Universidade de Brasília
Instituto de Humanidades
Departamento de Filosofia
Disciplina de Dissertação Filosófica 2
Orientador: Professor Doutor Agnaldo Cuoco Portugal
Examinador: Professor Doutor Paulo Coelho Abrantes
Orientando: Marcus Valerio XR - 02/98255













KOSMOS e TELOS
Elementos do debate em torno do Argumento do Desígnio













Brasília, 25 de Julho de 2006


ÍNDICE

INTRODUÇÃO

DESIGN

CONSTITUIÇÃO X FUNÇÃO

Notas

CAPÍTULO 1 - DIÁLOGOS SOBRE A TEOLOGIA NATURAL

Notas

CAPÍTULO 2 - AS CAIXAS PRETAS DE BEHE

Notas

CAPÍTULO 3 - COSMOS E CRONOS

Notas

CONCLUSÃO

DESIGN INTELIGENTE E (É?) CRIACIONISMO?

ORDEM E INTENÇÃO

Notas

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

Uma das maiores misericórdias do mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinitude, e não fomos designados a ir longe. As ciências, cada qual avançando em sua própria direção, até agora nos causaram pouco dano, mas há de chegar um dia onde a junção das peças soltas de nosso conhecimento abrirá visões tão terríveis da realidade, e de nossa assustadora posição nela, que só nos restará enlouquecer perante a revelação ou fugir da luz fatal para a paz e a segurança de uma nova Idade das Trevas.

H.P.Lovecraft (1890-1937)

O contexto1 literário no qual esta citação se encontra muito pouco ou quase nada tem a ver com o tema desta dissertação, no entanto, tomado isoladamente ele se adequa com notável precisão à imagem passional sobre a qual quero falar ao iniciar este texto. Trata-se da famosa sensação de destronamento que a visão religiosa da natureza sofreu durante a revolução científica, e em especial em sua última e mais dramática etapa, a Revolução Biológica, contra a qual as contendas e resistências nunca foram totalmente superadas, diferente das questões relativas aos movimentos da terra.

Para a visão teológica, habituada a ver o universo como uma criação divina feita em função dos humanos, e no qual os eventos físicos podem ser vistos como sinais intervencionais de uma divindade que guarda íntima relação conosco, a súbita expansão da idéia de uma natureza desprovida de propósito costuma ser bastante perturbadora.

Creio que todas as pessoas que tenham passado pela experiência de ver suas convicções religiosas ou espiritualistas abaladas, como eu próprio, devem ter experimentado essa súbita sensação de abandono, de perda de identidade e sentido existencial, ao passar a considerar seriamente a hipótese de um universo desprovido de legislação divina e onde nossa rica e bem quista autoconsciência é ameaçada de se desvanecer para o nada no evento final de nossa continuidade corpórea.

Mais ainda, dramática é a sensação que cresce à medida que estamos no limiar da descrença, mas ainda resistindo bravamente com nossos escudos de esperança sob os ataques que as afiadas espadas da racionalidade materialista e científica nos desferem, quando vemos que os argumentos do ceticismo pragmático comuns na biologia, neurociências, psicologia cognitiva e materialismo dialético fazem bem mais sentido do que a mentalidade sobrenaturalista gostaria.

Quando nosso amadurecimento intelectual começa a correlacionar todo o conteúdo informativo que recebemos, e quando peças soltas de nosso conhecimento passam a formar um quebra-cabeças com uma paisagem profana de um mundo onde nossa assustadora posição é de mera insignificância diante de um cosmos irracional e sem nenhuma condescendência para conosco, parece natural que perante a revelação soframos um grande choque, e compreensível que as mentes menos ousadas prefiram se abrigar em seus sentimentos menos analíticos, satisfeitas com as crenças que outrora foram completamente dominantes, como na era injustamente apelidada de Idade das Trevas.

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Não obstante, a reação pode ser diferente. Alguns, ao fazerem a transição do teísmo para o ateísmo, ou mesmo agnosticismo, experimentam uma notável sensação de libertação, e se por um lado há os que lamentam que ao desencantarmos o mundo perdemos o conforto e a proteção de anjos da guarda, de milagres curadores ou da promessa de imortalidade, por outro lado ficamos também livres da ameaça de demônios tentadores, bruxarias nocivas ou de uma punição terrível num inferno.

Enfim, temos fortes consequências emocionais em ambos os antagônicos campos, o de uma visão de mundo intencionalista, e o de uma visão de mundo não intencionalista. Nada disso, entretanto, muda o fato de que somos seres dotados de intenção, desde os primórdios de nossa história buscamos entender nossa existência e o nosso mundo, por meio de imagens, símbolos e pensamentos que são claramente produto de uma inteligência. Sendo assim, não é de se admirar que tenhamos “visto” em toda parte o compartilhamento de nossa própria natureza, a natureza inteligente, ou mais especificamente, dotada de intencionalidade, num sentido largo, sem as complexidades maiores da filosofia da mente 2.

Todavia, a aplicação desta mesma natureza inteligente à compreensão de nosso mundo quando levada a seus níveis mais sofisticados nos confronta cada vez mais com a idéia contraditória de que não existe na natureza qualquer outra forma perceptível de inteligência. Enquanto grupos rivais no que se refere a haver ou não uma inteligência atuante no mundo natural se defrontam, quero então levantar aqui uma questão intermediária:

Admitindo as fortes evidências de um mundo essencialmente irracional, embora ordenado, e não intencional, como entender a descontinuidade da passagem da Não-Intencionalidade para a Intencionalidade? Não parece ser tão difícil entender que a simples racionalidade surja evolutiva e espontaneamente nos animais mais sofisticados, visto que sistemas comuns podem implementar comportamentos aparentemente racionais. Mas a Mente Humana é algo mais que racional, possuímos uma qualidade intrínseca que nos permite a riqueza cultural que desenvolvemos. Possuímos Intencionalidade, como dizem os filósofos da mente, que está além da mera razão.

Entretanto, somos confrontados com a idéia de um mundo onde tal atributo parece ausente, e assim temos uma anomalia epistemológica, visto que nossa tendência natural é sempre compreender as coisas de uma forma intencional. Toda a nossa linguagem está equipada com termos que nos permitem associar racionalidade e sentimentos a entes que seguramente não os possuem, e grandes pensadores ao longo da história pensaram a natureza por meio de finalidades intencionais. Mesmo na atualidade, e mesmo entre pensadores radicalmente materialistas e redutivistas, notamos discursos sobre a natureza em linguagem intencional devido a grande dificuldade em se expressar de outra forma. Será que somos realmente capazes de promover uma ruptura tão drástica com essa tendência?

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Se admitirmos um universo não intencional, irracional no sentido de “desprovido de razão”, fará mesmo sentido que o mesmo sendo não inteligente seja inteligível?

E na tese oposta, se consideramos um universo inteligente, quer como uma racionalidade e intencionalidade intrínseca ou impressa por uma outra ordem, isso também não significaria um obstáculo a compreensão do mesmo visto que não tenhamos acesso às fontes dessa inteligência? Mesmo que sim, como enfrentar a avassaladora evidência histórica da correlação direta entre o maior desenvolvimento científico e a menor consideração por essa tese clássica?

E, por fim, como relacionamos os elementos racionais deste dilema com os elementos passionais? Por que um universo irracional a uns tanto assusta?

Esta será a última preocupação desta dissertação, a passionalidade, que só será retomada no fechamento. De agora em diante enfocaremos as razões, ainda que estas sejam servas das paixões 3.

DESIGN

Na forma atual, a questão de o universo ser ou não produto de uma elaboração intencional passa obrigatoriamente pelo uso da palavra design, que não pode ser traduzida para o português sem prejuízo de sentido, pois traduzida como “desenho”, perde a acepção de “desígnio” e traduzida como esta última perde a acepção da primeira.

Ambas as significações são indissociáveis no sentido em que o termo Inteligent Design tem sido usado. Curiosamente, o inteligent é até mesmo dispensável, visto que design, implicando “desígnio” só pode ter uma conotação claramente deliberativa e inteligente. No Brasil, dada a inviabilidade de uma boa tradução, tem-se usado o termo design Inteligente, abreviado de DI, num movimento social organizado que já conta com núcleos de estudos e crescente número de entusiastas, refletindo o que tem ocorrido nos E.U.A.4

Cresce também a resistência contra esse movimento, que do ponto de vista científico o considera mero Criacionismo em roupagem disfarçada, acusação para a qual existem evidências bastante fortes, mas que no entanto não esgota uma certa legitimidade filosófica, pois a questão entre saber ou não se o universo possui uma ordem que o transcende, ou uma ordenação racional imanente, ainda que sutil, continua sendo uma questão perfeitamente válida e em aberto.

Muito provavelmente faça falta aos defensores e adversários do DI alguma intimidade com o campo acadêmico no qual iniciei minha vida universitária, a faculdade de Desenho Industrial, termo que evidentemente é uma descuidada tradução de Industrial Design. Nesta área, que se subdivide em “Programação Visual” e “Projeto de Produtos”, é função do designer, projetar/desenhar objetos e sistemas visando funcionalidade, facilidade de operação, ergonomia, economia e senso estético.

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Se ao pensar em termos de design8 os envolvidos neste debate tivessem esses conceitos sempre em mente, boa parte dos desentendidos poderia ser evitada, especialmente pelo lado dos DIstas. Mas o ponto mais importante é o conceito que não foi mencionado, a intencionalidade do designer, no caso o ser humano, que pode em parte ser inferida do produto em si, mas apenas pelo simples fato de que, em geral, já conhecemos as categorias de criações que estes profissionais costumam produzir.

O mesmo provavelmente não poderia ser dito de um possível design na natureza. Visto que não conhecemos esse designer, e que temos ótimos motivos para sequer considerá-lo humano, só nos resta tentar deduzir suas intenções por meios das estruturas supostamente projetadas que encontramos na natureza. Há porém, fortes suspeitas de que isso seja um empreendimento muitíssimo improvável.

Em um de seus cursos, o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho critica 5 a polêmica entre criacionistas e evolucionistas, taxando-a de filosoficamente equivocada, pois os primeiros crêem poder evidenciar a existência transcendente de um criador por meio de investigações na natureza, ao passo que os segundos tentariam evidenciar sua não existência pelo mesmo processo. No entanto, afirma Carvalho, o exame do universo jamais permitiria qualquer conclusão desse tipo, pois o exame das causas eficientes, mesmo que fosse completo, jamais poderia revelar algo a respeito da finalidade primeira do universo, visto que essa só seria compreensível além da totalidade causal material. Analogamente, ele afirma:

Por exemplo, a execução de uma sinfonia consiste de um grande número de gestos corporais e efeitos mecânico-acústicos que, rastreados um a um, dissolverão cada vez mais a forma final da sinfonia num caos de processos fisiológicos e físicos nos quais será impossível encontrar o menor sinal de uma “idéia musical”. É deplorável o esforço com que os anti-evolucionistas se empenham em demonstrar a existência da Quinta Sinfonia de Beethoven mediante a revelação de hiatos causais na fisiologia dos músicos e na mecânica dos instrumentos. É grotesco o ar de triunfo com que os evolucionistas, preenchendo esses hiatos, crêem ter demonstrado a inexistência de Beethoven.

Embora Carvalho, que resume a contenda num embate aristotélico entre causas eficientes e causas finais, tenha desenvolvido esse texto versando sobre a já enferrujada disputa Evolução e Criação, os argumentos funcionam de modo equivalente para a contenda Neodarwinismo e design Inteligente. É preciso também esclarecer, entretanto, que não é preocupação da maioria dos evolucionistas negar a existência de uma intencionalidade na natureza, embora seja, por definição, preocupação da totalidade dos DIstas afirmá-la. Mesmo os evolucionistas anti-DI podem se concentrar em basicamente desconstruir a suficiência dos argumentos adversários sem necessariamente entrar no mérito de invalidar por completo a possibilidade.

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Mas de qualquer forma, o que me parece notável aqui é que, mais uma vez, a discussão pode ser remontada à Grécia Antiga, onde não somente Aristóteles, mas Platão, pode nos fornecer alguma luz em sua obra Timeu7. É sugerido ali que a natureza foi moldada por um Demiurgo, não um Deus. Podemos inferir que esse demiurgo em si não pressupõe uma perfeição comparável ao da teologia cristã, visto que molda o mundo de acordo com um modelo presente no mundo das Idéias, e que sendo assim, será sempre uma cópia imperfeita. Dessa forma, o demiurgo não pode ser perfeito, visto que não possui o poder de moldar sua obra de forma perfeita, como as próprias imperfeições do mundo sugerem, e tendo que trabalhar sobre um Caos pré existente, e ao menos tão antigo quanto o próprio demiurgo.

Por outro lado, uma regressão causal em direção ao Motor Imóvel aristotélico7 pode considerar o princípio da natureza como algo mais que um demiurgo, ao menos na interpretação de Tomás de Aquino, conhecida como quarta via para demonstração da existência de Deus6, argumentando que a observação de “graus” de perfeição progressivos no mundo nos levam a considerar um princípio mais perfeito que todos, que comportaria também as máximas virtudes. Ainda que esta interpretação tomista seja alheia a Aristóteles, que sugere um Motor Imóvel sem intenções.

No que se refere a uma discussão contemporânea, Platão parece mais promissor. Principalmente porque é muito difícil, senão impossível, conceber uma evidência indireta de um ser perfeito, pois qualquer que seja esta evidência, ela pode apenas sugerir uma perfeição restrita à suas características, e mesmo um acúmulo de inúmeras evidências apenas evidenciariam âmbitos restritos de perfeição. Dessa forma não poderia haver uma prova de absoluta perfeição ou de Onipotência, pois isso exigiria uma quantidade infinita de evidências de todos os âmbitos concebíveis de perfeição.

Mesmo que um Deus onipotente se manifestasse perante nós, ele poderia, no máximo, dar-nos provas de imensa potência, mas seria inacessível uma prova de onipotência, pois não nos seria possível abarcar a abrangência desta prova. Precisaríamos de um tempo infinito, e de Onisciência, para contemplá-la. Em termos aristotélicos, ainda que exista um ser infinitamente ilimitado em Potência, ele nunca poderia manifestar toda essa onipotência em Ato de um modo que nos fosse possível apreender a infinita dimensão dessa demonstração.

O mesmo pode-se dizer de um criador perfeito. Por mais “perfeito” que fosse o dispositivo natural que encontrássemos, o máximo que poderíamos inferir seria a perfeição do design naquele item em especial. Mesmo que todos os dispositivos em si demonstrassem perfeição funcional, isso provaria, ainda assim, uma perfeição restrita, ou seja, estaríamos sempre restritos a uma indução aparentemente insatisfatória para estabelecer a perfeição total do designer.

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Por outro lado, a hipótese de um designer demiurgo é passível de uma abordagem mais promissora. Isso não implicaria negar a possibilidade de um ser perfeito, e de que este seja o mesmo designer, mas somente limitar nossa amplitude epistêmica a trabalhar com um nível de planejamento e intencionalidade restritas, em especial, a categorias similares às nossas.

Assim, o único designer que somos capazes de lidar será aquele à nossa “imagem e semelhança”, o que certamente exclui a perfeição, e então um termo mais adequado a este designer seria demiurgo.

CONSTITUIÇÃO X FUNÇÃO

Costumamos descrever, referir e entender as coisas mediante duas estratégias básicas. A primeira, a análise de sua constituição, a segunda, de sua função. Podemos descrever um certo objeto como sendo constituído de uma base quadrangular de madeira, na qual se fixam uma mola que tenciona uma armação de metal, amparada por uma trava, que por sua vez se liga a um sensor que, uma vez pressionada, libera a trava, impulsionando a armação de metal. Ou, uma vez tendo conhecimento do significado de toda essa constituição material, podemos descrever o mesmo objeto como uma armadilha para capturar pequenos animais, e lhe darmos o nome de “ratoeira”.

É notório, então, que num primeiro contato com algo ainda por conhecer, nossa primeira abordagem tenda a ser uma descrição constitutiva, e somente num estágio mais avançado de conhecimento podemos entendê-lo mediante a descrição de sua função. Assim, costumamos descrever todas as coisas que já conhecemos pelo que elas fazem, pelo papel que elas desempenham, ou seja, pela sua “Causa Final”.

No entanto, essa seqüência não é necessária. Podemos também nos deparar com algo novo já no desempenho de sua função, bem como também costumamos transmitir a nossos semelhantes conteúdos novos já por meio de suas descrições funcionais. No entanto, se nos restringirmos à situação de um encontro primeiro com uma novidade, e sem o apoio de uma descrição funcional ou de uma sugestão imediata de sua função, o que nos resta é sua constituição, e é assim que costuma ocorrer com freqüência ao observarmos a natureza.

Na ciência empírica, também, tendemos a só descrever de forma funcional os entes que podemos considerar ao menos parcialmente compreendidos. O coração é um músculo cuja função é bombear o sangue pelo corpo, embora também possamos descrevê-lo materialmente, mas de qualquer forma, somente um estágio posterior de conhecimento nos permite associar uma função a algo. Pode ser diferente no processo de geração de teorias, onde podem ser postulados entes “funcionais” que sequer tenham sido observados, a exemplo dos grávitons, partículas cuja função seria implementar a força gravitacional, e que posteriormente venham a ser descobertos. Mas na investigação empírica da natureza, especialmente dominante na biologia, a ocorrência de situações onde uma descrição material precede a compreensão da função é tendência predominantemente recorrente, a exemplo da investigação cada vez mais minuciosa dos seres vivos, onde mais e mais estruturas vão sendo desvendadas.

