Universidade de Brasília, Novembro/Dezembro de 2003
Departamento de Filosofia
Disciplina de História da Filosofia Medieval
Professor: Scott Randall Paine

DEUS ME LIVRE

Ensaio sobre a Liberdade e a Existência de Deus

tendo como ponto de partida

O LIVRE ARBÍTRIO

de

Santo Agostinho



Marcus Valerio XR
FREE MIND!!!
www.xr.pro.br
Graduando em Filosofia
Matrícula: 02/98255


ÍNDICE

INTRODUÇÃO

PARTE 1 - LIBERDADE X DETERMINISMO

LIBERDADE E LIVRE ARBÍTRIO

DETERMINISMO E DESTINO

DEUS

PARTE 2 - "O LIVRE ARBÍTRIO" DE SANTO AGOSTINHO

LIVRO PRIMEIRO

LIVRO SEGUNDO

LIVRO TERCEIRO

A ONIPOTÊNCIA

PARTE 3 - LIBERTANDO DEUS

NÃO À PERFEIÇÃO

CAOS E ORDEM

DEMIURGOS

MEU DEUS

BIBLIOGRAFIA




INTRODUÇÃO

------- Como sempre faço quando possível, procuro casar os interesses da disciplina que curso com meus interesses intelectuais particulares, por isso apresento aqui mais que uma simples resenha sobre uma obra com objetivos meramente didáticos e de avaliação de rendimento. Não perco uma só oportunidade de produzir monografias sobre os mais diversos temas, uma vez que aspiro à produção literária nos mais diversos níveis.
------- O título deste trabalho pretende invocar todos as significações, trocadilhos e paradoxos que a expressão possa sugerir. O pronome "ME" em cinza sugere que poderia ser também "DEUS LIVRE", pois curiosamente a discussão sobre a existência ou não de nossa própria liberdade terminará por discutir se Deus, caso exista tal ser responsável pelo universo que vivemos, também é livre, ou se está subordinado à sua própria onipotência como um ente eternamente condenado a um congelamento existencial imutável, atributo decorrente da perfeição. Sugere ademais a idéia de "Deus me Livre de um Deus que não me permita a Liberdade", ou "Deus me torne Livre caso eu não o seja".
------- Também é um apelo à existência da Liberdade e Livre Arbítrio, como jóias de cuja a crença não estou disposto a abrir mão, e o porquê disso é um dos Três Objetivos desta monografia, defender e justificar que a Liberdade é nosso dom mais precioso, e que acreditar nela é mais sensato e preferível do que crer que somos joguetes de um Determinismo Cósmico, de um Destino, quer seja intencional ou não.
------- O Segundo Objetivo é atender as exigências da disciplina de História da Filosofia Medieval, o que é feito principalmente na análise do livro O LIVRE ARBÍTRIO, de Santo Agostinho, talvez o maior tratado sobre o tema já realizado em toda a história, abordando quase todas as questões concebíveis ao mesmo, mas cujo viés específico de sua época ainda lhe acrescenta limitações.
------- Por isso, e remetendo ao Terceiro Objetivo, está a necessidade de transcendê-lo, e a toda a teologia medieval bem como nossa própria e predominante idéia de Deus, tendo então a ousadia de propor uma nova concepção de divindade onde se efetue a remoção dos atributos da Onisciência Absoluta do Futuro, e em consequência da Imutabilidade e da Perfeição, a meu ver, única forma possível de assegurar a existência da plena Liberdade individual.
------- Isso nos leva de volta ao Primeiro Objetivo, que está intrinsecamente ligado ao provocativo título desta monografia. É que prefiro a Liberdade quer num Universo desprovido de propósito, ou num onde exista um sentido fundamental para a existência, e que no interesse desta preferência, não estou disposto a aceitar um Deus que não a permita em primeiro lugar, e que da mesma forma, também não seja livre.
------- Talvez Deus seja exatamente a única forma de garantir essa liberdade, ao contrário do que diriam alguns existencialistas e anti-teístas, e não me refiro apenas a uma liberdade simplória de receber a graça ou a não graça perpétuas, mas sobre tudo à liberdade mental, o Livre Arbítrio, de pensar e sentir por mim próprio, quer isso faça sentido ou não.
------- Só um Ser verdadeiramente livre pode oferecer a verdadeira liberdade à outro, e se assim for um Ser que mereça ser denominado Deus, estarei pronto a acreditar em sua existência, o que jamais faria com relação a um Ser que me negasse meu dom mais precioso.

Marcus Valerio XR
17 de Novembro de 2003


PARTE - 1
LIVRE ARBÍTRIO X DETERMINISMO

LIBERDADE E LIVRE ARBÍTRIO

------- Evidente que o primeiro passo é deixar claro o significado destes termos, ou mais especificamente a diferença entre ambos. Tal tarefa poderia delegar não só páginas, mas livros inteiros, sem que se chegasse a uma conclusão sequer majoritariamente satisfatória em termos linguísticos e ou epistemológicos, e de fato não se pode negar que há uma barreira aparentemente intransponível que nos separa de uma definição perfeita como mesmo da certeza de que exista além de qualquer dúvida algo que mereça tais designações. Mas tamanha divagação não é minha intenção.
------- É difícil que alguém com um mínimo de maturidade não tenha um conceito formado da idéia de Liberdade, sendo inclusive um termo de uso bastante consensual e para o qual não pretendo fazer qualquer digressão maior, dispensando então citações de definições de quaisquer origens, mesmo por considerar a essência do termo como conferindo autonomia ao próprio indivíduo em emitir e vivenciar seu significado pessoal acima da autoridade de qualquer fonte erudita.
------- Já "Livre Arbítrio" merece uma explanação maior uma vez que muitos inclusive o identificam como a própria Liberdade. Porém Livre Arbítrio costuma ser usado no sentido de algo mais íntimo, de uma Liberdade Psicológica. Dessa forma, o Ser Humano pode perder a Liberdade, ao ser prisioneiro ou escravo, mas não perde o Livre Arbítrio, bem como um animal pode ter liberdade, mas não tem Livre Arbítrio.
------- Livre Arbítrio é então um fator necessariamente humano, sendo a faculdade mental de julgar, discernir, escolher no que acreditar, independente de a quais fatores físicos, ou psicológicos coercitivos esteja submetido. É uma instância mental onde possivelmente se dê a própria essência que distingue o humano do animal, e cuja eliminação seria a própria perda da condição humana.
------- Distingue-se então da Liberdade, que assume mais um caráter de ação concreta, como um reduto virtualmente inviolável da psique humana. Gosto de usar o termo Liberdade Mental. Mesmo onde haja toda forma de opressão e autoritarismo, ainda há um domínio que estará a salvo de qualquer agressão, enquanto o indivíduo assim o pretender.
------- É por esse motivo que combato tanto, em especial na Internet, o fundamentalismo religioso coletivo como talvez o mais severo aprisionador mental, pois assumir um ponto de vista previamente construído que não dê margem a interpretações pessoais é uma das formas mais diretas de aniquilar o Livre Arbítrio, e assim, perder a própria humanidade, passando a agir sob a dinâmica de um rebanho, onde seres sem vontade própria seguem obedientes à autoridade de um pastor que dispõe de suas existências como bem entender.
------- Adotei um slogan que pode ser recorrentemente visto em meu site na Internet, bem como na assinatura de minhas mensagens eletrônicas, onde se lê: "FREE MIND!!!" E o motivo deste estrangeirismo é em parte estético, duas palavras de 4 letras e de sonoridade similar a uma palavra de ordem. Ainda estudo o uso do termo "LIVRE MENTE!!!", mas sua aplicação não é tão clara, ainda que a evidente ambiguidade possa ser vantajosa.
------- Somente muito posteriormente a ter decidido ser essa a força motriz de minha ideologia filosófica, percebi que seu conteúdo era basicamente o mesmo do termo Livre Arbítrio, o que resulta em minha plena satisfação em produzir uma monografia sobre tal tema.

------- Basicamente, podemos entender que sem Livre Arbítrio, a própria Liberdade é desvalorizada, sendo algo mecânico, meramente contingente. Dizemos isso porque apesar de reconhecermos que animais selvagens em seu habitat natural estão "livres", para nós, humanos, essa simples liberdade física parece insuficiente. Sem um pressuposto Mental, uma liberdade de consciência, poucos estariam dispostos a concordar que seríamos autenticamente livres, ao menos num sentido humano.
------- Consideramos tais animais livres provavelmente porque esse é o máximo grau de liberdade que lhes é possível, mas nós podemos ir além deste grau, temos potencial para isso, e se não o fazemos, tudo indica que não somos autenticamente livres. Portanto, é premente verificar o que nos é possível em termos de Liberdade, quais os nossos níveis de ação que podem ser considerados livres.
------- Vejo esta como uma questão fácil. Principalmente se discriminarmos Ação, Discurso e Pensamento, e ainda subdividir este último em dois níveis. É óbvio que nossas ações não são totalmente livres, estamos limitados não só pelas leis físicas, mas pelas regras da convivência, que se convertem nas leis jurídicas. No discurso experimentamos maior grau de liberdade, mesmo assim muitas coisas não são ditas impunemente, o simples bom senso nos orienta a calar em muitas situações, e muitas não nos atreveríamos a dize-las mesmo por piedade.
------- Por fim o nível de Pensamento é sem dúvida onde somos mais livres, o que é muito importante, pois em última instância, nossos discursos e ações baseiam-se em nossos pensamentos, ou melhor dizendo, originam-se de nossas disposições mentais, e é aí que entra a necessidade de se dividir o domínio do Pensar ao menos em dois níveis.
------- Em um, que podemos chamar de Consciente, temos claras formulações de tudo o que pretendemos fazer, e claramente triamos os pensamentos que podem se converter em discurso ou ação, no outro nível, que seria Inconsciente, temos conteúdos que também podem se manifestar externamente, mas de modo que não nos parecem ser "pensados", como nossos impulsos e disposições mentais que são obscuros, ou rápidos demais para serem racionalmente triados.
------- Dessa forma, se em nossa Mente está, conscientemente ou não, a fonte de todas as nossas ações e reações, pois mesmo um reflexo brusco deriva de nossa vontade, que é uma disposição mental, então torna-se patente que este deve ser o domínio de maior liberdade, onde mais temos o potencial, e onde mais devemos ser livres.
-------Por conseguinte, é importante então examinarmos os elementos que ameaçam nossa liberdade mental, porém, uma análise detalhada desses aprisionadores em potencial não é objetivo maior desta dissertação, mas antes um exame não de meros aprisionadores, mas sim de autênticos aniquiladores do nosso Livre Arbítrio.
-------E na verdade, o maior se não o único, vem a seguir.

DETERMINISMO E DESTINO

------- Comum é dizer-se que as doutrinas Deterministas se popularizam a partir do renascimento, por meio do discurso cientificista que visava estabelecer todas as relações de causa e efeito do mundo físico. Muitos cientistas do século XVIII e XIX consideraram a possibilidade de que todo o Universo era uma imensa máquina perfeitamente ordenada, que funcionava como um relógio de alta precisão, e que bastaria controlar todas as variáveis envolvidas que poderíamos, em tese, prever o curso futuro dos eventos.
------- Mas na verdade, um exame mais atento notará que doutrinas deterministas são tão antigas quanto a humanidade, e na verdade até muito mais fortes em contextos extremamente afastados da tradição científica e filosófica.
------- Chamaremos essa idéia de determinismo não cientifizado, nem moderno ou contemporâneo, de Destino, que está presente na estrutura conceitual de inúmeras religiões, mitos e superstições, que se propõem a prever o futuro.
------- Há um paradoxo intrínseco com a idéia de antever os acontecimentos do futuro, pois se o futuro não é determinado, como pode-se ver algo que não está definido, e ou que não irá necessariamente ocorrer? Previsões nesse caso seriam meras projeções probabilísticas que qualquer economista, sociólogo ou mero apostador poderia fazer tão ou melhor que qualquer oráculo, e assim questiona-se a necessidade de um processo obscuro de adivinhação, não raro oneroso.
------- Se, por outro lado, o futuro estiver seguramente determinado, então decorre que prevê-lo é logicamente possível, porém seria impossível alterá-lo ou ele não estaria pré-determinado, e nesse caso, qual seria a utilidade da previsão? No máximo, um modo de preparação psicológica para o inevitável que seria pouco interessante em grande número de casos. E isso sem entrar no fato de que a própria consciência do evento futuro também estaria pré-determinada.
------- Portanto, para qualquer efeito prático, pelo menos no que se refere as intenções de controlar o próprio futuro, o Oráculo seria impossível ou inútil, e ainda mesmo, no caso do Determinismo, que o próprio Oráculo seria uma das peças que conduziriam à realização do futuro, como podemos ver na clássica tragédia grega de Sófocles, onde tudo indica que se o herói não tomasse conhecimento do Oráculo, a previsão não se realizaria.
------- De tudo isso, a correlação com a Liberdade é direta. Se há Determinismo, não somos livres, pois tudo o que ocorrer já estará definido, pensamos que decidimos quando na verdade apenas realizamos o que foi previsto por um poder superior a nós, e nossas escolhas e decisões serão meras ilusões resultantes de nossa ignorância sobre o futuro, ignorância esta que seria a única coisa que tornaria nossa existência suportável.
------- Para clarear melhor isso nada como a analogia da mesa de bilhar. Após uma potente tacada inicial teremos uma série de resultados que serão derivados daquele único evento de partida. Não importa que 15 outras bolas sigam direções diferentes, umas entrem em caçapas e outras não, tudo será determinado pelas características de velocidade, o ângulo, rotação e demais variáveis do primeiro movimento.
------- Evidente que nem mesmo o melhor jogador de sinuca do mundo tem competência para determinar voluntariamente e com absoluta precisão todos os detalhes resultantes de sua jogada, mesmo máquinas seriam incapazes, uma vez que um controle total de cada detalhe da complexa equação traduzida em movimento real seria mecanicamente impossível. Mas podermos ver isso tranquilamente em simulações digitais. Em computadores, onde podemos controlar todas as variáveis, podemos determinar com absoluta precisão toda a disposição em qualquer tempo futuro bastando usar cálculos matemáticos.
------- Nem precisamos conhecer inicialmente os detalhes do movimento inicial, basta congelar qualquer momento e examinar todas as suas características, e então poderíamos não só saber tudo o que se seguirá, como tudo o que lho antecedeu, um simples corte observacional instantâneo revela todos os eventos futuros e passados.
------- Dessa forma, ninguém irá dizer que a bola 8 decidiu bater na bola 11, ou que a bola 7 escolheu entrar na caçapa, todas foram joguetes de uma ação inicial.
------- É nesse mesmo sentido que se entende o Determinismo. Se fosse possível conhecer todas as características de cada partícula de matéria no Universo, seria plenamente possível prever todos os acontecimentos futuros, bem como os passados, e não teríamos poder para alterá-los, pois nossa própria capacidade de sabê-los estaria condicionada a todos os fatores determinantes, e qualquer aparência de que controlamos nosso futuro voluntariamente não passaria de ilusão.
------- Nesse ponto de vista, desde o primeiro evento do Universo, já estava decidido que a vida iria surgir, que os humanos desenvolveriam inteligência, que os filósofos formulariam suas questões, que as guerras iriam acontecer com tais e quais consequências, e que eu estaria digitando este texto.
------- Mesmo nossa consciência, caso seja um produto da matéria, estaria determinada nos mínimos detalhes, uma vez que cada partícula, carga elétrica, sinapse, não passam de meras consequências de um incomensurável jogo de bilhar macro, e micro, cósmico, e caso seja algo além da matéria, provavelmente estaria subordinada à equivalentes relações de causa e efeito que se sucederiam por estágios gradativos e irrecorríveis.
------- No século XX, em especial com o advento da Física Quântica, o Determinismo sofreu um forte abalo, pois parece ter ficado evidente um notável índice de aleatoriedade na natureza que, no mínimo tornaria impossível prever com exatidão qualquer futuro, pois o micro mundo seria por natureza imprevisível, e portando as probabilidades futuras sempre incertas e limitadas. Mas isso nada alivia a angústia de que não seriamos livres, isso se não piorar, pois continuaríamos sendo não autônomos com relação a nossas decisões, mudando apenas o fato de que ao invés de determinados desde o primeiro evento passado, estaríamos sendo determinados a cada instante por eventos aleatórios aos quais não podemos exercer controle.
------- De qualquer modo isso não muda a questão principal, de que não só não teríamos nenhuma escolha genuína e autêntica, acrescentando que sequer podemos ter conhecimento antecipado de nosso futuro determinado, quer por incapacidade de conhecer todas as variáveis, quer pela aleatoriedade.
------- Por isso o Determinismo de teor cientificista está condenado a ser sempre uma assertiva não sujeita a comprovação. O mesmo porém não o ocorreria com o Determinismo de teor Místico, para o qual há propostas de Seres que podem sim saber todas as informações necessárias para prever qualquer evento no Universo da mesma forma como um computador pode saber os resultados futuros de um processo de dados do tipo jogo virtual de bilhar.
------- Se há um ser OMNISCIENTE, esse ser tem total conhecimento de todos os eventos, inclusive detalhes de cada mínima partícula, podendo então saber tudo o que acontecerá e aconteceu, e se é OMNIPOTENTE, nem mesmo a aleatoriedade do mundo quântico seria obstáculo para tal ser, pois ele teria poder sobre cada nano evento.
------- Sendo assim, é forçoso admitir que tal ser controlaria com total precisão cada ínfimo detalhe da realidade, ainda mais sendo este ser ETERNO, pois sequer precisaria calcular qualquer evento futuro, tais eventos já estariam prontos.
------- Sendo assim, um Deus ONISCIENTE e ONIPOTENTE é a mais radical e extrema forma de Determinismo. Seria o Destino Imutável em si, manifestado em sua própria essência, e consequentemente, incompatível com qualquer idéia de Livre Arbítrio.

