solução que visa resgatar essa bondade original.

O pressuposto mais direto no qual qualquer sistema ético pode se basear é a natural tendência humana ao Bem, pois sem isso, a simples existência de um sistema de Filosofia Moral seria absurda.

DESEJO PELO BEM

O ser humano possui um desejo tão grande pelo Bem e pelo Justo, que tendo observado que a justiça humana é fatalmente falha, criou, em todos os lugares e tempos sem exceção, mitos, lendas e religiões onde uma justiça final superior ao mundo recompensaria os bons e puniria os maus, dando ao universo uma harmonia superior que não se verifica no mundo real. Ainda que isso não altere o fato de nossa intrínseca incapacidade para sermos plenamente bons segundo nossa própria noção de Bem, atesta o outro fato de que temos uma inclinação a essa noção que invariavelmente é similar em todas as culturas.

Mesmo que isso possa não se aplicar a todos os humanos, também é fato que se aplica a todos os que deixaram algum registro cultural, realizaram qualquer feito maior que sua vida particular, e, de maneira geral, tenham deixado sua marca pelo mundo. Ou, melhor dizendo, se aplica não só à maioria das pessoas, que são no mínimo sensíveis a essa inclinação ao bem, mas também àquelas consideradas por muitos como as maiores, e melhores. Por mais imperfeitos que sejam, todos tinham a idéia, muitas vezes ilusória, de estarem realizando algo bom, e mesmo os genocídios e massacres que promoveram tem como marca comum a idéia de estarem erradicando o mal.

Ademais, a única forma possível de um indivíduo arrebanhar seguidores para realizar grandes feitos é apelar para algo que é visto como bom. Um macho alfa pode controlar machos beta para a prática de crimes baixos e demais picardias apenas apelando aos seus vícios, com participação especial do medo e da ambição. Mas alguém disposto a edificar reinos, impérios, revisões, revoluções ou qualquer novidade tem que prometer algo mais. E assim, apesar dos pequenos rebus cotidianos com vista a nada mais do que a vilania, as grandes conturbações históricas sempre são pautadas na realização de algum tipo de grande obra, por mais equivocada que seja.

 

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MACHO BETA

Estudiosos atribuem grande responsabilidade pela violência humana à existência dos machos alfa, que reúne um bando subserviente por meio de habilidades interpessoais coercivas, com os quais dão vazão a uma série de impulsos primitivos num nível muito superior ao que poderiam contando apenas com sua própria força e engenho pessoal.

Se há uma nítida distinção entre um líder num sentido mais humano, e um macho alfa, que frequentemente se confundem, é que o primeiro orienta seus grupos à realização de atos mais elevados no sentido de complexidade, fins tipicamente humanos, como organização de estruturas mais sofisticadas, ideais abstratos, metas que transcendem a mera realização dos impulsos primários, que é, este último, o único objetivo dos machos alfa, e a única coisa que tem a oferecer a seus seguidores.

Segundo alguns, a pressão de um grupo liderado por machos alfa é uma das maneiras mais eficazes de sobrepujar aversões que muitos tem naturalmente pela violência. É fato empírico que a maioria das pessoas tem dificuldade para realizar o primeiro assassinato, sendo necessário um forte estímulo. Em geral pressão psicológica externa, com poder para adormecer a empatia natural e estimular a insensibilidade.

Mas creio que pouca atenção seja dada ao outro lado do problema, os machos beta, sem os quais os alfas jamais poderiam ir além do que pode qualquer indivíduo isolado. Após ter reunido um certo potencial por meio de seu bando, é fácil entender porque este consegue subjugar outros indivíduos ou grupos menores. Mas que estranha característica psicológica possuem aqueles primeiros membros que se submetem espontaneamente ao comando de um macho alfa qualquer, é difícil de definir.

Se só existissem machos alfas, eles se neutralizariam ou se destruiriam, deixando os demais, que não são alfas, betas ou qualquer outra letra grega, em paz. Há pessoas que não apenas não almejam tal posição de poder, como sequer se submetem a ela. Mas a existência dos betas permite o acesso dos alfas ao poder, e se só existissem betas, sua inclinação natural à servidão se manifestaria de outra forma, reverenciando líderes inadvertidos, miragens, ilusões, ou o mais provável, outros beta, forçando-os a ascender ao nível do alfa. Ou seja, são os súditos que produzem o rei. É a subserviência que dá origem à tirania, e não ao contrário. Mais um exemplo de que o mal só pode proliferar em meio a apatia e a ignorância, sendo impotente diante da sabedoria.

Disto podemos depreender um dos melhores argumentos em favor da democracia, ou governo similar que estenda possibilidades de poder ao máximo possível. Qualquer outro sistema, mesmo quando temporariamente conta com um líder benevolente, é sempre vulnerável à degenerações que conduzem machos alfas ao poder, de onde só poderão usá-los para os fins mais mesquinhos possíveis.

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O BEM

Acreditando na existência de conceitos primários, isto é, aqueles que não podem se referir a nenhum outro termo sem circularidade, mas sim remetem a conteúdos psíquicos normalmente claros em termo intuitivos, mas obscuros em termos descritivos. O ser humano que nunca tiver experimentado isso, como por exemplo estar apaixonado, que é algo pleno de sentir, mas difícil de explicar, provavelmente jamais será capaz de entender coisa alguma. Se é que tal pessoa exista.

Creio que o Bem não pode ser definido, ou no máximo devemos seguir o ensinamento de Aristóteles, que parece ter esgotado o assunto há 2.400 anos. A Felicidade é aquilo que desejamos por si, e que dá sentido a todos os demais desejos. Esse termo pode ser um pouco obscuro em termos descritivos, mas é difícil se enganar quando se crê estar feliz ou infeliz, exceto talvez por uma absoluta incompetência cognitiva.

De qualquer modo, sendo a Felicidade a única coisa que é boa por si só, ela pode até mesmo ser identificada como o Bem, e talvez uma forma ainda mais intuitiva e útil, tanto para efeitos teóricos quanto práticos, é medir o grau de bondade da felicidade, pela sua extensão tanto em quantidade privada quanto em quantidade pública, o que nos leva a algo próximo a noção de Bem Comum.

