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PARA ANIMAR AS COISAS

Após uma noitada Seki se encontrou com Doni e Liano, um diretor de programas de TV e novo amigo. Estavam na casa de Doni, um local menos assediado pelas fãs do que a casa de Seki, principalmente quando nas fases em que tinha uma namorada fixa, ainda que no momento ela não estivesse lá.

- Foi um programa legal Li! - Disse Seki esticando as pernas por cima do sofá e bebendo suco numa garrafinha.

- Ainda acho que tinha que ter falado mais um pouco da guerra. - Retrucou Doni. - Faz tempo que ninguém toca no assunto.

- E isso tanto te interessa? - Perguntou Liano.

- Se interessa!? - Arregalou os olhos Doni. - Eu lutei nessa guerra!

- Tá! Sei... Desculpa. Quis dizer, acha mesmo que isso é interessante... Para os fãs?!

- Se não é... Deveria. - Completou Doni. Desanimado.

- Doni e sua inclinação para intelecutal. - Gozou Seki.

- Ah Seki! Não enche?!

- Vai conversar com o Hane pô! - Reagiu Seki.

- Ah! Hane! - Lembrou Liano. - É pra ele que eu tinha que perguntar sobre o programa. Mas tenho até medo.

- Ele vai gostar sim. -Tranquilizou-o Doni. - Mas cedo ou tarde vocês terão que aperfeiçoar essas fórmulas televisivas. Acho que está ficando chato.

Liano ficou olhando desanimado, meio constrangido com o fato de ser ele um dos maiores responsáveis pela programação de TV de Orizon.

- CHATO!!! - De repente, num pulo, gritou Seki. - É isso!!! Está tudo muito chato!

Liano e Doni, ficaram a fitá-lo com espanto.

- É isso Li! Precisamos animar um pouco as coisas!

- O que quer dizer? - Perguntou intrigado Liano.

- Emoção! Perigo! - Continuou Seki. - Faz anos que tivemos uma situação realmente séria. Não estou falando de aviões caindo, nem satélites saindo de órbita ou sondinhas Ians perdidas!

- Então está falando de quê?! - Perguntou impaciente Doni.

- Um ataque dos Ians... Quer dizer. Um provável ataque dos Ians! - Respondeu triunfante.

Liano fez uma expressão de incredulidade e Doni de repreensão, mas Seki continuou inabalado.

- Toda vez que algum meteoro ameaça Orizon o povo pensa num novo ataque dos Ians não?!

- Sim. E daí?! - Perguntou Liano.

- Pois é disso que precisamos. - Terminou, virando as costas e deixando um clima de suspense.

- Sem querer ser chato... - Começou Liano. - Mas acho que os Ians estão extintos há 12 anos.

Seki então encarou-os de novo. - Mas a população não sabe disso e nem que saber. É só vir uma chuva de meteoros e pronto! Sensação no ato!

- Mas Seki. - Disse Doni. - Falei com o Hane ontem. Não há nenhum asteróide significativo que ofereça risco previsto para os próximos meses. E os imprevistos... São imprevisíveis!

- Podemos dar um jeito nisso não? - Respondeu Seki.

Um suspense se instalou na sala. Doni então falou num tom que misturava protesto e riso.

- Você está querendo dizer... Que quer que nós desviemos asteróides na direção de Orizon para depois destruí-los e fazer a maior sensação!?

- Uau! Você entendeu rápido garoto! - Gracejou Seki.

Liano começou a rir.

- Ficou louco!?

- Eu não!

O diretor de TV se recompôs. - Mas Seki... A idéia é maluca mas divertida. Só que... Não é muito perigoso?!

- Que nada!!! Desviamos asteróides escondidos para rotas bem visíveis e fáceis de serem detidas. Depois nós mesmos, eu e o Doni, acabamos com eles depois que vocês prepararem todas as câmeras e um showzinho ao vivo.

- Não acredito! - Doni pois a mão no rosto e Liano passou a gargalhar, mas com uma aparência contraditória de humor e espanto.

- E mesmo que alguma coisa desse errada comigo ou o Doni, o Hane com certeza não vai deixar passar. Ele está sempre ligado. E ainda tem o Luri. O caro é sumido e estranho mas temos que admitir que sempre aparece quando é preciso.