------- Quais seriam as consequência de uma doutrina Determinista levada ao extremo? Não consigo imaginar mais nefastas. Implicaria numa acomodação total a tudo o que acontece. Eu poderia cruzar meus braços e me deitar na linha de um trem, pois isso já estaria determinado. Se tudo está escrito, e nada podemos fazer para evitar, por que lutar? Não importa o resultado de nossas escolhas, nada é mérito nosso, o criminoso e o virtuoso não o são por qualquer outra coisa que não a vontade de um poder que lhes é externo, ou pelo mero acaso. Tudo estaria justificado, qualquer tentativa de alterar, mesmo de pensar, já estaria previamente determinada por fator alheio.
------- Decidi então fazer uso de meu Livre Arbítrio e escolhi crer que o mesmo existe, mesmo por uma questão de impasse epistemológico. Ao que tudo me indica, mesmo que o Universo seja Determinista, restará sempre a ilusão da Liberdade, e caso de fato exista a liberdade, haverá também sempre a ilusão de que tudo pode ser determinado. Parece ser impossível decidir em definitivo sobre um dos dois além de qualquer dúvida, ou sobre quaisquer outras concepções intermediárias ou totalmente singulares, e sendo assim, tudo me parece ser uma questão de escolha.
------- Portanto decido, ou fui determinado a aparentemente me decidir, a crer no Livre Arbítrio, assumir a responsabilidade por meus atos, e confiar em minha autonomia para construção de meu próprio futuro.

DEUS

------- Há tempos, advogo insistentemente o cuidado com o uso do termo DEUS, que pode ser extremamente confuso e multi significante em muitas áreas do saber, a exemplo da Psicologia da Religião por exemplo. Em uma monografia anterior denominada Psicogênese da Religião, defendi que as inúmeras significâncias do termo em culturas e modos de pensamento diferentes podem inviabilizar sua utilização em estudos que não se proponham a defini-lo com cuidado.
-------No caso deste trabalho porém, esse problema fica drasticamente reduzido, uma vez que estamos inicialmente restritos ao âmbito da concepção medieval européia de Deus, que o caracteriza com um Ser Supremo, dotado de absolutamente todas as Perfeições e que contém todas as magnificências conceptíveis por qualquer pensamento filosófico, e sendo assim, um objeto da tradição filosófica, porém, que ao mesmo tempo é associado a uma tradição religiosa judáico-cristã baseada em Livros tidos como divinamente inspirados, o que inevitavelmente causa uma série de dificuldades em parte evidentes nas insuperáveis antinomias.
-------Essa concepção teísta teve a ousadia histórica de sintetizar numa só entidade, funções e natureza antes separadas nos contextos religiosos anteriores, que são as incumbências de Criador / Ordenador Inicial / Gerador do Universo, somadas às funções de Mantenedor / Ordenador Perpétuo / Sustentador, e ainda assumindo o Princípio e Ideal de Bem / Justiça / Beleza / Sabedoria. E tudo isso exponenciado ao absoluto.
-------Essa fórmula teve um amplo sucesso como centralizador conceitual, mas ao mesmo tempo sofre de vários e incuráveis efeitos colaterais, que são conflitos conceituais que emergem espontaneamente quando tais naturezas são forçadas à coexistência, numa fusão que analogamente às nucleares, geram intenso calor e luz.
-------Dessa forma, no contexto desta monografia, a idéia de Deus está bastante restringida, no entanto um dos objetivos aqui é exatamente argumentar que uma idéia diferenciada pode ser mais útil, diferente na medida em que pode ser compreendido tendo a idéia medieval clássica como ponto de contraste.
-------Não se trata também de meramente tentar conciliar a idéia de Deus e a do Livre Arbítrio como uma obrigação imposta pela tradição, ou um apego à necessidade de termos um Ser Superior como ideal, mas também porque talvez qualquer outra idéia, ou uma concepção atéia, podem também depor contra o Livre Arbítrio. Ou seja, é bem possível que a Liberdade só seja viável sob a influência de um Deus.


PARTE - 2
O LIVRE ARBÍTRIO DE SANTO AGOSTINHO


------- A latente atemporalidade e universalidade da questão da Liberdade não lhe permitiria ficar excluída da reflexão das maiores mentes da história. Muito foi escrito a respeito, mas talvez nada com tanta especificidade e ênfase quanto a obra imortal de Agostinho.
-------Portanto, procederei aqui uma análise detalhada do conteúdo deste livro canônico, e suas implicações para a questão. Para isso, vejo ser necessário nada menos do que um sumário das idéias chaves ao longo da cada capítulo da obra, de modo a facilitar a localização dos argumentos, dos problemas e proposições, e das respostas.
-------O texto é apresentando na forma de diálogo, entre o Mestre Agostinho e o Discípulo Evódio. A tradução usada, do original latino, é de 1986, pelo Professor de Filosofia Antonio Soares Pinheiro da Braga Faculdade de Filosofia, que também introduz e notifica o texto.
-------Passemos pois, às idéias principais.

O LIVRE ARBÍTRIO

Santo Agostinho

LIVRO PRIMEIRO

O Ato Mau vem do Livre Arbítrio

[A Lei Eterna. A Boa Vontade. A Sublimação do Amor]

Capítulo I [DEUS, O MAL E O ENSINO]
- É Deus o Autor do Mal?
- Dois tipos de Mal, o Mal Sofrido e o Mal Praticado.
- Deus pratica apenas o gênero de Males que visam compensar o Mal anteriormente Praticado. Punição.
- O Mal Praticado o é por livre e espontânea vontade, Livre Arbítrio.
- A Instrução visa somente o Bem. O Mal decorre da Falta de Instrução. Praticar o Mal é afastar-se da Instrução. (Ignorância). Não se aprende a Praticar o Mal, faz-se por não aprendizado.


------- "Peço que me digas se Deus não é o autor do Mal." Assim é aberto o diálogo por Evódio, evidenciando que a suspeita de que o Mal possa ser atribuído a Deus já era algo comum, e especialmente desafiador a alguém que saíra de uma crença Maniqueísta onde a existência do Mal era mais facilmente explicada. Se, para o Cristianismo, existe apenas uma existência eterna, Deus, e se tudo provêm dele, deduz-se quase imediatamente que este deveria ser também a fonte do Mal, para isso elabora-se todo este diálogo.
-------Começa então a sugestão de que o Livre Arbítrio é a origem do Mal, uma fardo incômodo para algo que, apesar de tão precioso, além de posto em cheque pelo Determinismo ainda é aparentemente responsabilizado como tal, o que será desenvolvido mais adiante. Pode-se notar também uma correlação com a doutrina socrática de que a Ignorância é a Raiz do Mal, uma vez que o Mal decorreria da falta de instrução, e que não se pode aprender a proceder Mal. Fica então a questão: Como relacionar isso ao Livre Arbítrio? O Ignorante, não instruído, está condenado a praticar o Mal?

Capítulo II [A ORIGEM DO PECADO]
- Se de Deus procedem todas as coisas boas, e se o Mal não pode proceder de Deus, mas de Deus procedem as almas, e destas procedem o Mal, como então o Mal não procede de Deus?
- É necessário ter Deus no mais alto conceito. Se não acreditardes não entendereis. (Is 7:9)


------- Aqui podemos resumir a questão mais fundamental de todas. Como eximir Deus de culpa pela existência do Mal? Por profissão de Fé, é para o autor vital salvar Deus de ser o Autor do Mal. Este é o início da "digressão" que tomará a maior parte da obra dada a complexidade da resposta para algo aparentemente tão inegável.

Capítulo III [QUE É O ATO MAU?]
- O que é proceder mal?
- O que torna o Adultério (por exemplo) Mau? Não é por efeito por ser proibido, e nem é proibido por ser mal. Nem mesmo por causar sofrimento ao outro, pois pode ser consentido pela outra parte.
- O adutério é Mal por ser Lascívia, o que leva a Iniância, que é malignidade de todo ato mau, homicídio, roubo, estupro, etc.

Capítulo IV [QUE É A INIÂNCIA?]
- Iniância é pretender alguma coisa.
- O homicida age por Iniância, já o Soldado, o Executor Penal e etc, agem por cumprimento a Leis, portanto não são homicidas.
- Iniância é Paixão.
- Os bons desejam afastar-se das coisas que não podem possuir sem risco de perder, os maus lançam-se a possuir essas coisas tentando remover qualquer ameaça de perdê-las.


------- Aqui temos o início da doutrina que faz a diferenciação entre o Amor, Bom, pelas coisas duradouras, perenes, e o Amor, Mau, pelas coisas passageiras, perecíveis. De qualquer forma, Deus parece ser isentado ao menos da responsabilidade direta pelo Mal.
------- Observemos também o caráter ético Perfeccionista. O Adultério por exemplo é Mau por uma definição desvinculada de qualquer circunstância ou consequência.

Capítulo V [MORALIDADE E LEI CIVIL]
- Certos homicídios são permitidos por Lei, "legítima defesa", que visa resguardar um Bem maior, o Bem-Estar social, pela pratica de um Mal menor, o assassínio do agressor.
- As Leis são isentas de Iniância, mas a Lei não obriga ao homicídio defensivo, apenas fornece a opção. Portanto a pessoa que mata em defesa própria, uma vez que o faz por pretender algo perecível, (integridade física) o faz isenta de Iniância?
- Praticantes de homicídios defensivos são impunes pelas Leis terrenas. Mas o são pelas Divinas?


------- Essas perguntas ficam definitivamente em aberto, mas, pelo raciocínio agostiniano, tudo leva a crer que matar, mesmo em legítima defesa, não é perdoado pela Lei Divina, o que pode levar a um curioso dilema, pois aceitar a morte por parte de um agressor quando se pode detê-lo, poderia ser considerado uma forma de suicídio.

Capítulo VI [LEI TEMPORÂNEA E LEI ETERNA]
- Temporânea é a Lei que pode ser Justa num momento e não em outro, como democracia para um povo digno, e monarquia para um governante digno afim de corrigir um povo indigno.
- Lei Temporânea deriva da Lei Eterna, pois desta parte a referência pela qual as Leis temporâneas se constituem. No exemplo anterior, as Leis são formuladas em razão de uma dignidade que deve ser respeitada acima de tudo, esta deriva da Lei Eterna.
- Lei temporânea alguma pode fazer o injusto ser justo, pois este é definido pela Lei Eterna.

Capítulo VII [ESTÁS CERTO DE QUE VIVES?]
- Uma coisa é viver, outra é conhecer que se vive.
- O Homem é mais perfeito que os animais devido a Razão, inteligência. As feras podem nos destruir, mas não nos domar como nós as domamos.
- A "Ciência" (consciência) da Vida, é atributo da Razão, que não pode ser má.


------- Neste capítulo temos algo equivalente ao "Penso, Logo Existo" cartesiano.

Capítulo VIII [A SUPREMACIA DA RAZÃO]
- Temos algo em comum com as plantas e os animais, mas a Mente/Espírito, nos é exclusiva.
- A potência da Mente, não é suficiente, é preciso atuar, manifestar a Potência, que domina as paixões.

Capítulo IX [O SAPIENTE E O INSCIENTE]
- O Sapiente é o que faz uso pleno da Mente. A Sapiência é o reinado da Mente.
- Os animais não possuem Mente, pois esta não está no corpo. O homem possui Mente, ainda que nem sempre plenamente manifesta, que lhe dá poder sobre os animais.


------- Fica claro que todo Ser Humano tem a potência para a virtude, uma vez que tem a Mente, e que converter tal potência em ato é uma decisão voluntária.

Capítulo X [A MENTE É INVENCÍVEL]
- A Mente é mais forte que a Iniância, pois por Lei Eterna, o mais forte predomina sobre o mais fraco.
- A Virtude é superior ao Vício.
- Um Corpo não vence um Espírito dotado de Virtude.
- Mesmo uma Mente Sapiente mais forte que outra não a pode submeter à Iniância, visto que isso imediatamente a enfraqueceria. Se deseja a Iniância contra outrem, então não pode ser Mente Sapiente.

Capítulo XI [O PECADO E O LIVRE ARBÍTRIO]
- Nem mesmo Deus tornaria a Mente Sapiente escrava da Iniância.
- Somente o Livre Arbítrio próprio pode submeter a Mente à Iniância.
- A Mente deve ser castigada pelo pecado de se submeter à Iniância.
- A Mente Virtuosa não se submete à Iniância, sendo assim é Justo que a Mente que se submeta seja punida.
- Ninguém quereria se submeter à Iniância e ser penalizado. Se o homem foi criado tão perfeitamente por Deus, porque se submete a iniância?


------- Se sendo Sapiente não se pode pecar, logo quem peca não é Sapiente, sendo insciente. Deve este ser punido por ainda não ser Sapiente, se não recebeu instrução? Esta é outra questão adiada até o final da obra.

Capítulo XII [VONTADE E BOA-VONTADE]
- Se nunca fomos sapientes, merecemos ser castigados pelo erro que não tínhamos poder para evitar?
- Mas será que sempre fomos inscientes? Será que antes de nossa união espírito-corpo não experimentamos um período de Sapiência?
- Temos alguma vontade?
- A Boa-Vontade é a que incita a retidão, e consequentemente a instrução e sapiência.
- Os adeptos dos prazeres terrenos, mesmo que nunca tivessem sido sapientes, são vitimados pelos infortúnios.


------- A pergunta inicial só será tratada ao final da obra, já à segunda, é oferecida possibilidades, acerca da Origem da Alma, no Livro Terceiro Capítulo XX.

Capítulo XIII [BOA VONTADE E VIDA VENTUROSA]
- PRUDÊNCIA é o conhecimento do que se buscar, e o que se evitar.
- FORTALEZA é a capacidade de desprezar os bens transitórios.
- TEMPERANÇA é a virtude que afasta o desejo desmedido, reprime as iniâncias.
- JUSTIÇA é a virtude de dar a cada qual o que se deve.
- A pessoa de Boa-Vontade possui as 4 Virtudes, e é bem aventurada, e feliz.
- Possuímos esses potenciais, portanto podemos ser bem aventurados e virtuosos, mesmo que jamais tivéssemos sido sapientes.