Mas o importante é que o Bem é aquilo ao que todos buscam, todos desejam, a medida de qualquer atitude, e se é o parâmetro fundamental sobre o qual todas as ações se pautam, variando apenas o que pode ser considerado bom ou não, e mesmo estando tal consideração sujeita a inúmeras falhas, e compreensível que ele em si não seja claramente definível, da mesma forma como o Ser, que ao definir todas as coisas, escapa a qualquer definição que não seja redundante.10

INTENÇÕES

O dito popular “de boas intenções o inferno está cheio”, é, em minha opinião, uma das frases mais destituídas de sentido já criadas, se considerarmos minimamente o significado de cada termo. Seria como dizer “de icebergs o rio Amazonas está cheio”. Ora, apelando a outro dito popular que afirma “o que vale é a intenção”, notamos que a valoração das ações por meio dos propósitos que se pretenda atingir é uma tradição forte não apenas entre os acadêmicos, mas também entre os leigos. Parece óbvio que praticar o bem deliberadamente é mais desejável do que praticá-lo por acidente.

Em nossa sociedade, porém, damos menos enfoque a questão intencional por uma questão puramente técnica e contingente: não temos acesso às intenções alheias. Os tribunais e juízes raramente podem estar seguros dos verdadeiros propósitos dos réus, sendo então obrigados a julgá-los pelos resultados concretos de seus atos e por uma


10. Para uma discussão mais ampla que envolve uma suposta tensão entre a felicidade e a inteligência, ver o Anexo I.

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série de indícios que podem sugerir o que há em suas caixas-pretas cerebrais. Ocorre que a frase em questão está falando no “Inferno”! Que é um conceito mitológico indissociável do conceito de “Paraíso”, de “Justiça Divina” e consequentemente de “Deus”! A não ser que se esteja usando o termo num sentido figurativo, como uma alegoria para as prisões de nosso sistema penitenciário mundano, não há como escapar da correlação de que se há inferno, há Deus, e há justiça divina, e Deus, diferente de nossos juízes terrestres, por definição, é um ser que tem acesso privilegiado às nossas intenções, podendo julgar os humanos melhor do que ninguém.

Assim, como poderia abandonar ao inferno pessoas bem intencionadas? Ou a frase é puro non-sense, ou oculta alguma tradição moral que despreza o valor da intenção como definidora do valor ético do ato. Seria uma evidência de um forte consequencialismo de senso comum?

INVIOLABILIDADE

Nosso sistema jurídico, ao distinguir a consumação de certos crimes da mera tentativa, está, pela punição de certas tentativas criminosas, reconhecendo a importância da intenção. No entanto, o fato da pena pelo ato consumado ser maior do que a pena pela tentativa, mesmo quando o mais claramente exposta possível, revela a fragilidade de nossa pretensão em julgar intenções, entrando no terreno da subjetividade. Ora, visto que a causa primeira do crime é a intenção do agente, sentido não faz que o mesmo seja mais rigorosamente punido apenas pelo fato de ter sido mais eficiente.

O que melhor explica a distinção de penalidades é o simples fato de que nossa avaliação das intenções está sujeita à falhas, nos obrigando a trabalhar com a objetividade do ato, que é sua consumação ou não. Mesmo no ato consumado, ainda temos a nítida distinção entre Culpa e Dolo, mais uma vez apontando a importância da consideração intencional, ainda que, como dito, esta seja sempre objetivamente inacessível.

Mas talvez a mais nítida evidência do quanto somos vulneráveis à subjetividade esteja na categoria penal de “Crime Impossível”, no qual embora haja o reconhecimento da intenção e da tentativa, não se reconhece o tipo penal nem se pune a tentativa devido ao fato da consumação ser impossível por “absoluta ineficácia do meio”. Por exemplo, alguém que atire contra outra pessoa com munição de festim, desde que não à queima-roupa, tendo porém a intenção de realmente ferir ou matar.

Nesse caso, a impossibilidade de consumação descaracteriza o crime, mas temos a curiosa anomalia teórica de desprezar por completo a intenção mesmo que ela seja confessamente homicida. A explicação para essa aparente anomalia, a meu ver, está mais uma vez na caixa preta da consciência humana. Se fosse movido um processo contra o autor do ato, sua defesa poderia facilmente alegar que não havia intenção homicida alguma, pois o réu na verdade sabia da ineficácia do meio, tendo talvez apenas a intenção de assustar ou simbolizar algo.

Visto que estaríamos no terreno puro da subjetividade, não tendo havido uma consumação, decorre que de fato seria impossível levar adiante um julgamento objetivo, o que justifica a desconsideração como tipo penal.

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VIRTUDE e MÉRITO

O que é melhor? A prática do bem por prazer ou por dever? Fazer o bem por inclinação espontânea, ou por um senso de obrigação? Esse longo debate na Filosofia Moral só me parece possível esquecendo um conceito básico, de que uma vez que toda a Ética gira em torno da idéia de Bem, e que é intuitivo aceitar que quanto mais próximo do Bem, melhor, é evidente que aquele que está mais próximo do Bem por afinidade, seguramente deve receber alguma superioridade conceitual numa escala valorativa.

Por outro lado, isso de modo algum remove o mérito da ação ética por dever, e o antagonismo que caracteriza a pergunta tem por princípio exatamente ignorar essa desconexão dimensional, isto é, não há uma tensão entre o dever e a virtude, são coisas diferentes. Querer saber se agir bem por um imperativo que se opõe a nossos impulsos egoístas é mais meritório do que fazê-lo por espontaneidade, e ao mesmo tempo querer saber o que é mais elevado, é confundir a virtude com o mérito.