Liano deixou de rir e Doni ficou mais calmo.

- Nós ficamos numa posição estratégica. Mais perto do local, e aparecemos na hora H!

- Tá! - Interrompeu Doni. - Mas como pretende trazer esses asteróides sem sermos vistos?

Seki parou pensando por um tempo. - Eu cuido disso. Fica frio. - Depois olhou para Liano. - Você topa!?

O diretor televisivo ficou a fitá-lo espantado. - Mas... Se for seguro... É claro que topo!!!

- Então tá combinado! Faça uma preparação, sem levantar suspeitas. Eu vou examinar a situação e depois te comunico. A gente combina tudo direitinho pessoalmente. Nem pensar em falar sobre isso por telecomunicação.

- E você Doni!?

Doni ficou hesitando, quando de repente, analisando a situação. Não demorou a perceber que de fato o perigo era praticamente nulo.

- Tá! Mas só se tomar o cuidado de... Se tudo der errado, que o meteoro não cause danos sérios. Caia numa área desabitada. Entendeu?

- Claro cara! Também não sou tão maluco assim!

- Como vamos desviar esses asteróides?

- Deixe isso comigo. Pelo menos por enquanto. Se algo der errado prefiro assumir a responsabilidade sozinho.

Depois de um silêncio eles fizeram uma breve comemoração. Seki exigiu mil e um favores de Liano, e discutiram sobre os detalhes do Show. Por fim Doni acrescentou.

- Seki... Eu não devia nem dizer isso mas... Se o Hane desconfiar ele trucida a gente!

O termo 'humano' costuma ter ao menos 3 sentidos diferentes: o de espécie biológica, o de sensibilidade moral, e o de conteúdo mental. Um ser humano pleno deve ter uma mente, ao contrário das máquinas, por mais sofisticadas que sejam. Pressupõe-se também que tenha 'consciência' de si mesmo, ainda que esta palavra tenha ao menos 5 sentidos distintos.
ARMANDO UM CIRCO

Tudo já estava acertado há dois dias. Liano estava a postos, iniciou um ensaio provisório injustificado que, numa situação de emergência, se transformaria num sistema de cobertura jornalística global instantânea, saindo na frente das outras emissoras. Doni ficara de ser o primeiro a investir contra a chuva de meteoros, pois havia o risco de que Seki não chegasse a tempo.

Quase do outro lado do mundo Seki finalmente passou a ganhar altura. Era noite, mas naquela região desabitada do planeta dificilmente ele seria visto se voasse devagar.

Se fosse visto, teria apenas que depois inventar alguma desculpa para o Hane, justificando sua presença ali, pois diferente deste, Seki não fazia rondas costumeiras, assim como sabia que uma vez tendo Hane inspecionado aquela área do planeta há poucos dias, dificilmente passaria por ali tão cedo.

Pousou numa ilha para um breve relaxamento. Olhava para as estrelas. Podia ver Orizons 3 e 6, os terceiro e sexto planetas em ordem de afastamento da estrela vermelha.

Na verdade Orizon era o nome dessa Estrela, batizada séculos antes da chegada dos humanos. Era comum os planetas serem batizados com o mesmo nome da estrela e mais o número ordinal na ordem de afastamento.

O planeta a que todos chamavam apenas Orizon era na verdade Orizon 5, numa escala que inicialmente ia até 18, até que Orizon 9, o maior de todos, um imenso gigante gasoso, fosse destruído durante a guerra. A estrela vermelha era Orizon Zero e a pequena estrela branca Orizon 2. Mas com o tempo todos passaram a omitir o número 5, da mesma forma que se omitia o número das 5 Cidades, que variavam na ordem de construção. Sendo dispostas de forma linear, os habitantes de uma em geral se referiam a sua apenas como Cidade, e a anterior como Cidade Velha, assim como a posterior como Cidade Nova, incluindo a possibilidade de Novíssima, ou Velhissísima, que na linguagam de Orizon podiam se referir com relativa clareza a estágios de até 4 gerações anteriores, e tinham uma conotação mais ordinal.

Seki relaxou, respirou e pensou. "Vamos lá!" E levantou vôo.