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A tendência no pensamento religioso e mitológico é inversa. Hoje, descrevemos a Lua como um corpo celeste com certas características e certo comportamento, mas não costumamos nos referir à sua função. Já na Bíblia, ela é um luminar com a função de governar a noite [Gênese 1:16]. Dessa forma, a tendência teleológica é também descrever as coisas enfocando sua função, que se dá na idéia de finalidade.

Qualquer discurso relativo a design natural também só pode se expressar de forma funcional. Afirmar que algo possui um design é pressupor que possui uma função, e que tal foi prevista e intencionalmente projetada, como o próprio sentido original da palavra sugere8. Por outro lado, um discurso que negue o design natural não tem que negar a função estrutural das coisas, mas apenas afirmar que esta função é acidental, não tendo sido projetada, e dessa forma não é design, embora pareça. O biólogo Richard Dawkins aplica a essa aparência de design o neologismo “designóide”.9

De fato, não podemos negar que as estruturas vivas sejam, de certa forma, a realização de um projeto, que está previsto no DNA, e que termina por se realizar materialmente. Como as estruturas desempenham papéis específicos e em geral funcionais, e como existe uma harmonia funcional intrínseca aos seres vivos, um uso pouco restrito do termo inteligência é até aceitável para designar a característica deste projeto, pois não se trata de um projeto qualquer, mas um que se “destina” a permitir a existência num certo ambiente.

De fato, é possível afirmar de um modo puramente material que exista “Design Inteligente” na natureza pelo fato de que os projetos implementados pelo DNA têm funções muito práticas e objetivas. No entanto, é claro que estamos a nos referir a um conceito largo de inteligência, onde esta pode ser entendida como uma mera estrutura capaz de promover respostas adaptativas e “aprender” algo sobre seu ambiente.

Assim, parece necessária a utilização de um termo mais específico, que explicite a diferença dos pontos de vista em questão. Esse termo parece ser “Intencionalidade”. Embora possam ser considerados em algum nível inteligentes, os projetos que encontramos na natureza não são, ou não parecem, intencionais.

Na Filosofia da Mente, onde o termo “intencionalidade” é mais usado, podemos encontrar um bom paralelo. A principal diferença entre um humano e um antróide10 implementado por meios eletrônicos, por exemplo, e que seja superficialmente indistinguível de um humano, é que este último não possui intencionalidade. Ainda que seja capaz de desempenhar inúmeras funções que simulem atitudes humanas, mesmo que simule riso ou choro diante de situações específicas, podemos dizer que tais reações se dão de um modo puramente material, mecânico, sem qualquer “intenção” real.

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Os humanos, porém, são seres intencionais, e assim, nossas atitudes possuem uma legitimidade que nos deixa mais à vontade para receber a designação de inteligentes. Se o design natural possui algum nível de inteligência pragmática e útil à sua sobrevivência, a questão não é relativa à sua inteligência apenas, mas à sua intencionalidade.

Isso nos levará à questão de serem as funções implementadas de modo natural, cego, porém eficiente, projetadas material e despropositadamente, ou se tais funções foram implementadas intencionalmente por um ser que merece o título de verdadeiramente inteligente. Será o mundo natural resultado de um processo sem um propósito consciente, ainda que este processo seja ordenado por leis naturais? O design na natureza é intencional ou não? Ou, para lembrar a terminologia de Dawkins, existe mesmo design na natureza, ou somente designóides?

Por fim, lembrando o texto de Carvalho, a intencionalidade é algo que por definição não pode ser deduzida das estruturas materiais em que opera, pois examinando cada processo físico relativo ao funcionamento do corpo humano, incluindo seus processos neurocognitivos cerebrais, não poderíamos achar neles uma evidência empírica de intencionalidade, pois isoladamente não passam de processos físicos simples, e em conjunto abrangem uma cadeia virtualmente infinita de relações causais impossíveis de serem descritas de um modo compreensível a não ser, é claro, pela linguagem quase poética da intencionalidade, o que seria uma petição de princípio.

O exame do mundo físico, por si só, não pode nos mostrar a intenção por trás do processo. Por outro lado, também não pode nos mostrar a não-intenção. Assim, embora dados científicos sejam bem vindos, estamos diante de uma questão puramente filosófica. Curiosamente, notaremos que a contenda histórica sobre esse tema, embora jamais ultrapasse seus teores e limitações filosóficas, tem sido profícua em acumular e apresentar mais e mais dados científicos, o que para Carvalho tem sido um desperdício de ricas informações técnicas num debate que tem sido marcado pela simploriedade filosófica.

Passaremos então, em seguida, a um breve exame desta abordagem histórica por meio de alguns personagens em especial, e de alguns conceitos que foram desenvolvidos, advogando que apesar da roupagem científica, a discussão é fundamentalmente filosófica, e que mesmo os melhores argumentos científicos da atualidade não conseguem ultrapassar iniciativas filosóficas clássicas no que se refere a adequação metodológica e amplitude epistemológica.

No primeiro capítulo, partiremos de citações de dois autores contemporâneos Richard Dawkins e Michael Behe, para introduzirmos os autores fundamentais sobre os quais qualquer discussão sobre design se debruça, David Hume e Willian Paley. No capítulo segundo, enfocaremos Michael Behe e sua tese da Complexidade Irredutível, e veremos que por mais sofisticada que seja sua formulação, não transcende, em essência, a argumentação clássica de Paley, e pode da mesma forma ser confrontada por Hume.

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No terceiro capítulo examinaremos Richard Swinburne, que apresenta uma versão do argumento do desígnio que leva elementos previstos por Paley a seus extremos, e que constitui uma abordagem bem mais resistente ao ceticismo humeano. No capítulo final, retomaremos alguns elementos desta introdução, advogando que a questão, por mais que utilize dados científicos, é fundamentalmente filosófica, epistemologicamente indecidível e que a filosofia não pode negligenciá-la, visto que por trás desta discussão movem-se forças psicoculturais com ampla capacidade de intervir na sociedade.

Por fim, fecharemos a dissertação com uma indagação a respeito de até que ponto uma e outra posição nos sejam satisfatórias não somente como explicações racionais da natureza, mas como um sistema de pensamento que no coloca num mundo onde vivemos e morremos, e somos confrontados implacavelmente com nossos dilemas éticos, emocionais e existenciais.

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1. Howard Philips Lovecraft foi um escritor norte americano de horror e ficção científica, e o trecho citado pertence ao primeiro parágrafo de sua obra mais famosa, O Chamado de Cthulhu, cuja temática, predominante na maioria de seus textos, é de que o conhecimento humano ao avançar sobre certas áreas do universo conduzirá inevitavelmente à loucura e ao desespero, pois o universo na verdade seria completamente irracional e regido por deuses monstruosos com propósitos completamente indiferentes à nossa existência. No universo ficcional destas obras a humanidade é um breve hiato casual na vida de seres multi milenares, e nosso planeta uma pequena “esfera de sanidade”, onde, diferentemente da grande maioria da imensidão cósmica, a ilusão da razão faz algum sentido.

2. Recorrendo a uma definição mais vulgar, como o do dicionário Houaiss, que define intencionalidade como: “...deliberação, propósito, (...) ato ou estado de consciência adaptado a uma intenção, a um projeto (...) segundo a fenomenologia, caráter da consciência de tender para um objeto e de lhe dar um sentido”. Mas o conceito também vai de encontro à definição de John Searle, que a entende como direcionalidade a algo. Não cabem aqui, porém, distinções mais complexas, como as relativas a filosofia da linguagem, representações de atos de fala ou distinção com intensionalidade, com “s”. SEARLE, John R. Intencionalidade. [1983] Editora Martins Fontes, São Paulo-SP, 2002.

3.“Reason is, and ought only to be the slave of passions...” HUME, David. A Treatise of Human Nature. (p.415) Oxford University Press, New York, second edition, 1978. Texto original de 1740.

4. en.wikipedia.org/wiki/Intelligent_design, [último acesso em 24 de julho de 2006].

5. Texto somente disponível na internet, pois constou apenas como material de apostila de um Seminário de Filosofia em 2002. Pode ser visto num dos sites do autor Mídia Sem Máscara, em outro texto datado de 29 de julho de 2004, intitulado Resposta a um vigarista de Boston, que narra uma contenda com o Jornalista José Colucci Jr sobre o famoso biólogo Richard Dawkins, duramente criticado por Olavo de Carvalho. Publicado em O fantasma de Darwin,no Observatório da Imprensa, tal texto de Colucci desencadeou um ácido debate que embora baseado em motivadores imprecisos, trouxe desenvolvimentos muito interessantes, ainda que Carvalho tenha nitidamente subestimado Dawkins como um nome de peso na Biologia atual. Olavo de Carvalho também publicou um síntese do mesmo tema, Criação e Evolução, no artigo “Evolução e mito”, publicado no Jornal da Tarde de 6 de maio de 2004. [Ambos os links foram acessados em 24 de julho de 2006]

6. Suma Teológica, Livro 1, Questão 2 Artigo 3.

7. Aristóteles, Física 8. Platão, Timeu.

8. O dicionário on-line Merriam-Webster [acessado em 24 de julho de 2006] define “design” no âmbito verbal e também no nominal, no qual aponta como sinônimos os termos intention e plan.

9. DAWKINS, Richard. A escalada do Monte Improvável – Uma Defesa da Teoria da Evolução.[1996] Companhia das Letras. São Paulo. 2006. Páginas 14-15.

10. Utilizo o neologismo “antróide” em substituição ao termo “andróide”, que apesar de difundido, é etimologicamente errôneo, visto que o prefixo grego andros significa “masculino”, e que antro significa “humano”. Dizer que um andróide e uma entidade em forma humana, sob meu ponto de vista, é um equívoco que só pode ser explicado pelo latente sexismo de nossa linguagem. Assim, o termo andróide deve designar somente um antróide de aparência masculina, e um antróide de aparência feminina evidentemente será um “ginóide”.

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DIÁLOGOS SOBRE A TEOLOGIA NATURAL

As questões sobre o design na natureza remontam a Aristóteles, com sua doutrina de causas finais e sua regressão a uma causa inicial incausada chamada Motor Imóvel. Essa imagem foi cooptada por Tomás de Aquino com o argumento da quinta via para demonstração da existência de Deus, que seria a causa incausada, e cuja evidência poderia ser observada pela ocorrência de ordem na natureza.

Mas apenas em 1802 o Argumento do Desígnio receberia um tratamento ilustrativo tão irresistível que suas idéias podem ser encontradas no imaginário popular até hoje. O clérigo britânico Willian Paley [ 1745-1805 ] lançou neste ano uma obra intitulada Natural Theology 1 , com a qual pretendeu explicar, de modo ainda mais claro e acessível, que a evidência de ordem no mundo, é uma prova da existência de Deus.

Parece impossível discutir este tema na atualidade sem passar por Paley, ainda que em geral descrito de modo bastante superficial e por vezes injusto. Dois expoentes da atualidade no que se refere à idéia de haver, e a de não haver, design nas estruturas biológicas, Michael Behe e Richard Dawkins, têm em Paley seu dialogante mais fundamental.

Behe, ao lançar seu livro A Caixa Preta de Darwin 2 , em 1996, ajudou a dar o pontapé inicial no movimento denominado Design Inteligente, ainda que ele próprio ainda não utilizasse essa terminologia. Bioquímico da universidade de Lehigh em Pensilvânia, EUA, Michael Behe faz questão de frisar que não é um criacionista, que não põe em dúvida as datações radiológicas sobre a idade da Terra e do Universo, e nem questiona a idéia da ancestralidade comum dos seres vivos. No entanto, acredita que a Teoria da Evolução neodarwiniana, embora tenha sido capaz de explicar a vida a nível macroscópico, não é suficiente para explicá-la a nível biomolecular.

Seu conceito principal é o de Complexidade Irredutível, ilustrado na analogia da ratoeira, segundo a qual uma ratoeira é composta de um mínimo de peças que permite o desempenho de sua função, e que a remoção de qualquer uma delas inviabiliza essa função. Assim, sistemas irredutivelmente complexos não poderiam ter sido montados por processos graduais como os sugeridos pela seleção natural darwiniana. Behe acredita ter encontrado vários exemplos de sistemas irredutivelmente complexos na bioquímica.

Este professor de bioquímica dedicou o décimo capítulo de seu livro a Paley, tentando resgatar a parte conceitual e essencial de Natural Theology que, segundo ele, jamais foi claramente refutada, ainda que grande parte desta obra seja não somente ultrapassada, mas argumentativamente fraca mesmo para os conhecimentos de sua época.

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Behe concentra-se em contra-atacar alguns argumentos de Richard Dawkins, talvez seu maior opositor, num livro lançado 10 anos antes, O Relojoeiro Cego 3 , obra cujo título faz uma evidente citação da idéia central de Paley, e que ataca didaticamente as idéias centrais de quase 200 anos de idade, embora reconheça a legitimidade e sinceridade de Paley. Ambos esses autores contemporâneos também citam um pensador ainda mais antigo, David Hume, que antes, em 1779, tivera uma obra póstuma lançada que, de antemão, pode ser contraposta a Paley, os Diálogos Sobre a Religião Natural 4 .

Richard Dawkins, por sua vez, é biólogo evolucionista da universidade de Oxford, além de ser um popularizador da ciência, também foi um dos mais influentes divulgadores da Teoria do Egoísmo Genético, na qual a evolução é melhor compreendida não a nível de populações, espécies ou indivíduos, mas a nível de genes, estruturas autoduplicadoras sem qualquer intenção que “agem” meramente gerando cópias de si mesmas, quer por meio de vírus, bactérias, vegetais ou animais. Dawkins também tem trabalhado com simulações artificiais de processos evolutivos a fim de demonstrar o poder “criador” da seleção natural.

Minha intenção neste capítulo é partir do presente, desses dois opositores contemporâneos, e então voltar ao passado, para Paley e Hume, que são frequentemente citados. Dawkins ainda lançou também em 1996, uma obra intitulada A Escalada do Monte Improvável 5 , onde responde a questões como as de Behe, em relação à improbabilidade de uma evolução puramente naturalista, onde argumenta que não existe design na natureza mas apenas estruturas designóides.

Behe inicia seu capítulo colocando que a idéia de um Planejamento Inteligente na natureza, apesar de antiga, foi intelectualmente frágil por falta de concorrência, visto que era um senso comum até mesmo meio século após Darwin, inclusive entre os cientistas. No entanto, prossegue Behe, tal idéia ainda não foi fundamentalmente refutada, e para isso ele recorre à famosa ilustração de Paley, não sem críticas ao modo como o próprio clérigo se desviou do assunto e em várias ocasiões contaminou seu poderoso argumento principal com outros argumentos fracos e vulneráveis.

Assim, começaremos no mesmo ponto que Behe, citando o argumento central de Willian Paley, que numa forma sintética, nas primeiras linhas do primeiro capítulo de sua obra, afirma:

Cruzando um terreno baldio, suponha que eu bata meu pé contra uma pedra, e seja indagado como está pedra chegou até lá. Eu poderia responder, pelo que sei, que ela poderia estar ali desde sempre, e não seria fácil considerar essa idéia absurda. Mas suponha que eu tenha achado um relógio, e me seja perguntado como o relógio viera a estar naquele local, dificilmente eu responderia da mesma forma que antes, que ele sempre estivera ali. No entanto, porque essa resposta não seria tão admissível quanto o fora na primeira situação? Apenas por uma única razão... [Natural Theology, página 1]

Então discorre sobre as peças do relógio, suas sutilezas e sua precisão, mostrando que ele foi planejado e construído para executar uma função específica. Para Paley, a existência de um relógio clama pela existência anterior de um relojoeiro, um planejador, designer e, no caso, executor inteligente. Segundo Behe, esse argumento simples e direto, no que tem de mais essencial e nuclear, não foi refutado, no que de fato parece difícil discordar. Porém, seu desmembramento, que se dá na virada do segundo para o terceiro capítulo, é que virá a ser o ponto de discórdia até os dias de hoje, pois Paley conclui que, analogamente, o mundo natural possui seus “relógios”, estruturas cuja complexidade elaborativa reivindica a existência de um planejador.

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Ao longo do capítulo terceiro, o clérigo acrescenta que podemos achar na natureza exemplos de design muito mais complexos, arrojados e mais vastos que um simples relógio, e que, portanto, o ateísmo assume a absurda posição de reconhecer o design no mundo mas não reconhecer o designer. Prossegue, então, Paley:

Não conheço modo melhor de introduzir tão amplamente um tópico do que comparar uma coisa pequena à outra coisa pequena; um olho, por exemplo, com um telescópio. Até onde o exame do instrumento possa ir, há precisamente a mesma prova de que o olho foi feito para a visão, como há de que o instrumento foi feito para auxiliá-la. Eles são baseados nos mesmos princípios, ambos são ajustados às leis pelas quais a transmissão e refração de raios luminosos são regulados. [Natural Theology, página 18]

Esse trecho merece atenção especial porque ao introduzir sua analogia diretamente à questão biológica, Paley utiliza o exemplo do olho. Curiosamente, tal exemplo é forte candidato ao mais popular em toda contenda a respeito do design. Darwin se debruçou sobre a questão do olho, Behe e Dawkins dedicam várias páginas sobre o tema, e tanto bons criacionistas e DIstas quanto evolucionistas costumam conhecer de cor argumentos a favor de seus pontos de vista utilizando o olho como exemplo.