Vejamos. Consideremos um grande ser humano, que reconhecemos ser elevadíssimo. Pode ser Jesus Cristo, Gandhi, Madre Teresa, Buda, pouco importa. O que importa é que o reconheçamos como um ser eticamente superior. Assim, não poderíamos nos considerar superiores a esse humano exemplar, e não temos dificuldade em admitir que essa pessoa é mais excelente e virtuosa do que nós. Porém, ela evidentemente realiza certas ações corretas com muito mais facilidade, mas quem tem mais mérito? Ora, nós! Porque para nós a ação exige mais esforço, e mérito é diretamente proporcional ao esforço. A criança que consegue solucionar uma expressão aritmética específica difícil para sua idade, merece mais louvor do que ao matemático profissional que o faria sem qualquer esforço significativo. Mas isso não torna a criança um matemático melhor.

Portanto, seguindo o próprio Aristóteles, podemos sim concordar que há mérito maior em um ex criminoso resistir à tentação de roubar do que em uma pessoa honesta, mas isso apenas coloca o ex criminoso rumo a uma excelência que a pessoa honesta já tem. Esclarecendo que ter mérito e ser melhor são coisas distintas. Quem está se esforçando em busca da virtude merece admiração, mas não se torna, ainda, melhor do que quem já tem a virtude.

Mas não se pode esquecer que o virtuoso também possui um comprometimento maior. Poderá ser uma falta muito mais grave para o virtuoso que se omite em evitar um mal, como por exemplo, advertindo a alguém que um pertence seu foi roubado, do que para o vicioso que pratique o roubo por uma compulsão.

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OBRIGAÇÃO, CARIDADE e SANTIDADE

Aceitamos que um certo nível mínimo de dignidade é não só acessível a todas as pessoas ditas normais, como mesmo obrigatória, tanto que abaixo deste mínimo estão previstas as mais diversas formas de sanções. Portanto, estamos acostumados a preconizar um certo grau de obediência às normas legais, princípios morais e preceitos éticos, ainda que sempre sujeitos à alguma nebulosidade.

Acima desse grau elementar, porém, podemos ir muito além. Mais do que cumprindo deveres, mas também se esforçando para promover ações normalmente vistas como caridosas. Podemos ter a obrigação de obedecer às leis e aos costumes, podendo ser até mesmo punidos por negligenciar certas situações, como se recusar a levar ao hospital alguém que só poderia contar com nossa intervenção. Mas ninguém é obrigado a sair à noite a fim de fornecer auxílio a qualquer um que precise e que, originalmente, não estava inicialmente sujeito ao nosso raio de ação.

O cumprimento dos deveres é uma obrigação deontológica, e qualquer passo além disso pode ser justificado como um salto de caridade, seguindo forte impulso empático, ou temos que criar conceitos deontológicos muito complexos para explicá-los, e que invariavelmente terão dificuldade em estabelecer limites. Pois, que espécie de dever me obrigaria a doar X para instituições de caridade, mas não 2X? Qual seria o limiar equilibrado entre minha capacidade e minha necessidade?

Podemos então estabelecer que a ética dos deveres nos incita às nossas obrigações básicas, e que além disso podemos nos situar melhor em alguma forma de consequencialismo, visto que o resultado da caridade costuma ser considerado como útil. Mas também podemos acrescentar um nível ainda mais elevado, do indivíduo que não só vai além de sua obrigação, mas também num grau inigualável pela grande maioria dos caridosos, não raro se despojando de suas próprias posses mais elementares. Este, costumamos considerar como um santo, um iluminado, um mártir, um herói, e talvez seja melhor explicável pela ética de virtudes, pois embora suas ações sejam ‘úteis’, apelam a uma excelência do indivíduo sem a qual seu comportamento pode se tornar inexplicável e dissonante, por parecer não um devido aumento da felicidade geral, mas um sacrifício, que na verdade é mais uma transferência de bem, do praticante para os beneficiados, que ao final não aumenta o ‘montante’, visto que o santo muitas vezes apresenta intensos sofrimentos.

Portanto, mais uma vez, as três maiores tradições éticas podem ser hierarquizadas. O Dentologismo no nível mais básico, o Consequencialismo, que pode abranger o primeiro, mas ir além ao considerar boa a conseqüência das ações não obrigadas, e por fim a Ética das Virtudes por ser a única capaz de explicar o salto mais extremo que parece negligenciar as necessidades do agente em prol dos destinatários de sua ação.

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Este último parece ter uma fraqueza, porém, visto que talvez pudéssemos apelar à uma característica distinta da felicidade desta pessoa. Talvez, mesmo estando em aparente estado de necessidade, privação e mesmo agonia, em benefício de uma causa maior que traga mais felicidade a outros, ela poderia estar se beneficiando de um modo que temos dificuldade em contemplar, talvez extraindo de seu sacrifício um grau de satisfação tão inacessível à nós quanto o é a apreciação de uma bela sinfonia por uma pessoa surda.

Todavia isto não é tão claro quanto, por exemplo, aumentar a quantidade de massa muscular por meio de dolorosos exercícios que claramente compensam a dor com um vigor físico desejado. E nem mesmo este fato, claramente viável e objetivamente discernível, é visto como compensatório por todos. Que dizer então do obscuro estado mental do santo? Não estaria ele, até mesmo, sujeito ao equívoco? Talvez alimentando a dependência em seus destinatários?

Ademais, voltando ao princípio: Todos devem cumprir com seus deveres; Alguns podem ir além deles e praticar atos caridosos; Mas muito Poucos poderão ir a graus extremos de abnegação radical em prol de outrem, e, muitas vezes, consideramos que tal necessidade nem sequer é realmente acessível aos que não foram ‘escolhidos’ por uma instância superior, iluminados por uma centelha divina ou agraciados com capacidades heróicas.

AGENTE, AÇÃO e RESULTADO

Há ainda uma terceira forma de organizarmos as três principais tradições teóricas em questão. A ética, evidentemente, diz respeito à ação humana, e o primeiro elemento dessa ação é o sujeito. Portanto, temos aqui a instância do AGENTE.

Partindo deste, o segundo elemento é a ação em si, visto que não é comumente objeto da ética o simples pensamento ou intenção, e somente enquanto relacionado à AÇÃO, o segundo elemento.

O terceiro é evidentemente o RESULTADO desta ação, e assim, podemos facilmente correlacionar as três tradições, sendo a Ética de Virtudes como dando ênfase ao Agente, a dos Deveres enfatizando a Ação, e a Consequencialista, obviamente, o Resultado.