Lentamente superou os milhares de kms contemplando a paisagem. Orizon 6 iluminava os mares com um tom azulado emprestando um visual de luar ao cenário.

Seki não podia voar rápido, ou suas emanações de energia poderiam ser detectadas pelos sensores ou por Luri, que era extremamente perceptivo com relação a ondas eletromagnéticas.

Mesmo assim achou que saiu da atmosfera em pouco tempo, antes de poder realizar seu pretendido exercício filosófico contemplativo sobre o ar e o vácuo. Ele via isso de forma poética. Eles, os 4 super seres, podiam se privar de ar por vários dias, embora fosse incômodo. Após um longo período de apnéia, a sensação de preencher os pulmões de ar novamente era um prazer delirante.

Não era só isso. Havia algo no espaço, algo desagradável. Ele já lera sobre a sensação de vazio e abandono que alguns astronautas possuíam ao se afastarem em demasia de uma planeta com vida.

O espaço era inóspito. Assustador. Seki se sentia pouco a vontade com o vazio e o silêncio. Por isso gostava de pensar na beleza de viver num planeta vivo e imaginava como poderia ser a vida dos Ians, que eram totalmente independentes de ar e gravidade, tentando se esquecer que ele também, diferente da maioria dos humanos normais, era bem pouco dependente disso.

Agora ele via finalmente a parte clara de Orizon, e a estrela gigante vermelha distante. Assim como via a nebulosa rosada do outro lado. Tomando ainda muito cuidado para não ser percebido pelos satélites de vigilância ele foi acelerando rumo ao vazio.

Já nenhum ar entrava em seus pulmões e ele se assustou com sua falta de hábito. Qual fora a última vez que estivera no espaço? Quase 3 anos! Chegou a sentir uma breve agonia de asfixia até se controlar e perceber que podia ficar sem respirar, pelo menos por umas 40 horas.

Agora, já mais distante do planeta, acelerou ainda mais rumo a um pequeno grupo de asteróides desgarrados do cinturão entre Orizon 5 e 6.

Havia 5 cinturões de asteróides em torno da estrela, dois deles instáveis e constantemente provocando colisões que desviavam pedras para várias direções. Por vezes estes atingiam os outros cinturões, produzindo um "jogo de bilhar" que em tempos enviava meteoros rumo a Orizon.

Esta instabilidade já ocorria antes, mas foi agravada pela destruição de Orizon 9, que possuía dezenas de grandes satélites rochosos que foram espalhados e provocaram uma reação em cadeia de colisões que persistia décadas depois.

Além disso, os Ians haviam espalhado vários robôs pelo sistema, entre os quais havia os encarregados de apenas desviar asteróides rumo a Orizon em ângulos inusitados, de modo a manter os sistemas de vigilância e defesa em constante confusão. Alguns desses robôs sobreviveram à guerra.

Como os sensores espaciais do planeta era preparados para detectar metais e emanações fortes de luz, nenhum deles percebeu quando Seki, já há uns 25km/s deu uma arrancada quintuplicando de velocidade, atingindo uma marca muitíssimo acima da que poderia atingir na atmosfera.

Foram horas de angustiosa sensação de abandono que quase o fizeram desistir, enquanto acelerava mais lentamente até passar de 1.500km/s, quase 5.5 milhões de km/h. Ficou pensando em como devia ser belo o planeta Orizon 9, que ele só conhecia através de arquivos, pois fora destruído pouco antes dele nascer. O mais belo astro do sistema estelar. Se ainda existisse, possivelmente estaria visível naquela posição. Mas por fim ele percebeu se aproximar de um grupo de grandes asteróides. Passou direto por eles, se espantando com sua rapidez.

Fez um enorme esforço para desacelerar e voltar. No vácuo é difícil medir a velocidade. A inércia faz esquecer que se está em movimento até que surja um bom referencial.

Havia pedregulhos imensos ali. Um deles tinha pelo menos uns 500m de comprimento.

O primeiro passo foi mover os menores para a frente do maior, de modo que pudesse empurrar apenas um deles e arrastar os outros. Agora ele calculava o ângulo ideal de impulso, impulso esse que não seria nada fácil.