Mas voltemos à Paley:

Não falo sobre a origem das leis em si, mas tais leis são fixas, a construção, nos dois casos, é adaptada a ela. Nesse sentido, tais leis requerem, para produzir o mesmo efeito, que os raios de luz, passando da água para o olho, sejam refratados por uma superfície mais convexa, do que quando passam do ar para o olho. De acordo com isso, percebemos que no olho de um peixe, a parte que chamamos lente cristalina é muito mais arredondada do que nos olhos dos animais terrestres. Que melhor manifestação de design pode haver que tal diferença? O que mais um criador matemático-instrumental pode fazer, para mostrar seu conhecimento desse princípio, sua aplicação desse conhecimento, seus meios para esse fim? [Natural Theology, páginas 18 e 19]

Vemos aqui que a evidência de ajuste entre o mecanismo biológico e o meio resulta no melhor exemplo de manifestação de design, pois cada estrutura está devidamente preparada para efetuar bem sua função em relação ao que a situação lhe exige. Ou seja, Paley está tentando provar a existência do design muito mais mediante a adequação funcional da estrutura do que pela sua configuração material, o que fica ainda mais explícito a seguir:

Para alguns parece ser suficiente para destruir qualquer similitude entre um olho e um telescópio, que um é um órgão perceptivo e outro um instrumento não perceptivo. O fato é, que são ambos instrumentos. [Natural Theology, página 19]

Richard Dawkins, em sua obra acima citada, abordando Paley e enfatizando sua admiração pelo argumento do teólogo, discorda largamente de sua conclusão, não porque o clérigo tenha desenvolvido mal seu argumento, mas apenas porque até sua época de fato não parecia haver qualquer explicação razoável para o aparente design na natureza. Segundo Dawkins, somente após Darwin, e acrescento também o co-autor norte americano do conceito de Seleção Natural Alfred Russel Wallace, seria possível derrubar por completo o argumento do desígnio, com a idéia de que existe sim um relojoeiro, mas um relojoeiro cego, no sentido de não ter em vista finalidade alguma, não ter intenção. Este relojoeiro é a Evolução Biológica, no que Michael Behe procura discordar, advogando a insuficiência da evolução por seleção natural em produzir o design que encontramos na natureza.

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Meio século antes de Charles Darwin a idéia de evolução já estava bastante difundida no pensamento, sendo Jean-Baptiste Lamarck o mais famoso evolucionista pré-darwiniano. Desde sua obra Filosofia Zoológica de 1809, o mesmo ano de nascimento de Darwin, Lamarck propunha uma idéia inversa à da Paley. Embora também concordasse com a autoria divina dos seres vivos, ele afirmou que os seres vivos sofriam influência do ambiente e se adaptavam ao mesmo através de mudanças sucessivas que eram acumuladas de geração em geração. Ou seja, os seres não foram projetados de acordo com o ambiente, mas sim foram projetados com o potencial de se adaptar ao ambiente.

Essa idéia, publicada 7 anos após a Teologia Natural de Paley, pode ser considerada o ponto de partida do sistema de pensamento que viria, segundo Dawkins, a tornar totalmente obsoleto o argumento do desígnio, pois embora a idéia de Lamarck de que os seres vivos transmitiam mudanças adquiridas ao longo da vida a seus descendentes tenha sido derrubada, o darwinismo trabalharia exatamente com o princípio de que é o ambiente que molda as espécies de acordo com suas exigências.

Ao ser introduzida a idéia de seleção natural, por Darwin e Wallace, e posteriormente os princípios da genética de Mendell, entre 1936 e 1947, obteve-se a Síntese Moderna da Teoria da Evolução, também conhecida como Neodarwinismo, ou hoje em dia simplesmente darwinismo, ainda que um darwinismo diferente daquele do próprio Darwin.

Podemos entender o evolucionismo como um tipo de meio termo entre as duas possibilidades distintas para explicar o mundo natural que são a Aleatoriedade e a Intencionalidade. A primeira chegou a ser defendida pelos atomistas gregos, mas foi a segunda que dominou o pensamento desde Platão até a revolução biológica.

Tal revolução propõe que a configuração da vida não é nem resultado de mero acaso, nem de uma inteligência, mas sim de uma regularidade guiada por leis naturais. Portanto, passamos a ter uma terceira possibilidade explicativa para a natureza, a ordem oriunda de processos naturais, que apresenta resultados regulares.

Podemos chamar essa terceira opção de Regularidade, e para ser sintetizada a idéia de evolução biológica, podemos afirmar que haverá evolução sempre que ocorrerem 3 fatores em um sistema. O primeiro é a hereditariedade, ou seja, entes que geram outras versões de si mesmos, se reproduzam, o que caracteriza basicamente a vida. O segundo é a variabilidade, pois os seres vivos não geram cópias idênticas de si mesmos, mas sim similares, cada qual com sua peculiaridade. E o terceiro é a seleção, pois havendo indivíduos diferentes entre si, e havendo pressão ambiental que favoreça alguns e não outros, tenderá a haver seres que serão mais ou menos, ou nada, bem sucedidos na tarefa de se reproduzir mais.

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Richard Dawkins afirma, então, que Paley estava errado simplesmente porque não encontrou uma explicação melhor, o que era compreensível, pois segundo seu livro O Relojoeiro Cego:

Antes de Darwin, um ateu poderia ter afirmado, pautando-se em Hume: “Não tenho explicação para a complexidade do design dos seres vivos. Tudo o que sei é que Deus não é uma boa explicação, portanto devemos aguardar e esperar que alguém avente algo melhor.” Não posso deixar de sentir que uma tal atitude, ainda que logicamente correta, não satisfaria ninguém; penso igualmente que, antes de Darwin, o ateísmo até poderia ser logicamente sustentável, mas que só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito. Gosto de imaginar que Hume concordaria comigo, mas alguns de seus escritos sugerem que ele subestimava a complexidade e a beleza do design biológico. [O Relojoeiro Cego, páginas 24 e 25]

Por outro lado, Michael Behe critica Dawkins e quem mais acredite que o argumento do desígnio esteja superado:

Mas exatamente em que ponto, poderíamos perguntar, Paley foi refutado? Quem rebateu seu argumento? De que maneira foi produzido o relógio, sem um planejador inteligente? É surpreendente, mas verdadeiro, que o principal argumento do desacreditado Paley nunca foi refutado de fato. Nem Darwin nem Dawkins, nem a ciência nem a filosofia explicaram como um sistema irredutivelmente complexo como um relógio poderia ser produzido sem um planejador. [A Caixa Preta de Darwin, página 215]

Nesse ponto, Behe já está a fazer largo uso do conceito fundamental de seu livro, a Complexidade Irredutível, que será melhor abordado mais adiante. O ponto que quero chamar atenção é no que se refere a Hume, pois se Dawkins afirma que Hume fez nada mais que “...criticar a lógica de se usar um aparente desígnio como prova irrefutável da existência de Deus.”, por outro lado, parece haver motivos para considerar que teria sido Hume, e não Darwin, que já havia refutado Paley e todos os defensores do argumento do desígnio, antes mesmo de Natural Theology ser escrita.

Em sua obra póstuma Diálogos Sobre a Religião Natural, Hume considera a analogia do relógio 6 , questiona se a ordem natural pode provar a existência de design, e faz hipóteses, com as quais não se compromete, sobre um princípio auto-ordenador na matéria, que explicaria a aparência de design, antevendo em quase um século a teoria da evolução. E ele faz isso não apenas ao longo de toda a sua obra, na verdade faz tudo isso num só parágrafo.

...de acordo com esse método de raciocínio [...] se segue que a ordem, arranjo, ou o ajustamento das causas finais, não constituem, por si sós a prova alguma de um desígnio, mas apenas na medida em que se tenha constatado pela experiência que eles procedem de um tal princípio. Por tudo o que nos é dado saber a priori, a matéria pode conter originalmente em si mesma a fonte o ou o móvel da ordem, do mesmo modo que a mente os contém. Supor que os diversos elementos – a partir de uma causa interna desconhecida – possam arranjar-se da maneira mais elaborada não é mais difícil do que imaginar que suas idéias, a partir de uma causa interna desconhecida semelhante, venham a dispor-se dessa mesma maneira no interior da grande mente universal. A igual possibilidade dessas duas suposições é admitida." [Diálogos Sobre a Religião Natural, páginas 35]

Essa argumentação, porém, surge ainda numa parte incipiente de um diálogo entre três personagens, dos quais um defende o design na natureza, outro defende o Deus da religião revelada, e um terceiro assume uma posição cética. Por meio desses personagens, Hume critica não somente o argumento do desígnio, mas também as certezas racionalistas. No entanto, se estas últimas ainda resistem às investidas céticas de Hume, o argumento do desígnio poderia ser refutado por uma série de motivos.

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Behe está certo ao afirmar que o argumento inicial de Paley em si não pode ser refutado. Ninguém pode negar que a existência de um relógio implica a existência de um relojoeiro, o próprio Hume concordaria com isso. O problema está, porém, no salto que é dado entre este argumento e a idéia de que o mesmo possa ser aplicado ao mundo natural, o que Hume consideraria uma analogia fraca, pois:

A exata similaridade dos casos nos dá-nos uma segurança perfeita da ocorrência de um evento similar; e jamais se procura ou se deseja uma evidência mais forte que essa. Mas sempre que se afasta, por pouco que seja, da similaridade dos casos, diminui-se proporcionalmente a evidência; e ela pode afinal ser reduzida a uma analogia muito tênue, reconhecidamente sujeita a erro e incerteza. [Diálogos Sobre a Religião Natural, página 32]

Ocorre que nada há de similar a um relógio na natureza, não ao nível da matéria que o constitui. Behe, porém, que também está atento a Hume, tenta rebater a idéia de que tal comparação é inadequada:

...David Hume pensava que o argumento em favor do planejamento dependia de uma forte semelhança em detalhes acidentais entre organismos biológicos e outros objetos planejados. Essa linha de raciocínio, porém, destruiria todas as analogias, uma vez que dois objetos quaisquer não-idênticos terão mais pontos de diferença do que de semelhança. Segundo o pensamento de Hume, por exemplo, não poderíamos comparar um carro com um avião, porque o avião tem asas e o carro não tem, e assim por diante. [A Caixa Preta de Darwin, página 219]

O que vemos aqui é que Behe se deixou capturar numa tentadora armadilha, a de pensar em termos funcionais, pois mais adiante afirma:

Eventualmente, mesmo pelos critérios de Hume, a analogia entre um relógio e um organismo vivo poderia ser tornada muito forte. A bioquímica moderna poderia, com toda a probabilidade, fabricar um relógio, ou um dispositivo de marcação de tempo, com materiais biológicos – se não agora, com certeza num futuro próximo. Muitos sistemas biológicos marcam o tempo, incluindo as células que dão ritmo ao coração, o sistema que inicia a puberdade, e as proteínas que dizem à célula quando ela deve se dividir. Além disso, são conhecidos componentes bioquímicos que podem funcionar como engrenagens e correntes flexíveis, e mecanismos de retroalimentação [que são necessários para regular o relógio] são comuns em bioquímica. A crítica de Hume ao argumento em favor do planejamento, ao afirmar que existe uma diferença fundamental entre sistemas mecânicos e sistemas vivos está desatualizada, destruída pelo progresso da ciência que descobriu a maquinaria da vida. [A Caixa Preta de Darwin, página 220]

Enquanto nega que Paley tenha sido derrubado por Darwin, pela revolução biológica ou pelo progresso científico, Behe alega que este mesmo progresso derrubou a crítica de Hume. Porém, esse argumento parece muito fraco, pois ele inicia comentando sobre a bioquímica moderna, mas o que o engenho humano pode produzir não está em questão aqui, e sim o que a natureza produz de modo totalmente independente da intervenção humana. Da mesma forma, a sugestão de que existam componentes bioquímicos comparáveis a peças de relógio em nada vem a auxiliar se estes componentes não estiverem constituindo um relógio biológico natural funcional, e tal aparato nunca foi encontrado na natureza.

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O que há de natural são os sistemas biológicos que marcam o tempo, porém, é aqui que ocorre a confusão entre constituição e função. De fato existem sistemas naturais que têm como função contar o tempo, que é a mesma função do relógio, porém quando estamos nos referindo à procedência das coisas, temos que pensar não em termos funcionais, mas em termos constitutivos materiais.

Analogamente, não é o fato de um jovem ter as mesmas ocupações, idéias e hábitos que um homem mais idoso que serve como evidência da descendência, mas sim características físicas que podem estar totalmente desassociadas de qualquer tipo de função que este jovem venha a executar. Haverá uma evidência de descendência se forem constatados no jovem os elementos genotípicos e fenotípicos relevantes, mesmo que ele não compartilhe nenhum dos hábitos do pai.

Da mesma forma, se quisermos reconhecer a autoria de um artefato humano, temos muito mais probabilidade de sucesso examinando as partes do mesmo, as peças que o compõem, o material utilizado ou os signos de identificação. Dificilmente podemos descobrir essa autoria por meio de suas funções, mesmo porque há inúmeros artefatos que desempenham a mesma função, bem como há, na própria natureza, diversas estruturas que têm como função a contagem de tempo. Em outras palavras, é um erro fazer a analogia do relógio na Biologia em termos funcionais, sem envolver os constituintes materiais.

Mas a crítica contra a possibilidade em geral de se fazer analogias não é o único golpe de Hume contra o argumento do desígnio. Talvez ainda mais forte seja a crítica contra a comparação específica dos artefatos humanos e os artefatos naturais, para os quais não temos conhecimentos tão amplos quanto temos sobre os artefatos humanos.

Após a constatação de que duas espécies de objetos surgem sempre associados, posso inferir, pelo costume, a existência de um deles onde quer que eu veja que o outro está presente; e a isto chamo um argumento a partir da experiência. Mas seria difícil explicar como esse argumento pode ser aplicado a um caso – como o que estamos presentemente considerando – no qual os objetos são singulares, individuais, sem paralelo ou semelhança específica. Poderá alguém dizer-me seriamente que um universo ordenado deve provir de algum pensamento ou artifício humano, porque disso temos experiência? Para comprovar esse raciocínio, seria preciso que tivéssemos experiência da origem dos mundos, e é claro que não basta ter visto navios e cidades serem produzidos pela arte e engenhos humanos... [ Diálogos Sobre a Religião Natural, página 41]

Assim, Hume critica a idéia de comparar os artefatos humanos às coisas naturais, visto que ao passo que temos vasto conhecimento sobre relógios e ratoeiras, nosso conhecimento sobre os entes naturais é muitíssimo mais limitado, mesmo na atualidade. É o próprio Behe que costuma frizar insistentemente nossa incipiência no que se refere a entendermos o mundo bioquímico, por exemplo.

Máquinas são relativamente fáceis de analisar porque sua função e todas as suas partes, cada parafuso e porca, são conhecidos e podem ser listados. Torna-se fácil, portanto, verificar se qualquer dada parte é necessária à função do sistema. Se um sistema requer várias partes estreitamente condizentes para funcionar, então ele é irredutivelmente complexo e podemos concluir que foi produzido como uma unidade integrada. Em princípio, os sistemas biológicos também podem ser analisados dessa maneira, mas apenas se todas as suas partes puderem ser enumeradas, e também se uma função puder ser reconhecida. [A Caixa Preta de Darwin, páginas 55 e 56]

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Behe, logo em seguida, afirma que a bioquímica moderna elucidou senão todos, ao menos a maioria dos componentes de “muitos” sistemas bioquímicos, e ele aborda três deles, a saber, os cílios impulsores dos protozoários flagelados, o sistema de coagulação do sangue, e a síntese de proteínas. Mas o conhecimento que temos sobre isso pode ser comparado ao que temos sobre a fabricação de nossas próprias máquinas? A simples incapacidade que temos de criar sistemas microscópicos tão complexos claramente demonstra que não.

Quando Hume levantou o argumento da impropriedade de comparar artefatos humanos aos objetos naturais, ele não se referiu especificamente a sistemas vivos, embora a analogia também funcione neste último caso. Porém, a próxima crítica de Hume nos sugere que ele considerou uma propriedade intrínseca à vida como portadora de uma possível capacidade de auto-organização.

Do mesmo modo que uma árvore espalha suas sementes nos campos vizinhos e ocasiona o surgimento de outras árvores, assim também o grande vegetal – o mundo, ou esse sistema planetário – produz dentro de si certas sementes que, dispersando-se no caos circundante, fazem germinar novos mundos. Um cometa, por exemplo, é a semente de um mundo, e, após atingir o pleno amadurecimento, pela passagem de um sol a outro e de uma estrela a outra, é finalmente lançado em meio aos elementos informes que jazem por toda parte ao redor do universo, fazendo brotar imediatamente um novo sistema. [Diálogos Sobre a Religião Natural, página 95]

Somando à idéia de uma força auto-organizadora anteriormente sugerida, temos aqui a idéia de hereditariedade, ambas idéias presentes em nossas concepções evolucionistas contemporâneas, ainda que a auto-organização seja resultado de uma interação entre um processo aleatório, a varabilidade genética, e a ação ordenada da seleção natural.

Este argumento de Hume visa sugerir uma via alternativa para explicar o aparente design na natureza além da mera intenção de um planejador. Hume, então, antecipa em 200 anos o relojoeiro cego, pois ao invés de achar que a ordem natural no universo seja uma evidência de um ordenador intencional, considera que pode ser resultado de um mero processo espontâneo, um regularidade intrínseca.

Hume, porém, não foi o único a considerar essa idéia de auto replicação e ordem natural, pois Paley também a leva em conta em sua obra.