------- É importante aqui a distinção entre as 4 virtudes, idéia de origem grega. Sugere-se uma resposta à questão anterior. Se a pessoa tem essas potencialidades, pode desenvolvê-las, se não as faz, merece o castigo.

Capítulo XIV [VIDA VENTUROSA E RECTITUDE]
- Quem não desejaria ser Bem-Aventurado, Virtuoso e Feliz?
- Se todos o querem, porque alguns não conseguem?
- Merecemos o prêmio ou o Castigo por nossa própria Vontade.
- Todos querem a mesma coisa, ser afortunados, porém o Bons o querem levando uma vida reta e justa, e o maus o querem sem ser justos e retos. Bons e Maus querem a mesma coisa, mas de modos diferentes.
- A Lei Eterna estabeleceu que o mérito esteja na Vontade, e o prêmio ou castigo na ventura.


------- Essa aparente resposta a estas questões, que remete ao Capítulo XII, pode ser uma mera transferência do problema para outro nível, como será abordado mais adiante.

Capítulo XV [SUBLIMAÇÃO DO AMOR]
- Os Bons, Bem-Aventurosos, Virtuosos, Sapientes, Amam as coisas Eternas.
- Os Maus, desventurados, infortunados, inscientes, amas as coisas Temporâneas.
- As coisas Temporâneas não são culpadas, mas sim as pessoas que as desejam.


------- Insinua-se mais uma complementação da resposta para a questão em aberto do Capítulo XII. Os desventurados merecem ser punidos devido a terem escolhido amar as coisas temporâneas, caindo na Iniância e infortúnia. Mas resta ainda a questão do porquê fizeram tal escolha, e se eram conscientes das consequências.

Capítulo XVI [O ATO MAU VEM DO LIVRE ARBÍTRIO]
- O que é proceder Mal?
- Proceder Mal é diferente de Desejar as coisas temporâneas?
- Mal é tudo que afasta o homem das coisas eternas.
- E por fim, Deus autor de nossas Más ações?


------- Retoma-se a questão do Capítulo III, "O que é proceder Mal?". As respostas ficam adiadas para os próximos livros. Resta em aberto, além destas questões principais, a questão de se:
------- - A Pessoa que mata em legítima defesa, uma vez que age por apego a um bem temporâneo, o faz isento de Iniâncias? E assim se ao matar em legítima defesa está isenta de Pecado?
------- - Por que a pessoa escolhe o Mal, se tem potencial para escolher o Bem?

LIVRO SEGUNDO

O Livre Arbítrio é Dom de Deus

[A Existência de Deus]

Capítulo I [O LIVRE ARBÍTRIO VEM DE DEUS]
- Porque Deus concede o Livre Arbítrio ao homem, se sem este, não se poderia pecar?
- É próprio da bondade de alguém beneficiar pessoas estranhas, mas não é próprio da justiça castigar pessoas estranhas.
- O Homem procede de Deus, visto que é um certo Bem uma vez que pode viver retamente.
- O Homem só pode proceder virtuosamente devido ao Livre Arbítrio, se não, seu bom proceder não seria virtude.
- Foi para ser virtuoso que Deus concebeu o Livre Arbítrio, não para Pecar, sendo o pecado justamente castigável.
- Deus não seria justo se não punisse o pecado.

Capítulo II [ACREDITAR E INTELECCIONAR]
- Porque somos levado a pecar se o Livre Arbítrio nos foi dado com o objetivo de conceder a virtude?
- Porque Deus não nós da a vontade de proceder retamente?
- É sacrílego culpar ou censurar a Deus.
- Se não acreditardes não entendereis.(Is 7:9)
- Diferença entre a Fé e a Intelecção. Deve-se ter fé, mas também inteleccionar.
- É preciso ter primeiro fé, para depois buscar a intelecção.


------- No primeiro Capítulo é bem justificada a razão do Livre Arbítrio, mas ela leva as questões levantadas no Capítulo II, que são adiadas enquanto apela-se para a fé. Novamente a Bíblia é citada, não só na passagem referida acima mas com várias outras passagens. Fica claro que os preceitos religiosos devem ser validados a qualquer custo.

Capítulo III [RUMO A DEUS: OS SENTIDOS E A RAZÃO]
Capítulo IV [RUMO A DEUS: SENTIDO INTERIOR E VIDA]

- Três realidades: Existir, Viver e Inteleccionar, sendo a última a mais excelente.
- Existência de um "Sexto Sentido", ou um Sentido Interior que sensoria os demais 5 sentidos, presente em todos os animais, e no Homem, a Razão como um "Sétimo" Sentido que sensoria o Sentido Interior.


------- Já é a segunda correlação com doutrinas budistas. A primeira foi a da abstinência do que é temporâneo, que no Budismo traduz-se como libertação do apego ao transitório, e agora temos um conceito similar ao da Mente como "Sexto Sentido", em especial no Budismo Tibetano.

Capítulo V [RUMO A DEUS: O SENTIDO INTERIOR JULGA]
- Ainda que se deva crê-la firmemente; como evidenciar por intelecção a existência de Deus?
- Os sentidos atingem tudo o que existem, mas são presentes somente no que vive.
- Os sentidos estão em categoria melhor do que os objetos a que atingem, pois o ser que Vive e Existe é superior ao que meramente Existe.
- O Sentido Interior é melhor que os 5 Sentidos, e a Razão é melhor que o Sentido Interior, pois o que Intelecciona é melhor do que o que meramente Vive e Existe.
- Nem tudo que Intelecciona é superior ao que é inteleccionado, pois o homem intelecciona a Sapiência sem ser superior a esta.
- O Sentido Interior julga os sentidos, assim como estes julgam os objetos.


------- Finalmente é posta diretamente a questão sobre a existência de Deus, e tem início uma imensa digressão.

Capítulo VI [RUMO A DEUS: A RAZÃO E DEUS]
- A Razão julga o Sentido Interior, lhe sendo mais excelente, assim como aos sentidos e seus objetos.
- É preciso demonstrar algo superior à Razão, e a qualquer outra coisa, que seria Deus, uma realidade insuperável
- A Razão é temporânea e mutável, mas intui a existência de algo Eterno e Imutável, e portanto, superior a ela.

Capítulo VII [RUMO A DEUS: OS OBJETOS DOS SENTIDOS]
- Privacidade dos Sentidos Externos, do Sentido Interior e da Razão de cada homem.
- "Unicidade" dos objetos dos sentidos apesar das múltiplas percepção de cada indivíduo.
- Diferença entre os sentidos do Paladar e do Olfato em relação ao Tato, a à Visão e Audição. Estes últimos podem sensoriar, de mais de um indivíduo, a "mesma parte" de um objeto ao mesmo tempo. Os Tatos de dois indivíduos podem sensoriar a mesma parte de um mesmo objeto em tempos diferentes, já quando ao Olfato e Paladar, uma vez tendo sensoriado um objeto, ao menos essa parte sensoriada é irrecorrivelmente absorvida, não estando disponível a sensoriação de outra pessoa, ainda que estas possam sensoriar partes diferentes de um mesmo objeto, não podem sensoriar a mesma parte nem mesmo em tempos diferentes.
- Portanto, há objetos que alteramos, e objetos que não alteramos ao sensoriá-los.


------- Numa das mais densas passagens do livro, começa a se desenhar a analogia pela qual será representada o conhecimento de Deus.

Capítulo VIII [RUMO A DEUS: A RAZÃO E OS NÚMEROS]
- Os Objetos percebidos pela Razão são inalteráveis, podendo ser percebidos por todos ao mesmo tempo, como a Essência Inteligível e a Verdade do Número, sendo também indestrutíveis e independentes de serem percebidos ou não, corretamente ou não.
- Os Números não podem ter sido impressos no espírito mediante captação dos sentidos, pois não existem nos objetos dos sentidos.
- "...considerar e buscar a sapiência e o número." (Ec 7:26)


------- Nota-se aqui claramente o forte Idealismo, e uma negação da possibilidade do Empirismo em relação aos entes numéricos.

Capítulo IX [RUMO A DEUS: SAPIÊNCIA E BEM SUPREMO]
- É a Sapiência um Bem único, ou múltiplo e em cada homem em particular?
- Todas as pessoas buscam o Bem e fogem do Mal, mas como este se lhes apresentam aparentemente diferentes, o fazem de formas diversas.
- Erro é seguir por um caminho que não leva ao que se pretende chegar, quanto mais se erra, mais longe se está da Verdade, tanto menos é Sapiente e menos se contempla o Sumo Bem.
- Temos impressas no Espírito as noções de Venturidade e Sapiência.
- Se o Sumo Bem for uno, a Sapiência também o é.
- Se o Sumo Bem e a Sapiência forem múltiplos, também o poderia ser o Sol, uma vez que sob sua luz muitas coisas distintas podem ser vistas.

Capítulo X [RUMO A DEUS: CERTEZAS DA SAPIÊNCIA]
- As Verdades da Sapiência são visíveis a todos, independente de se comunicarem, assim remetem a algo único.
- Que o íntegro é melhor que o deformado e o Eterno melhor que o temporâneo, são verdades comuns a todos.
- Uma vez que todos podem atingir a Sapiência, e que os Sapientes sempre chegam a conclusões iguais sobre o que devem fazer, vê-se que a Sapiência é Única e Imutável.

Capítulo XI [RUMO A DEUS: A SAPIÊNCIA E O NÚMERO]
- Sendo a Sapiência e o Número entes únicos, seriam de uma mesma categoria?
- Muitos conhecem os Números, mas poucos conhecem a Sapiência.
- Se Sapiência e Número residem na mesma Verdade, o que é endossado pela Bíblia, porque o segundo é mais estimado pela maioria do que o primeiro?
- Os Números estão em todas as coisas, mas a Sapiência somente nos seres vivos racionais. Para os homens os números parecem mais valiosos assim como os objetos o parecem em relação à luz. O ouro parece mais valioso e belo que a luz que o ilumina.
- O Calor da chama atinge só o que está próximo, a luz atinge muito mais longe. Assim é a Sapiência e o Número.
- Pode não ser possível saber se Sapiência e Número são distintas ou não, ou se uma procede da outra, mas ambas são indiscutivelmente verdadeiras.


------- Uma das partes mais confusas do livro. A analogia com o ouro e a luz apesar de genial, não responde a questão. A afirmação de que os números estão em todas as coisas parece contradizer o Capítulo VIII, aparência só desfeita no Capítulo XVI. Não fica claro de onde emana a Sapiência e o Número, pois ao menos nesta tradução ambos derivam da [Sapiência].

Capítulo XII [A EXISTÊNCIA DE DEUS: DEUS É A VERDADE]
- Existe uma Verdade Incomutável, oculta e pública, acessíveis, mas não pertencentes a todos os que dispõem de Razão e Inteligência.
- Julgamos as coisas segundos parâmetros imutáveis de verdade, mas não julgamos esses mesmos parâmetros que por serem imutáveis, não estão em nossas mentes, que são mutáveis.

Capítulo XIII [A EXISTÊNCIA DE DEUS: O SILÊNCIO DA VERDADE]
- Nada há de mais venturoso do que disfruir da inabalável, imutável e excelsa Verdade.
- Os homens de mais forte e vigorosa visão preferem ao invés de contemplar as coisas iluminadas pelo Sol, contemplar o próprio Sol.
- De nada a alma disfrui com liberdade senão do que disfrui com segurança, que é a Verdade, e o próprio Deus


------- Embora a analogia com o Sol funcione, é imperfeita pois visão vigorosa alguma resiste, ou permanece vigorosa por muito tempo, se se voltar diretamente ao Sol salvo com o uso de filtros. Seria uma analogia mais interessante se colocarmos que agem como filtros determinados recursos da Fé, como por exemplo que a ajuda da Bíblia no salva de sermos "cegados" pela intensa ofuscação da Verdade, que seria demais para ser apreendida pela mera Razão, por isso a necessidade da Fé. Embora seja mais ou menos essa a idéia agostiniana, tal analogia não chega a ser usada claramente.

Capítulo XIV [A EXISTÊNCIA DE DEUS: A POSSE DA VERDADE]
- Ninguém está seguro quanto aos bens que podem ser perdidos contra a vontade. A Verdade e a Sapíência porém não podem ser perdidas por quaisquer razões que não a própria perversão.
- A Verdade está aberta e disponível a todos, a todos os que lhe amam, ela acolhe, sem distinção, sendo suficiente em igual grau, nunca falta a quem a procura, não importa quantos a procurem. Nada pode lhe obscurecer, e estará sempre acessível a qualquer um que a procure com amor e sinceridade, e nada pode impedir essa busca.


------- Na, talvez, mais poética e bela passagem do livro, Agostinho faz uma autêntica ode amorosa à Verdade. Nota-se aqui o Idealismo e o "Amor a Sophia", que caracteriza, ou deveria caracterizar, qualquer filósofo. Fica claro o elemento neoplatônico que se identificou com os preceitos da religião cristã. O Cristianismo parece cair como uma luva, ainda que sofrendo alguns ajustes, nos "Ideais Idealistas"!

Capítulo XV [A EXISTÊNCIA DE DEUS: DEUS SUPREMA EXISTÊNCIA]
- Tendo demonstrado a existência de um realidade superior à mentes humanas, esta é Deus, a não ser que haja realidades ainda maiores, de modo que Deus então será a maior de todas.
- O que já era admitido pela Fé, agora é demonstrado pela Intelecção, ainda que tênue.
- Da mesma forma que o que não é Justo é Injusto, o que não é Sapiente e Insciente. Como mesmo o sincero buscador da verdade não ousa se declarar ainda Sapiente, conclui-se que o Insciente tem noção da Sapiência, portanto a Sapiência lhe é inerente ao Espírito.


------- Aqui temos a predecessão de Descartes e do Argumento Ontológico, que basicamente define Deus como sendo "O Algo do qual Nada pode ser Maior". Também a noção de que o Insciente, visto que não é Sapiente, não poderia ter noção da Sapiência salvo se esta lhe fosse impressa na Mente por um Ser Sapiente.

Capítulo XVI [A EXISTÊNCIA DE DEUS: DEUS E OS SEUS VESTÍGIOS]
- O buscador da Sapiência nada mais faz que se dedicar à idéia de Sapiência inata em seu interior.
- Os Vestígios da Sapiência estão em toda parte, na forma de Número. Todas as belezas naturais tem Números, o que as torna belas mediante as Leis da Beleza. Porém estes Números não derivam delas, mas sim foram postos nelas pela fonte dos Números, e a da Sapiência.


------- Finalmente é esclarecida a aparente contradição entre os Capítulos VIII e XI, pois se os Números estão em tudo, o estão por terem sido colocados por Deus, e a idéia de número não é apreendida pelos sentidos, mas sim fornecida por Deus, de modo para que possa ser identificada nas coisas. Portanto soluciona-se o problema de porque apesar dos números estarem em tudo, não podem ser apreendidos empiricamente.

Capítulo XVII [A EXISTÊNCIA DE DEUS: DEUS ENTIFICADOR]
- Todo ser Mutável é Entificável.
- Todo Ente, ser existente, já tem a Enticidade, Existência, portanto não precisa receber o que já tem. Porém algo não pode Entificar-se a si próprio, ou seja, passar da Não-Existência à Existência, portanto tudo o que Existe foi Entificado por outro Ente, ou existe Eternamente.
- Tudo o que existe depende da Entificação, sem a qual reduz-se ao Nada. Tudo precisa ser entificável, portanto toda a Existência depende de um Ente previamente existente, Deus.
- Se for possível encontrar algum outro gênero de seres além das categorias do Existente, Vivente e Pensante, será possível encontrar algo que não proceda de Deus.
- Todos os Bens derivam de Deus.


------- Aqui é colocada a questão fundamental, a meu ver, da existência. Algo que forçosamente obriga a Razão a admitir a Existência de Algo Incriado. O Ser não pode vir do Não-Ser. Portanto tudo o que existe foi criado por algum outro Ser, ou sempre Existiu. Isso obrigatoriamente exige a existência do Eterno, ou ao menos do Perpétuo. Este é para mim, um argumento absolutamente inabalável em defesa da existência de algo de temporalidade infinita. Pode ser precipitado chamar isso de Deus, mas que Algo sempre existiu não me parece haver nada mais claro.