Tudo alinhado, ele se afastou uns 300m do grande e se concentrou. Seu corpo brilhou, progressiva e lentamente. Um esqueleto verde cintilava por dentro de sua "carne" e então erguendo os braços disparou dois raios em ponto distintos que atingiram a rocha produzindo um brilho intenso.

A rocha evaporava rapidamente e logo dois buracos estavam feitos. Dois outros raios em ângulos diferente finalizaram a preparação, deixando 4 orifícios de cerca de 6m de profundidade que serviriam de impulsores para o asteróide.

Como estava atrás das pedras, a luz não seria vista pelo planeta, o que o deixava tranquilo, ainda mais agora que a consciência começava a lhe pesar. Literalmente ele estava simplesmente acionando uma arma mortífera. Estava fazendo o absoluto contrário do que nascera para fazer. Se aquele asteróide atingisse uma das cidades, sem dúvida milhões de pessoas morreriam.

Mas não podia voltar atrás agora, e estava tudo sob controle. Se pressentisse que algo podia sair errado ele mesmo destruiria os asteróides antes que se aproximassem do planeta. Disse para si mesmo que apenas se sentia deprimido pelo vácuo e pelo absoluto silêncio, que fazia todas as suas ações parecerem irreais.

Esperou um tempo para os buracos esfriarem, então iniciou a parte delicada da operação. Em um deles, numa extremidade do extenso pedregulho, disparou um raio direto ao fundo, derretendo a rocha com tanta violência que ocasionou uma explosão. A força da explosão, canalizada pelo orifício aberto, se fez sentir, e a liberação impulsionou a ponta do asteróide, que lentamente começou a girar.

Quando atingia a posição indicada, Seki voou para a outra extremidade e repetiu a operação no outro buraco, e o impulso deteve a rotação do asteróide, que começou a se mover lentamente rumo ao planeta.

Erguendo o braço direito, a luz intensa tornando os ossos luminosos, emitiu outro raio no outro buraco, e imediatamente depois correu para fazer o mesmo no outro.

Os quatro orifícios ainda eram incandescentes. Rocha em estado líquido e gasoso escapava para o espaço, impulsionado a estrutura para a frente. Como Seki previa, alguns pontos recebiam mais força que outros, de modo que o pedregulho corria risco de se desviar, o que o obrigava a fazer pequenas correções com disparos de calor em pontos estratégicos, além de ir, mais e mais, imprimindo maior velocidade à pedra.

O asteróide grande colidiu com os menores, impulsionando-os. Alguns se desviaram e se perderam, mas uma quantidade considerável seguiu a rota prevista, menos de uma hora depois, já a uns 5 km/s.

Foi então que Seki percebeu algo estranho. Captou um sinal eletromagnético sutil. Não era rádio comum, não eram satélites, nem um de seus irmãos. Também não era radiação estelar ou cósmica.

Ficou de costas para o asteróide, tentando captar mais algum sinal e então pensou ter avistado algo muito distante, que ficara para trás entre os outros asteróides menores.

A primeira coisa que pensou era em uma sonda Ian perdida, mas era um sinal diferente. Durante anos eles perseguiram e destruíram pequenos robôs fotônicos, eles não emitiam um sinal como aquele. O que poderia ser?

Tinha algo de definitivamente Ian, mas incomum. Quando Seki pensou em seguir o sinal ele subitamente sumiu por completo. Era muito estranho.

Seki sentiu o dever lhe chamando, queria procurar e localizar a fonte do sinal, mas por outro lado ficou em dúvida. Como justificaria sua presença ali? Seja o que for que lá estivesse não poderia ser percebido do planeta. Nem Luri poderia. Não havia como justificar o fato de que ele se deslocara até aquela posição. Nem Hane costumava ir tão longe em suas rondas.

Ficou um bom tempo indeciso e quase se esqueceu do asteróide, quando se voltou para ele, já estava longe, e então contendo sua curiosidade e reprimindo sua decisão voltou a atenção no que viera fazer.

Alcançou o imenso asteróide novamente, que estava se inclinando para uma posição até mais favorável. Era hora de desferir o impulso final.