Suponha, em segundo lugar, que a pessoa que achou o relógio poderia, após algum tempo, descobrir que, em acréscimo a todas as propriedades que havia observado neste, possuir a inesperada propriedade de produzir, no curso de seu próprio movimento, outro relógio igual a ele próprio [a coisa é concebível]; que este contém um mecanismo, um sistema de partes, um molde para instanciar, ou um complexos ajuste de peças, arquivos e outros mecanismos, evidentes e calculadamente separados para esse propósito; deixe-nos inquirir que efeito uma descoberta como essa teria sobre nossa conclusão anterior. O primeiro efeito seria aumentar sua admiração pelo artefato, e sua convicção da notória habilidade do artesão. [Natural Theology, página 9]

Paley prossegue afirmando basicamente que a propriedade de produzir cópias de si mesmo é somente mais uma evidência da genialidade do designer que teria produzido o relógio original, pois segundo ele seria o projetista, e não o primeiro relógio, a causa dos demais. Dessa forma, embora muito provavelmente Paley não tenha tido contato com a obra de Hume, ele não aceitaria que uma capacidade germinativa potencial, a exemplo dos mundos que se reproduzem, eliminaria a necessidade de uma causa inicial, que evidentemente seria o Designer.

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Paley também recusaria o argumento de Hume a respeito de uma ordem intrínseca na natureza que resultaria em design, como se pode inferir da seguinte passagem, sobre essa possível resposta à existência do relógio:

Nem, em quinto lugar, seu questionamento obteria maior satisfação se fosse respondido que existem nas coisas um princípio de ordem, que dispôs as partes do relógio em sua presente forma e situação. Ele nunca viu um relógio ser feito pelo princípio de ordem, nem poderia formar por si só o que significaria esse princípio de ordem distinto da inteligência do relojoeiro. Em sexto lugar, ele ficaria surpreso de ouvir que o mecanismo do relógio não fosse prova de artifício, apenas um motivo para induzir a mente a pensar assim. E não menos surpreso de ser informado que o relógio em sua mão é nada mais que o resultado das leis da natureza metálica. É uma perversão da linguagem assinalar qualquer lei como causa eficiente operativa de qualquer coisa. Uma lei pressupõe um agente, para qual esta é apenas um modo pelo qual o agente procede, ele implica um poder, para que seja ordem, de acordo como o poder age. Sem esse agente, sem esse poder, que são ambos distintos deles próprio, a lei nada faz, nada é. [Natural Theology, páginas 7 e 8]

Para Paley, a existência de uma ordem intrínseca nas coisas que explicasse sua auto-organização também não seria uma explicação alternativa ao designer, pois essa ordem em si pressuporia esse mesmo designer, sem o qual as leis ou ordens naturais nada fariam. Segundo ele, o ajuste perfeito entre meios e fins, mesmo que desconheçamos uma série de detalhes a respeito desses ajustes, é uma prova suficiente da existência de um projetista por trás de tudo. Enfim, Paley evidentemente identifica esse projetista como o Deus cristão.

Dessa forma, Paley responde às objeções de Hume de que uma ordem intrínseca à matéria poderia explicar o design, e essa argumentação é, até hoje, o cerne da obstinada resistência dos criacionistas e DIstas contra a idéia de que as regularidades naturais sejam suficientes para justificar um universo desprovido de qualquer intenção subjacente. Recebe também atenção especial de filósofos que defendem o argumento do desígnio.

Como notaremos nos próximos capítulos, mesmo os mais sofisticados argumentos atuais pró e contra o design, podem ser entendidos e confrontados via Hume e Paley, não é a toa que tais autores são referência obrigatória para qualquer pessoa que pretenda abordar o problema. Infelizmente porém, no que se refere ao uso de seus argumentos, Hume tem sido muito mais beneficiado do que Paley, pois é amplamente considerado como tendo o argumento definitivo sobre a questão, lançando um veredicto reprobatório ao argumento do desígnio. Já Paley, em geral tem sido lembrado quase que exclusivamente pela sua analogia de abertura, que como vimos, é de fato vulnerável a Hume, no entanto, momentos mais interessantes de seu livro, como os últimos citados, são frequentemente esquecidos, e curiosamente são justamente esses que oferecem um desafio maior ao ceticismo humeano.

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É frequentemente esquecido que, ao que tudo indica, foi Paley que introduziu o exemplo do olho como uma evidência de desígnio. Exemplo este sobre o qual Darwin se debruçou, visto que estudou a obra de Paley 7 , e que tem sido até hoje o maior objeto de debate entre defensores e adversários do desígnio, sem previsão de esgotamento.

Alguns dos melhores momentos do livro de Paley costumam ser largamente desconhecidos, como o Capítulo 18, sobre “Instintos”, que seria especialmente difícil de ser confrontado por Hume, ou o Capítulo 21, Dos Elementos, onde Paley faz uma abordagem da ordem naquilo que pensava serem os fundamentos da matéria, os elementos água, ar, fogo e terra, e também a luz, que ele considera quer seja um elemento adicional, ou uma modalidade do fogo7 .

No capítulo 22, Astronomia, Paley demonstra um raro momento de concordância9 com Hume, pois acredita que os astros não são os melhores objetos para demonstração do design, mesmo assim Paley dedica atenção à questão das leis newtonianas, antecipando, em conjunto com a questão dos elementos, questões nomológicas que virão a ser retomadas pelas versões mais sofisticadas do argumento do desígnio na contemporaneidade.

Apesar de tudo isso, nem mesmo Michael Behe concedeu a Paley mais que a citação honrosa de sua analogia inicial, dedicando outras citações apenas a demonstrar falhas diversas em sua obra 10 , inclusive em passagens que antecipam exatamente questões como a do olho e dos instintos.

Paley, entretanto, foi o último e maior defensor do design pré Darwin, a partir do qual qualquer iniciativa de argumento do desígnio teria que lidar com as idéias que revolucionaram a biologia.

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1. PALEY, William. Natural Theology; or, Evidences of the Existence and Attributes of the Deity [1809]. University of Michigan Humanities Text Initiative. 1998. Todas as citações são traduções livres de minha autoria.

2. BEHE, Michael J. A Caixa Preta de Darwin – O Desafio da Bioquímica à Teoria da Evolução, [1996]. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro – RJ 1997. Todas as citações se referem a esta edição.

3. DAWKINS, Richard. O Relojoeiro Cego – A Teoria da Evolução contra o Desígnio Divino. [1986]. Companhia das Letras, São Paulo-SP, 2001. Tradução de Laura Teixeira Motta.

4. HUME, David. Diálogos Sobre a Religião Natural [1779]. Editora Martins Fontes, São Paulo – SP, 1992.

5. DAWKINS, Richard. .A Escalada do Monte Improvável – Uma Defesa da Teoria da Evolução. [1996]. Companhia das Letras, São Paulo-SP, 2006. Tradução de Suzana Sturlini Couto.

6."Lance no ar um conjunto de diversas peças de aço, sem talhe ou forma: elas jamais se arranjarão por si mesmas de modo a produzir um relógio. [...] No entanto, observamos que as idéias, por um inexplicável e desconhecido princípio de organização, dispõem-se na mente humana de modo a formar o projeto de um relógio..." [Diálogos Sobre a Religião Natural, páginas 35-36]

7. FYFE, Aileen. The Reception of Willian Paley’s Natural Theology at University of Cambridge Departament of History and Philosophy of Science, University of Cambridge. 1997.

8. Natural Theology, página 365.

9. Natural Theology, página 379.

10. A Caixa Preta de Darwin, página 216.

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AS CAIXAS-PRETAS DE BEHE

Se pudesse ser demonstrada a existência de qualquer órgão complexo que não poderia ter sido formado por numerosas, sucessivas e ligeiras modificações, minha teoria desmoronaria por completo.

Charles Darwin1

Michael Behe ainda é o nome mais popular entre os DIstas, e seu conceito de Complexidade Irredutível é o argumento mais utilizado. O objetivo deste capítulo é principalmente argumentar que apesar de sua originalidade, cabem críticas humeanas a este conceito que pretende atender ao critério de falsificação citado pelo próprio Darwin, logo acima.

Behe declara, ao início de seu livro que, como todas as grandes idéias, a teoria de Darwin é simples e elegante 2. Talvez inspirado por essa noção, Behe apresentou seu conceito de uma forma também bastante simples, e pretensamente elegante. De fato cabe uma notável comparação entre os livros A Origem das Espécies, de Darwin, e A Caixa Preta de Darwin, de Behe. Ambos os livros tem em comum a característica de se basearem numa idéia central simples, que pode ser compreendida rapidamente por leitores cientificamente leigos, porém, exemplificam essa idéia com exaustivos exemplos encontrados no mundo natural, que abrangem a maior parte do livro, e de mais difícil assimilação a não-especialistas.

No entanto, se compararmos as teses centrais defendidas, é possível notar uma diferença abissal. A funcionalidade da idéia de Darwin não costuma ser, em si, posta em dúvida nem mesmo pela maioria dos criacionistas, da mesma forma como a idéia central de Paley, que enquanto alegoria não merece resistência significativa, e sim somente sua aplicação. Porém, o Relógio de Paley e a Ratoeira de Behe são basicamente analogias, que enfrentam os mesmos problemas de fraca correlação apontadas por Hume. Ou seja, embora as idéias em si sejam coerentes, é muito discutível que possam ser relacionadas ao mundo natural.

A ratoeira é a ilustração central de Behe para explicar o conceito de Complexidade Irredutível, o que já apresenta em si uma dificuldade de correlação, pois enquanto os exemplos factuais de seu livro, como o sistema de coagulação do sangue, são extremamente complicados e envolvem de dezenas a centenas de componentes, a ratoeira envolve apenas cinco, sendo extremamente simples. Ou seja, Behe tenta ilustrar uma idéia que envolve alta complexidade por meio de uma idéia de alta simplicidade.

Para que não sejamos acusados de atacar a ilustração e não o seu conceito, que é o que pode ter sido injustamente feito contra Paley, faz-se necessária aqui a explicação do próprio Behe:

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Com irredutivelmente complexo quero dizer um sistema único composto de várias partes compatíveis que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, caso em que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema irredutivelmente complexo não pode ser produzido diretamente ( isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo ) mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor, porque qualquer precursor de um sistema irredutivelmente complexo ao qual falta uma parte é, por definição, não funcional. Um sistema biológico irredutivelmente complexo, se por acaso existir tal coisa, seria um fortíssimo desafio à evolução darwiniana. Uma vez que a seleção natural só pode escolher sistemas que já funcionam, então, se um sistema biológico não pudesse ser produzido de forma gradual, ele teria que surgir como uma unidade integrada, de uma única vez, para que a seleção natural tivesse algo com que trabalhar. Mesmo que um sistema seja irredutivelmente complexo (e, portanto, não possa ter sido produzido diretamente), não podemos excluir por completo a possibilidade de uma rota indireta tortuosa. Aumentando-se a complexidade de um sistema iteratuante, porém, cai bruscamente a possibilidade dessa rota indireta. E, à medida em que aumenta o número de sistemas biológicos irredutivelmente complexos, inexplicados, nossa confiança em que o critério de fracasso de Darwin tenha sido atingido sobe vertiginosamente para o máximo que a ciência permite. [página 48]

Mais adiante, ele estipula as condições para a identificação de um sistema como este:

O primeiro passo para determinar a complexidade irredutível consiste em especificar a função do sistema e todos os seus componentes. Um objeto irredutivelmente complexo será composto de várias partes, todas as quais contribuem para a função. A fim de evitar os problemas encontrados em objetos extremamente complexos (...) começarei com um exemplo mecânico simples: uma modesta ratoeira.[50]

Essa “simplicidade irredutível” da ratoeira de Behe é, então, descrita em partes:

1) uma tábua lisa de madeira que serve como base; 2) um martelo (precursor) de metal, que realiza o trabalho de esmagar o ratinho; 3) uma mola com extremidades alongadas que faz pressão contra a tábua e o martelo quando a ratoeira é armada; 4) uma trava reversível, que dispara quando nela é aplicada leve pressão; e 5) uma barra de metal ligada à trava e que prende o martelo quando a ratoeira é armada.[50-51]

Logo em seguida, Behe apresenta outra condição para seu conceito:

O segundo passo para determinar se um sistema é irredutivelmente complexo consiste em perguntar se todos os componentes são necessários à função. Nesse exemplo, a resposta, claro, é sim.[51]

Mas o critério conclusivo para determinação da complexidade irredutível, talvez seja o mais relevante, visto que fica aqui explicitada de forma ainda mais evidente a importância da função:

A fim de compreender bem a conclusão de que um sistema é irredutivelmente complexo, e conseguinte, não tem precursores funcionais, precisamos fazer uma distinção entre precursor físico e precursor conceitual.[51]

E então Behe admite que não basta que uma mesma, ou similar, função, interligue dois sistemas, mas sim que haja uma ligação material. Uma ratoeira pode ser implementada de diversas formas, por materiais diferentes, mas não haveria um precursor material da ratoeira funcionalmente válido porque este deveria ter alguma das partes a menos. E exemplifica:

A bicicleta, portanto, pode ser uma precursora conceitual da motocicleta, mas não de natureza física. A evolução darwiniana requer precursores físicos.[53]

É então que podemos invocar Hume para julgar a validade da analogia de Behe, e de imediato já vemos que há uma larga distância entre os exemplos usados para ilustrar o conceito de complexidade irredutível, e os sistemas biológicos. Além de serem constituídos de materiais radicalmente diferentes, somente os sistemas biológicos possuem a propriedade de se reproduzirem.

É também importante notar uma tensão entre esta afirmação de Behe sobre a importância da precursão material, que está no cerne de seu conceito, com a afirmação que ele faz a respeito de Hume, acusando-o de considerar erroneamente a importância de detalhes materiais. 3.

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Notemos então que, pelos critérios de Behe, um sistema será tido como irredutivelmente complexo:

1) se a função de um sistema e suas partes forem claramente conhecidas e;
2) se nenhuma de suas partes puder ser removida sem prejudicar seu funcionamento.

Mas para que isso seja aplicável no campo biológico, tais critérios não parecem suficientes. Encontrar um sistema irredutivelmente complexo a ponto de inviabilizar seu surgimento pela evolução darwiniana exigiria também que:

3) o sistema e sua função fossem vitais à sobrevivência e sucesso reprodutivo do organismo;
4) essa função não pudesse ser implementada por nenhum outro sistema.

Caso contrário, o organismo poderia sobreviver com uma outra estrutura desempenhando a função e então, após o surgimento de uma função similar, abandonar o sistema anterior. E mesmo com tudo isso o próprio Behe admite que a detecção de estruturas biológicas irredutivelmente complexas não seria por si só um inviabilizante da evolução darwiniana, mas sim reduziria sua probabilidade.

Isso nos leva de imediato a uma imensa distância entre as idéias de Darwin e de Behe. A de Darwin não necessita de uma analogia com estruturas não biológicas e se aplica exclusivamente aos sistemas vivos, que produzem descendentes. O conceito de Behe, entretanto, pode ser aplicado em diversos outros setores e é especialmente descrito em estruturas não vivas e incapazes de produzir descendentes.

Fica lançada a suspeita de que o conceito de Behe seja frágil demais para ser levado adiante, diferente do poderoso conceito darwiniano. Não parece possível derrubar o conceito de Darwin em si, como um construto racional, visto que a relação entre hereditariedade, variação e seleção funciona como uma fórmula simples, por outro lado, o de Behe tem grandes vulnerabilidades.

A primeira vulnerabilidade que podemos apontar é que o conceito é, em princípio, feito sob medida para se opor à evolução, e não uma descoberta que tenha se dado mediante o estudo sistemático da natureza, e que tenha necessitado de uma teoria explicativa. Voltando à definição inicial de Behe, um sistema irredutivelmente complexo é nada menos que um sistema que não possa ser explicado pela seleção natural. Sendo assim, parece nítido que tal conceito foi encomendado como um opositor prévio ao neodarwinismo. Em termos epistemológicos que valoram a origem de uma idéia, isso tende a ser visto com desconfiança.

Logo em seguida, Behe declara que um sistema só pode ser selecionado caso já funcione, o que parece ir contra toda uma série de evidências da natureza, onde abundam sistemas não funcionais ou ao menos de função desconhecida, mas que continuam sendo poupados pela seleção natural, que elimina de fato um sistema prejudicial, não um sistema inerte. Vários organismos possuem órgãos vestigiais que podem ser facilmente dispensados, como as amídalas, os sisos, o apêndice, a quase totalidade dos pêlos do corpo humano ou ao menos alguns dedos do pé. E ainda que os exemplos de Behe sejam do campo bioquímico, temos vastos exemplos de estruturas que se perpetuam mesmo sem nenhuma função, como a maior parte do ADN. Ou seja, mesmo que um sistema não funcione, não necessariamente ele será excluído pela seleção natural. Por isso é necessário incorporar a condição de que a função deste sistema seja essencialmente vital para sustentar a tese de que a complexidade irredutível inviabiliza a evolução darwiniana.

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O primeiro critério de Behe para determinação da complexidade irredutível é especialmente sensível a Hume, pois exige que tenhamos conhecimento claro e bastante específico sobre a função e todas as partes do sistema. Porém, Hume perguntaria: que sistemas podemos dar por suficientemente conhecidos a ponto de estarmos seguros de uma conclusão tão forte? Nos três exemplos mais detalhadamente explicados por Behe em seu livro, ele admite que nosso conhecimento sobre os mesmos não é completo. Ao descrever o fascinante sistema “motorizado” de propulsão de bactérias mediante o cílio flagelado, por sinal um sistema por si só capaz de desencadear espanto mesmo num leigo, Behe coloca:

Os requisitos de um motor baseado em tal princípio são muito complexos e estão sendo objeto de pesquisa ativa. Muitos modelos foram sugeridos para o motor, nenhum deles simples.[78]

Logo adiante, Behe enfatiza o fato de que a literatura científica é ausente de artigos que tentem explicar a evolução de um sistema tão espetacular. No entanto, é de se questionar se poderíamos esperar outra coisa de algo para o qual, como o próprio Behe deixa claro em várias ocasiões, ainda estamos longe de compreender totalmente.