A vantagem desse esquema é principalmente mnemônica, relacionando os elementos com as ênfases históricas. O platonismo e o aristotelismo são claramente centrados no agente e na virtude, o deontologismo kantiano na ação, e o consequencialismo, embora tenha raízes na antiguidade, se torna notável a partir do século XIX.

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FINALIDADE e PRINCÍPIO

Fora da academia e dos tribunais, mas com capacidade para eleger os governantes do planeta, o senso comum costuma estar dividido por duas ‘tradições’ rivais, uma laica e outra religiosa, que nomeei como Ética da Finalidade e Ética do Princípio.

A primeira, muito alinhada com os sentimentos morais, entende o valor das ações de acordo com as intenções do agente, intenções estas, porém, relacionadas de um modo íntimo com a conseqüência. Portanto, a medida de valor de um ato está de acordo com a finalidade que se pretende atingir. Essa finalidade, embora seja pública, está originalmente prevista na mente do agente, fazendo uma conexão entre os extremos do esquema de divisão de elementos da ação, e ao julgar a intenção por meio da finalidade, tende a justificar os meios de acordo com a amplitude da finalidade.

A segunda, quase exclusivamente de ordem religiosa, mede o valor de um ato de acordo com uma qualidade intrínseca do agente, um certo grau de pureza previamente definido, e normalmente inelástico. Em síntese, uma ação será boa de acordo com a bondade de sua procedência. A forma mais comum em que pode ser visualizada é na premissa da superioridade da Justificação pela Fé, ou da Submissão, sobre a Justificação pelas Obras.

Considerar que somente um certo estado iluminado interno do indivíduo garantirá a qualidade de sua ação, evidentemente, não responde como é feita essa valoração, o que pedirá imediatamente um novo parâmetro mensurável. No entanto, essa tendência costuma justificar seu valor apelando a uma instância cósmica suprema, que é fonte e origem de toda forma de bem. É claro, Deus.

Em suma, toda e qualquer ação promovida em nome desse princípio supremo está, de acordo com esse princípio, automaticamente valorado como sendo ético. Não importa qual seja. Visto que, por outro lado, a ética de senso comum sendo muito mais Finalista, e muito mais clara, praticamente não dê chance de competição à sua adversária no terreno argumentativo, tal dicotomia poderia ser um mero detalhe de nenhuma importância, não fosse o fato desse ‘principialismo’ ser compartilhado por uma parcela significativa da população e estar por trás da eleição de líderes mundiais, um dos quais esteve de posse de um dos maiores arsenais nucleares do planeta.

MAL e IGNORÂNCIA

Sócrates dizia que pior que “não saber” é “não saber que não sabe”. No que se refere à gravidade moral da ignorância, permito-me discordar. Creio que muito pior é “Não Saber” e “Saber que não Sabe”, e mesmo assim “Não Querer Saber”, abraçando voluntariamente a ignorância.

Ainda pior é quando mesmo com tudo isso, Age como se Soubesse. Caracteriza-se aí um desprezo pelo conhecimento, e se damos qualquer importância a questões epistemológicas no terreno da Ética, creio termos uma forma mais clara de estabelecer a relação entre a parte passional e a racional dos atos.

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Ser ignorante por carência é perdoável. Por isso, nosso próprio sistema jurídico reconhece a baixa gravidade de certos crimes praticados por silvícolas, ou pessoas cognitivamente comprometidas, por exemplo. Gravidade maior é vista nos mesmos crimes se praticados por pessoas que tiveram meios de compreender melhor as questões envolvidas, porque essas, de algum modo, foram ignorantes por descuido.

O grau mais grave seria a Ignorância por Escolha deliberada, largamente praticada por todos aqueles que mesmo tendo os meios, se recusam a conhecer, abraçando voluntariamente os preconceitos e ditames dos sistemas de condicionamento a que estão expostos. Essa atitude revela que o indivíduo em questão crê não precisar de qualquer elemento adicional para basear suas posturas, sacramentando o pior tipo de ignorância.

Daí, só resta saber se tal comportamento tem como origem uma “epistemofobia”, ou, ainda pior, uma mera “misosophia”.

EGOÍSMO x ALTRUÍSMO

O debate entre o Egoísmo e o Altruísmo, como fundamentadores do comportamento humano também me soa distorcido, pois embora Egoísmo tenha sido definido de forma clara, Altruísmo terminou por assumir conotações desviantes. Em geral, costuma-se supor que a mais elevada forma de atitude seria aquela que praticasse o Bem sem desejar nada em troca, e assim, altruísmo passou a ser associado a um tipo de ação desinteressada, sem a finalidade de recompensa, nem mesmo aquela puramente sentimental que se dá pelo bem estar de ter realizado algo bom.

Essa noção apenas confundiu uma certa Pureza com o Nada, poderíamos considerá-la niilista, pois tenta remover do ser humano o que ele tem de mais fundamental e significante, a Vontade, ou para usar uma versão contemporânea mais rebuscada em linguagem mais analítica, a Intencionalidade.

É absurdo pressupor que uma ação humana qualquer não possua alguma finalidade, sem a qual não ocorreria o mecanismo Desejo - Crença - Ação, e essa concepção equivocada de altruísmo pressupõe arbitrariamente que partir do nada é melhor do que partir de algo, e esse algo só pode ser o desejo humano. Assim, o verdadeiro Altruísmo tem que ser baseado no Egoísmo, não num sentido pejorativo, mas pelo simples fato de que toda a qualquer ação parte de uma fonte psíquica que entendemos como um indivíduo, um Ego, que não pode agir sem alguma força motriz. Não pode existir altruísmo puro da mesma forma que não pode existir Amor Incondicional, pois ainda restará ao menos uma Condição existencial, isto é, por mais puro, legítimo e sublime que seja um ato de Ágape, ele só é possível por ter como condição que o ato em si realizará o Bem, qualquer que este seja, e é absurdo esperar que qualquer ser volitivo pudesse fazê-lo sem refletir um Bem intrínseco, e é esse bem interior que impulsiona a ação.