Aproveitou uma pedra menor que se desgarrava e a arrastou para trás do conjunto, com cuidado posicionou-a bem no ponto ideal de apoio. Se afastou e se concentrou.

Era hora de liberar uma dose bem maior de energia. O brilho em seu corpo agora cegaria uma pessoa normal e a radiação mataria qualquer ser vivo. Só então se deu conta de que não poderia se aproximar de ninguém antes de proceder uma desintoxicação, pois aquele procedimento invocava radiações ainda pouco conhecidas e de efeitos imprevisíveis em organismos carbônicos.

Erqueu as mãos a frente, e as energias liberadas atingiram a pequena rocha alvo. Ocorreu então uma violenta fissão nuclear, ou algo similar, uma vez que a natureza da explosão subnuclear fotônica nunca fora bem compreendida. A pedra alvo foi energizada e subitamente desintegrada numa violenta explosão.

A onda de choque atingiu Seki em cheio empurrando-o centenas de metros para trás mesmo contra sua resistência, e no sentido contrário impulsionou o asteróide exponenciando sua velocidade.

Aquele misterioso efeito fora uma das notáveis descobertas dos cientistas de Orizon. Produzia uma simples e fortíssima impulsão, como se gravidade repulsora de potência equivalente a um mini buraco negro fosse detonada. Lamentavelmente, os Ians também a descobriram logo depois, e era exatamente essa técnica que lhes permitia arremessar asteróides com tanta facilidade.

Agora sim a liberação de energia seria perceptível do planeta. Mais do que as posteriores e violentas explosões que teve que adicionar às rochas para que chegassem ao planeta ainda no mesmo dia. Após muito esforço e dispendio de energia ele conseguiu, mas agora tinha pouco tempo, cerca de 4 ou 5 horas antes da colisão com Orizon. Ele voou ao encalço das rochas. Não foi nada fácil alcançá-las.

Por fim ele se apoio no pedregulho maior, ainda quente pela energia liberada com a explosão, e pegou carona. Estavam mais rápido do que ele esperava, há quase 5 mil km/s.

Agora preferia esperar um pouco, quando tivesse aproximação suficiente ele abandonaria a chuva de meteoros e se deixaria "cair" rumo ao planeta, de modo a liberar o mínimo possível de energia para se mover, pois em breve todos os sensores da Defesa Planetária estariam direcionados para a ameaça.

Ele chegou a dormir na viagem. Quando acordou Orizon já estava bem perto. Se repreendeu por sua distração. Breve os satélites de defesa poderiam até enxergá-lo na superfície do asteróide.

Se escondeu atrás de um dos pequenos e com ele abandonou o conjunto que totalizava, além do grande, 8 pedras de tamanho suficiente para atingirem o solo sem serem totalmente vaporizadas na entrada na atmosfera.

Desviando-se da rota, e ocultando-se atrás da pequena rocha, imprimiu um discreta aceleração em direção ao outro lado do planeta.

Muitas das atividades mentais podem ser simuladas pelas máquinas. A capacidade de calcular, ter memória, tomar decisões e até aparentemente compor conceitos novos. Assim, qual a diferença entre um ser humano, que possui uma mente, e um antróide altamente sofisticado que simule toda a aparência e comportamentos humanos, inclusive demonstrações sentimentais?
EMERGÊNCIA

No conforto de sua casa Hane e sua segunda esposa, Sion, recebiam uma inesperada e agradável visita. Uma psicóloga cujo projeto de pesquisa despertou a atenção do mais exigente dos super heróis.

Hane estava impressionado com sua visitante, seu modo de falar, sua erudição e sutileza eram cativantes. Fez um certo esforço para não evidenciar o fascínio, e para sublimar o possível desenvolvimento de um sentimento mais comprometedor, uma vez que não mais pretendia se casar.

Ange por sua vez se sentia extremamente empolgada, aparentemente valera a pena adiar o encontro com seu amável namorado para se dedicar de imediato à pesquisa. Com o apoio de Hane, tudo seria mais fácil, embora ele próprio mesmo se mostrando muito solicito, expressasse uma preocupação.

- Mas o maior problema será o Luri. Ele é simplesmente inacessível.

- Ouvi falar. - Respondeu Ange. - Acha que ele não irá colaborar?