O segundo exemplo é o sistema de coagulação do sangue, onde talvez, mais do que nunca, Behe parece um prato cheio para as críticas de Hume. Nesse sistema estão presentes dezenas de proteínas e subsistemas que ativam o processo de coagulação que, além de não serem total e definitivamente compreendidos, apresentam uma característica curiosa e anômala, apenas parcialmente explorada pelo próprio autor, mas que dá margem a um ataque aparentemente devastador contra a idéia de um design “inteligente”.

Behe usa como ilustração certas máquinas famosas em desenhos animados que têm como peculiaridade uma alta e desnecessária complexidade, porém uma função extremamente simples e tola. Trata-se dos hilários mecanismos onde uma sequência interminável de eventos tem como resultado causar um golpe irônico e perverso contra algum personagem cartunesco. Como exemplo, o galo que ao tropeçar numa corda aciona um ventilador que impulsiona um barquinho que causa uma sequência de queda de dominós, que acendem uma vela que queima um corda que deixa cair um martelo e etc, até que finalmente uma bigorna lhe atinja a cabeça.

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É evidente que um sistema desses foi idealizado para ser cômico, não prático, e não seria o que consideramos resultado de um planejamento pragmaticamente eficiente. Curiosamente, no livro de Behe, o sistema de coagulação sanguíneo é frequentemente comparado a essas máquinas espalhafatosas, alavancando uma série imensa de sistemas bioquímicos ao menos aparentemente excessivos. De fato, fica claro que poderia ser implementado um sistema muitíssimo mais simples e eficiente. Ao fazer tais comparações, Behe destaca o altíssimo nível de sincronismo necessário para que uma máquina tão confusa funcione, mas parece se esquecer que isso é exatamente o contrário do que esperaríamos de um design inteligente. Por outro lado, se vista mediante os conceitos evolutivos, fica bastante evidente porque tal complexidade desnecessária pode ocorrer, pois a evolução, como disse Dawkins, é um processo cego, não tem em vista uma finalidade, e portanto produz uma excessiva quantidade de elementos descartáveis.

Hume poderia dizer que isso seria resultado de um design incompetente, algo que afastaria o planejador da intenção evidentemente reverencial do defensor teísta, e assim, além de favorecer a idéia de uma evolução sem qualquer intenção, o que justificaria tamanho desperdício de recursos, só seria possível favorecer a idéia de um planejamento bastante ineficiente, ou seja, não um Deus, mas no máximo um Demiurgo. Mas Behe não está desatento a contra argumentos como esse, tratando de alguns mais adiante em seu livro 4, curiosamente, todavia, ele utiliza a mesma noção anterior de que ainda não temos conhecimento suficiente das coisas para saber se de fato tais características são mesmo indesejáveis ou se não possuem alguma função oculta.

Por fim, o exemplo final de Behe, o da síntese de proteínas, volta à questão de nosso limitado conhecimento sobre o assunto, além do que ele próprio admite que não há uma barreira absoluta que impediria a evolução de construir tais sistemas, mas apenas que as probabilidades de erro seriam muito grandes 5.

Além de tudo isso, Behe ainda incorre no mesmo erro que imputou à ciência evolucionista, e isso exige uma melhor explicação do significado do título de seu livro. Como “caixa preta”, Behe entende um núcleo de mistério, aquele objeto familiar que sabemos para que serve, e que por vezes utilizamos, mas que não sabemos como funciona. A caixa-preta de Darwin em questão seria a bioquímica, um reduto que era inacessível à época da revolução biológica, mas que agora, desvelada, coloca um desafio aparentemente terminal à mesma.

Não é exatamente o mesmo sentido no qual o mesmo termo é usado em língua portuguesa, pois também conhecemos como caixas-pretas, certos dispositivos que registram o histórico operacional de certos veículos, em especial aviões, e cujo funcionamento evidentemente nos é conhecido 6 . E é, nesse sentido, que emprestei ao título deste capítulo o termo “caixas-pretas”, que seriam as linhas de pensamento em sua obra que “monitorando” sua argumentação, podem nos revelar informações interessantes sobre suas pretensões científicas e filosóficas.

Behe afirma que, no passado, acreditava-se que a base da vida era simples7, e somente esse engano permitiu que uma teoria como a evolutiva pudesse ir tão longe. Agora, com as descobertas recentes, teria sido desvendado um horizonte novo que exige um novo paradigma explicativo, e em várias ocasiões Behe ao menos sugere que estamos num estágio relativamente terminal de conhecimento 8.

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Assim, Behe incorre no mesmo engano que imputa aos cientistas do século XIX, subestimar o que ainda não sabemos sobre a vida, que poderá vir a ter grande impacto diante de nossas possibilidades de progresso científico. Ele argumenta, para o incômodo de qualquer cético, como se já estivéssemos definitivamente autorizados a uma constatação decisiva. Mas que surpresas ainda podem nos ser reveladas no futuro? E se descobrirmos, no que hoje ainda é uma caixa-preta, um sistema claro de auto-organização espontânea? De certa forma, a crítica humeana pode ser trazida de volta praticamente sem alterações.

Por outro lado, e por fim, ao longo de todo o livro existe uma estrutura de sustentação argumentativa que está presente a cada passo dado, e que pode ser resumida na expressão “mas como exatamente?” Behe insiste em que o evolucionismo não tem explicações consistentes basicamente porque não pode fazer indefinidamente uma regressão explicativa rumo às menores estruturas concebíveis. Ou seja, porque não podemos explicar algo no mais ínfimo do mais ínfimo dos detalhes, então toda a explicação é suspeita. Ou, por suas próprias palavras:

A bioquímica, portanto lança um desafio liliputiano a Darwin. A anatomia, nos termos mais simples, é irrelevante para se descobrir se a evolução poderia ou não ocorrer no nível molecular. O mesmo acontece com o registro fóssil. Já não importa se há imensos vazios no registro fóssil ou se ele é tão contínuo como a lista dos presidentes norte-americanos. E se há buracos, não importa se podem ser explicados plausivelmente. O registro fóssil nada tem a nos dizer sobre se as interações da 11-cis-retinal com a rodopsina, a transducina ou a fosfodiesterase, poderiam ou não ter se desenvolvido passo a passo. Também não importam os padrões da biogeografia nem o da biologia das populações; tampouco as explicações tradicionais da teoria evolutiva sobre órgãos rudimentares ou abundância de espécies. [32]

Como pode ser visto acima, o que Behe faz nesse parágrafo é pura e simplesmente afirmar que todas as evidências acumuladas por Darwin não são suficientes para justificar a explicação evolutiva porque teríamos que explicar não somente no nível macro e global, mas também no nível micro e específico, e ao longo de seu livro essa afirmação é freqüentemente feita, de que se não explicamos o “exatamente como” algo é feito, então não o explicamos.

O problema é que essa alegação destruiria todas as explicações, porque virtualmente nada poderia ser explicado se exigirmos um nível interminável de detalhamento. Enquanto o bom senso nos diz que afirmar que dirigi um carro até a universidade explica, ao menos em alguns casos, como cheguei lá, o raciocínio de Behe exigiria que eu explicasse exatamente como dirigi esse carro, e ao explicar o método de direção, exigiria que tipos específicos de movimentos meus braços e minhas pernas fizeram, e exatamente como são as reações químicas que movem meus músculos, e como se dá a explosão da gasolina no motor no nível subatômico, fotônico, quárkico, quântico e etc.

Embora seja justa uma reivindicação pelo detalhamento, afinal esta é uma característica central da ciência, isso não significa que uma explicação possa ser descartada porque não se explica especificamente um detalhe num grau sobre o qual ainda pouco sabemos. Se não contestarmos essa falácia de completude, estaremos condenados a um ceticismo que superaria o de Hume, pois a possibilidade de que jamais alcancemos explicações terminais sobre natureza é bastante provável.

Ademais, o mérito de um teoria explicativa está principalmente na funcionalidade de sua explicação, e não no conhecimento dos detalhes materiais. Como exemplo, a Teoria da Gravitação Newtoniana explica funcionalmente a gravidade sem ter qualquer conhecimento de sua específica constituição material, que por sinal continua sendo, até hoje, uma caixa preta. [Adendo em virtude do relevante comentário do professor Paulo Abrantes a respeito da importância funcional da explicação científica.]

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A acusação de Behe, no entanto, poderia ser considerada justa se ele estivesse propondo um novo modelo explicativo que funcionasse. No entanto, ele em momento algum faz isso. Em todo o seu livro é completamente ausente um modelo explicativo, estando presente apenas a idéia de que se deveria pressupor um planejador inteligente.

Há um elefante em uma sala cheia de cientistas que tentam explicar o aparecimento da vida. O elefante é rotulado de “planejamento inteligente”. Para uma pessoa que não se sente obrigada a restringir sua busca a causas não-inteligentes, a conclusão óbvia é que muitos sistemas bioquímicos foram planejados. Eles foram desenhados não por leis da natureza, pelo acaso ou pela necessidade; na verdade, foram planejados. O planejador sabia que aparência os sistemas teriam quando completos, e tomou medidas para torna-los realidade em seguida. A vida na Terra, em seu nível mais fundamental, em seus componentes mais importantes, é produto de atividade inteligente.[195]

No entanto, apesar de defender essa premissa de um modo tão forte, Behe se recusa a aventurar qualquer conjectura sobre esse planejador, e mesmo que tome o cuidado de, no original em inglês, não se referir ao planejador como he, ele curiosamente sempre o trata no singular, e Hume também questionou porque não poderíamos considerar um universo produzido por diversas deidades. Um dos motivos de Behe é até justificável, pois se temos como saber com altíssimo grau de probabilidade quando alguma coisa foi resultado de um arranjo intencional das partes, conforme definição do próprio Behe, de fato não temos como saber com certeza se algo não o foi, pois uma estrutura aparentemente caótica e desorganizada pode ter sido intencionalmente arranjada. Enquanto vemos um quadro de Caravaggio e sabemos que é obra intencional, muitos quadros de artistas abstratos modernos podem se parecer com o resultado da mistura aleatória de cores após um desastre num depósito de tintas.

O próprio Behe admite que uma evidência de planejamento sempre será probabilística, mas adiciona ao mesmo tempo uma hipótese claramente infalseável. Não haveria teste capaz de demonstrar uma não existência de design na natureza, não enquanto estivermos totalmente abertos a qualquer tipo de designer, pois, como disse Hume, poderíamos ter como planejador um ser brincalhão, incompetente ou idiota.

Diferentemente do neodarwinismo, que tem critérios falsificatórios claros, além de impossível de ser testada, a hipótese de um planejador incógnito é completamente inútil para ajudar a explicar qualquer coisa. Para Behe, não é preciso ter um candidato ao papel de planejador, mas sim, apenas reconhecer o planejamento 9, mas que espécie de progresso explicativo isso nos daria?

Em momento algum Behe fornece luz alguma sobre como a pressuposição de design ajudaria a explicar “exatamente como” a vida evoluiu. Isso não nos faria entender melhor o motor bioquímico do cílio flagelado dos protozoários, não nos esclareceria nada sobre a coagulação sanguínea nem traria qualquer avanço no campo da genética. A admissão em larga escala de um planejamento inteligente não mudaria uma vírgula no nosso conhecimento sobre a natureza.

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Mas, enfim, na rota final de seu livro, Behe irá listar por que há tanta resistência à idéia de um planejamento inteligente, e é exatamente aí que entrará em Paley e Hume, e finalmente aponta então qual é o maior motivo para tal resistência: Razões estritamente filosóficas, a priori.

A quarta e mais poderosa razão da relutância da ciência em aceitar uma teoria de planejamento inteligente baseia-se também em considerações filosóficas. Muitas pessoas, inclusive importantes e renomados cientistas, simplesmente não querem que exista qualquer outra coisa além da natureza. Não querem que um ser sobrenatural afete a natureza, por mais curta ou construtiva que essa intervenção tenha sido. Em outras palavras, tal como os criacionistas da vertente Terra jovem, eles assumiram um compromisso filosófico a priori com a ciência, que restringe os tipos de explicações que aceitariam sobre o mundo físico.[245]

De fato, essa conclusão final de Behe é muitíssimo congruente com a principal tese sustentada nesta dissertação. O próprio livro A Caixa-Preta de Darwin pode ser visto como, afinal, apenas mais uma versão sofisticada do argumento do desígnio, um Paley contemporâneo, com a vantagem adicional de ter trocado uma certeza total por uma alta probabilidade.

As “caixas-pretas” do livro de Behe nos revelam uma tentativa de fornecer motivos que convençam não a adoção de um novo modelo de pesquisa, de um novo paradigma ou qualquer forma de teoria, visto que nenhuma é apresentada, mas no fim, como apenas um apelo para que cientistas de todo o mundo admitam que a vida é resultado de intencionalidade. Era esse o objetivo de Paley, que de forma franca também não tinha pretensão alguma de contribuir com o conhecimento científico, mas sim, somente apresentar um novo argumento do desígnio.

Por outro lado, não é possível negar que de fato existem pessoas que utilizam a ciência, e o evolucionismo, como um defensor da tese contrária. Embora não haja nenhum compromisso filosófico fundamental entre a ciência e o ateísmo, há muitos ateus que tentam comprometê-la, o próprio Dawkins é um exemplo típico.

Porém, Behe parece não se dar conta de que ele também assumiu um compromisso a priori, visto que apresenta uma posição forte sobre o tema. Qualquer defensor da intencionalidade ou não-intencionalidade necessariamente terá um compromisso primário a não ser que seja capaz de demonstrar de forma inequívoca a validade de sua posição.

Correm muitas suspeitas, com evidências bastante fortes, a serem discutidas no capítulo final, de que todo o movimento do design, incluindo a obra de Behe, seja resultado de uma ação orquestrada por linhas conservadoras de pensamento que temem a diminuição do teísmo em nossa sociedade. Isso, lamentavelmente, deporia contra a honestidade intelectual dos DIstas. Ainda assim, isso não significa que eles não tenham argumentos a serem considerados, ainda que apenas do ponto de vista filosófico.

Não pretendo nesta dissertação entrar no polêmico mérito de se deveria haver lugar para o design inteligente ou criacionismo nas escolas, apesar de que minha opinião seja obviamente contrária a tais iniciativas. A não ser, é claro, se elas assumirem suas características puramente religiosas ou no máximo filosóficas, visto que todo o livro de Behe nada mais é do que um tratado para um novo argumento do desígnio.

E é nesse sentido que a obra de Behe merece atenção, afinal os argumentos a respeito da existência de Deus provavelmente sempre estarão presentes, e devem ficar cada vez mais sofisticados. A filosofia não pode negligenciar esse diálogo, principalmente quando políticas educacionais tem sido feitas em cima de conceitos que em geral carecem de assistência filosófica.

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1. DARWIN, Charles, [1872] Origins of Species, 6a ed. [1988], New York University Press, p. 154.

2. A Caixa Preta de Darwin, Página 13.

3. Vide capítulo anterior, página 17.

4. A Caixa Preta de Darwin, Página 227.

5. A Caixa Preta de Darwin, Página 147.

6. Dicionário Houaiss, verbete caixa-preta.

7. A Caixa Preta de Darwin, página 8. Esse passado em questão inclui o século XIX.

8. A Caixa Preta de Darwin, é dividido em 3 partes, sendo a primeira intitulada A Caixa é Aberta, onde abundam afirmações como as seguintes:

A última caixa preta restante era a célula, que foi aberta e revelou moléculas – os alicerces da natureza. Mais baixo não podemos descer.[páginas 23]

A bioquímica levou a teoria da Darwin aos seus últimos limites. Fez isso ao abrir a última caixa preta, a célula, permitindo que compreendêssemos como a vida funciona. [página 25]

Para Darwin a visão era uma caixa preta, mas, após o árduo trabalho cumulativo de inúmeros bioquímicos, estamos nos aproximando agora das respostas sobre o olho. [página 28]

9. A Caixa Preta de Darwin, página 199

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COSMOS E CRONOS

Tendo defendido que mesmo as versões mais sofisticadas e cientifizadas do argumento do desígnio podem ser contestadas por Hume, cabe agora analisar uma última abordagem que se opõe ao ceticismo humeano. De fato têm sido comuns movimentos pró design que descem a níveis mais fundamentais da natureza, e visam detectar a ordem intencional não em estruturas, mas nas leis naturais em si.

Antes, é bom explicitar algo em geral pressuposto mas nem sempre explicado. Os argumentos do desígnio em geral são descritos como argumentos cosmológicos ou teleológicos, porém, normalmente eles têm ambas as características. São argumentos que não apenas enfatizam uma simples ordem, kósmos, mas que também propõem uma finalidade, télos, para esta ordem. Em geral, mesmo o cético, naturalista ou ateu, não negam que o universo é ordenado, mas sim se este tem ou não uma finalidade intencional. E se é aparentemente impossível pensar uma finalidade sem pressupor alguma ordem, é aparentemente fácil considerar uma ordem não intencional. Os usuários do argumento do desígnio fazem, então, um abordagem cosmoteleológica, tentando unir ordem e finalidade numa relação indissociável

Richard Swinburne é um defensor contemporâneo do argumento do desígnio, que diferente de Behe e outros adventistas do DI, trabalha assumidamente no campo filosófico. Em sua obra The Existence of God 1 , Swinburne apresenta o argumento da Ordem Temporal, que consiste basicamente em aprofundar mais, e dar um tratamento probabílistico, às questões sobre ordem natural. Como tem sido de praxe, Swinburne também interage com Hume e Paley, e toma o cuidado de construir seu raciocínio de modo a não deixar, ou deixar o mínimo possível, pontos vulneráveis ao ceticismo.