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A grande diferença do egoísmo no sentido reprovável é que este quer apenas para si, enquanto que o Altruísmo, que tem base também no Egoísmo, quer tanto para si quanto para os outros, transformando a felicidade alheia em felicidade própria e vice-versa, criando reciprocidade, conexão sentimental entre as pessoas, Empatia.

Portanto, ao invés de pressupor que o altruísmo e o amor perfeito deveriam ter como ponto de partida o Nada, melhor reconhecer que, sendo referentes ao Bem, são acionados pelo transbordamento de uma plenitude interna, que intenciona puramente a realização espontânea de sua natureza: irradiar-se para o redor.

A força motriz da ação será então um desejo reflexivo de satisfação, isto é, atender uma necessidade pessoal, como a inquietação com a carência alheia, que ao mesmo tempo se reflete na necessidade do outro em ser atendido. Aquele que sente prazer em diminuir o sofrimento alheio é sim um egoísta, mas que compartilha com o próximo o seu desejo.

SE FOSSE DEUS

Qualquer um que tenha interesse em Auto-Conhecimento ou Ética, e principalmente quem tenha interesse nos dois, o que é o ideal, deveria sempre se fazer a seguinte pergunta: Se eu fosse Deus, que tipo de universo eu criaria? Meu mundo seria mais feliz do que o mundo real? Todas as criaturas seriam felizes?

Refletir e encontrar respostas a essa pergunta vale mais do que ler mil livros, e traz novas questões muito interessantes. Por exemplo. Desejamos que tipo de Liberdade? Visto que ela é indissociável de Responsabilidade, não estaríamos mais felizes em abrir mão de grande parte dela em troca de conforto? Muitos não aceitariam ser escravos felizes ao invés de senhores infelizes, ou servos no céu do que reis no inferno? (Contrariando o anjo caído de Milton.)

Agora consideremos: O que me traria melhor satisfação? Ver meus inimigos ou desafetos sofrerem cada mal que me fizeram, ou vê-los sinceramente arrependidos e dispostos a reparar o dano? E mais: Estando arrependidos e envergonhados do que fizeram, eu extraio algum prazer de seu sentimento incômodo de vergonha?

Curiosamente todas essas questões ganham uma sutileza distintas quando colocadas não tendo como exemplo apenas indivíduos sem uma relação original essencial conosco, mas sim, quando colocadas como se fossem todos nossos filhos. A possibilidade de alguém preferir o arrependimento sincero de um filho do que sua punição severa, é muito maior do que preferir o mesmo para um algoz desconhecido.

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Num último estágio, lembremos que em geral os sentimentos filiais não exigem necessariamente uma ligação genética, podendo facilmente ser desenvolvidos pela simples convivência. Isso aponta para o fato de que uma ligação sentimental maior reforça em muito as melhores expectativas entre as partes, no que se refere ao que é de fato bom para ambas. E isso fica claro simplesmente ao considerar que o grau de empatia entre duas pessoas costuma ser diretamente proporcional ao seu grau de intimidade.

Tentar se colocar no lugar de uma Divindade tem a característica de invocar automaticamente uma série de coisas, por vezes desapercebidas, visto que nossa idéia de divino costuma incorporar diversas virtudes que já estamos acostumados a valorizar. Ou isso, ou revelará uma completa distorção do conceito de divino, o que também não é raro. Todos já devem ter encontrado um crente que vê Deus não como um ser que aplicará uma justiça universal, mas como aquele que satisfará seus desejos pessoais de justiça, ou vingança, ou o que é pior, de pura perversão.

PERVERSIDADE

De todos os vícios humanos (se é que “humanos” não seja pleonástico) o pior é a Perversidade, isto é, a capacidade de sentir prazer pela simples apreciação do sofrimento de algum desconhecido ou pessoa que não lhe tenha dado nenhum motivo de desagrado. Digo inclusive, que pior do que alguém praticar uma furiosa agressão que cause profunda dor em outrem, é pura e simplesmente se deliciar com o evento mesmo sendo mero espectador não envolvido com as partes.

Claro que estou me referindo a uma instância íntima, ao sentimento do indivíduo. Embora seja evidente que o ato irado de agredir em si seja objetiva e interpessoalmente pior do que o de apenas apreciar a agressão, a nível de sentimento moral, esse agressor já está em estado de sofrimento, uma vez que sente ódio, e manifesta esse sofrimento de modo a comunicá-lo a quem é tido como seu causador. Ou seja, em geral pressupõe uma retribuição, além do fato de que o agressor está assumindo seu ato ao praticá-lo.

Nada disso pode ser dito do perverso que, secretamente, apenas aprecia o sofrimento de outrem, sem nenhum motivo de vingança ou justiça envolvido, e é basicamente daí que podemos entender o porquê.

Em geral, os atos violentos são, como já dito, resultado da manifestação externa de uma má disposição interna. A pessoa irada está, normalmente, descarregando sua fúria rumo a um alvo que supostamente é sua causa. Em resumo, está embutida uma vontade de reparação, um movimento rumo a um suposto equilíbrio. Por mais exagerados, injustos ou equivocados que sejam os atos violentos em si, bem como outros atos similares, eles ainda existem sob um prisma supostamente reparador por parte de seu autor, que se considera na verdade não o agente, mas o reagente.

Por outro lado o sentimento de perversão não envolve qualquer um desses elementos, ele é gratuito, desde que se diferencie uma perversão gratuita de uma supostamente retaliativa. Alguém que sofreu um grande mal de um certo agente, pode se

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regozijar de que este sofra outro mal, porque aí embute o mesmo impulso de reparação do caso anterior, com a diferença de que não assume a autoria desta reparação. O Perverso em questão não é o caso, ele possui uma predisposição a apreciar o sofrimento de qualquer um, sem qualquer desejo de reparação.

Nesse sentido, é o absoluto inverso da empatia, pois o indivíduo não está em estado de sofrimento, portanto não pode justificar o ato pelo princípio do equilíbrio. Sua disposição (muito diferente daquele que não sendo empático é insensível ao sofrimento) é sensível, porém invertida, e claramente instável, visto sua impossibilidade de universalização sem destruir rápida e violentamente qualquer sociedade.

