Finalmente consegui assistir a NEFARIOUS (2023), para o que tive que pagar R$ 6,90 na Prime Video, mas compensou, pois o filme me surpreendeu positivamente, em especial após ter vistos comentários diversos dos mais depreciativos, até os mais elogiosos, porém apontando algumas deficiências específicas.
Confirmei minha intuição sobre a maioria, se não todas, as críticas negativas: constrangimento em confessar o que de fato incomodou, e então inventar defeitos de teor "técnico" para soar, objetiva, uma rejeição integralmente passional.
Nada que a quase totalidade das críticas não faça, porém num nível mais intenso a depender do comprometimento com o a ideologia literalmente demonizada no filme.
Nefarious deveria ser classificado como "Ficção Teológica", que tal qual a Ficção Científica, pode assumir as mais diversas paletas emocionais, sendo no caso um Drama com tons de Terror. (Aqueles que levam a sério o ridículo pleonasmo do "Terror Psicológico", só posso insistir que vejam este meu conteúdo onde explico a problemática dos gêneros Suspense, Terror e Horror.)
É frouxamente baseado no livro "A Nefarious Plot" (2016) de Steve Deace, que tem sido classificado como uma espécie de Comédia Teológica, única forma de, talvez, não considerá-lo péssimo. É verdadeiramente surpreendente que de um livro tão ruim tenha derivado um filme tão bom. Mas o é porque o próprio autor do original, logo na introdução, falando e promovendo o próprio livro, SIM, ele faz isso, diz que deixa de fora a estória de como ele foi obtido, usando aquele velho recurso literário em que o autor real inventa um autor fictício e se coloca apenas como alguém que apresenta o texto de outrem.
Esse autor, seria o demônio milenar cuja versão inglesada do nome é Nefarious (nefasto).
Assim, segundo a própria sugestão de Steve Deace, os diretores Chuck Konzelman e Cary Solomon, que também escreveram e produziram o filme, fizeram um trabalho incomensuravelmente superior ao do escritor, que mesmo fingindo ser Nefarious uma outra pessoa, não conseguiu sequer disfarçar seu próprio "jeito" de escrever nas duas partes do livro que supostamente seriam de autores diferentes. (Digo 'jeito', pois nem merece o nome de 'estilo'.)
Embora tenhamos no filme a temática "possessão demoníaca", não é uma estória de exorcismo e nem de manifestações sobrenaturais abertas. O único fenômeno físico possivelmente sobrenatural, o explodir de uma lâmpada, é chamado de coincidência pelo próprio demônio. No mais, as manifestações de poder são integralmente na forma do conhecimento que Nefarious, no corpo de um assassino serial no corredor da morte, apresenta sobre detalhes da vida de seu entrevistador, James, um psiquiatra com a função de determinar sua sanidade mental, que se negativa, impossibilitaria a execução.
No entanto, Nefarious não pretende impedir a execução, e por pura perversão, obriga o homem que possuiu a escolher a Cadeira Elétrica como método, e não fica sequer claro se esse homem realmente é responsável pelo crimes que cometeu, ou ao menos co-responsável, ou se foi integralmente obrigado pelo demônio, que tem prazer em vê-lo sofrer por tudo o que teria cometido. Mas seu propósito maior é que o psiquiatra publique a sua história, que virá a ser o livro em questão.
E é ao longo do, longo, diálogo entre o demônio e James, cobrindo a maior parte do filme, que as ideias são apresentadas, conseguindo aliar uma profunda crítica ao progressismo cultural, em especial as temáticas da eutanásia e ainda mais do aborto, com uma visão essencialmente cristã tradicional, mas com alguma sutileza para evitar um tom por demais apologético.
Abortistas não tem como não odiarem o filme, a não ser, talvez, por este prestar o desserviço de insistir em densificar a falsa ideia de que a rejeição ao aborto seja essencialmente de ordem religiosa, quando porém posso apontar que o próprio filme, se bem visto, sugere a fraqueza dessa mesma visão para quem insista em estudar o assunto mais a sério, tanto apelando à própria Bíblia, mas até mesmo a linha de raciocínio da tradição religiosa, especialmente católica.
Pois mesmo o Vaticano condena o aborto por argumentos éticos, e não exatamente teológicos, apenas, claro, pressupondo que a base da ética seria o divino, algo que, filosoficamente, fica sempre em aberto. (Não é o tema aqui, mas faço questão de lembrar que segundo a muitas visões espiritualistas, a "alma" só entra no corpo do feto numa idade gestacional que varia de 16 a 20 semanas, no que o aborto antes não seria, de fato, um assassinato! Abortismo (textos), Abortismo e Abortismo (Vídeos))
Ademais, o próprio filme termina deixando claro que a motivação do psiquiatra para apoiar o aborto de seu próprio filho não é outro que não preguiça ou covardia, o que de fato constitui os motivos da imensa maioria. Ainda assim, além de ter comparado o aborto contemporâneo a sacrifícios rituais antigos a deuses pagãos (leia-se: demônios disfarçados) a narrativa poderia ter explorado mais a conexão óbvia e inegável entre as situações, que é de que realmente trata-se de sacrifício, assim como todo e qualquer tipo de execução, inclusive a morte de animais, ou mesmo a pena capital.