Antes de vermos esse contemporâneo argumento do desígnio, vejamos como Swinburne trata os argumentos de Hume de um modo mais direto e eficiente, ao contrário do que ocorreu a Paley ou mesmo a Behe. Hume apresenta, como pudemos ver no Capítulo 1, em vários momentos de seu diálogo, o argumento de que a ordem evidente no universo não necessariamente seja obra de intenção, podendo ser espontânea e ou uma contingência dentro de um indefinido espectro de possibilidades.

Enquanto os defensores do design vêem a ordem como resultado da ação intencional de uma entidade inteligente, a crítica humeana considera que poderia ser somente um acidente, pois dentre uma infinidade de universos possíveis, a possibilidade de surgimento de um universo como o nosso seria altamente provável, senão inevitável, e se vivemos nos perguntando porque motivo estamos a viver neste universo, isso ocorre apenas porque podemos perguntar isso.

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Caso os fatores fortuitos não tivessem levado ao nosso surgimento, simplesmente não existiríamos, e se tal surgimento é apenas uma possibilidade entre milhões de outras de não termos surgido, isso não deveria ser um fato tão impressionante tanto quanto não o é, numa escala global, que alguém em algum lugar ganhe um prêmio na loteria, ainda que para esta pessoa, seja um evento de altíssima importância que possa ser atribuído à ação de um santo padroeiro ou de uma magia de religião animista, ao invés de à simples sorte.

Dessa forma, podemos entender que o surgimento da vida, a evolução e o advento de nossa inteligência, por mais singulares e impressionantes que sejam, podem, numa escala universal, ser reduzidos a uma mera ocorrência isolada, extremamente significativa para nós, mas praticamente insignificantes para o âmbito de todo o cosmos.

Nossa existência como seres intencionais seria um fato bruto, possivelmente inexplicável em termos de significado, e que inevitavelmente ocorreria num infinito horizonte de possibilidades. Tal idéia não é nova, pois já foi aventada pelos atomistas gregos, no entanto assume um apelo maior em vista da amplitude atual de nosso conhecimento sobre universo. Atualmente esse tipo de raciocínio costuma ser chamado de Princípio Antrópico, podendo ser entendido como uma forma de afirmar que nossa existência só tem tamanha significância, e só aparente exigir uma explicação forte, porque vemos tudo de acordo com o nosso ponto de vista. Seria um último baluarte de nosso ego ptolomáico. Uma vez despidos de nosso insistente apego a uma importância central no universo, a questão da origem e significado de nossa existência poderia recair para a insignificância.

O princípio antrópico oferece, então, uma outra forma de vermos as aparentemente inacreditáveis contingências simultâneas que tornam nossa vida possível. Podemos enumerar centenas de parâmetros químicos, físicos, geológicos e astronômicos específicos dos quais bastaria que um único faltasse para nossa existência não ser possível. Quase uma complexidade irredutível cósmica, para tomar emprestado a terminologia de Behe. Porém, uma quantidade inumerável de universos permitiria que essas centenas de parâmetros ocorressem inúmeras vezes, em inumeráveis formas, até que uma delas tivesse a feliz configuração de emergir nossa história.

Richard Swinburne, no entanto, argumenta que a postulação de uma infinidade de universos em substituição a um Deus seria uma violação do princípio de parcimônia, pois:

Entretanto, seria o cúmulo da irracionalidade postular inumeráveis universos apenas para explicar as particularidades de nosso universo, quando podemos fazê-lo postulando apenas uma entidade adicional - Deus. Ciência requer que postulemos a mais simples explicação a partir dos dados, e uma entidade é mais simples que um trilhão.[The Existence of God, página 165]

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A existência de Deus, enfim, seria mais provável, pois seria a hipótese mais simples. A preferência pela simplicidade se justifica devido a uma possibilidade mais simples ter maior probabilidade de ocorrer do que uma mais complexa. Tirar um 4 no lançamento de um dado é mais provável do que tirar especificamente uma sequência de 4 e 2. Swinburne aproveita para defender a idéia de um Deus com os atributos clássicos da teologia, principalmente a unicidade, pois isto mantém a hipótese reduzida a uma só entidade, ao invés de várias, como certas intervenções de Hume sugerem. Propõe, além disso, os demais atributos clássicos da divindade, como onipotência, perfeição, onisciência e etc.

Cabe aqui, todavia, o questionamento de se a postulação de tal entidade única seria mesmo uma hipótese mais simples do que a postulação de infinitos universos.

Em primeiro lugar, podemos apontar que apesar de tal unicidade, esse Deus seria uma entidade de propriedades infinitas, potências e poderes ilimitados, e possivelmente equivalente à postulação de infinitos universos. Trocaríamos “infinitos” por “infinito”, ou, de um conjunto infinitamente grande de entidades que em si são finitas, por um conjunto de uma única entidade infinita.

Ademais, não é necessária a postulação de infinitos universos para sustentar a possibilidade humeana, bastaria uma quantidade imensa e indefinida, mas finita, e por outro lado, o Deus proposto por Swinburne é irrevogavelmente infinito.

Além disso, ocorre que temos a evidência factual da existência de um universo. Se existe um, é possível que haja mais de um. Em contrapartida, não temos evidência factual da existência de Deus, assim, é muito questionável que postular a existência de algo para o qual não temos evidência seja mais econômico, ou mais prudente, do que postular a existência de uma miríade, ou mesmo uma infinidade, de entidades para as quais temos ao menos uma evidência concreta.

Podemos também reduzir a idéia de uma multiplicidade de universos a uma idéia de um Multiverso, ou apenas admitirmos instâncias de Universos. Nosso universo poderia ser perpétuo, constantemente se recriando, ou mesmo infinito em si. Caímos então na idéia de que tudo indica ser necessária a postulação do infinito em algum grau, pois o universo sempre existiu, ou passou a existir, e se assim foi, tem que ter provido de algo pré-existente, quer seja um prévio universo, uma divindade ou um Caos.

Mesmo nesse caso, insistiria ainda a mesma vantagem para a infinitude essencial do universo em detrimento da infinitude essencial da divindade, que é o fato de haver clara evidência para a primeira, mas não para a segunda. Ainda que de uma certa forma, postular tal infinitude universal seja recorrer a uma hipótese explicativa sem apoio empírico, há bons motivos para afirmar que Deus e um universo infinito sejam ao menos equivalentes em termos de simplicidade.

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Mas a abordagem principal de Swinburne é realmente bem mais versátil. Começa por fazer distinção entre dois tipos de ordem, a Espacial e a Temporal, e advoga que a discussão clássica costumou enfatizar a ordem espacial, isto é, a disposição dos objetos em uma configuração ordenada. Assim foi formulado o argumento do relojoeiro, e assim Tomás de Aquino colocou seu argumento cosmológico. Porém, essa ordem depende de uma outra ainda mais essencial, que envolve a noção de temporalidade, que embora tenha sido historicamente presente, recebeu pouco tratamento por, possivelmente, a ordem espacial parecer suficiente, visto que antes de Darwin era difícil imaginar uma explicação melhor para sua ocorrência. Ademais, a ordem espacial pode ter parecido auto-evidente, por desta depender a ordem espacial.

O argumento da ordem temporal, segundo Swinburne, afirma que a evidência do ordenamento é mais forte não nas estruturas espaciais naturais, mas nos processos naturais que permitem essas estruturas, ou seja, as regularidades e leis naturais. É nessa temporalidade que entra a questão da finalidade, pois não basta a simples existência de uma ordem imediata, mas sim a pressuposição de uma intenção anterior, um projeto prévio, que tinha como objetivo produzir uma estrutura ordenada com vista a um fim, resultando então no design. É basicamente essa a formulação de Tomás de Aquino para sua Quinta Via, conforme Swinburne aponta, porém, aponta também suas limitações e, mais uma vez, sugere uma solução probabilística.

A quinta via de Aquino ou qualquer outro argumento, pode ser um bom argumento dedutivo. Pois, ainda que a premissa seja indubitavelmente correta - uma vasta ordem característica permeia o mundo – o passo da premissa para a conclusão não é uma dedução válida. Mesmo que a existência de ordem possa ser uma boa evidência de um designer, é certamente compatível com a não existência de um – e é dificilmente uma verdade lógica necessária que toda ordem é produzida por uma pessoa. E, ainda, como tenho apontado, a suposição de que uma pessoa é responsável pela ordenação do mundo é muito mais provável e mais simples que a suposição de que muitas pessoas o sejam, ainda que esta última suposição seja logicamente compatível com os dados.[The Existence of God, página 155]

Podemos notar que as críticas de Hume enfocaram a ordem espacial, bem como trata em conjunto os fatores cosmológicos e teleológicos, mas no que se refere a temporalidade, Hume estende ainda mais a questão, pois a presença de ordem poderia ser explicada por contingências regulares que remetem a um passado ainda mais remoto, como a própria origem do nosso universo. Da mesma forma, a teoria da evolução trabalha com o tempo como um fator importante na formação da ordem evidente na natureza. A capacidade auto organizatória da matéria poderia ser recuada indefinidamente, pois de um modo ou de outro, sempre se assenta na capacidade prévia das estruturas mais fundamentais da natureza em operar sob algum grau de ordem.

Tais fatores de ordem no entanto, destaca Swinburne, ainda exigem algum tratamento, pois se o design é explicado pela ordem intrínseca, o que explica esta ordem em si?

Na realidade, como vimos no Capítulo 1, o próprio Paley já havia colocado que a admissão de uma ordem natural não tornaria desnecessária a existência de um ordenador 2 , pois pareceria óbvio que tal ordenação só poderia ser intencional, ainda que Hume não pensasse assim. Porém, o grande triunfo do darwinismo foi exatamente a idéia de que uma ordem incipiente, e bastante simples, poderia, mediante um grande período de tempo, produzir todo um design aparente. O mecanismo de Darwin, que seguramente não fora previsto nem por Hume nem por Paley, se mostrou suficientemente poderoso para enfraquecer a tese de que um simples arranjo espacial exigiria a existência prévia de um projetista.

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No entanto, se o progresso da ciência permitiu a concepção de uma idéia que tornasse uma ordem espontânea mais plausível, também permitiu a Swinburne ir ainda mais longe no questionamento sobre essa ordem, pois ele identifica, baseado em conhecimentos científicos recentes, que há vários níveis de ordem num espectro de graus de leis naturais os mais variados. Swinburne observa que ao afirmar que propriedades intrínsecas da matéria permitem o surgimento de vários níveis de ordem, não se pode esquecer que tais propriedades também precisam ser explicadas.

Tal explicação, todavia, não poderia ser obra da ciência, pois esta utiliza as leis para explicar a natureza, e tem como objetivo exatamente descobrir, nos níveis mais fundamentais, quais são e como funcionam estas leis. Essa regressão nomológica terminaria por chegar a um grupo de leis fundamentais, que só poderiam ser explicadas filosoficamente.

O argumento da ordem temporal tem o mérito de ir mais longe do que Hume na questão, porém sua resistência à crítica cética não está em sua estrutura conceitual, mas sim em seu tratamento probabilístico, pois Swinburne mais uma vez traz a tona à importância da economia de hipóteses.

Segundo Swinburne, para funcionar, o universo necessita de uma quantidade indefinida de leis, porém num universo sem Deus tais leis tenderiam a ser muito mais complexas e em quantidade maior. Tal observação pode até mesmo ser comparada à questão da complexidade excessiva vista no capítulo anterior 3 , onde notamos que as leis cegas da natureza atingem certos objetivos sem intenção, e dessa forma podem fazê-lo por meios tortuosos, com um gasto excessivo de recursos.

Swinburne deixa bem claro que:

... é a priori improvável que um universo sem Deus seja governado por leis simples, mas é significativamente provável que um universo criado por Deus seria governado por leis simples.[The Existence of God, página 166]

A argumento reforça ainda mais a vantagem de considerar hipóteses com entidades, no caso as leis, menos numerosas, e de fato é fácil ver apoio histórico científico para esta tese de Swinburne, pois os modelos filosóficos propostos para explicação do universo, como o de Platão, Descartes ou Espinosa, que pressupunham intenção subjacente, são significativamente mais simples que os modelos científicos atuais, desprovidos de intenção, e que a cada dia parecem crescer em complexidade e leis nos mais diversos âmbitos.

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Sem dúvida podemos lançar mão aqui do mesmo questionamento de se tal universo seria de fato mais simples, uma vez que tem um ser com atributos de infinitude, mas aparentemente há um trunfo no argumento da ordem temporal, que é a virtual impossibilidade de o universo ser auto explicativo caso essa regressão de leis ocorrer da forma postulada, o que deixaria a explicação sempre para além da ciência. Uma vez entrando no terreno metafísico, uma explicação teológica teria maior similaridade com uma explicação filosófica do que teria como uma científica. O grande mérito de Swinburne, muito provavelmente, é deixar claro que sua abordagem não tem pretensões científicas, mas sim filosóficas, diferente do que faz Behe, os DIstas e criacionistas.

Além disso, o tratamento probabilístico, pois Swinburne nunca ousa afirmar que provou a existência de Deus, torna seu raciocínio inatacável pela abordagem humeana, pois lembremos que Hume nada tem contra conjecturas e hipóteses, mas sim contra as provas e certezas. Ao evitar a certeza, Swinburne escapa de Hume.

Por outro lado, ao enfraquecer seu argumento do desígnio, Swinburne não poderia deixá-lo meramente como uma alternativa explicativa equivalente, por isso lança a idéia de que um universo com Deus é mais provável do que um sem Deus, por sua maior simplicidade nomológica, e por admitir um fim explicativo no próprio universo, fim este que se realizaria além do universo. Enquanto que na tese oposta, o universo teria que ter um fim em si mesmo, fim este que parece insistir em se manter obscuro, como um mero fato bruto.

De certa forma, porém, o argumento da ordem temporal poderia ser considerado como uma releitura sofisticada de Paley, apenas enfatizando com mais intensidade que a ordem para explicar o design não nos exime de explicar essa mesma ordem. E nesse sentido é inevitável ver uma limitação na explicação naturalista, pois esta não parece capaz de explicar tal ordem em si, a não ser como um resultado de mera emergência espontânea e aleatória. Uma explicação que, ainda que provável, sempre enfrenta uma resistência, visto que preferimos antes explicações causais do que casuais.

Contudo, devemos lembrar que ao postular uma divindade, podemos finalizar a explicação do universo, porém também não poderíamos explicar a explicação em si, que é a própria divindade. E a propriedade desta ser supostamente auto explicativa tende a nos levar de volta à possibilidade de se o universo também não poderia sê-lo.

Apesar disso, ainda parece possível defender a idéia de uma divindade como entidade simples, se, é claro, não adicionarmos a ela atributos que nos foram arbitraria e culturalmente legados por nossas tradições. Tal divindade poderia ser constituída de uma única “lei”, uma vontade pura, por meio da qual tudo se realiza. Ao criar o universo, simplesmente teria desmembrado essa lei primordial em uma série de leis secundárias que viriam a sustentar sua criação. E suma, poderíamos reduzir tal entidade em “Intenção Pura”.

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No entanto, essa digressão não parece aplicável ao argumento da ordem temporal, pois parece notório também que talvez a maior vulnerabilidade do argumento de Swinburne seja não a postulação de um Deus em si, com o qual ele justifica a intenção como uma explicação comum de vontade pessoal. A dificuldade maior são os atributos deste Deus. Não fosse sua perfeição e sua onipotência, ou mesmo sua específica unicidade, curiosamente interceptada pela confusa trindade, talvez tal divindade fosse menos sujeita a críticas como a dúvida a respeito de sua simplicidade, pois uma vez que se pretendia postular um princípio mais econômico para explicação fundamental do universo, não soa prudente passar a emprestar certos atributos a tal divindade. Pode ser defensável que ao menos alguns atributos do Deus da teologia tradicional sejam compatíveis, ou mesmo espontaneamente derivados de uma unicidade simples, mas seguramente não todos esses atributos. E como foi frisado algumas vezes ao longo desta dissertação, as evidências de ordem sugerem muito mais o trabalho de um artesão imperfeito do que um perfeito, no que Hume concorda 4 .

Uma divindade limitada, ou várias com poderes restritos ainda que muito amplos, poderia explicar melhor um universo com tantas aparentes faltas. Ficaríamos livres das questões relativas à ética e bondade, que também ocupam Swinburne, bem como ficaríamos libertos do problema do determinismo, pois a liberdade de ação humana só seria plausível num universo com interação parcial de caos e ordem. Do contrário, numa ordem suprema, que deriva da idéia de um Deus onipotente, qualquer liberdade seria ilusória, e por outro lado, num caos supremo, ainda que haja uma aparência de ordem, todas as nossas ações seriam resultado de uma flutuação acidental de entidades caóticas, anulando nossa liberdade num indeterminismo quântico. [Ver minha monografia DEUS ME LIVRE, para maiores detalhes sobre como a aleatoridade pode destruir a liberdade.]

No entanto, Swinburne, bem como muitos outros defensores do desígnio, não parece disposto a defender uma divindade que não seja claramente comprometida com a religião tradicional. Alguns motivos podem ser justificados, como a existência de amplos sistemas teológicos capazes de fornecer boas explicações para problemas filosóficos, dando respostas amplamente aceitas para os dilemas existenciais de muitas pessoas. Por outro lado, não podemos esquecer que todas essas teologias também trazem problemas intrínsecos que, independente de sua adequação às evidências científicas, são de difícil solução. Como as questões da Teodicéia ou o problema do Livre-Arbítrio.