JUSTIFICAÇÃO RACIONAL

Se perguntado como justificaria apenas racionalmente a ação ética, responderia pela via da consistência e estabilidade existencial. Todos os seres sensíveis buscam, a seu modo, a Felicidade, ainda que difira muito o quê lhes produz tal sentimento. Se é correto dizer que todos querem ser felizes, é óbvio que um mundo possível onde todos são felizes realiza a meta existencial do todos os seres, e que quanto menos felicidade existir num mundo, mais distante ele está de uma consistência plena, pois a infelicidade acaba sendo a força motriz que impulsiona a maioria dos agentes aos atos anti-éticos. Assim, quanto maior o grau de infelicidade de um mundo, menos estável ele é, exatamente por tender a auto destruição, visto que este é um dos resultados inevitáveis do acúmulo de atos contrários ao Bem.

O mais interessante deste raciocínio é que ele aparenta uma fragilidade, pois pode se dizer que existam pessoas cuja felicidade só poderia ser obtida por meio da infelicidade alheia, e para estes, um mundo plenamente feliz seria impossível, visto que, por desejarem a infelicidade de outros, não poderiam ser felizes.

É aqui que devemos prestar atenção no que chamei de Estabilidade Existencial. Ora, esse tipo de disposição ameaça a estabilidade de qualquer mundo, e sua satisfação é uma ameaça ativa, isto é, a auto realização por meio da infelicidade alheia gera uma perturbação objetiva. Por outro lado, num mundo onde todos tivessem o pleno acesso à felicidade, e só não o fosse aqueles que desejam a infelicidade alheia, essa infelicidade seria subjetiva, só podendo ameaçar à própria existência do indivíduo, a não ser que este transforme tal disposição em ações contra a felicidade alheia.

Essa tendência ao desequilíbrio seria uma inclinação espontânea à auto destruição, visto que ao gerar a infelicidade sem qualquer motivo externo, condenaria o indivíduo ao perpétuo estado de infelicidade devido a seus próprios conteúdos subjetivos. Qualquer inclinação nesse sentido é algo que costumamos entender como uma forma de loucura, e não é difícil concluir que sendo um tipo de deficiência, necessita de tratamento, e não pode servir para contestar um parâmetro como o da Felicidade Geral, visto que esse tipo de pessoa seria o único responsável pelo seu próprio sofrimento, podendo eliminá-lo com uma simples mudança de sensibilidade. Lembrando que simples não significa fácil.

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Poder-se-ia objetar que a Felicidade em si, também não seja exatamente estável, e nesse caso trata-se apenas de alargar, ou estreitar, sua definição. Se vista de um modo mais amplo, incluindo a maior parte das formas de prazer, significaria apenas que os indivíduos teriam, na maior parte do tempo, plena capacidade de realizar qualquer de seus impulsos em busca por prazer. O fato de alguém não estar, nesse exato momento, saboreando um delicioso vinho não seria um problema se ele tiver condições de fazê-lo em algum momento minimamente acessível.

Assim, as oportunidades de satisfação estariam largamente abertas, e as ocasiões de nível excessivamente baixo de satisfação deveriam ser raras. Mais importante ainda é que as ocasiões de sofrimento estariam virtualmente extintas ao menos para quem não as busque ativamente, e com isso, o que entendemos por Felicidade estaria, sim, sujeito a alguma instabilidade, porém nunca a ponto de por em risco o contexto em si.

Talvez ainda mais demonstrativo seja restringir ainda mais o conceito, e afirmar que a Felicidade não se constitui de momentos de êxtase, que por definição são instáveis, mas sim nos momentos de paz. Assim, embora certos prazeres mais intensos estivessem disponíveis, não estaria neles a força estabilizadora do sistema, mas sim em sua capacidade de manter tal possibilidade disponível, e a tranquilidade sempre acessível a quem quiser mantê-la. Felicidade está mais para Serotonina que para Endorfina.

Embora tal divagação soe excessivamente ideal, serve como um parâmetro que justifica por quê, de uma forma que diretamente não apela ao sentimental, a felicidade é desejável numa sociedade. O apelo, porém, ainda existe num nível básico, pelo simples fato de postular que Algo é melhor que Nada, que a Existência é preferível à Inexistência, o Ser ao Não-Ser. Com essa premissa aceita, basta demonstrar que praticamente todos os atos orientados ao prazer são atos pró-existenciais. A alimentação que visa a manutenção, a prazer sexual que visa a reprodução, a fuga da dor que visa a auto preservação. E todos visando também a satisfação sensorial que pode ser vista como uma forma de elevar as experiências existenciais que são desejáveis. (Para um aprofundamento deste tema, ver o Anexo I)

SADOMASOQUISMO

Embora não seja raro vermos os termos Sadismo e Masoquismo associados, eles são na verdade largamente incompatíveis se forem definidos da única forma sustentável. Masoquismo como sendo a apreciação não do sofrimento em si, mas de uma forma de prazer que é geralmente vista por outros como sofrimento, ou que seja indissociável de algum sofrimento que, ao final, é quantitativamente, qualitativamente, ou ambos, inferior ao prazer associado.

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Por sua vez Sadismo seria evidentemente a Perversidade supracitada, e assim, é impossível ao sádico apreciar a estética agradável ao masoquista, porque evidentemente o masoquista não está, de fato, a sofrer. (A não ser que não se trate de um sadismo real, mas simulado, ou seja, de alguém que atue no papel de um sádico se encaixando com o papel de um masoquista.) Mas, como já vimos, todos os seres procuram o bem, na forma de prazer, felicidade, tranquilidade, bem estar, paz ou o que quer que seja. Por mais exótica que seja essa forma de bem, o masoquista não pode fugir a essa regra, como o sádico.

Porém, o prazer do masoquista será estável enquanto ele procurar, para sua realização, pessoas que estejam dispostas a desempenhar um papel simulado de sadismo, ou mesmo situações reais que podem, temporariamente, ser considerados causadores de sofrimento, como por exemplo, a não correspondência amorosa.