Ora, sacrificamos a vida bovinos, aves ou mesmo vegetais em prol da nossa própria existência, bem como podemos sacrificar vidas humanas em prol da mesma coisa, como a auto-defesa, ou de interesses mesquinhos, como as guerras imperialistas mundo afora. Assim como o próprio condenado à morte por um crime é sacrificado em prol de um senso, bastante distorcida, de justiça ou vingança, ou como forma de "exemplo" para desencorajar outros crimes.
Mas quem mata o descendente no próprio ventre da mãe, sacrifica essa vida em favor de quê? Na minoria dos casos pode haver um motivo mais justificável, mas no geral é preguiça, por não querer ter trabalho, não perder a vida confortável, prosseguir a carreira, a faculdade ou não perder as baladas. Ou mesmo covardia, tal qual James, um psiquiatra bem sucedido e bem estabelecido, que aos 35 anos acha que "ainda não está pronto para ser pai".
Enfim, essa tema, uma entre outros citadas no discurso do demônio, é o pivô da discórdia que polariza as visões sobre este filme. Num ponto onde, por sinal, peca na forma, visto que após o discurso empolgado e "politicamente correto" do psiquiatra para provar que o mundo está melhorando e que o demônio está sendo derrotado, este retruca com algumas verdades sobre as desigualdades atuais, inclusive citando que em número absolutos, há hoje no mundo mais escravos que havia no Império Romano, mas não considera a proporcionalidade populacional. E ainda perde a oportunidade de citar que a liderança no número de escravos está nos EUA, que com a privatização do sistema carcerário produziu a maior população aprisionada do mundo, que é obrigada a trabalhar se quiser progressão de pena, mesmo quando presa por tipificações inventadas nas últimas décadas que jamais foram crime em lugar algum e na maioria do mundo continuam não sendo, e tudo isso para enriquecer os proprietários do das penitenciárias privadas.
E nem vou entrar na questão da dívida, que faz infelizes terem cargas de trabalho "demoníacas" para quitar "empréstimos" por coisas que deveria ser obrigação do Estado fornecer de graça. E sempre é bom lembra que o fundamento de toda e qualquer escravidão é a dívida!
Mas o fulcro do discurso de Nefarious, tanto o personagem quanto o filme, termina sendo a ideia de que algumas "vacas sagradas" do Liberalismo Cultural foram, literalmente, obra de influências demoníaca. Não exatamente as menos polêmicas, que envolvem apenas questão de sexualidade, pois sequer são citadas, mas especialmente as que envolvem morte. Além do aborto, a eutanásia, e a própria Pena de Morte, visto são esses os "três assassinatos" que o demônio adverte que James, o psiquiatra, cometeria: ter autorizado a eutanásia da mãe, o aborto de sua companheira, e por fim a execução do criminoso, mesmo sabendo que ele não agia por si próprio.
Sim, apesar dos dois primeiros temas atingirem a "esquerda", o último atinge em especial a "direita", embora até onde eu tenha visto, ninguém desse espectro ideológico parece ter percebido isso. Afinal, o pressuposto da possessão demoníaca teria que ser traduzido em transtorno de personalidade dissociativo, condição que tornaria o condenado inapto à execução. Mas James, ao declarar o contrário, não apenas condena um inocente a uma morte cruel, impossibilitando uma possível salvação de sua alma, mas termina por lançar dúvidas sobre toda a instituição da pena de morte. Como saber se não há inúmeros outros condenados em situação similar?
Daí, temos aqueles que ao menos assumem seu posicionamento ideológico ao criticar o filme, mas também os que o ocultam, e disfarçam sua repulsa com "argumentos" supostamente técnicos ou estéticos: más atuações, má produção, má direção etc. Mas nada há que sobreviva a um escrutínio. A interpretação de Jordan Belfi como o Dr James definitivamente não é ruim, embora possa se considerada tímida, mas apenas porque Sean Patrick Flanery, no papel de Nefarious e do condenado, Edward, rouba a cena com uma interpretação formidável, alterando personalidades. Também nada há de errado com os aspectos da produção como cenário, figurino ou iluminação, mesmo com o baixo orçamento.
Eu notei problemas de direção, em especial a súbita mudança de tom quando a temática do aborto é apresentada, que dá a impressão de Jordan Belfi foi mal dirigido, apresentando uma interpretação boa, mas no momento errado. Também há algumas fraquezas no roteiro ou argumento que geram algo que sugere uma contradição, uma vez que Nefarious diz que o processo de possessão é lento e gradual, tendo naquele caso específico, começado na infância, mas depois apresentando um caso drástico de possessão quase instantânea. Bem como a curiosa ambiguidade onde antes parece que a possessão se aplica principalmente a mente que secundariamente controla o corpo, para depois controlar o corpo à revelia da mente. E isso sem contar algumas questões teológicas que soam controversas.