Esse apego ao tradicional também pode, de algum modo, ser inferido de Behe, apesar de seu silêncio sobre o projetista. Se há de fato uma pretensão científica de uma teoria de planejamento, não parece concebível que se poderia ser completamente omisso quanto à ao menos algumas características deste planejamento, em especial as que poderiam ser inferidas dos projetos que seriam latentes na natureza. Afinal, se uma teoria de design pretende auxiliar no progresso científico, tem que, de alguma forma, acrescentar elementos explicativos, bem como hipóteses e previsões testáveis. Seria possível, em tese, que partindo dos dados existentes, formulássemos a idéia de um planejamento com certas características, e que evidentemente delineariam algo sobre o planejador, e então gerarmos previsões testáveis, que só seriam possíveis mediante hipóteses relativas a essa delineação. Poderiam mesmo ser propostos modelos, mesmo que parciais, para o designer, a fim de serem selecionados por novos dados posteriores.

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Algumas dessas possibilidades já foram até mesmo parcialmente aventadas por cientistas importantes como Freeman Dyson ou Francis Crick 5 . As evidências nos apontariam para um plano inteligente, porém limitado, talvez uma inteligência extraterrestre (descrição que também se aplica ao Deus tradicional), o que manteria a teoria restrita ao campo do naturalismo. Essa possibilidade, que também é rapidamente abordada por Behe, ainda que não sem um pouco de ironia, pretende escapar das dificuldades relativas ao surgimento espontâneo da vida em nosso mundo, pois a vida poderia ter surgido em outro local com melhores condições, e então ter sido espalhada para nichos menos favoráveis. Ou poderíamos pressupor uma divindade imperfeita, um demiurgo, o que explicaria a imperfeição do design, o problema do mal e todas as demais limitações.

Assim sendo, porque o silêncio dos DIstas sobre o planejador? Fica difícil não concluir, ao ver sua relutância em falar sobre o designer e ao mesmo tempo sua pretensão de que se admita generalizadamente um desígnio, que estejam no fundo apenas querendo um endosso da ciência para suas convicções religiosas. Uma aceitação tácita de que há um planejamento inteligente no universo, se talvez fosse inócua no campo científico, sem dúvida causaria um reforço grande no fôlego das religiões e teria grandes repercussões psicossociais, que por sua vez viriam a indiretamente afetar a ciência.

Se hoje muitas pessoas oscilam entre abraçar ou não uma religião, e parte desses motivos seja relativo a suas relações com a ciência, um endosso científico a respeito de um universo deliberadamente planejado sem dúvida empurraria muitos indecisos às religiões, pois isso implicaria praticamente decretar a vitória do argumento do desígnio, e oferecer uma “prova” científica da existência de um planejador que facilmente seria confundido com os deuses das religiões tradicionais.

O comportamento dos defensores contemporâneos do desígnio em geral parece muito apologético. E se tem havido muitos Paleys atuais, e muitos anti-Paleys, estranhamente tem faltado alguns Humes.

O motivo pelo qual um ceticismo neutro sempre aparece menos do que os extremos antagônicos, é mais um dos temas que serão comentados ao final desta monografia.

__________________________________

1.SWINBURNE, Richard. The Existence of God - Second Edition. Oxford University Press, USA, New York, 2004. As traduções são de minha autoria.

2.Capítulo 1, página 20.

3.Capítulo anterior, Página 26

4.Diálogos Sobre a Religião Natural, Parte 5, em especial nas páginas 74 e 75.

5.DYSON, J F [1966] The Search for Extraterrestrial Technology, em Perspectives in Modern Physics, org. R.E Marshak, John Wiley and Sons, Nova York, p643-4 CRICK, F.H.C., e L.E.Orgel [1973], “Directed Panspermia”,Icarus, 19, p.344.

6.A Caixa Preta de Darwin 249

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CONCLUSÃO

Fica notória que a discussão, afinal, gira em torno de dois conceitos fundamentais. Ordem e Intencionalidade. Pareceu evidente, ao longo da história do pensamento ocidental, que a ordem só poderia ser explicada mediante a intenção. No entanto, após muito acúmulo de conhecimento ordenado, hoje podemos aventar o inverso, de que a intenção possa ser explicada mediante a ordem.

Enfim, podemos reduzir a questão ao dilema: o que surgiu primeiro, ordem ou intenção?

A segunda é a resposta dos teístas, na qual somente um ser inteligente poderia implementar um universo ordenado, a primeira a dos naturalistas, na qual o advento da inteligência é resultado, necessário ou contingente, de um universo ordenado.

Ambas as opções admitem a dissociação. Tanto um ser intencional poderia gerar um universo desordenado, quanto um universo ordenado também poderia não gerar intencionalidade. De fato, temos intencionalidade e não-intencionalidade, assim como temos ordem e caos.

As duas opções tem suas vantagens subjetivas. Uma pura ordem prévia não nos coloca perante uma inteligência desconhecida e para muitos incômoda, e parece nos fornecer mais chances de entender, explicar e mesmo controlar o universo. Uma intenção prévia não nos coloca à solta num mundo sem significado, nem nos deixa com a difícil questão de como surgiu a intencionalidade, e ainda pode nutrir esperanças para alguns de nossos dilemas existenciais mais profundos.

Antes de prosseguir, contudo, e considerando a importância dos termos para um bom desenvolvimento deste capítulo final, podemos estabelecer que como ordem, estamos afirmando nada mais do que um estado de coisas que pode ser racionalmente entendido, inteligível ou ao menos apreendido. Um amontoado aleatório e caótico de coisas não pode ser por nós compreendido, não faz sentido e não evoca significados a não ser a partir do momento que começamos a ordená-lo. Quando ligamos um elemento ao outro, de um modo consciente ou não, passamos a estabelecer relações que são, em algum grau, racionais e inteligíveis.

Ademais, podemos dizer que só podemos perceber, representar e descrever aquilo que é ordenado. Nossos sentidos precisam separar suas impressões para que elas sejam discerníveis. Um objeto totalmente vermelho num fundo totalmente vermelho do mesmíssimo tom não pode ser visto, é preciso algum tipo de relação perceptível entre eles.

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Reforçando a noção grega de "cosmos", temos que esta ordem é uma disposição de coisas com alguma harmonia, que nos permita uma relação com ela. Temos cima e baixo, quente e frio, e toda uma relação de conceitos contrastantes que permitem uma representação de mundo. Ao conceito de ordem/cosmos, opõe-se o conceito de caos, que, em sua versão extrema seria exatamente onde todos os elementos estão misturados numa dissolução indistinguível. Uma boa ilustração é a das cores. Há ordem maior quando há cores distinguíveis em espaços que podem ser melhor percebidos, ordem menor quando as distinções são mais difíceis de serem organizadas em conceitos inteligíveis. Dizemos que há uma confusão nas cores todas misturadas de modo desprovido de qualquer linha geométrica, e, por analogia, diremos que há um caos total quando todas as cores estiverem fundidas num único e homogêneo tom, situação na qual nenhuma descrição pode ser feita no âmbito interno desta cor.

Por outro lado, entendemos como intenção nada mais do que a noção mais imediata de “objetivo que se tem em vista”, a propensão a algo. Em termos de filosofia mente, podemos entender a Intencionalidade como “direção a algo”, sem as demais complicações que o termo costuma ter na filosofia da linguagem.

Com isso esclarecido, podemos ainda recolocar a questão de uma outra forma: somente a intenção pode gerar ordem? Ou a ordem pode gerar a si própria?

A extensa discussão a respeito do argumento do desígnio nos mostra que não podemos obter uma resposta definitiva a esta questão, e isso se reflete na escolha aparentemente subjetiva que fazemos ao adotarmos e defendermos uma resposta. Veremos em seguida, uma situação que revela o grau de força de nossos motivos passionais, e o modo como eles podem afetar nossa sociedade.

DESIGN INTELIGENTE E (É?) CRIACIONISMO

Para muitos evolucionistas, o DI seria o quarto estágio evolutivo da campanha iniciada por precursores como Willian Jennings Bryan, que em 1925 protagonizou o famoso caso Scopes 1, também conhecido como “Julgamento do Macaco”, no qual o professor John Scopes aceitou desafiar a proibição legal do ensino de evolucionismo nas escolas. Proibições como esta, estavam presentes, além do estado do Tennessee, em ao menos outros quatro estados do sul dos E.U.A, situados no dito Bible Belt, a região de maior conservadorismo norte-americano.

Bryan, que teve notável carreira política, foi o advogado de acusação do julgamento, propositalmente desencadeado pela American Civil Liberties Union que pretendia expor o caso e levar adiante uma contenda jurídica, afim de provocar o reconhecimento de absurdo de tal lei estadual. Em defesa de Scopes, a associação convocou o advogado agnóstico Clarence Darrow, o que resultou num episódio jurídico que marcou a história americana.

Embora Scopes tenha, tecnicamente, perdido a causa, e condenado a pagar uma multa irrisória que posteriormente seria anulada em outro julgamento, a ACLU conseguiu seu objetivo, e a má repercussão do caso para as frentes cristãs fundamentalistas, que foram vistas como retrógradas, terminou por quase anular os efeitos da proibição, e na década de 1960 todas as leis similares foram revogadas.

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Foi esse, então, o primeiro estágio da contenda entre religião e ciência em torno do evolucionismo. O segundo, quando a proibição já não era mais possível, foi a criação do Criacionismo "Científico" e sua reivindicação de tempo igual com o Evolucionismo em aulas de biologia, que se deu exatamente a partir de 1950. Após várias tentativas de pouco sucesso, foi criado o Creation Research Society, liderado por um engenheiro hidráulico, Henry Morris, e um PHD em bioquímica, Duane T. Gish, contando ainda com a colaboração de um teólogo, John C. Whitcomb, que com o auxílio de Morris, havia publicado sua monografia de doutorado em teologia, uma defesa da factualidade do dilúvio universal bíblico.

Atualmente conhecida como Institute for Creation Research, esta organização foi o pólo de desenvolvimento desta nova “ciência” que alicerçou quase todas as demais iniciativas criacionistas do século XX, e protagonizou outros episódios jurídicos, quando os criacionistas tentaram, na justiça, obter espaço nas escolas públicas para ensinar suas doutrinas em tempo igual com a teoria evolucionista. Após anos de degladiações, o caso foi encerrado na Suprema Corte em 1981, com resultado desfavorável aos criacionistas, num julgamento que envolveu o filósofo da ciência Michael Ruse, peça fundamental na derrocada da proposta criacionista 2.

O terceiro estágio desta investida religiosa, quando a última iniciativa também falhou, foi uma sofisticação do primeiro estágio. Tentar provar que o Evolucionismo não era ciência, mas sim um tipo de religião disfarçada, como ficou provado que o Criacionismo era, e dessa forma, invocando a mesma premissa legal que derrubou a "Ciência" da Criação, tentar derrubar o ensino de Evolução Biológica, mais uma vez, tornando-o ilegal.

Os criacionistas produziram muitos manuais, bem mais sofisticados que os primeiros livros de “ciência” da criação, que argumentavam que a teoria evolucionista não tem respaldo científico, sendo um tipo de construção ideológica com vista a difundir materialismo e ateísmo. Muitos de seus argumentos se baseiam em filosofia da ciência, em especial no problema da demarcação entre ciência e não ciência, e outros criticam o pressuposto naturalista científico.

Desta vez a iniciativa não chegou sequer ao campo jurídico, e embora ainda muito difundida, não foi capaz de ressuscitar a proibição do evolucionismo. Assim, o quarto estágio desta investida anti-evolucionista seria também uma sofisticação do segundo, tal como o terceiro fora uma sofisticação do primeiro. Uma nova "alternativa" ao evolucionismo, desta vez não a grosseira “ciência” da criação, mas algo muito mais elaborado, que seria o Design Inteligente, ou simplesmente DI, muito mais afastado de qualquer mácula religiosa e muitíssimo mais articulado cientificamente.

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Já contando com mais de 10 anos de atividade, o DI, entretanto, vinha conseguindo escapar com relativa eficiência das acusações de ser uma nova roupagem do criacionismo, e se manter parcialmente à margem dos grupos religiosos, que tentam se aproximar, mas em geral tendem a ser evitados pelos DIstas. Dessa forma, havia motivos para ser cético sobre esta possibilidade, do DI ser o novo movimento criacionista, que poderia ser considerada como um tipo de teoria conspiratória dos evolucionistas. No entanto, já há alguns anos tem circulado entre os grupos evolucionistas na internet uma evidência de que essa acusação seja de fato correta, trata-se do texto The Wedge Strategy 3, que seria o programa de lançamento do movimento que viria a resultar no DI, programa este secreto, mas cujo texto teria vazado, texto este que é de cunho fundamentalmente moral e teísta, e inicia-se com um parágrafo que diz:

A proposição de que os seres humanos são criados à imagem de Deus é uma das pedras fundamentais nas quais foi construída a civilização Ocidental. Sua influência é percebida na maioria, se não em todas, as grandes conquistas ocidentais, incluindo democracia representativa, direitos humanos, livre iniciativa e progresso nas artes e ciências. [Tradução minha.]

Segue então afirmando que tal concepção está sob ataque do Materialismo, reforçado por Darwin, Marx e Freud, que é um movimento que leva à irresponsabilidade social, distorções na justiça criminal e falsas promessas de progresso. Tomar conhecimento deste documento pode ser tão espantoso que é difícil acreditar que seja real, o que possibilitaria a desconfiança de ser um tipo de falsa evidência, dado o tom do texto ser uma admissão flagrante de uma iniciativa conspiratória em uma linguagem que remete a uma novela ficcional.

A texto elabora um plano estratégico que envolve a produção de manuais teóricos, sua divulgação e popularização, e a promoção de cursos e eventos, até, por fim, uma iniciativa abrangente que envolvesse toda a mídia de massa, instituições de ensino de todos os níveis e instituições científicas, e curiosamente, os prazos estimados conferem com as publicações principais do movimento do DI.

O texto foi associado ao Discovery Institute, uma instituição que afirma ser voltada para o desenvolvimento da ciência e do pensamento e do qual Michael Behe e Willian Dembsky, talvez os maiores DIstas da atualidade, fazem parte. Apesar do peso desta evidência, ainda seria plausível que o instituto em questão não reconhecesse tal documento, e que o mesmo seria sempre visto como uma tentativa evolucionista de desacreditá-lo, e ao DI. No entanto, numa busca utilizando sítios de procura na internet, é possível localizar um outro texto denominado The "Wedge Document": So What? que é uma resposta à publicação, aparentemente indesejada, do texto original, fazendo uma defesa, reafirmando suas convicções mas, porém, tentando minimizar o impacto do teor conspiratório.

O que mais chama a atenção é o fato do texto estar no próprio sítio do Discovery Institute, porém sem ser diretamente acessível pela navegação normal, e só sendo encontrado mediante “garimpagem de dados” via sítios de procura.

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Diante destes dados, fica muito difícil negar a afirmação de que o DI seja, de fato, o quarto capítulo da história da cruzada anti-evolucionista, e que sua iniciativa não tenha nenhuma pretensão realmente científica e sequer filosófica, mas pura e simplesmente uma abordagem teológica apologética, um tanto menos radical que o criacionismo, sem dúvida, mas ainda assim uma atitude discutível do ponto de vista ético.

Entretanto, há outro fator a se considerar. O DI atraiu uma outra parcela de público que a princípio nunca se identificou com o criacionismo, visto que a grande maioria da população acredita em algum tipo de divindade, mesmo não professando nenhuma religião específica, não é de se admirar que uma proposta que viesse argumentar em linha aparentemente científica ser o universo algo planejado, no mínimo será recebido de forma pacífica pela opinião pública. Nesse sentido, é bom lembrar que muitos adeptos do DI, possivelmente por ingenuidade, acabaram se envolvendo com um movimento do qual não suspeitavam das reais intenções.

É bem provável que não teria sido possível aprovar, por exemplo, o ensino de Criacionismo “Científico” na escolas públicas do Rio de Janeiro, e só foi porque boa parte da opinião pública não associa DI a criacionismo.

Literalmente, o DI não seria de fato criacionismo devido a não advogar, a princípio, a idéia de uma criação, sendo então um tipo de Evolucionismo Teísta, tipo de idéia bastante difundida no Brasil em especial entre os adeptos do Kardecismo. No entanto, num sentido largo, é justificável afirmar que o DI seja “Novo Criacionismo”. Porém, o que importa é que, criacionismo ou não, o DI, bem como o criacionismo, são necessariamente fundamentados no Argumento do Desígnio. O motor conceitual de toda a sua articulação. E nesse sentido, tem argumentos cosmoteleológicos legítimos, que podem ser abordados filosoficamente.

ORDEM E INTENÇÃO

A grande pergunta que se levanta seria, então: quais motivos levam pensadores, intelectuais, artistas e cientistas a se comprometerem com iniciativas deste tipo? Qual sua intenção? A religião seria uma resposta apenas parcial, visto que a maioria dos religiosos não promove ações deste tipo, ações que, ademais, parecem incompatíveis com os preceitos éticos da própria religiosidade.

Sem adentrarmos as questões sociais e psicológicas envolvidas nessas disposições, é relativamente fácil detectar posicionamentos muitos fortes nas questões relativas à ordem na natureza. Notamos tais posições envolvidas com preocupações diversas a respeito do resultado de uma aceitação em larga escala de tal ou qual postura, apenas decidível subjetivamente.

Se os autores do Wedge Strategy parecem sinceramente preocupados com o resultado de uma ampla aceitação de uma postura que não reconhece a intenção na natureza, muitos opositores tem a preocupação contrária, sobre problemas advindos de uma disseminação excessiva de idéias teístas na sociedade. É bem verdade que essas vertentes se confundem, sendo muito difícil isolá-las de modo claro, mas é perceptível o que o pano de fundo histórico pode ser usado em acusações mútuas sobre as consequências político sociais que envolvem ambas as linhas de pensamento.