Por outro lado o prazer do sádico não pode ser estável porque a sua realização plena pressupõe provocar o desequilíbrio. Sem nunca esquecer, é claro, que estamos falando de um sadismo real, ou seja, aquele que não se satisfaria com a mera simulação de sofrimento. E esse sadismo inequivocamente existe.

A elucidação final consiste no fato de que o Masoquismo é, essencialmente, um papel, uma representação, um farsa, visto que no fundo trata-se apenas de uma procura de prazer esteticamente incomum, por isso só é nocivo quando pode servir de estímulo, catalisador, ou despertador de um sadismo real.

APEGO À EXISTÊNCIA

Contra os que dizem que alguns psicopatas, como os assassinos seriais, são desprovidos de emoções, basta perguntar por que motivo então agem. Ora, o que eles não possuem é, acima de tudo, empatia, visto tratarem a vítima como total desprezo, sentimento este que é um mero e inevitável subproduto desta falta de empatia. Eles podem, também, não serem sensíveis a certas emoções comuns entre outras pessoas, como amabilidade, necessidade de socialização, aprendendo meramente a simulá-los para passarem por pessoas normais. Mas um indivíduo realmente desprovido de emoções seria como uma máquina, e se estivesse a agir de modo racional, nunca praticaria os atos típicos de um psicopata, pois nunca existem razões para isso desassociadas de fortes paixões. Na realidade, um indivíduo completamente desprovido de emoções é impossível, pois não seria autônomo, não teria vontade, e não seria, afinal, um indivíduo. Somente máquinas poderiam preencher essas características.

Podemos pensar, entretanto, em indivíduos com baixíssimo grau de emoções. Mas, para permanecerem vivos, devem possuir ao menos uma das mais primitivas emoções, o apego à existência. Assim, a prática de atos psicóticos cruéis, como o próprio nome sugere, seria impossível a um indivíduo realmente desprovido de qualquer emoção forte, porque além de não haver motivações, ainda seria racionalmente desaconselhável colocar a própria existência em risco, e exigir esforço e consumo desnecessário de energia.

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INSTÂNCIAS DA VIRTUDE

O risco de ‘reinventar a roda’ não deveria preocupar o filósofo, pois reproduzir por conta própria, e de boa fé, alguma linha de raciocínio ou sistema que já tenha sido contemplado por algum predecessor, especialmente se de renome, além de ser nítida evidência de competência filosófica, apenas mostra que o pensador está exercendo sua função típica. Correndo o risco de soar em algum grau não original, apresento uma breve concepção valorativa que relaciona a virtude, ou qualquer outro nome pelo qual queiramos referir uma forma de excelência moral, com o grau de sincronismo entre as 4 instâncias.

Duas são internas e duas externas. As últimas são a ação concreta e o discurso público, as primeiras são o pensamento privado, linguisticamente delineado e passível de clara transmissão, e as operações mentais íntimas menos exprimíveis, que envolvem sentimentos, impulsos, intuições e quaisquer outros conteúdos que costumem ser entendidos como inconscientes, profundos e de difícil penetração racional até mesmo para o próprio proprietário.

Dando nomes simplificados, temos: Sentimento, Pensamento, Discurso e Ação.

Pois bem. Quanto mais harmônicos forem esses domínios, mais coerente e virtuosa será a pessoa, visto que reflete inclusive nossa melhor definição de ‘verdade’, a devida correlação de conteúdos.

O indivíduo que por suas palavras prega algo, mas por seus atos realiza o incompatível, é notoriamente tido como hipócrita. Àquele que pensa de uma forma, e se expressa verbalmente de modo desarmônico a esse pensar, consideramos falso. E quem pensa de modo incompatível com o que sente está a sofrer de algum desarranjo interno que pode tender desde a auto ilusão até a completa esquizofrenia.

Essas três situações não esgotam as relações entre tais instâncias, pois é evidentemente possível haver uma conexão direta entre o sentimento e a ação, por exemplo, como no agir por impulso. Mas isso pode estar em desacordo com o pensamento, como nas típicas situações onde nos reprovamos por nossas ações impensadas, mostrando nítida tensão entre nossas instâncias internas. É, evidente também, que podemos passar direto do pensamento à ação, ou do sentimento ao discurso, mas o que está em questão em primeiro lugar é a ética, e assim, a principal mensura estará pautada pelas instâncias externas, onde nos conectamos diretamente com nossos semelhantes.

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Alguém poderia objetar, porém, que a simples harmonia não é suficiente para a determinação da virtude, pois seria possível ser tido como completamente vicioso em todas as instâncias, porém de modo coerente, como a pessoa que sente o impulso maléfico, pensa sobre e o assume conscientemente, até mesmo justificando-o, declara sinceramente o que pensa e sente e age de modo perfeitamente coerente com toda a cadeia instancial.

Entretanto, se o todo de tal coerência entrar em nítido conflito com seu ambiente social, é óbvio que o indivíduo que assim agir estará em situação nitidamente vulnerável a seus pares. O criminoso por exemplo, terá que apresentar uma ruptura, no mínimo, entre o discurso e as demais instâncias, em algumas ocasiões, ou seria preso devido à coerência de sua confissão. O político corrupto que declarar publicamente suas ingerências corre o risco de ser inelegido ou mesmo inelegível.

Portanto, há uma quinta instância, que é pública, que de modo mais delicado irá conectar as pessoas, e onde qualquer desarmonia grave colocará o indivíduo em conflito com o seu meio, e onde evidentemente os casos mais graves seria eliminados por uma seleção social muito similar à natural.

O critério intrínseco dessa quinta instância está diretamente ligado a nosso conceito de empatia, visto que significa a harmonia entre os ‘todos’ instanciais dos indivíduos. Sem isso, o indivíduo internamente harmônico mais em desarmonia com os demais dificilmente poderia manter sua existência, e como já dito, a existência tem de ser preferível à inexistência.

COMPLEXIDADE x DIFICULDADE

No que se refere a soluções para os problemas humanos por meio de nossos esforços pessoais, há uma curiosa relação inversa entre a linha cujos extremos são a Complexidade e a Simplicidade, e a outra entre a Facilidade e a Dificuldade. Em geral, quanto mais simples uma solução, mais difícil é sua implementação.