Mas há ousadias bem vindas, como aquela que parece subverter a noção clássica da temática exorcismo, onde conseguir o nome do demônio dá poder sobre ele, ao passo que em Nefarious isso não só não parece o caso, como até parece o contrário. E aliás, acho que faz muito mais sentido. Em As 4 Damas do Apocalipse eu trabalho com as duas noções, sendo a primeira para os demônios de baixa hierarquia, já os de alta, pronunciar seus nomes corretamente resulta no contrário, em se submeter a eles.
Voltando a comparação, embora os produtores tenham sido sábios em evitar que as baixíssima qualidade do livro vaze para o filme, ainda assim fica aquela sensação de uma contaminação indevida, embora isso afete apenas quem o leu, ou ao menos, no meu caso, tentou ler, terminando por desistir de tão ruim que é a leitura.
No filme, Nefarious é sim cruel, mas é elegante, articulado, racional no momento certo e ótimo retórico, conseguindo apresentar ideias novas, inusitadas e consistentes. No livro, mal grado a distinção da mídia e do estilo narrativo, temos um demônio desbocado, rasteiro, totalmente previsível em suas opiniões e repleto de truísmo típicos que só poderiam mesmo ser levado a sério pela boçalidade dos cristãos neocons sionistas.
Basicamente, é um discurso em favor de uma visão fundamentalista cristã por meio de psicologia reversa, onde o demônio zomba da humanidade e do divino, sobrecarregando as páginas dos piores lugares comuns neoconservadores, mas termina no fundo passando a mensagem: convertam-se!
Embora possa impressionar leigos, o livro é tão mal escrito e contraditório, apesar e absurdamente pretensioso, que só restou ao autor assumir isso e tentar torná-lo uma virtude, dizendo que, como Diabo é o pai da mentira, então pode haver mentiras no livro, e talvez ele pretenda o contrário do que diz pretender, permitindo assim que qualquer conclusão a seu respeito possa ser invertida.
Por sorte, nada disso vazou para o filme. Apesar de ter conservado elementos do tipo, chamar Jesus de "O Carpinteiro", Deus de "O Inimigo" ou o Diabo de "Meu Mestre". Foi ainda mais cuidadoso ao se manter longe da pior de todas as contradições, que aliás talvez seja a dissociação cognitiva fundadora do Neoconservadorismo, e que perpassa a totalidade do livro: louvar a mítica Liberdade, nos termos norte americanos originários, ao mesmo tempo que rejeita justamente o maior libelo metafísico pela Liberdade que é próprio discurso demoníaco e sua rebelião contra a tirania divina! Ou talvez até pior, não se dar conta de que sendo o Pecado Original o Orgulho, ainda assim cultivar um orgulho desmedido baseado no mero pertencimento à uma nação que se considera fundada por Deus e baluarte da luz divina para todos os povos!
O filme, tendo focado apenas em aspectos mais filosóficos e teológicos, ficou longe da ridícula pataquada patriótica que considera os EUA como uma nação excepcional que prometia ameaçar o próprio Diabo como dono do mundo, daí porque ele bolou um plano para arruinar o país, que resultaria na situação atual.
Assim, mesmo sendo um ótimo filme, Nefarious termina sendo maculado por sua relação com o péssimo livro A Nefarious Plot, o que é especialmente agravado quando, ao final, numa sequência desnecessária e longa, o filme faz basicamente uma propaganda do livro, que foi como eu cheguei até ele para ter uma experiência diametralmente oposta à que tive com o filme. Aliás, o filme até tenta, mais uma vez, salvar o livro, usando parte de sua narrativa como forma de explicar por que ele "é como é".
Ótimo vídeo do Raphael Machado, com reflexões muitíssimo acertadas, embora algumas possam soar chocantes para quem está acostumado a apenas repetir consensos bem comportados. Indo muito além do assunto do momento em si, faz uma das melhores análises das causas profundas do denuncismo e das paranoias estilo "caça às bruxas".
Conheçam o canal LUZ NO FIM DO TÚNEL, em especial esse vídeo aqui, que "corre risco de queda", por ficar num tema que eu próprio não me vejo preparado para abordar.
Já acompanho o canal há alguns meses e não vi todo o conteúdo. Mas a grande maioria dos vídeos que vi é muito boa, apesar dos rompantes conspiracionistas de "mão cheia", desde as mais coerentes e plausíveis até algumas bem duvidosas. Exceção ao lamentável episódio onde o autor corrobora negacionismo sobre as missões lunares Apollo, com aqueles "arJumentos" fotográficos.