Capítulo XVIII [O LIVRE ARBÍTRIO É UM BEM]
Capítulo XIX [O LIVRE ARBÍTRIO BEM MÉDIO]

- Uma vez que Deus existe, e que tanto pequenos quanto grandes bens derivam de Deus, o Livre Arbítrio é um bem de Deus, sem o qual não se poderia agir virtuosamente.
- Tal como a Virtude com a qual só se pode proceder retamente, não devia o Livre Arbítrio ser dado de forma que não se pudesse pecar?
- Muitos usam Mal os Bens que possuem, inclusive os do Corpo, nem por isso considera-se que esses bens não deveriam ser dados. Se os olhos são Bens de Deus, os que os usam Mal não exigem que Deus não os dê, mas sim que seu mal uso seja punido.
- Há bens do quais não se pode usar Mal, Justiça, Temperança, Fortaleza, a Reta Razão. Essas são os GRANDES Bens, sem os quais Não se pode viver Honestamente.
- As perfeições corpóreas, das quais se pode usar mal e sem as quais se pode viver Honestamente, são PEQUENOS Bens.
- Os Bens que sem os quais Não se pode viver Honestamente, mas que podem ser Mal Usados, são os MÉDIOS Bens. Nestas inclue-se o Livre Arbítrio
- Mas se é o próprio Livre Arbítrio que permite o Bom ou Mal uso dos Bens, como ele pode ser um destes bens?
- O Livre Arbítrio pode ser usado por meio dele mesmo, bem como a Razão ou a Memória, que usam a si próprias.
- O Livre Arbítrio, com o Bem Médio, quando se associa aos Grandes Bens traz a Virtude e Sapiência, quando se associa aos Pequenos Bens leva aos desvios.
- O Mal não está nas coisas. O que é Mal utilizado não é Mal em si. O Livre Arbítrio é um Bem.


------- Finalmente, mediante um sistema intelectual genial, nestes capítulos se dão as respostas as questões levantadas no início deste Segundo Livro, após uma imensa digressão reconhecida pelo próprio autor. Aqui começa a se desenhar a resposta para a questão fundamental da obra, que é "Se Deus é o Autor do Mal?".

Capítulo XX [O IMPULSO PARA O MAL]
- Mas sendo o Livre Arbítrio um Bem, de onde vem o impulso para usá-lo Mal?
- Se todos os Bens derivam de Deus, afastar-se do Bem é afastar-se de Deus.
- O Mal não procede de Deus. De onde procede então?
- Toda Realidade, Enticidade, Existência, procede de Deus. Sendo assim o Mal decorre do afastamento da Existência, da Enticidade, afastamento de Deus.
- Esse impulso de Afastamento leva a um movimento Defectivo, reativo, em direção ao Nada, esse impulso não pode pertencer a Deus.
- De onde se origina então o Impulso para o Mal?


------- Finalmente chega-se ao final do Segundo Livro removendo do Livre Arbítrio a responsabilidade pela existência primária do Mal. O Mal vem através do Livre Arbítrio, mas não é gerado por ele, e nem por conseguinte gerado por Deus. Das duas questões que ficaram em aberto no livro anterior, uma não foi tocada, que é "A Pessoa que mata em legítima defesa, uma vez que age por apego a um bem temporâneo, o faz isento de Iniâncias? E assim se ao matar em legítima defesa está isenta de Pecado?". Mas a questão de "Por que a pessoa escolhe o Mal, se tem potencial para escolher o Bem?", começa a receber tratamento, evidentemente adiado para o próximo Livro.
------- Começa a se delinear a idéia de que o Mal é um tipo de Não-Ser, similar ao que Teodicéias como a de Leibniz viriam a propor mais de um milênio mais tarde. Mas o que mais começa a ficar latente, é que apesar de primorosa e criativa, a argumentação que tem conseguido salvar de Deus a responsabilidade pelo mal está se dirigindo a um obstáculo que aparentemente é instransponível, e que leva à questão principal que conduz esta Monografia, que é a Onisciência e Onipotência divinas, que parecem não dar lugar a nenhum tipo de realidade, mesmo reativa, que não apenas provenha mas que esteja sob absoluto controle de Deus.
------- Agostinho frisa fortemente que se tenha apego a Fé, de modo a não se desviar dos tortuosos caminhos por onde levam tais questões. Essa condução da Racionalidade pode ser interpretada de formas divergentes. Ao insistir tanto em citações da Bíblia, fica a impressão de um mecanismo de defesa antecipado para driblar, ou mesmo acobertar possíveis becos sem saída intelectuais.

LIVRO TERCEIRO

Dificuldades Relativas ao Livre Arbítrio

[A Presciência. A Providência. O Pecado Original.]

Capítulo I [ORIGEM DO IMPULSO PARA O MAL]

- Não há necessidade de conhecer o impulso para o mal.
- O Impulso que leva a pedra a cair é parte de sua natureza. Esta não tem vontade, portanto não é culpável por cair.
- O mente tem vontade, não podendo ser obrigada a pecar nem mesmo por uma mente mais forte, portanto pode decidir, e sua escolha para o mal é culpável.
- Não importa de onde vem o impulso para o mal, pois ele não pode obrigar alguém a pecar, mas sim é a vontade, o Livre Arbítrio que permite o pecado.


------- Agora o discurso agostiniano começa a sofrer uma sensível mudança, adotando um teor muito mais apologético e apelativo à fé. A recusa em examinar a questão ainda é temperada com um certo grau de ironia e até de insultos contra a disposição de questionar os atos de fé, tendência que vai se acentuando nos próximos capítulos.

Capítulo II [PRESCIÊNCIA E INSTRIÇÃO]
- Como pode a vontade ser livre se Deus é presciente de todas as coisas futuras?
- Esta questão só aflige aos que a examinam sem a devida devotividade.
- Alguns negam a Presciência de Deus ou acusam-na de ser perversa, o que é um ímpio erro.
- Aos que são persuadidos pela misericórdia divina e são fortes na devoção, tal pergunta é facilmente respondida.


------- Finalmente, a pergunta chave que permeia esta monografia é aqui colocada. A tensão entre ONISCIÊNCIA FUTURA (No caso vista como Presciência) e o Livre Arbítrio. A pergunta é colocada com muita precisão, mas espantosamente, é simplesmente denegrida, bem como suas inevitáveis implicações, com o uso de insultos. Faz-se um fortíssimo apelo a devoção religiosa e a apego aos princípios de fé da religião.

Capítulo III [PRESCIÊNCIA E VENTURIDADE]
- Se a Presciência de Deus obriga as pessoas a agirem do modo previsto, elas não teriam liberdade.
- Se Deus prevê todos os atos dos humanos, também desde sempre já sabe que destino, recompensa e punição, dará a eles.
- Se todas as coisas previstas por Deus ocorressem obrigatoriamente, não seria Deus também desprovido de Liberdade?
- Deus determina quem será venturoso? Se estivesse em meu poder ser Venturoso eu já não o seria meramente por querer? Seria minha impossibilidade de ser venturoso, mesmo querendo, uma determinação de uma vontade coercitiva de Deus?
- O que nos ocorre contra nossa vontade, velhice, doença, morte, ocorrem por força externa a nós, mas nossos atos ocorrem por nossa livre escolha.
- O simples fato de Deus anteconhecer os atos humanos não os torna pré-determinados.
- Se alguém acredita na pré-determinação anula a vontade livre, mas ela mesma decisão de acreditar em tal fato, decorre da própria vontade livre.
- Deus é presciente de nosso poder de decidir. Mesmo anteconhecendo nossas escolhas, resguardou nosso poder de escolher.


------- A questão começa a se diversificar em direções fascinantes. Admite-se a Presciência até o "fim dos tempos", de antemão, Deus já sabe todos os atos humanos e que prêmio ou punição dará a eles, mesmo assim permite a liberdade de escolha. É colocado apropriadamente que a Presciência por si só, não implica em determinação, mas isso só faz sentido, como veremos mais adiante, enquanto não consideramos também a Onipotência de Deus.
------- Depois a defesa agostiniana se envereda por um círculo vicioso, pois afirmar que ao acreditar na Pré-Determinação se faz uma escolha, e portanto haveria Vontade Livre, mas não escapa da consequência reflexiva e instantânea desta afirmação, de que a Vontade "Livre" poderia ser uma mera ilusão pré-determinada, mesmo a garantia do Livre Arbítrio não seria mais que uma pré-determinação.
------- Mas o elemento mais notável que quero destacar aqui é a percepção de que o próprio Deus não seria Pré-Determinado, possibilidade que não é examinada, mas simplesmente rebatida de forma dogmática, da mesma forma como lamentavelmente acontece com outros desenvolvimentos potenciais que deixam de ser analisados dado ao imediato choque com os dogmas da doutrina.

Capítulo IV [PRESCIÊNCIA E PECADO]
- Pecamos por nossa própria vontade, sem poder ser obrigados nem mesmo por uma Mente Superior, devido a sua virtude, ou por uma Mente Inferior, dada sua incapacidade.
- Não se deve negar tais verdades, nem que Deus é Justo e Presciente.
- Com que justiça se pune pecados que obrigatoriamente tem que se dar?
- O Criador não seria responsável pelos atos de suas criaturas?
- Se eu prevejo com segurança o que acontecerá a alguém, não significa que estou determinando o que acontecerá, mas apenas antevendo. O mesmo se dá com Deus.
- Do mesmo modo como nossa memória dos fatos passados não determina tais fatos, a presciência de fatos futuros também não.
- Deus não é responsável pelos atos derivados do Livre Arbítrio, portanto é o justo punidor ou recompensador destes.


------- Pode-se notar com mais clareza do que nunca o compromisso arbitrário com os dogmas de fé do Cristianismo. Desenvolve-se melhor o argumento coerente de que a Presciência por si só não implica em determinação, e dessa forma garantiria a Vontade Livre, e salvaria a Justiça Divina. Mas, volto a insistir, tal argumento só funciona enquanto considerarmos apenas a Presciência, ONISCIÊNCIA do futuro.

Capítulo V [EXISTIR É SEMPRE UM BEM]
- O Criador não seria responsável pelos atos inevitáveis de suas criaturas?
- Recordemos a norma da devotividade, que nos alertará que devemos louvar o Criador.
- Ainda que nossas almas estejam corrompidas pelo pecado, ainda são melhores que as coisas que meramente existem. (O que Existe, Vive e Intelecciona é melhor.)
- É mesquinha inveja querer que algo inferior não houvesse sido feito, pois toda existência é um Bem.
- Tudo que os humanos são capazes de imaginar está nas idéias de Deus. É absurdo que se possa conceber algo que o criador não conceba.
- Muitos erram por procurarem nos lugares errados, fora de Deus, as realidades mais perfeitas que concebem.
- Seria injusto Deus não dar existência a uma categoria de seres porque alguns podem pecar.
- Há Seres Venturosos que jamais pecam, Seres que pecam, mas se recuperam, e Seres que permanecem no pecado, nem deste último ser Deus retirou sua bondade, concedendo-lhe também a existência.
- Mesmo o Pecador, sendo ser que intelecciona, ainda é melhor que um ser que apenas Vive, ou que apenas Existe.


-------Esse grande capítulo é basicamente uma enorme digressão quase poética. A questão inicial, colocada no capítulo anterior, não é respondida, e desenvolve-se uma extensa e sublime defesa da existência, mesmo dos entes inteligentes e pecadores. É difícil ver a conexão com a primeira idéia do próximo capítulo.

Capítulo VI [NINGUÉM QUER NÃO EXISTIR]
- Assim, não se deve imputar ao Criador a responsabilidade pelos atos dos seres criados.
- Mente aquele que diz que preferia não existir a ser infortunado.
- Todos querem existir mas não ser infortunados, ninguém quer morrer, por querer existir.
- Devemos louvar a Deus pela existência, que todos querem, e pelo infortúnio dos que não querem, por serem ingratos.
- Alguns não querem morrer, não por não quererem deixar de existir, mas para não serem ainda mais infortunados após a morte.
- Se é injusto que isso ocorra, não ocorrerá. Se ocorre, é justo e derivado da Livre Vontade.


------- Não me parece haver relação do desenvolvido no capítulo anterior com a conclusão que abre este capítulo, que se segue com a posição muito sensata do apego à existência, que deve merecer o louvor a Deus. A idéia de não imputar ao criador a responsabilidade pelos atos das criaturas me parece até defensável desde que não se leve mais uma vez em conta a Onipotência, mas não dessa forma, e sim pelo simples fato da Presciência não implicar diretamente na determinação.
-------Aqui também se inicia a delineação de um problema, que aliado ao da Onipotência, parece fatal para idéia de que Deus seja um ser Justo, o da condenação dos pecadores, ao menos da forma como é colocado tradicionalmente.

Capítulo VII [AMA QUERERES EXISTIR]
- É preferível existir, mesmo infortunadamente, por já existir.
- Mas se pudesse ser consultado antes de existir, de que levaria uma existência infortunada, preferirias não existir?
- Fazer do Amor a Existência fonte de amor pelas coisas eternas, pois quanto mais se quer existir, mais se deve aproximar de Deus.


------- Aqui o discurso se torna basicamente Homilético. É revelador que tenha deixado a forma de diálogo para se tornar um monólogo, desde o Capítulo V até o Capítulo XVI.
-------Quanto a questão levantada, não creio que necessitasse de resposta, pois é evidente a contradição. Um Não-Ser não pode ser consultado, se o foi é porque já Existia, e uma vez que se existe, deseja-se sempre a existência, o discurso, nesse sentido, me parece plenamente justificado e coerente, sendo de fato talvez a melhor Soteriologia possível. O problema é que a questão principal não recebeu ainda tratamento suficiente, não ficou claro que espécie de consulta se faria a esse ser. Ele poderia ser consultado e, se soubesse que seria condenado a demasiados infortúnios, lhe poderia ser ofertado deixar de existir, o que muito provavelmente aceitaria, pelo mesmo impulso que leva algumas pessoas a cometerem suicício.

Capítulo VIII [O SUICÍDIO É CONTRADITÓRIO]
- Querer não existir não faz sentido, pois quem escolhe a inexistência escolhe Nada.
- O suicida muitas vezes crê que seu ato o levará para um lugar melhor, anseia por Algo.
- É impossível desejar Nada.


------- Uma passagem que bem poderia esclarecer muitos equívocos sobre a idéia de suicídio, que pode se dar por vários fatores, mas que, concordo com Agostinho, não pode se dar almejando o Nada, mas sim uma espécie de existência cuja idéia se apresenta como satisfatória. O Existente sequer pode conceber a Inexistência. Mesmo assim vale replicar com a idéia de que o suicida não está necessariamente desejando a não existência, mas sim repudiando sua existência atual, mediante talvez inclusive uma aposta inconsciente de que o que se segue após a morte não possa ser pior.

Capítulo IX [A PROVIDÊNCIA E O PECADO]
- Deus, em sua Onipotência, poderia ter determinado que nenhuma de suas criações fosse infortunada? Se não o pôde determinar, não é Onipotente, se o poderia, seria mesquinho e invejoso!
- Existem criações em todos os graus, mesquinho e invejoso seria quem dissesse que tal ou qual grau não deveria existir, ou deveria ser de outra maneira. Bem como descomedido e iníquo o que deseja adicionar algo à Perfeição.
- Todas as coisas que existem, devem existir, pois mesmo as coisas imperfeitas fazem parte de uma perfeição maior. Todas as almas, por existirem, servem à perfeição, mas não por pecarem, sua necessidade existencial se dá enquanto almas de certos graus de perfeição, não enquanto necessidade do Pecado.
- O Universo é Perfeito, e não precisa do Pecado, punindo-o devidamente. A existência do Pecado não contradiz a perfeição do Universo, que sempre compensa o pecado pela punição, e se o Pecado não existisse, o Universo continuaria Perfeito.
- O homem justo e digno que se submete à fogueira o faz por fortaleza e longanimidade, o salteador sanguinário submetido ao mesmo suplício o é pelas Leis. Nos dois casos, o tormento é dignificado, o primeiro pela virtude, o segundo pelo pecado devidamente punido pela Lei. Seria indigno que ambos recebessem o mesmo destino de serem levados ao céu.
- É admirável que a natureza espiritual não seja afetada pela mutabilidade do corpo.