Exemplos. O crime pode ser drasticamente reduzido por meio de soluções complexas. Sofisticados aparelhos de vigilância, investigação inteligentíssima, métodos de prevenção abrangentes e toda uma rede integrada de forças policiais, jurídicas, psicológicas e assistenciais. Se dispormos desses complexos recursos, sua aplicação tornaria a solução do problema mais fácil para todos nós, bastando metodologia adequada. O esforço pessoal de cada um seria mínimo.

Por outro lado, não existe solução mais simples da que a mera aplicação dos preceitos éticos mais básicos, que se devidamente observados, erradicariam qualquer forma de crime. Simples, mas Difícil, para não dizer Impossível.

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Disto decorre que um sistema ético tende a sofrer da seguinte relação inversa: Quanto mais simples for, menor será sua capacidade normativa, e quanto mais complexo, maior. Não existe sistema mais puro e simples do que a mera Regra de Ouro, reconhecida automaticamente por qualquer pessoa que entenda sua definição, mas é seguramente o meio menos eficaz de estabelecer o bem comum numa sociedade.

Por outro lado nossos sistemas jurídicos, códigos civis, constituições e legislações em geral têm conseguido manter o mínimo de paz e ordem nas civilizações duradouras, e todos são bastante complexos.

BEHEMOT x LEVIATÃ

Pode-se interpretar esses animais mitológicos bíblicos como alegorias do psiquismo humano, sendo a força terrestre Behemot, a maior criação divina, a Razão, e o Leviatã, a serpente submersa nas profundezas, a emoção. Com essa imagem, representar aquilo que figurou por séculos no imaginário ocidental, a idéia de que o grande conflito interno humano seria entre esses dois domínios tão antagônicos.

Estranho supor que tipo de motivação poderia haver numa ‘entidade’ tão desprovida de causas finais quanto a razão pura, visto que jamais uma única operação racional poderia ser acionada sem ter em vista algum objetivo, e esse objetivo, produzido por algo ainda mais subjacente, a vontade, só pode ter por alvo algum tipo de satisfação subjetiva.

Os antigos poderiam ter desculpas para crer nisso, mas não nós, na era dos computadores, ou a inteligência artificial já deveria ter nos apresentado um ser racional superior a quem poderíamos confiar a resolução de nossos problemas. O que falta aos computadores? O que falta à razão?

Seguramente, a passionalidade possui força motriz indiscutível, enquanto a força motriz da razão é discutível, visto que essa exige a satisfação de uma condição lógica para a tomada de decisões, e se tal condição não puder ser satisfeita, a decisão é impossível, o que é explicação suficiente para nossa incapacidade de decidir sobre elementos que não são clara e quantitativamente discerníveis. Não haverá dúvida em preferir R$40,00 a R$30,00, mas pode haver entre dois produtos com os respectivos preços que possuam elementos que resistam a quantificação, como dois livros diferentes.

Muitas vezes, a incapacidade de decidir só pode ser vencida com o apelo do Leviatã, que não tem impedimento algum em tomar uma decisão irracional, e portanto, não condicionada. Em programação de computadores, isso costuma ser chamado de desvio incondicional, isto é, ao invés de um operador ‘if x then go to y’, é simplesmente ‘go to y’, curiosamente, uma técnica pouco utilizada, e evitada, em programação, pelo motivo óbvio que torna o programa difícil de ser analisado.

Pensando pragmaticamente, aquele que se depara com uma decisão inviável qualquer, preferencialmente que não seja um dilema, não deveria se manter num longo e interminável processo de apatia pela incapacidade de conseguir achar razões para tomar

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uma decisão condicional justificada pelo Behemot, mas poderia apelar ao Leviatã e simplesmente impor uma decisão arbitrária da vontade, selecionando uma das opções sem justificá-la, e talvez, posteriormente, apelar a razão para criar justificações ad hoc.

Não é a toa que na mitologia hebraica a dicotomia Behemot e Leviatã também é vista na passagem do Gênese entre a descendência humana e a serpente, onde a primeira lhe pisará a cabeça, e a segunda lhe morderá o calcanhar, o que levou o pintor William Blake (1757-1827) a retratar os monstros quase como um duplo Ouroboro.

A interpretação que podemos tirar é que a razão pode dominar pela “força bruta” da inegável forma lógica, e a emoção pela “força bruta” do impulso irresistível, mas a primeira sempre terá limitações devido a complexidade, ou irracionalidade, das situações a que frequentemente se defronta, sendo obrigada a apelar à segunda. E vice versa.

Além disso tudo ainda temos o fator complicador da Intuição, que normalmente não pode ser simplesmente reduzida à emoção. Essa questão se coloca de modo impressionante, para nossa geração, pelos simples fato de sistemas artificiais jogadores de Xadrez só terem sido capazes de derrotar um grande mestre enxadrista a partir de 1997 11 , embora já fossem, muito antes disso, capazes de realizar cálculos milhões de vezes mais rapidamente, e mesmo assim, a grande maioria de nossos computadores comuns, mesmo com os melhores programas, ainda não consegue derrotar os mestres. E até hoje, aparentemente, não se desenvolveu um sistema capaz de derrotar os melhores jogadores humanos no jogo oriental ‘Go’.

Mas se todos esses casos são uma mera questão de “força bruta racional”, como é possível que os humanos tenham reinados invictos por tanto tempo, e ainda reinem em grande parte? A única resposta possível é que a razão sozinha, mesmo quando implacavelmente eficiente, é deficitária contra a razão associada a outras qualidades.

Exatamente o que é essa qualidade, o que é intuição, ou se é a parte estética emocional, ainda é algo que está em aberto, podendo permanecer assim por tempo indefinido.

 

FIM DA PRIMEIRA PARTE

 


11. Muitas informações interessantes, inclusive sobre inteligência artificial e heurísticas, podem ser obtidas na página www.research.ibm.com/deepblue

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MONOGRAFIAS
Por uma
ESTÉTICA DOURADA

SEGUNDA
PARTE