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Mas se não podemos sequer ter uma certeza objetiva sobre essas grandes questões, de haver ou não haver deuses, de haver ou não intenção, porque forças tão grandes são movidas por essas crenças?

Uma explicação que teríamos seria a de, mais uma vez, Hume, que afirmou que a razão não pode ser nem pretender ser mais nada que uma escrava das paixões. A razão seria de certa forma passiva, podendo ser utilizada em quaisquer direções, sempre a serviço de motivações subjacentes e fundamentalmente irracionais, de instâncias mentais aparentemente perdidas num mar de significações possivelmente caóticas.

É neste dilema, entre uma razão ordenada e um substrato psicológico aparentemente caótico, bem como numa natureza intencional em contraste com uma instância possivelmente a-racional, que podemos fazer algumas considerações finais.

Somos seres racionais e intencionados, estamos sempre atribuindo significações ao mundo em que vivemos, e não é incoerente que o façamos a níveis que extrapolam nossas percepções. Daí resultam nossas concepções a respeito de mundo, quer sejam filosóficas, científicas ou religiosas. No entanto, há uma atitude comum totalmente fundamental a nossas operações cognitivas, e presente até mesmo nos animais.

Trata-se de uma premissa de que o mundo é regular, de que eventos que hoje ocorreram de tal forma, tendem a ocorrer de forma similar. Sem essa premissa, toda e qualquer ação seria impossível. O mecanismo Desejo-Crença-Ação pressupõe, à base de crenças, que o mundo reagirá de forma similar ao que temos experiência. Disso desenvolveu-se nossa crença fundamental que o mundo a nossa volta é racional, ou ao menos racionalizável. Que pode ser entendido ao menos até certos níveis razoavelmente avançados.

Como o ceticismo humeano, entretanto, sugeriu, nada garante essa premissa de regularidade. Nós apenas temos por hábito esperar o semelhante do semelhante, mas o que pode garantir que essa regularidade é sequer durável? Porque pressupomos em níveis tão elevados esta ordem, a ponto de afirmar a inflexibilidade das leis naturais ao longo do tempo e do espaço? E afinal, será que o universo é realmente ordenado?

Se considerarmos que nosso planeta tem o máximo grau de ordem, e complexidade, que conhecemos, essa “quantidade” de ordem maior é praticamente desprezível em comparação à quantidade de ordem menor que parece predominar em outros planetas e estrelas. E mesmo considerando a ordem aparente dos sistemas estelares, com seus ciclos orbitais e suas leis astrofísicas, temos o interior das massas estelares que em geral superam em quantidade bruta, toda a massa ordenada que a circunda, e nessas estrelas temos basicamente elementos químicos os mais simples possíveis, dissolvidos num matriz fundamentalmente caótica..

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A ordem que conhecemos e entendemos parece ser uma ínfima parcela de um universo fundamentalmente desordenado. As complexas substâncias químicas que podemos encontrar em temperaturas baixas, são todas decompostas em substâncias mais simples nas altíssimas temperaturas estelares, e, se nossa cosmogonia estiver correta, temos apenas cerca de 13,7 bilhões de anos dessa incipiente ordenação, em comparação com um período indefinido de desordenação. Ademais, as leis termodinâmicas sugerem que o universo tende à degradação energética e ao desordenamento, ou pode caminhar rumo ao Big Crunch, ou a uma total absorção pelos buracos negros. Portanto, esse bem quisto mundo ordenado que conhecemos, pode ser de fato um insignificante hiato perante um universo quase totalmente caótico, e assim, fundamentalmente irracional.

Mesmo assim, levamos adiante nossa tendência em pressupor um universo epistemologicamente acessível, e em especial nossa ciência pretende ir a níveis cada vez mais fundamentais de explicação, esperando um dia alcançar uma teoria única que dê conta de todos os fenômenos, e mesmo assim, quando ainda temos motivos para pensar que estamos num estágio incipiente das possibilidades desse conhecimento, já somos confrontados com dados da física quântica que nos sugerem um universo muito mais imprevisível e incerto do que a ciência clássica esperava. Não é um fato inédito, mesmo os antigos pitagóricos tinham sua cota de perplexidade com o fato de diversas razões geométricas em figuras perfeitas, como pi , serem números tidos como irracionais.

Enquanto aceitamos ser ignorantes sobre a possibilidade do universo possuir ou não intenção, costumamos estar seguros de que ele possui ordem. No entanto, e se, assim como a intenção só existir em nós, o mesmo se dê com a ordem? Como podemos ter certeza de que não somos nós que vamos ordenando o universo conforme nossa própria imagem e semelhança, não somente impondo-lhe ordem, como por fim, impondo-lhe intenção?

O objetivo desta digressão, na realidade, não é advogar um universo caótico, mas sim sugerir que mesmo levando em conta essa possibilidade extrema, ainda é possível articular um argumento cosmológico. Se considerarmos os argumentos da ordem espacial e da ordem temporal insuficientes, e mesmo que negássemos a ordenação das leis naturais, ainda restaria um último reduto de ordem aparentemente inviolável, nossa própria mente.

Esse “argumento da ordem psicológica” seria mais uma evidência de uma natureza cósmica, e coincidentemente, o último reduto de onde não esperamos remover a intenção.

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No que se refere a intenção, o modo como a projetamos no mundo não é muito diferente, historicamente essa tendência se fez presente em quase todos os âmbitos da cultura, e as próprias religiões são um de seus produtos naturais. Mas não limitou-se a apenas isso, nossa tendência a atribuir intenções aos objetos se embrenhou de tal forma em nossa linguagem e cultura, que mesmo uma forte disposição para pensar em contrário tem dificuldade de se expressar em termos não intencionais.

Chamamos as constantes regularidades naturais de “leis”, como se o comportamento do universo houvesse sido promulgado, ou por vezes de “princípios” que também pode ter conotações psicológicas. Até mesmo o conceito revolucionário da biologia, que carregou o título de golpe mais forte na idéia de um universo intencionado, usa a palavra “seleção”, que na raiz traz a idéia de escolha, e curiosamente, costumamos nos expressar a respeito de evolução com a idéia de que a “natureza seleciona”.

O próprio Richard Dawkins, ferrenho defensor de um universo sem significado, tem grandes dificuldades em se expressar em termos não intencionais. Em seu livro O Gene Egoísta 4, defende uma teoria onde leva ainda mais longe a idéia de um processo evolutivo que dispensa até mesmo e escolha no nível do comportamento animal, enfocando que a evolução é melhor entendida não como um processo de seleção de espécies, de grupos, ou indivíduos, mas na de genes, que seriam replicadores automáticos completamente “cegos”, cujo ímpeto de se reproduzir resultou em toda a biosfera, e que todos os seres vivos são pouco mais que meros veículos de replicação dos genes. Apesar disso, Dawkins faz largamente uso de termos como “genes querem”, ou “preferem”, e está constantemente se desculpando pela dificuldade em se expressar de outra forma. O próprio título do livro evidencia isso.

O forte hábito de usar analogias na discussão sobre design natural é também, em parte, afetado por esta tendência a emprestar intencionalidade ao mundo, pois ao nos depararmos com um conceito para o qual ainda não temos familiaridade, recorremos a um outro que nos é mais pleno de significações. É preciso então “contaminar” a nova idéia com uma outra já permeada de elementos intencionais. Não só Paley e Behe partem de analogias com elementos evidentemente intencionais, o que já desloca a argumentação para um plano intencional, mas mesmo Hume e Dawkins fazem suas melhores analogias de forma similar, quer seja para alegar a possível imperfeição do designer, quer para simplesmente negá-lo.

Parece muito difícil pensarmos de outra forma, principalmente se considerarmos a idéia de que é a intencionalidade que dá sentido às frases. Ou seja, a própria atribuição de sentido poderia ser vista como uma forma de “irradiar” nossa intenção ao mundo externo. E se adicionarmos isso a idéia de que podemos alargar o sentido de inteligência a ponto de afirmar que existe projeto inteligente na natureza devido ao fato do ADN claramente possuir um “projeto”, e que sua capacidade de adequar o organismo ao ambiente, forçada pela seleção natural, pode ser caracterizada como uma forma de inteligência, não poderíamos então, também, fazer algo similar com o conceito de intenção? Isto é, alargá-lo a ponto de abarcar outras instâncias? O que realmente queremos dizer com intenção? Não seria então todo o embate do desígnio uma mera questão linguística?

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Recapitulando esta monografia, terminamos com Swinburne e o argumento da ordem temporal, que tem o mérito de explorar nossa própria idéia de um universo regido por leis, que seriam então, o último grau de ordem. A ordem temporal é base da ordem espacial, segundo a nomenclatura de Swinburne, a qual a maior parte dos argumentos do desígnio enfatiza. Michael Behe, assim como William Paley, apostaram na organização e complexidade como evidência de projeto intencional. Mas vimos também que todas essas abordagens podem ser seriamente afetadas pelo ceticismo, e que Hume detêm, até hoje, o melhor manual de críticas ao argumento de desígnio.

O que provavelmente tenha ficado claro, é que estamos diante de um perpétuo impasse epistemológico, uma questão que nunca irá se esgotar apesar de todas as grandes revoluções científicas. A ciência, no seu adequado pressuposto naturalista, não pode ir além da natureza, e questões de finalidade só podem ser abordadas pela metafísica.

Da mesma forma, as religiões em constante flerte com o sobrenaturalismo, podem possuir suas certezas, mas não possuem competência para elucidar questões filosóficas como esta. Lembrando também que qualquer abordagem levantada pelos dados científicos sobre o problema do desígnio, mesmo que feitas por cientistas, será inevitavelmente metafísica, então temos apenas duas tradições que abordaram a questão do design, as tradições baseadas no pressuposto sobrenatural, e a metafísica. Curiosamente, sobrenatural e metafísica são palavras etimologicamente sinônimas, mas seus contextos de uso as afastaram largamente.

Por fim, devemos reiterar uma afirmação fundamental. Quaisquer que sejam os desmembramentos das questões relativas ao desígnio, resta uma essência fundamentalmente filosófica, e a filosofia é a única abordagem adequada ao evento. Só a filosofia pode estabelecer pontes de comunicação entre ciência e religião, e a lidar com as questões sociais, políticas, culturais e educacionais envolvidas.

Foi preciso um filosofo da ciência no Caso Arkansas, e é sempre preciso um filósofo, Hume, e um teólogo, Paley, para um bom debate sobre o assunto. Negligenciar esse debate atual seria deixar uma questão de sérias repercussões, sobretudo para política educacional, nas mãos de segmentos despreparados para abordá-la.

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É importante também manter um ceticismo aberto e saudável a respeito do tema, baseado antes de tudo na grande quantidade da argumentos de ambas as partes, que frequentemente se anulam, enfatizando cada vez mais uma insuficiência para estabelecer conclusões seguras, ao menos até agora.

Ceticismo este que, estranhamente, é muito pouco popular. Temos muitos teístas e ateus, e a maioria dos que usam o termo agnóstico não tem muita clareza do que realmente significa. O ceticismo, de uma forma geral, não encontrou um lugar significativo na sociedade, ao menos enquanto uma posição claramente definida. Na verdade tem ocorrido o contrário, alguns grupos tem se formado adotando o título de céticos, quando na realidade são materialistas militantes, totalmente comprometidos com o realismo científico, e dessa forma, hostis a qualquer forma de pensamento não naturalista 5 .

Os motivos dessa impopularidade do ceticismo, muito provavelmente, são mais uma vez as paixões envolvidas. Defender um ponto de vista ferrenho tem muito mais apelo emocional do que se manter num limiar neutro. Além disso, como foi sugerido na introdução, os pólos opostos do debate costumam estar munidos de uma rede de conceitos que conjuntamente podem ter um efeito muito intenso no comportamento. A certeza de que a própria convicção é a correta costuma gerar um apego ao próprio sistema de crenças cuja possibilidade de refutação invoca uma série de consequências existenciais.

O cético, por outro lado, pode ficar relativamente inume a grande parte dessas tensões. De certo que não goza de alguns benefícios que as certezas podem proporcionar, mas também não é afetado pelos seus malefícios.

É uma posição que permite experimentar o espanto de um universo sem significado, mas não o seu temor, e a liberdade de um mundo não determinado, mas não sua falta de identidade, e ao mesmo tempo, considerar a poesia de um universo intencional, e a esperança de uma significação existencial maior, sem o medo de não estar vivendo de acordo com regras invisíveis que poderiam custar muitíssimo caro se não forem devidamente observadas.

Tal ceticismo, quer seja amplo ou em apenas algum grau, parece o melhor remédio para estar a salvo da ofuscação luminosa de uma luz fatal, e ao mesmo tempo da tentação de fugir para o refúgio das sombras.

Marcus Valerio XR
25 de Julho de 2006

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Notas da Conclusão

1. GOULD, Stephen Jay. Pilares do Tempo – Ciência e Religião na Plenitude da Vida. [1999] Rio de Janeiro – RJ. Editora ROCCO. 2002. Gould dá uma ótima explanação sobre o caso Scopes, e dentre algumas curiosidade, é bom destacar que o material didático evolucionista em questão naquela ocasião, estava repleto de conceitos eugenistas e etnocêntricos, e trazia inclusive traços de darwinismo social. Ou seja, hoje em dia seria um material condenado pelos próprios evolucionistas. Entretanto, não parece que tais questões tenham entrado em pauta.

2. RUSE, Michael. But Is it Science? – The Philosophical Question in the Creation / Evolution Controversy. Prometheus Books. 1988. Como um dos protagonistas principais do julgamento do caso Arkansas, Ruse fornece um relato de primeira pessoa, e analisa também as inoportunas críticas de Karl Popper ao argumento que ele sugeriu para ser utilizado pelo Juiz Overton. Popper afirmou que a forma como Ruse desqualificou o criacionismo como ciência, por uma demarcação, não era válida, mas sim que o criacionismo seria sim uma ciência, só que de baixa qualidade, já tendo sido largamente falseado, além disso, também discordou da forma como Ruse caracterizou o evolucionismo como ciência. Ruse, porém, não poderia utilizar um outro método, visto que estava no âmbito jurídico, e não epistemológico, e deveria utilizar um recurso que demonstrasse que o criacionismo seria uma violação da primeira emenda, que proíbe que estado financie religiosidade. Popper, posteriormente, viria a concordar com Ruse, porém já era tarde demais no que se refere a fornecer munição para os criacionistas. Até hoje Popper é citado como um filósofo da ciência que critica a sustentabilidade da teoria da evolução.

3. O texto de The Wedge Strategy pode ser encontrado na íntegra em www.public.asu.edu/~jmlynch/idt/wedge.html , e aparente não é localizável no próprio site do Discovery Institute, e sim, somente o The Wedge Strategy: So What? na forma de pdf que não é localizável pela navegação normal no site. Por outro lado é explícito um link para assinatura de uma petição que visa introduzir na educação no Arkansas “...meios para os estudantes analizarem criticamente a teoria evolucionária, apresentando a eles evidências científicas a favor, e contra.”. O Discovery Institute se declara como uma instituição não-lucrativa e não-partidária que visa promover uma “prática futura para uma visão positiva”, abrangendo ciência, tecnologia, bioética, cultura e economia, pretende agir por meio de publicações, palestras, debates, e “reformas legais”. Michael Behe é Senior Fellow da instituição, embora tal informação só seja obtida pelo mecanismo de busca, e há vários textos dele disponíveis no site. [Páginas acessadas em 25 de Julho de 2006]

4. DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. [1976 ]Editora Itatiaia Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 2001. O uso de linguagem intencional nesta excelente obra pode ser verificado praticamente em toda parte. E já é especialmente forte na orelha e introdução.

5. Como exemplos a SBCR (Sociedade Brasileira de Céticos e Racionalistas) em www.ceticos.org , ou a Sociedade Terra Redonda, www.str.com.br, que também tem promovido uma petição, no caso, contra o ensino religioso em escolas públicas. Essa iniciativas são úteis como um contra ponto em relação a quantidade muitíssimo maior de grupos religiosos, místicos ou pseudo-científicos em geral, mas terminam por distorcer o significado de ceticismo. Alguns bons exemplos de grupos céticos brasileiros são o Ceticismo Aberto, www.ceticismoaberto.com, e o Projeto Ockham, www.projetoockham.org .

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BIBLIOGRAFIA

BEHE, Michael J. A Caixa Preta de Darwin – O Desafio da Bioquímica à Teoria da Evolução, [1996]. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro – RJ 1997.

DAWKINS, Richard. A escalada do Monte Improvável – Uma Defesa da Teoria da Evolução.[1996] Companhia das Letras. São Paulo – SP. 2006.
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. [1976 ]Editora Itatiaia Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 2001.
DAWKINS, Richard. O Relojoeiro Cego – A Teoria da Evolução contra o Desígnio Divino. [1986]. Companhia das Letras, São Paulo-SP, 2001.

FUTUYMA, Douglas J. Biologia Evolutiva. Ribeirão Preto – SP. Editora FUNPEC - RP 1986

GOULD, Stephen Jay. Pilares do Tempo – Ciência e Religião na Plenitude da Vida. [1999] Rio de Janeiro – RJ. Editora ROCCO. 2002.

HUME, David. Diálogos Sobre a Religião Natural [1779]. Editora Martins Fontes, São Paulo – SP, 1992

PALEY, William. Natural Theology; or, Evidences of the Existence and Attributes of the Deity [1809]. University of Michigan Humanities Text Initiative. 1998

RUSE, Michael. But Is it Science? – The Philosophical Question in the Creation / Evolution Controversy. Prometheus Books. 1988

SEARLE, John R. Intencionalidade. [1983] Editora Martins Fontes, São Paulo – SP, 2002.

SWINBURNE, Richard. The Existence of God - Second Edition. Oxford University Press, USA, New York, 2004.

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