------- Prossegue a pregação, com ainda mais citações bíblicas que incluem as advertências da punição pelo Fogo Eterno. Noto uma perda da acuidade filosófica dado a natureza apologética do discurso, que se desviou para um teor basicamente religioso. A digressão sobre a fogueira chega a soar revoltante para nossa mentalidade contemporânea, e fica a questão de se não seria mais Perfeito um Universo Sem Pecado do que um Com Pecado, e sendo assim: Porque Deus preferiu um Com Pecado?

Capítulo X [O PECADO ORIGINAL]
- Duas origens do Pecado, os espontâneos e os persuadidos.
- Os pecados espontâneos são mais graves do que os induzidos por outrem, porém ambos são voluntários.
- Deus cumpre a justiça punindo ambos os pecados.
- O homem pecou menos que o demônio, pois este induziu o homem a pecar, por isso ao homem está aberta a possibilidade de salvação, que ao demônio é repelida pelo vício.
- O Verbo se fez carne para se tornar acessível aos homens que, caídos, estão submetidos aos limites do corpo, pois o Verbo original só é visível pela razão, que se encontra prejudicada no homem.
- Ao consentir com o Mal induzido pelo Demônio, o homem tornou-se se escravo, sendo retido por este a não ser que este se volte à Deus, sendo então obrigatoriamente libertado pelo demônio.
- O demônio tem direito ao homem na medida em que este, uma vez que aceitou a indução para pecar, aceitou este domínio, por isso o demônio não é derrubado pela justiça divina, e terá domínio sobre o mundo enquanto houverem homens nascidos.


------- Finalmente é mencionado o Demônio, provavelmente como forma de explicar as questões em aberto relativas a Origem do Impulso para o Mal, e para reforçar as idéias de Justificação da Punição e permissão divina da existência do Mal. Porém esses temas não são assim diretamente abordados, exigindo muita interpretação, de modo que é possível que tais digressões não respondam de fato às questões. Esse redirecionamento investigativo consolida em definitivo a transição da Filosofia para a Teologia, que passa a dominar quase totalmente o discurso como aliás tem feito ao longo do Livro Terceiro, em contraste aos Livros anteriores, onde em alguns trechos pareceria até impensável o que é feito aqui.

------- Mal posso crer que na época em que produzi esta monografia, deixei escapar uma idéia potencialmente bombástica, relativa ao Verbo tornar-se carne para apelar melhor aos humanos que não estariam sendo capazes de receber a dádiva direto do "Verbo Original". Considerando que alguns, segundo o próprio Agostinho, buscam a Sapiência e nunca caem gravemente em pecado, e visto que nem mesmo Agostinho negaria que há nesses casos pessoas que jamais conheceram o Cristianismo, deduz-se que apesar de globalmente prejudicada, não é impossível para a razão humana contemplar o Verbo suficientemente a ponto de se dignificar por meio da Razão. Àqueles sem essa capacidade teria vindo o Verbo na forma encarnada, de modo que a doutrina de Cristo, nesse sentido, seria válida principalmente às pessoas que não tem feito uso pleno de sua Mente Racional. Conclusão: As melhores pessoas não precisam do Cristianismo! Ou a ele chegam antes pela Razão do que pela Fé! ( 16 de Fevereiro de 2004 )

Capítulo XI [O UNIVERSO, O PECADO E A ORDEM]
Capítulo XII [BELEZA PERENE DO UNIVERSO]

- Deus criou todos os seres, os sempre virtuosos, e os que haveriam de pecar, mas não os criou para pecar.
- Aos primeiros seres, não sujeitos ao pecado, estão os mais altos encargos do Universo, sem os quais, ou se estes pecassem, o Universo não existiria.
- Os segundos seres, mesmo pecando, não prejudicam a existência do Universo, mas prejudicariam se não existissem. Estes, quando não caídos em pecados, também possuem importantes funções.
- Os primeiros são revestidos de corpos celestes, os segundos de corpos mortais,
- Mesmo que os primeiros pecassem, não seria difícil para Deus restaurar a ordem e criar novos seres.


------- Aqui temos um esboço de Angeologia, com uma breve descrição hierárquica dos Anjos que é em parte justificada pelo que se seque no próximo capítulo. Fica a questão relativa aos diferentes corpos, um tanto estranha. Os anjos caídos então teriam corpos? Teria sido Lúcifer corporificado após a queda?
-------Nota-se também a possibilidade de que Deus poderia então ter feito um Universo sem pecado, mas que dentre infinitos universos logicamente possíveis, deu existência a este. Por quê? Ou estaria Leibniz certo ao afirmar estarmos no melhor possível?

Capítulo XIII [TODO O SER É BOM]
- Tudo que pode tornar-se menos bom é Bom. Tudo o que não pode tornar-se menos Bom, também é Bom.
- Todo Ser É Deus, ou Procede de Deus.


------- Agostinho cita aqui um dos argumentos pelos quais considero que a criação Ex-Nihilo é absurda. As coisas não vieram do Nada. Elas vieram de Deus! Nesse sentido, se não havia matéria antes, mas havia Deus, e este cria a Matéria, logo, a Matéria vem de Deus, mesmo porque a idéia da Matéria em Deus já estava presente, e dele procede sua criação.
-------É por isso que insisto que a cosmologia cristã não deixa de possuir um teor semi-panteísta, uma vez que Deus é, ou está em tudo, havendo uma certa Imanência em sua Criação além da Transcendência. Só não se torna Panteísmo devido a relação de derivação temporal de Deus para o Universo.

- O Ser que é Bom merece louvor, e sendo Deus o criador de todos os Bens, ainda mais merece ser louvado.
- O Defeito é algo que vai contra a Natureza de um Ser, e pressupõe que a Natureza é Boa, merecendo qualificar de defeito sua falta.
- Todo defeito é um deformação. A natureza não deformada é isenta de defeito.

Capítulo XIV [O DEFEITO SUPÕE O BEM]
- Um ser de natureza defeituosa não pode deformar um ser de Natureza superior, se este antes mesmo já não for deformado por defeito próprio.
- Uma natureza mais forte que se apresenta para deformar outra natureza mais fraca, na verdade se apresenta como mais débil, e há defeito em ambas por Iniância, ou ocorre da mais forte, mesmo não defeituosa, deformar a mais fraca por reprovação, a exemplo de Deus punindo os pecados.
- Quando se reprova um defeito, louva-se a Natureza.


------- Esse desenvolvimento apesar de óbvio a segunda vista, parece de fato sempre escapar a primeira vista, a exemplo de tantas pessoas que consideram o Ser Humano mal, e as vezes até a si próprias, sem perceberem que essa simples reprovação pressupõe no mínimo um reconhecimento e valorização do Bem.
-------Um dos pontos que soam estranhos é quanto a referência de que uma natureza maior, como Deus, pode deformar outra não por defeito, mas por correção. Ora, mas não seria isso então uma "reformação"?
-------Esse capítulo também está as voltas com uma variação da questão primordial, que é como pode o Mal surgir num sistema Perfeito.

Capítulo XV [A DÍVIDA DOS SERES CRIADOS]
- Improvar os defeitos redunda em louvar a beleza e a dignidade.
- As coisas tornam-se defeituosas a medida que se afastam de sua Idéia Arquétipo, criada por Deus, mas tais defeitos só são reprováveis se ocorrem voluntariamente.
- Ninguém deve o que não recebeu, pois mesmo o que se entrega por legado, entrega-se a quem fez o legado, sendo seu sucessor de direito, e não ao credor, dessa forma deve-se falar em cessão, não em entrega.
- Por isso as realidade temporâneas que descendem de outras realidades temporâneas. Se elas não perecem, não podem as realidades futuras seguir-se as atuais.
- Aquele que deseja que uma parte da realidade temporânea não passe será considerado de insólita demência.
- A existência dos seres racionais perfaz no Universo perfeição harmoniosa, mas deve-se corrigir o pecado.
- Como ninguém é superior às leis de Deus, a alma não pode se eximir de pagar o que é devedora. Se não se restituir praticando a justiça, padecerá sofrendo o castigo.
- A fealdade do pecado é compensada pela decorosidade do castigo


------- Embora não fique, neste capítulo, muito clara e direta a relação entre os temas, é evidente que ela se propõe a justificar a dívida de todos os humanos em virtude do Pecado Original.

Capítulo XVI [GLORIFIQUEMOS O CRIADOR]
- Deus nada deve a ninguém, mesmo porque a ninguém deve a existência, mas todas as coisas a ele devem, por terem sido por ele criadas, todos devem louvar o Criador.
- Quando alguém não pratica o que deve, não o faz por culpa do criador, pois este não só o ordenou querer louvá-lo, mas deu-lhe a capacidade para tal, e não permitiu que impunemente não se o quisesse.
- Se podes eximir de culpa o pecador culpando o criador, então não existe pecado, portanto não há pecador e não há o que atribuir ao criador. Louva então o Criador.
- Se não podes eximir de culpa o pecador, este peca porque que se afasta de Deus, que é digno de louvor.
- Não existe meio de se imputar o pecado ao criador, deve-se pois, louvar o Criador.


-------Finalmente o interlocutor Evódio volta à cena apenas para corroborar o monólogo de Agostinho. Desenvolve-se aqui uma espécie de Tautologia, ou um Pseudo Dilema, pois a afirmação de que se deve louvar a Deus é colocada como verdadeira em qualquer circunstância. Nunca me cansarei de perguntar porque um Ser Perfeito, auto suficiente em tudo e que nada deve a ninguém, necessitaria ser louvado.

Capítulo XVII [A INIÂNCIA - RAIZ DO MAL]
- O que causa a vontade que separa os seres nos três grupos, que nunca pecam, que pecam mas se redimem, e que permanecem no pecado?
- Ao se descobrir a causa da vontade, não se indagaria da causa da causa? Até que ponto sucederia essa cadeia causal? Basta delimitar um ser como a Causa.
- A raiz dos males é a Avareza, o querer mais do que se deve, um desregramento da vontade.
- A Vontade é a causa de tudo


------- Ao voltar a cena, Evódio performa sua última questão, insistindo na causa da Vontade. É bem justificada a idéia de deter a cadeia causal de explicações na vontade, de modo a tudo explicar por ela. A vontade seria então suficiente, uma forma de causa final. O problema, como sempre insistirei, e que não é diretamente tratado nesta obra, é que uma vez que Deus é Onipotente e Onisciente, a Vontade dos seres também deveria estar sob seu controle, caso contrário ele não teria uma destes potências, ou melhor, não teria a Onipotência.

Capítulo XVIII [LIMITES DA RESPONSABILIDADE]
- Provêm, por fim, o pecado de uma vontade ou uma natureza?
- Sendo Deus Justo, não puniria o pecado se fosse resultado de natureza, portanto o pecado é fruto de livre vontade.
- É justíssimo que alguém seja privado daquilo que não quis usar bem, podendo tê-lo usado facilmente se quisesse. Com a quem sabendo, não agiu honestamente, seja privado de saber o que é honesto, e que podendo, não agiu honestamente, seja privado de poder, mesmo que queira.
- A todo que peca, é punido por dois fatores, Ignorância (pela qual é rebaixado pelo erro) e Penosidade, (pela qual é atormentado pelo sofrimento).
- Tomar como verdadeiro o falso, errando contra a vontade dado o ardor do vínculo carnal, não é natureza do homem originário, mas o castigo do condenado.
- Quando se fala do Livre Arbítrio para agir bem, fala-se da natureza com a qual o homem foi criado.


------- Mais do que nunca, parte-se do princípio da perfeita justiça de Deus para responder as questões, o que leva a uma certa circularidade, visto que o filósofo se dispõe a provar pela intelecção o que já é atestado pela fé. Ao apelar para um dado de Fé, pois não ficou racionalmente provada a bondade e justiça de Deus, como o próprio teor das questões denuncia, Agostinho termina, aqui, por cometer a falácia de usar dentro do argumento a tese à qual o argumento deveria provar.
------- É também estranho afirmar que a remoção da faculdade de discernir seja justa condenação pelo pecado, uma vez que com isso o pecador jamais poderá se regenerar, e que isso vai contra as declarações do Livro Segundo Capítulo X, e mesmo com o que se declara logo no capítulo seguinte.

Capítulo XIX [A NEGLIGÊNCIA É CULPÁVEL]
- Homens maldizentes rosnam entre si, pecando e acusando a todos menos a si mesmos, a seguinte questão: Se foram Adão e Eva que pecaram, porque nós, que nada fizemos, nascemos com a cegueira da Ignorância e os tormentos da Penosidade?
- Basta responder que existem aqueles que vencem a lascívia. Uma vez que Deus está em toda a parte, a ninguém foi tirada a capacidade de saber e indagar vantajosamente o que desvantajosamente se ignora.
- Aquilo que se pratica por ignorância ou por fraqueza, denominam-se pecados porque retiram sua origem do Pecado Original.


------- Agostinho já há muito vinha se utilizando do que agora abusa, o Ad Hominem, insultando duramente os que propõem questões por vezes justíssimas, como a citada.
-------Curiosamente a resposta vai de encontro não só ao que foi afirmado no capítulo anterior, como parece contradizer o que se adianta dentro do mesmo capítulo. O problema não é desprezado e tais contradições são percebidas, mas apesar da relevância do assunto que se segue, não há um melhor desenvolvimento do tema a ponto de anular as contradições. Se o pecador fosse privado não só do saber, como do poder, como afirma o Capítulo XVIII, não haveria qualquer chance de recuperação.

Capítulo XX [A ORIGEM DA ALMA]
- Foi justíssimo que Deus, desde Adão e Eva, tenha permitido que a Ignorância, a Penosidade e a Mortalidade tenham se precipitado nos homens desde a origem.
- Porém manteve-se a Venturidade e a Fecundidade, pois que mesmo os remotos descendentes podem superar a condição em que nasceram.
- [1]Se foi criada uma só Alma de onde se retira a origem de todos os homens, nada mais justo que estes compartilhem da punição que esta primeira alma, presente em Adão e Eva, recebeu por pecar.
- [2]Se as almas surgem separadamente em cada um dos que nascem, é congruentíssimo que a origem da Primeira seja o Bem que a Segunda merece, bem como a origem da Segunda seja o que a Primeira desmereceu.
- [3]Se as almas já existem em algum lugar determinado por Deus, e são enviadas por este para reger o corpo, é em virtude da condição dos corpos que as almas são encarregadas da incumbência de corrigí-lo, sendo agraciadas pelo mérito e punidas pelo pecado.
- [4]Se as almas já existem em algum lugar e procedem espontaneamente para animar os corpos, o fazem por livre vontade sendo obrigada a arcar com as consequências da existência carnal.
- Em ambos os dois casos imediatamente anteriores, as almas são submetidas a esquecimento de sua vida pregressa.


------- Finalmente é tratada a importante questão levantada no Livro Primeiro Capítulo XII, sendo oferecidas 4 alternativas para um mistério que ainda está em aberto para a maioria dos teólogos. O ponto mais confuso é com relação a segunda alternativa, que tenta justificar que as almas individuais nascidas após a queda de Adão e Eva merecem a condição de castigo, por terem herdado também a possibilidade de salvação bem como, que por serem inteligentes já são melhores que os demais seres.

Capítulo XXI [DESTINO DA ALMA]
- A questão relativa à origem da alma não está suficientemente tratada nas escrituras sagradas a ponto de nos permitir conclusão definitiva, portanto permite ainda investigação.
- Que tudo porém esteja submetido à conformidade com as escrituras, afim de não se pensar nada de falso ou indigno do criador.
- É válido percorrer a questão aberta sobre a origem das almas desde que não se dê a conclusão por certa e sabida,
- Devemos acreditar em todos os fatos narrados na Bíblia, quer sejam passados ou futuros.
- Qualquer erro a respeito da autoridade divina refuta-se provando que implica em admitir existir alguma enticidade em Deus, alguma mutabilidade, e que seja algo a mais ou menos que a Santíssima Trindade.
- Aos crédulos essas verdades devem ser esclarecidas e aprofundadas.
- Aos incrédulos essas verdades devem ser defendidas de modo a que sua infidelidade seja desfeita pelo peso da autoridade do testemunho, ou quando possível, mostrar que não é estultícia acreditar nelas, e que é estultícia não acreditar.
- Não é tão preciso refutar as falsas doutrinas relativas a fato passados ou futuros quanto as relativas a fatos presentes. E entre as passadas e futuras, é mais importante estudar as passadas, mesmo porque nessas há a prefiguração dos fatos futuros.
- Não há grande mal em desconhecer-se a origem, quanto há em desconhecer-se o destino. O barco que zarpa tem mais necessidade de conhecer seu destino que sua origem.


------- Aqui temos basicamente uma admissão da inconclusão do tema da origem das almas, e uma extensa apologética bíblica que em poucas palavras apela à Inerrância e Infalibilidade, exigindo defesa de seu conteúdo a qualquer custo, inclusive pelo "Peso da Autoridade do Testemunho", algo que viria a soar mal no futuro (Idade Moderna).
------- A constatação com relação à importância do destino da alma como maior que a da origem, curiosamente está oposta a maior importância de estudar as coisas passadas das escrituras que as futuras, mas de qualquer modo concordo com Agostinho. Saber para onde iremos, isto é, o que há após a morte, é mais importante que saber de onde viemos.

Capítulo XXII [AO ENCONTRO DA VENTURIDADE]
- Partindo da Ignorância e Penosidade, a alma deve se levantar rumo ao conhecimento e serenidade, até se tornar venturosa.
- Se negligenciar esse progresso, do qual não lhe falta capacidade, será lançada em ainda maior ignorância e penosidade.
- O Criador é sempre louvado, porque desde o início lhe deu a capacidade para chegar ao Bem Supremo, porque a ajuda no caminho, porque pune a que peca e que desde o princípio recusa-se à elevação.
- É indubitável que o Criador não a fez má, e ainda que desconheça o que fazer, ocorre por ainda não ter recebido o conhecimento, mas recebê-lo-á se usar corretamente o que já recebeu.
- Se a alma já sabe o que fazer mas ainda não consegue, é porque ainda não recebeu o poder de faze-lo. Por isso, deve implorar a ajuda do criador, que em sua misericórdia a atende prontamente, se tornando então querido desta, que sozinha não pode progredir somente por suas próprias forças. Quanto mais querido à alma for o Criador, mais nele descansa e mais disfrui na eternidade.


------- É curioso esse apelo emotivo, tanto quanto essa pregação que defende a dependência. Essa característica da doutrina cristã em anular o ego humano em prol de uma concepção de divindade talvez me seja o elemento mais problemático dessa religião. Como viria a dizer Feuerbach, em A Origem do Cristianismo, e mais posteriormente os Psicanalíticos, é como uma projeção de todas as boas qualidades humanas no externo, deixando ao interno somente o reprovável. Freudianamente, pode se explicar esse tipo de comportamento religioso, quando muito enfático, como uma psicopatologia que diante da impossibilidade de emancipação do Ego, necessita reforçar o Super Ego, e ainda por cima confunde o Ego com o Id! Resultando em reduzir a psique humana a apenas dois elementos, um misto de Ego/Id, e um Super Ego que absorveria tudo o que de bom há no Ego, e seria identificado como via de acesso a Deus, Impressão de Sapiência.

Capítulo XXIII [DOR E MORTE DOS NEOGÊNITOS]
- Alguns ignorantes interpelam questões relativas ao sofrimento de crianças que morrem antes de atingir qualquer mérito ou conhecimento na vida, não tendo cometido nenhum pecado, e qual será sua condição no Juízo Final uma vez que também não pode atingir a virtude meritória.
- Segundo as leis absolutas, é impossível que um homem seja criado supérfluo.
- Segundo alguns o recém nascido falecido pode ser beneficiado pelo Batismo e pela Fé de seus pais, de modo a ter sua entrada garantida no paraíso.
- Muitas vezes o criador visa promover uma correção nos mais velhos por meio dos sofrimentos infligidos na criança.
- Quanto ao sofrimento desta, que relevância teria uma vez que após passado, será como se nunca tivesse existido? E quem sabe que compensações ditosas o Criador pode reservá-las?
- Contraditores, que não passam de agitadores loquazes, perturbam a fé dos menos instruídos com questões semelhantes sobre o animais. Que mal praticaram para merecer tantos padecimentos? Porque não são agraciados com a insensitividade dos objetos?
- A dor que os animais sentem bem como o gozo que buscam, manifestam então a fuga da desagregação e busca da unidade, evitando a deformação, e buscando a harmonia própria do seu gênero, e dessa forma proclamam também a unidade do Criador.


-------Agostinho se dispõe aqui a responder apenas duas da inúmeras questões que apregoar a existência de um Deus bondoso e Onipotente resultam ao se constatar a existência da inúmeras formas de mal no mundo. Uma vez que o Mal é explicado tendo em visto o Livre Arbítrio dos seres Racionais, como então explicar que aflija também os irracionais?
-------Voltando a insistir no desmerecimento dos que formulam tais perguntas, as respostas soam apenas razoáveis, um vez que muitos podem imaginar respostas similares, por vezes melhores, e que muitas questões derivadas podem ser feitas, tais como: "Porque os animais por vezes afligem males a si mesmos, se tem instinto de buscar a unidade?", "Como explicar as doenças ou acidentes que eles também sofrem, que independem de seus instintos de busca de gozo e fuga da dor?", "Porque Deus não envia para corrigir os pais, ao invés de crianças que dispõem de alma, apenas simulações que não fossem de fato seres humanos? Não faria diferença prática, pois os pais sofreriam do mesmo modo, sem que ocorresse sofrimento da criança.", "Como ficam as pessoas que sofrem de deficiências mentais de nascença, sendo incapazes de proceder com os devidos atributos racionais?", "O que acontece com o homem virtuoso que por algum acidente tem sua mente afetada?", e inúmeras outras.

Capítulo XXIV [DA INSCIÊNCIA À SAPIÊNCIA]
- Há os que indagam: Se o primeiro Homem foi criado sapiente, porque foi seduzido? E se foi criado insciente, como eximir Deus de seu defeito?
- Ora, há um estado intermediário entre a Insciência e a Sapiência. O neogênito não é insciente, e muito menos sapiente, embora já possua natureza humana.
- A Insciência é a Ignorância das coisas que se deveria buscar ou evitar, mas por defeito. O animal irracional não é Insciente, por não ter a capacidade de ser Sapiente.
- Uma coisa é ser Racional, outra é ser Sapiente.
- Pela Razão pode receber um preceito, que se observado leva à Sapiência.
- Desde que se é Racional, pode-se receber o preceito, pode-se pecar, quer seja não aceitando o preceito, quer seja aceitando-o e não o observando. E o Sapiente pode pecar desviando-se da Sapiência.
- Tal como o preceito não provém de quem é iluminado, mas de quem ilumina, o mesmo se dá com a Sapiência.
- A doutrina do estado intermediário entre Insciência e Sapiência anula a questão: "Foi por Insciência que o Homem se afastou de Deus, ou afastando-se tornou-se Insciente?".


-------Há uma notória contradição da idéia do Estado Intermediário com o que é dito no Livro Segundo Capítulo XV, onde Agostinho força o interlocutor a reconhecer que se alguém não é Sapiente, logo é Insciente. Sendo porém esta última doutrina do Estado Intermediário inegavelmente superior em termos de lucidez, não vejo outra alternativa a não ser reconhecer um erro na idéia contrária.

Capítulo XXV [O ORGULHO E A SAPIÊNCIA]
- Só uma coisa conhecida estimula a vontade a agir. Aceitar e Rejeitar está no poder de quem escolhe, mas ninguém tem poder sobre o objeto de conhecimento.
- O espírito é atingido por objetos de conhecimento tanto inferiores, como a solicitação do Demônio, quanto superiores, como o preceito de Deus.
- Sendo Sapiente, não se cede ao objetos de conhecimento inferior.
- Uma vez que não se dirige à mente o que não atinge o espírito, de onde veio o objeto de conhecimento que incitou o Demônio a decair de seu estado de Anjo Bom?
- Devemos distinguir dois objetos de conhecimento, um que procede da vontade de quem persuade, como o foi o apresentado pelo Demônio ao homem, e outro que procede das realidades às quais estão submetidas o espírito ou os sentidos do corpo.
- Como ao demônio não se pode ter apresentado conhecimento inferior, pois todo o conhecimento que lhe chegasse viria de Deus, este cedeu a conhecimentos que lhe atingiam diretamente o espírito, no caso sua sensação de independência.
- Tanto melhor se é quanto mais dependente de Deus se sente, e quanto mais se sente independente, tanto pior.
- A soberba e a inveja foi então o que levou o Anjo a pecar e decair, fazendo-o por iniciativa própria, diferente do homem, que foi induzido.
- Por isso ao homem é oferecida a salvação pela imitação de humildade fornecida por Deus no sangue de Cristo.
- A isso devemos nos manter firmes, e que nada nos desvie da direção dos bens superiores, e que o simples pensamento dos tormentos e danação eterna do demônio nos afastem de apetecer ao bens inferiores.
- Tão grande é a beleza da rectitude e o enlevo da luz eterna, que se nos fosse dado permanecer nela por menos que um dia, já desprezaríamos todas as delícias e superabundâncias dos bens temporâneos.


-------A formulação a respeito de "objetos de conhecimento" é basicamente uma outra forma de se abordar a questão fundamental que marca toda a obra desde o primeiro capítulo, que é saber de onde veio afinal o Mal Original, que aflige diretamente não o homem, mas o Anjo que viria a cair e se tornar Demônio.
------- Como último recurso, Agostinho tenta desviar a responsabilidade de Deus para uma espontaneidade ocorrida no espírito do Anjo, que evidentemente já possuía então Livre Arbítrio. Dessa forma, a culpa termina por recair novamente no Livre Arbítrio, pois sem o mesmo jamais teria ocorrido no Anjo a disposição para se desviar de Deus. Porém, mais uma vez, e enfim pela última, esse argumento, assim como qualquer outro não consegue resolver o problema, pois ele se confrontará com o insuperável obstáculo seguinte.


A ONIPOTÊNCIA


------- Ao longo de toda a obra a Onipotência não recebeu, a meu ver, o tratamento adequado, sendo apenas citada com um dos atributos de Deus, mas na realidade este não seria um, mas provavelmente o mais importante e determinante de todos os atributos, uma vez que a Onipresença pode ser vista como "Poder para Estar" presente, ou a Onisciência como o "Poder de Saber".
-------É basicamente a Onipotência que irá se chocar contra todo o pensamento agostiniano, medieval e toda e qualquer forma de teologia cristã toda vez que estes tentem eximir Deus de qualquer evento ocorrido no Universo. Em poucas palavras é simples, não há como retirar de um Ser Monoteísta, Onipotente e Onisciente a responsabilidade por qualquer ínfimo detalhe que ocorra no universo, neste sentido, toda a apologética agostiniana, ainda que muito valiosa em diversos aspectos, é inútil, não por qualquer problema com o filósofo, que é inegavelmente genial, mas porque o conceito de Onipotência é totalmente impossível de ser relativizado.
-------OMNIPOTÊNCIA, significaria não só TODAS AS, mas À MÁXIMA. Ou seja, todas as potências possíveis elevadas ao seu grau extremo. Esse conceito por si só é contraditório, pois é evidente que muitas das potências são mutuamente exclusivas, como Força Irresistível e Resistência Invencível, ou as questões relativas ao irritante paradoxo da pedra que não pode ser levantada, e dessa forma não pode existir Onipotência.
-------Poder-se-ia argumentar, como eu mesmo propunha há tempos atrás, que o paradoxo da pedra é uma mera confusão linguística, uma impossibilidade lógica, mas esse argumento já retira algo da Onipotência, pois Deus estaria limitado então ao logicamente possível.
-------É muito arriscado para a teologia cristã adotar essa perspectiva, primeiro porque muitos dos dogmas assumidos como Antinômicos ficariam em cheque, segundo por que isso implicaria em que Deus fosse logicamente compreensível, e assim, humanamente racionalizável, quando na verdade sua Onipotência e natureza deveria estar acima do alcance mental humano.
-------Tendo isso claro, não há como, por absolutamente nenhum tipo de acrobacia intelectual, solucionar qualquer uma das grandes antinomias como a da Imutabilidade e Eternidade em relação a criação de um Universo temporal, ou propor qualquer teodicéia triunfante, por um motivo simples, a razão simplesmente não pode admitir a contradição explícita, que é uma constante sempre que se tentam formular conceitos absolutos e relacioná-los aos relativos.
-------Vivemos num mundo de relações, não temos nada absoluto em nossa experiência concreta, só possuindo absolutos na abstração, e mesmo nela, submetidos a vários limites. Onipotência seria um universo de todos os absolutos coexistindo, algo no mínimo impossível de compreender, mas até defensável como possível embora epistemologicamente inacessível, mas o problema maior ocorre quando tentamos relacionar esse universo de abstrações absolutas ao nosso mundo relativo, o que só resulta em paradoxos e mais paradoxos incompreensíveis.
-------E o problema que permeia toda a obra agostiniana. Uma vez que se reconhece a existência do Mal, como explicá-lo num universo que teria sido criado por um Deus absoluto, Onipotente e Bom?
-------Não há como explicar! É simplesmente impossível.
-------Religiões anteriores, como a greco-romana, jamais sofreriam com problemas similares, pois as divindades dividiam suas responsabilidades pelo universo, o deus criador não é o mesmo mantenedor, que não é o mesmo ideal de justiça. No cristianismo, e no monoteísmo abrâamico em geral, um mesmo ente é Criador, Mantenedor, e Princípio do Bem, e mais, tendo todas essas características elevadas ao grau máximo!
-------Assim é o Deus Onipotente, que dessa forma é responsável por cada evento por mais ínfimo que seja. Para não se alongar demais no tema com relação a obra de Agostinho, basta citar como a idéia de Onipotência aniquila a tentativa de eximir Deus da autoria do Mal atribuindo-a ao conhecimento espontaneamente adquirido pelo Anjo que viria a cair, pelo simples motivo de que se Deus é de fato Onipotente e Onisciente, ele teria conhecimento total e absoluto de cada evento perceptivo ao qual estaria submetido o Anjo, de cada ínfimo detalhe de toda sua experiência e todas as suas inevitáveis reações. Porque então Deus, que poderia dar criação a infinitos outros Universos possíveis, escolhe este onde isso ocorreria? Uma vez que, é lógico, nem tudo o que é logicamente possível existe, porque esse universo pecador em especial? Ou será que existem infinitos universos logicamente possíveis?
------- Além disso Deus não teria apenas um conhecimento imediato, mas antecipado. Deus teria anteconhecido cada um destes detalhes desde toda a eternidade, dado sua Onisciência. Sendo assim, e investido de sua Onipotência, ele no mínimo permitiu que tudo ocorresse, mas na verdade nem isso, uma vez que todas as peculiaridades de cada criação e suas experiência estão em seu poder e conhecimento, ele na verdade Determinou! Isso não pode ser mais evidente, o problema é que o comprometimento religioso dos filósofos medievais não podem admitir aquilo que aparentemente só Calvino viria a ter coragem de admitir em sua doutrina de Predestinação.
-------Agostinho adora usar analogias, portanto sigamos seu exemplo. Se alguém sabendo que um crime está para ocorrer, e podendo evitá-lo não o faz, não é então considerado cúmplice?
-------E isso porque estamos falando de um ser humano, limitado em vários aspectos. Não são também os pais responsáveis pelos crimes dos filhos até certa idade? Não é justo que dado a falhas de criação, os Pais também arquem com as consequências dos atos de seus filhos menores?
-------E isso porque sabemos que os pais não tem controle absoluto sobre os filhos. Deus tem! Ele não só tem o conhecimento total, como tem sobre eles o poder total, mesmo infinitamente antes de sequer dar início a criação do universo onde tais eventos se desenrolariam.
-------Esse problema não é ignorado por Agostinho, a julgar pela apologética da existência, onde fica clara uma defesa do fato de porque Deus deu existência a entes que saberia que pecariam, ou porque não lhes induziu por outro caminho. Bem como pela questão de indaga se seria justo punir algo que é no mínimo assumido como inevitável a partir do momento que se cria alguma coisa.
------- Deus teria poder para influenciar mesmo sutilmente as decisões de suas criaturas, ou ao menos reduzir-lhes os efeitos de seus atos, poderia até decidir só dar existência a seres que se limitassem a um certo campo de atitudes. Mas uma vez que decide, livremente, por em existência seres que sabe que a natureza lhes levará a pecar, natureza no caso de seu Livre Arbítrio, porque puni-los? E em especial, e sem dúvida o mais agravante, porque puni-los com o sofrimento perpétuo? Acaso um ser não preferiria não existir do que existir em forma de indescritível sofrimento constante? Porque não é dada a esses seres a oportunidade de decidir se preferem mesmo, de fato, existir no mundo por meras décadas e depois sofrer perpetuamente? Porque no inferno não lhes é dada a opção de não existir? Se ela não for aceita, então podemos inferir que o inferno não é tão ruim assim!
-------Ora, o ser inteligente escolhe de acordo com o que tem em vista, se a ele fosse conhecido que seus atos o levariam a destinos tão terríveis, escolheriam pecar?
-------Se for contra argumentado que dessa forma seu Livre Arbítrio seria afetado, como já me foi proposto, então basta replicar com o fato de que então esse Livre Arbítrio já é afetado, pois muitos recebem desde cedo orientações sobre o destino que sofrerão se escolherem tal ou qual coisa. Isso resulta num pseudo Livre Arbítrio, que é colocado acompanhado de ameaças, o que evidentemente não é aceitável.
-------Nesse sentido, o Livre Arbítrio em Agostinho, e em quase toda teologia cristã, é anulado por dois fatores, primeiro por ser condicional, "Eu lhe dou a opção de escolher X ou Y, mas se escolher Y vai sofrer tais e quais consequências que eu mesmo determino". E segundo, porque a ONISCIÊNCIA de Deus, associada a sua ONIPOTÊNCIA, não podem coexistir com a Liberdade das criaturas, pelo simples fato de que ele deu existência a seres cujo caminho já está completamente traçado, e cuja sua Onipotência não lhe permite se eximir de Determinar.
-------Por fim, Agostinho é um dos protótipos de um perfil com o qual já desenvolvi experiência em debates ao vivo, ou na internet, que são pessoas muito inteligentes que respondem pronta e objetivamente a qualquer questão respondível, mas quando submetidas a questões insolúveis como as Antinomias, ao invés de simplesmente confessarem a impossibilidade de resposta, começam a dar voltas em torno do problema, abordando vários outros aspectos que a primeira vista parecem relevantes quando na verdade são escapes tangenciais ainda que válidos e instrutivos em muitos casos.
------- Me pouparei de discorrer mais sobre o assunto, mesmo porque já tratei a maior parte em outros textos que estão disponíveis em meu site na internet, em especial:
--------
"DEUS?" (www.xr.pro.br/deus.html) Onde abordo os problemas básicos do Monoteísmo Cristão, com especial destaque para os conceitos de Eternidade, Perpetuidade, Temporalidade e Super Temporalidade, e inclusive propondo o Aniquilacionismo e a Apocatástase como formas de solucioná-los.
--------
"Psicogênese da Religião" (www.xr.pro.br/monografias/psicogen.html) Onde formulo o esboço de uma teoria psicológica da Religião com capítulos que abordam a idéia de Deus, incluindo sua descartabilidade, e sua desvinculação de fundamentos com a Ética.
-------- Diálogos (www.xr.pro.br/dialogos.html) Onde com meus visitantes abordo vários temas relativos ao assunto.


PARTE - 3

LIBERTANDO DEUS

-------Não se trata de querer agir como Hércules ao resgatar Prometeu. Ou sim?
-------A idéia é, uma vez que não somente Santo Agostinho como nenhuma outra pessoa jamais foi capaz de propor uma solução clara e satisfatória para conciliar o Livre Arbítrio com os OMNI atributos divinos, bem como conciliar as idéias de Círculo e Quadrado, resta por força da lógica, optar por um ou outro uma vez que não se esteja obrigado a aceitar uma profissão de fé que exija a sustentação das duas.
-------Calvino optou por preservar os Omni abtributos, destruindo o Livre Arbítrio com a doutrina da Predestinação. Eu, pelos motivos que foram expostos na Primeira Parte deste trabalho optei por sustentar a crença na existência do Livre Arbítrio, e tentar garantir sua validação racional.
-------Há logo de início uma decisão fundamental, que é optar ou não pela existência de um ser que mereça ser chamado de Deus. Os existencialistas franceses em geral acreditam que eliminando Deus decorre necessariamente a Liberdade. É possível, mas vejo também a possibilidade oposta.
-------Se o Universo for um total fruto do acaso, e houver uma completa ausência de qualquer "Razão" para a nossa Existência, posso muito bem supor que justo nesse caso seríamos ainda menos livres.
-------Ora, tal idéia, o Ateísmo Existencialista, só é possível em nosso contexto contemporâneo, uma vez que só então tivemos dados de procedência científica capazes de permitir arquitetarmos uma concepção existencial capaz de prescindir das tão vitais noções de planejamento e Cosmos que embasavam o pensamento antigo e medieval.
-------Portanto o Existencialismo tem uma dívida para com a Ciência. A questão é se a credora Ciência também não deveria exigir a venda casada de um pacote de conceitos científicos mais completo, o que incluiria o indeterminismo quântico.
-------Se assim for, a idéia de que o Universo seria, como temia Einstein, um jogo de dados, me parece muito bem aniquilar o conceito de Liberdade como são constantemente aniquiladas as partículas subatômicas. Não seríamos então livres, mas na verdade instantaneamente determinados. As flutuações quânticas presentes nas estruturas elétricas e positrônicas de nossas sinapses seriam então aleatórias. Nós seríamos determinados sim, não por um plano original ou pela contingência das variáveis do Big-Bang, mas pelas flutuações caóticas da femto estrutura da matéria.
-------Se num dado momento mudamos nossas convicções ou não, isso se dá apenas porque, ao acaso, nossos impulsos cerebrais foram condicionados pelo jogo de dados do mundo quântico. Não afirmo que tenha que ser assim, mas me incomoda que os existencialistas pareçam nunca ter examinado a questão nesses termos.
-------Se não for isso, poderemos cair então no próprio Determinismo, o que mais uma vez aniquila nossa Liberdade e Livre Arbítrio.
-------Talvez, e para a mais completa ironia filosófico histórica, seja exatamente Deus que venha nos libertar dessa prisão randômica, e nos garantir a Liberdade, ao estabelecer um grau mínimo de ordem no Universo, sem que caia no extremo oposto do Determinismo, mas para isso, é necessário que esse próprio Deus seja Livre.
-------Pois, se Deus é um ser Onipotente e Onisciente, Imutável e pleno em todas as suas Perfeições, decorre que não pode ser Livre, tal ser não pode mudar, não pode decidir, já está auto decidido, seria tão escravo de sua própria potência quando o é cada uma de suas criaturas. Tal ser teria que criar seres mesmo sabendo que seus destinos estariam selados ao fracasso, e aliás, isso até explicaria muito coisa, explicaria porque ele não pode impedir o Mal, porque não tem liberdade sequer para revogar o Livre Arbítrio de sua própria criação, não por decidir mantê-lo trocando um mal maior por um menor e sim porque não pode faze-lo, uma vez que está desde sempre obrigado a não fazê-lo, obrigado por si próprio.
-------Chega a ser vertiginosa tal idéia, mas não menos do qualquer uma das antinomias inevitáveis decorrentes da tentativa de conciliar o Relativo com o Absoluto.
-------Não vejo outra alternativa que não Libertar Deus de sua própria Perfeição!

NÃO À PERFEIÇÃO

-------Por analogia, ainda que um tanto forçada, digamos que um caixa de ovos no que se refere a sua capacidade só é perfeita quando completa uma dúzia, a partir daí, qualquer mudança só pode levar a imperfeição, menos que uma dúzia.
-------Qualquer mudança em um Ser perfeito significa tirar-lhe a perfeição. O que proponho é um Deus mutável e dinâmico, e por conseguinte não perfeito, ao menos não constantemente, isto é, poderia até ter momentos de perfeição, mas que estariam fadados a ser temporários, num ciclo de perda e reconquista contínuo da perfeição, que poderia levar a um Universo Cíclico.
-------Ou isso, ou admitimos um Ser em constante evolução rumo a uma perfeição, talvez mesmo inatingível. Não importa, o que me interessa é um Deus imperfeito, que apesar disso poderia estar num grau de perfeição incomensuravelmente maior que o nosso.
-------Ora, ao néscio, ao humilde, o homem de grande cultura pode parecer infinitamente mais sábio, embora evidentemente não seja perfeito. Portanto se tivermos uma divindade que, mesmo imperfeita, esteja num grau de perfeição abissalmente maior que o nosso, esta já satisfaria nossas incorrigíveis tendências em nos dirigir para algo maior que nós, do qual sequer poderíamos pensar algo maior. Portanto o próprio Argumento Ontológico pode ser preservado, uma vez que mesmo não sendo Perfeito, tal divindade ainda estaria acima de nossa capacidade de concepção de tal nível de Perfeição.
-------Remover a perfeição de Deus não poderia ser mais simples, basta subtrair o mesmo elemento que inviabiliza o Livre Arbítrio, que é tão somente a ONISCIÊNCIA, Absoluta, que Santo Agostinho geralmente chama de Presciência, ou Onisciência Futura, mas esse termo é omisso quanto a "Ciência" do Presente e Passado, e não especifica a amplitude de tal Presciência, por isso, creio que o simples termo Onisciência, se tomado em seu sentido máximo, implica necessariamente em "Ciência" total atemporal.
------- Diríamos então que Deus tem uma Onisciência Relativa, saberia tudo o que é logicamente possível dentro do horizontes de possibilidades criadas pelas múltiplas criaturas. Como Deus poderia saber o que eu farei amanhã se eu mesmo ainda não me decidi? Se sou realmente livre, eu poderia fazer algo que ele não previra com absoluta certeza. (Idéia extraída de Richard Swinburne, na obra Será que Deus Existe?)
-------É claro que Deus, tendo alguma Onisciência, conheceria melhor do que qualquer coisa as possibilidades futuras, conheceria as maiores probabilidades, e provavelmente acertaria na maioria esmagadora das vezes sobre os eventos imediatamente próximos, porém, quando maior a distância no futuro, menor seria sua precisão probabilística, e portanto o futuro iria se tornando cada vez mais nebuloso para Deus da mesma forma como o é para nós. Tenho uma altíssima probabilidade de saber o que farei amanhã, mas e quanto ao que farei daqui a anos?
-------Essa semi Onisciência resultaria em Deus não conhecer plenamente o futuro em todos os seus detalhes, ainda que tenha poder para determinar algumas de suas características gerais. E tal enfraquecimento da Onisciência também implicaria, claro, numa redução da Onipotência, pois ele não teria o poder de saber tudo.
-------Sendo assim, e considerando que se Deus não sabe absolutamente sobre todo o futuro, em contrapartida poderia saber sobre o passado, decorre que seu conhecimento iria sempre aumentando, uma vez que conceituemos que essa Divindade possua uma memória "perfeita". Se vai crescendo em conhecimento, vai mudando, evoluindo, sendo então um ser dinâmico.
-------Outra decorrência inevitável é que essa divindade teria mesmo sua característica de Eternidade comprometida, é óbvio, mas que diferença prática faria para nós um ser Eterno de um ser com a idade de uma vida de Bhramam? Ou seja 311 bilhões de anos.
-------Mais um ponto a se considerar, antes que me acusem de uma excessiva antropomorfização de Deus, se não seria mais antropomórfico querer ter um deus tão próximo, com no máximo umas 9 classes de anjos de intermediários, a ponto de acharmos que logo acima de nós está o Ser Perfeito? Ou se, por outro lado, não seria teomórfico demais queremos estar tão perto de Deus a ponto de sermos capazes de supor que a Eternidade, a Perfeição e portanto o Fim último do Universo são coisas das quais sequer remotamente podemos esboçar? Quem poderia dizer quantas miríades de seres, e quanto graus de perfeição existiriam entre nós e um ente definitivamente Terminal?
-------Essa divindade que proponho é bem menos do que o Deus que os teólogos tradicionais tenha querido crer por milênios, mas eu diria que eles talvez tenham se precipitado em achar que poderiam dizer o que quer que fosse sobre o Supremo Absoluto, do qual as inúmeras antinomias seriam o mínimo que deveríamos esperar como resultado de tão infrutíferas tentativas de elaboração.
-------Portanto, volto a insistir que talvez nos fosse mais útil, mais tratável e sensato crer que antes estamos subordinados a uma hierarquia de seres imperfeitos, embora incalculavelmente mais perfeitos que nós, sobre os quais podemos dizer algo um tanto mais plausível, do que falar em paradoxos absurdos e ininteligíveis na tentativa de versar sobre o Enésimo Céu. E nos contentar em falar sobre essa divindade como o máximo que podemos conceber sem violar os fundamentos primários de nossa racionalidade, pois não posso crer possuir qualquer relação direta e passional com um ser que exige que eu aceite que Um seja igual a Três, quando este mesmo ser teria me dado todas as faculdades mentais para concluir o contrário.
-------E não estou aqui a defender uma mera transferência de problema, pois se eu admitir um ser Perfeito e Absoluto mesmo que seja no último nível, fatalmente irei incorrer no mesmo aprisionamento, e ainda subordinando uma inumerável hierarquia de deuses ao mesmo determinismo.
-------Quis apenas argumentar que insistir em querer ver a perfeição em Deus é nada menos que contraproducente, algo que mesmo inutiliza a Teologia, que termina por fazer pouco mais que produzir miríades de insondáveis paradoxos. Concordo com a máxima "sobre o que não se pode falar é melhor calar", ou melhor, nem sequer se fala!
-------Portanto, proponho deixar de insistir em conceitos irracionais, incompatíveis com nossa Mente, e partirmos para algo que faça sentido, pois vejo que toda a Teologia nada mais tem sido do que uma tentativa custosa de relacionar tudo o que nós mesmos criamos, que é o que nós útil e plausível, com proposições simplesmente absurdas, não que eu discorde que existam aparentes absurdos intrínsecos à nossa própria existência e muitas questões primárias virtualmente insolúveis, mas insistir em associar tantos conceitos faláveis como Ética, Justiça, Bondade, Origem, Beleza, com algo totalmente infalável, como Absoluto, Eterno, Perfeição e similares, me soa quase como um suicídio conceitual, que elabora idéias tão filosoficamente ricas para por fim destruí-las na obscuridade do inexprimível. Mais do que isso, o conceito de Perfeição pode ir diretamente contra a idéia de Infinito, pois a Perfeição é um estado ao qual nada mais pode ser acrescentado, e sendo assim, seria um limite quantitativo que colocaria fim a uma progressão. Se vista apenas como qualidade, e não quantidade, a Perfeição seria no máximo um conceito abstrato e totalmente inacessível a nossa experiência, mas ainda vago. Assim como a temperatura de um milhão de graus, que podemos abstrair assim como o podemos com temperaturas muito maiores, mas que não nos é possível sequer imaginar como uma experiência sensível, pois acima de algumas centenas ou milhares de graus nosso corpo não nos permitira perceber a diferença.
-------A Perfeição seria então, um mero conceito, tal como o de Calor, que serve como referência a uma linha unidimensional de valores. Sabemos que há a Temperatura, que tende ao Frio ou ao Calor, pela física, podemos até determinar uma temperatura mínima, 0 Kelvin, mas não exatamente uma máxima, portanto a palavra Calor não significa uma Temperatura à qual nada mais pode ser acrescentado. O mesmo poderia-se dizer sobre a Perfeição. Seria como uma linha unidimensional de valores que tende ao Perfeito ou ao Imperfeito, mas que não implica necessariamente a que haja um limite.
-------Podemos também vê-la como um mero erro linguístico. Usamos por exemplo os conceitos de Pequeno e Grande, para uma linha unidimensional de "Tamanho", mas sabemos que nada é apenas Grande ou Pequeno, mas sim "Maior que" ou "Menor que", dada a relatividade intrínseca da realidade. Dizer que um coisa é "grande" é simplesmente apelar para um contexto que dê a relação, ou dizer uma palavra vazia.
-------Dessa forma também não haveria o "Perfeito", mas apenas o "Mais perfeito que", e assim como não faz sentido afirmar que existe O Grande, ao qual nada mais pode ser acrescentado, também não haveria A Perfeição, mesmo porque contraria a idéia de Infinitude, a não ser é claro como uma abstração poética e desprovida de significância.
-------Por fim, são dois problemas que eliminamos eliminando a Perfeição de Deus, a inconciliável contradição da Onisciência e Onipotência contra o Livre Arbítrio, e todos as inúmeras antinomias resultantes de conciliar o Absoluto com o Relativo, sem destruir um dos dois. Nos livramos do mau hábito de anular tudo o que podemos conceber ao relacioná-la a uma matriz da qual nada pode ser sequer concebido, e o mais importante, nos livramos de uma vez por todas da herança arcaica de religiões pré-filosóficas que legaram paradoxos indissolúveis aos pensadores medievais e seus descendentes, o que soa quase como uma "pegadinha" macro histórica, como propor enigmas aparentemente coerentes que embaraçam os curiosos, para depois rir deles ao explicar que o problema não faz sentido, que não passa de uma brincadeira.
-------Sinceramente, é assim que eu vejo os dilemas fundamentais da Teologia, são questões que em parte derivam de problemas filosóficos legítimos, mas na maior parte, derivam simplesmente da autoridade arbitrariamente instituída a fontes literárias que jamais tiveram a intenção de fomentar discussões racionais. Os livros sagrados não deveriam ter sido levados tão a sério em termos lógicos.
-------Apesar de tudo isso, não veja a necessidade de jogar tudo fora, pois há questionamentos genuínos, que no entanto são, a exemplo de Agostinho, tornados insolúveis dado ao compromisso com os elementos poéticos e místicos da literatura religiosa.
-------Se nos livramos desses encargos e compromissos com revelações divinas incompreensíveis, temos muitíssimo mais possibilidade de formular algo mais plausível, por mais que lamentemos a perda de determinados elementos de revestimento sobrenatural.
-------Vale lembrar mais uma vez, porém, o profundo abismo epistêmico ao qual parece que sempre iremos nos deparar. Fato inegável, devo admitir, que minha proposição está longe de oferecer uma solução segura para tais dilemas existenciais, mas creio que ela ao menos tem a vantagem de não insistir no irracional, e pretender achar um meio termo razoavelmente satisfatório entre a Liberdade e o Destino.

CAOS E ORDEM

-------Pensemos em nosso Universo. Ele pode ser Determinista, Caótico, ou algo entre os dois. Em ambos extremos não vejo como poderíamos garantir qualquer liberdade, portanto a solução deve residir num óbvio meio termo.
-------Notamos Caos e Ordem no Universo, ou melhor, notamos Ordem, uma vez que algo totalmente caótico sequer nos é compreensível, mas percebemos graus de ordem. Um grau maior numa sala de aula onde as carteiras estão rigorosamente alinhadas, um menor onde as carteiras estão desalinhas, e muito menor onde estiverem ao máximo emboladas, viradas, umas sobre as outras e danificadas.
-------Ainda assim há ordem, a própria gravidade obriga que elas estejam mais próximas do chão do que do teto, e mesmo sem isso, podemos distinguir entre as carteiras e as não carteiras. O simples fato de haver matéria agrupada num determinada forma, implica em Ordem.
-------Um Caos total seria se todas as mais ínfimas partículas estivessem completamente desordenadas. Seria a total ausência de matéria coesa ou energia coerente. O Caos, em sua essência, seria um estado de tal amorfismo, de tamanha ausência de quaisquer relações previsíveis, que nem mesmo poderíamos usar nossos termos para defini-lo, pois nomear, definir, implica em estabelecer Ordem.
-------Mas o Caos seria a potência fundamental do Universo, nele estão contidas todas as possibilidades, todas as partículas necessárias a construção de qualquer ordem estão lá. Mas o que poderia ordená-lo?
-------Algo deve estabelecer a Ordem, pois me parece no mínimo contraditório que a Ordem possa emergir espontaneamente do Caos, ou este não seria Caos. Ou se tal ordem emerge de fato, teríamos então a não existência de um absoluto Caos, mas sempre de algum nível de Ordem, portanto, teríamos apenas Ordem no Universo, em graus distintos. Ou, melhor dizendo, Caos e Ordem meros extremos possíveis do estado do Universo.
-------Com isso faço um paralelo com o argumento invencível que Agostinho apresenta no Livro Segundo Capítulo XVII. O SER NÃO PODE VIR DO NÃO-SER! O ENTIFICÁVEL não pode Entificar a si próprio! Apenas correlacionei isso com A ORDEM NÃO PODE VIR DO CAOS, digamos, espontaneamente.
-------Portanto faz-se necessário estabelecer um Ente que, ou extraia a Ordem do Caos, um Demiurgo, ou uma Ordem perpétua. Simplificando, ou existe um Ser que criou o Universo, ou o Universo, de alguma forma sempre Existiu. Ou, levando a uma concepção mais ousada, Existe um Deus, ou o Universo é o próprio Deus.
-------Talvez, e muitos dados da ciência podem reforçar isso, o Universo seja uma interminável disputa entre a Ordem e o Caos. Disposições aparentemente naturais parecem dirigir tudo no sentido do Caos, como a Entropia, mas há fatores que resistem e impõem Ordem.
-------E para chegar então ao amálgama da questão, podemos simplesmente entender que não havendo Ordem Absoluta, não pode haver Pré-Determinação Absoluta, ou esta exigiria no mínimo uma Ordem intrínseca a todo o aparente Caos.
-------Por outro lado, e este bem menos amigável, a ausência de Ordem Máxima não seria favorável a possibilidade de um Caos Máximo? Ou seja, não seria isso um campo aberto para a idéia da total aleatoriedade, e portanto da aniquilação da Liberdade pelo Caos onipresente?
-------Bem, como somos seres mais inteligentes do que aqueles que só podem distinguir 0 de 1, não temos dificuldade para entender que a ausência de Ordem Absoluta não implica em Caos Absoluto, mas a um óbvio intermediário, portanto, teríamos a Ordem no Caos, ou o reverso, teríamos um incessante jogo de forças entre duas tendências de sentido antagônico.
-------Nós mesmos, como seres conscientes, somos exemplos dessa dinâmica. Nossa racionalidade exige, demanda e impõe Ordem. Sempre estaremos sujeitos aos azares do Caos e Aleatoriedade, mas temos um grau de autonomia na medida em que nossa própria Mente só funciona a partir do ordenamento dos entes.
-------Toda a existência seria uma sequência de imposições da Ordem sobre o Caos. O Universo seria a imposição sobre o Caos primordial, a vida, a vitória sobre a insuficiência organizacional incompatível com a complexidade exigida pelos organismos, seres ordenados, a Inteligência, a superação da Ordem sobre o Caos, sobre a dificuldade de se estabelecer um sistema suficientemente complexo para discernir e as relações Causais da realidade.
-------Temos vários níveis de vitória da Ordem sobre o Caos, mas até aqui, isto não parece eliminar totalmente a possibilidade de que um deles prevaleça no futuro, ou tenha prevalecido em absoluto no passado, o que corresponderia em admitir um Determinismo, a Ordem Absoluta, ou a total aleatoriedade, o Caos Inviolável.
-------A resposta que pode nos ajudar a concluir em favor da possibilidade da Liberdade é a que nos livre dos extremos da Ordem e Caos, e na verdade é extremamente simples.
-------Se houvesse Perfeição não haveria Movimento. O Eterno não muda, é intemporal, assim seria a Ordem Absoluta. Poderia-se argumentar que trata-se de uma imperfeição temporária rumo à perfeição. Mas se há então uma imperfeição, como garantir que ela necessariamente irá conduzir-se à perfeição? Um processo imperfeito jamais poderia ter garantias de chegar, mesmo retornando, a uma perfeição perdida.
-------Mais desafiador é propor que tal perfeição seria dinâmica, ou seja, uma Ordem Absoluta porém em movimento. Como um Relógio Divino em movimentos cíclicos infalíveis, com destino previsto. Porém isso implicaria necessariamente na idéia de Tempo, e portanto tal perfeição seria incompatível com a Eternidade.
------- Creio que a maioria dos teólogos não deixaria de ver um problema sério aqui, o de separar a Perfeição da Eternidade, e com razão, pois havendo movimento, decorre que o estado de coisas num momento não é o mesmo estado de coisas de outro momento, sendo assim cada um desses momentos não é perfeito em si, não está plenamente "Perfazido", se assim fosse, teríamos várias perfeições em instantes diferentes, e é ainda mais problemático crer que a Perfeição possa ter várias formas. E se cada uma destas partes não for perfeita, como o todo poderia ser?
-------Poderia-se argumentar exatamente o oposto, que a perfeição está exatamente no todo, não nas partes, e portanto o Universo seria um Ciclo Perfeito constituído por fases por si só imperfeitas. Tal Universo seria necessariamente Determinístico, ou nada poderia garantir que o Ciclo se completasse. Tais fases temporárias seriam permeadas de uma Ordem Absoluta mesmo numa aparente desordem, e sendo assim, o Caos seria mera ilusão.
-------Mas se examinarmos com mais atenção, veremos que esse argumento simplesmente nada acrescenta, pois o problema continua, como podemos afirmar que as Fases temporariamente imperfeitas poderiam garantir uma Perfeição Final, ou melhor, elas não seriam de fato imperfeitas, e voltamos então ao problema inicial. Pode a Perfeição ser Dinâmica, dissociada da Eternidade?
-------Provavelmente o problema esteja em nossos termos linguísticos, as palavras Perfeição e Eternidade não parecem apropriadas para descrevermos racionalmente o que intuitivamente entendemos, mas o questão permanece, ainda que mal expressa: Pode o Eterno se Mover? Pode o Perfeito se Perfazer?

DEMIURGOS

------- Deus seria no caso nosso Demiurgo Ancestral, seria o responsável primário pelo advento de um grau suficiente de ordem para permitir uma existência que traria o que temos, nosso Universo. Portanto toda a Ordem emergente dependeria da ação deste Ser original.
------- Antes que me adiante demais, acrescento que quanto a idéia de que um Ser possa criar Algo do Nada, tal não passa de mais um delírio linguístico tão improcedente quanto afirmar que Algo possa vir do Nada. Ora, o próprio Agostinho declara que o Ente não pode Entificar-se a si mesmo, ou seja, somente Deus poderia Criar coisas, que jamais criariam-se a si próprias. Dessa forma, que outra coisa estamos dizendo que não "A Matéria vem de Deus"!
------- As coisas não procederam do Nada, elas procederam de Algo, de Deus, que as gerou. A essência das coisas então provieram da essência de Deus, tudo deriva de Deus, e sendo assim, tudo, em maior ou menor grau, é Deus.
------- Não seria isso uma forma de Panteísmo? Acredito que sim. Me parece haver uma semelhança muito grande em dizer que Deus é Tudo, e que Deus Está em Tudo, uma vez que é Onipresente e Onisciente, e que toda existência depende dele.
------- A diferença entre o Panteísmo e o Monoteísmo seriam meramente de concepção temporal. No primeiro normalmente acredita-se que Universo e Deus sempre coexistiram, ainda que como faces da mesma moeda, no segundo que Deus existia antes do Universo.
------- Não importa para a questão aqui, onde antes pretendo defender que a simples necessidade de Ordem no Universo requer a idéia de um Ser, um Ente Ordenador, ou essa Ordem é tal próprio Ser em Si.
------- Portanto, para resumir minha posição, Deus seria a Entidade que estabeleceria Ordem no Universo, e assim, qualquer tipo de Ordem seria um Reflexo deste Ser Ordenador.
------- Se há Ordem, mesmo em mínimo grau, há alternativa para a aleatoriedade, não temos que ser joguetes de um jogo de dados imprevisível em todos os aspectos de nossa existência, embora sempre estejamos sujeitos a tais flutuações.
------- Havendo Ordem, basta que a mesmo não seja Absoluta para que a Determinação não destrua nossa liberdade.
------- A Liberdade, e consequentemente o Livre Arbítrio, seria o resultado inevitável da tensão entre a Ordem e o Caos. Somos livre na medida em que tentamos ordenar o inordenado, ou alterar ordens estabelecidas. Como não podemos fazê-lo de modo absoluto, somos sujeitos a falhas, e portanto imperfeitos, de modo que nossos caminhos estão abertos e nosso futuro indeterminado.
------- Nossa Liberdade Física estaria garantida apesar das limitações que a Ordem Natural nos impõe enquanto anuladora do Caos. A Leis Físicas que impedem o Caos possibilitam nossa existência como Entes Ordenados. Porém tais Leis não são Absolutas, mas sim restritas a certos âmbitos, e em suas lacunas podemos nos mover livremente.
------- Nossa Liberdade Mental é garantida em parte pelos mesmos motivos, pois podemos considerar nossas mentes como o resultado da atividade física de nossos cérebros, ou como instâncias extra-físicas que se, são ordenadas, também obedecem a certas leis e parâmetros que porém também não podem ser absolutas, deixando lacunas para a liberdade.
------- Temos então uma curiosa inversão do "Deus das Lacunas", a "Liberdade das Lacunas" estaria garantida exatamente pelas Lacunas que Deus não Preenche. Seríamos nós e Deus, parceiros na aventura existencial de impor Ordem no Caos.

MEU DEUS

-------Não me importa, na verdade, que exista um Deus Panteísta ou Monoteísta, se há um Universo Perpétuo Contínuo ou Cíclico, se há um Ser Criador ou um mero Demiurgo. O que insisto é que o Universo tem que ter um Princípio Gerador ou ao menos Ordenador, e que este princípio necessariamente deve ser incriado, tendo existência Retro-Perpétua. A esse princípio chamarei genericamente de Deus, ainda que isso não seja de meu total agrado devido à carga atribuída à esta palavra. Esse Deus está longe de ser o que os teólogos tem predominantemente defendido ao longo dos séculos, não é absolutamente ONISCIENTE, tendo Presciência restrita, e sendo assim não é ONIPOTENTE, nem ETERNO, nem IMUTÁVEL. Uma vez como princípio ordenador, ou mesmo gerador, sobre um Universo com níveis variáveis mas sempre presentes de Caos, decorre possuir um nível de controle, e portanto liberdade de ação, porém relativo, o que mais uma vez garante a liberdade e possibilidade de mudança e evolução, não correndo o risco de ser escravizado pela sua própria Potência. Esse Deus seria Livre. É essa Liberdade que creio nos ser legada, como seres que compartilham com Deus o mesmo princípio de ordenamento, ainda que provavelmente numa escala muito menor. Havendo Ordem, não somos joguetes da aleatoriedade, mas não sendo essa Ordem Absoluta, não somos escravos da Pré-Determinação. Esse Deus nos Livra. Esse Princípio de Ordem, salva nossa Liberdade e Livre Arbítrio.

Marcus Valerio XR
10 de Dezembro de 2003










BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO. O Livre Arbítrio. Tradução de Antonio Soares Pinheiro, Braga Faculdade de Filosofia, 1986.

SWINBURNE, Richard. Será que Deus Existe? Ed. Gradiva, Lisboa, 2002.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Original de 1841.

ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL


MONOGRAFIAS

D E U S ?