- Luri?! Só se você não fizer questão de que ele não lhe fale ou sequer olhe para você. - Ironizou Hane enquanto Sion arrumava as mechas de seus cabelos por trás da viseira.

Não sem despertar algum incômodo na não pouco ciumenta Sion, Ange tentava usar sua peculiar capacidade de envolvimento aliada a sua argumentação para penetrar num assunto tabu, o problema de Luri.

- E os psico terapeutas que tentaram?

- Foram poucos, mas muito bons. - Respondeu Hane enquanto fazia um gesto para o computador da casa apresentar as fichas dos psicólogos que tentaram vencer as barreiras de isolamento de Luri. - Mas não conseguiram progressos.

Observando alguns resumos Ange reconheceu alguns de seus colegas de profissão, assim como identificou certas conclusões.

- Não acha que talvez eles tenham lhe fornecido um tratamento excessivamente distante dos padrões normais?

Hane de repente ficou impressionado, e um pouco decepcionado.

- Ora Senhorita... Não espera que Luri, ou qualquer um de nós, tenhamos o mesmo tratamento de qualquer outra pessoa normal? Nós não somos pessoas normais.

Não era apenas uma vaidade, de fato, a maioria dos psicólogos tendiam a considerar os 4 heróis como seres psicologicamente distintos da maioria dos humanos, apesar de seu comportamento aparentemente comum. Eles eram considerados como Simulacros Psíquicos, termo comum na Psicologia e usado para denotar os seres sobre humanos, assim como os bio andróides de alta complexidade que outrora foram produzidos em certas colônias da velha Terra.

Era mais do que natural esperar que alguém capaz de realizar atos fisicamente "sobrenaturais", transcendendo em muito os limites físicos impostos ao humanos comuns, tivesse peculiaridades psicológicas distintas, motivações internas e um inconsciente substancialmente diferente.

- É claro que ele é um super humano Senhor Hane. - Retrucou tranquilamente Ange. - Eu estudei muitos tratados psicológicos dos antigos Anjos Estelares da Terra, assim como de outros Hiper Metanaturais. O problema de Luri não é tão inédito.

- Mas a questão é... - Continuou Ange. - Se nós sabemos disso, se temos consciência de sua condição sobre humana, será que ele, intimamente, também sabe?

Hane ficou intrigado. A princípio considerou a pergunta estranha mas então refletiu sobre a recusa de Luri em assumir sua condição na sociedade. Era como se, de certa forma, se escondesse, negasse o que era. Seria isso?

Ange, percebendo que já envolvia seu dialogante, prosseguiu. - Luri não parece atentar para isso. Talvez ele, no fundo, não seja tão consciente de si próprio quanto nós, ou a maioria dos psicólogos gostaria que fosse.

Hane mergulhou ainda mais nos pensamentos. Será? Não que tal questão tivesse passado totalmente desapercebida antes, mas talvez não tivesse sido suficientemente abordada. Não com um expediente de constantes treinamentos, simulações e ações autênticas que eles enfrentavam na época da guerra, onde todos se comportavam de forma perfeitamente confiável para o propósito que tinham sido criados.

- É verdade que... - Prosseguiu Hane. - Desde que a guerra acabou... De certa forma só então cada um de nós pôde viver para si próprio. Só então pudemos dar plena atenção a nós mesmos. E nós o fizemos. Mas Luri...

- Talvez seja um paradoxo. - Interrompeu Ange. - Ele não consiga lidar intimamente com isso. Mas é especular demais. Eu teria que conhecê-lo.

- Ninguém ainda conseguiu entender Luri. - Disse Hane, e então olhou para Ange, que se acostumara mais rápido do que ninguém a encará-lo através da viseira, como se ela pudesse ver claramente seus olhos. - Mas quem sabe... Talvez você consiga.

Ange teria ficado mais lisonjeada se de certa forma já não tivesse previsto esse direcionamento do diálogo. Ela conquistara Nani, seu orientador de pesquisa, e agora Hane. Seki e Doni ao que tudo indicava, não seriam problema. Tudo o que faltava era o voto de confiança para que ela tivesse carta branca para abordar Luri. Além de que teria que lidar com o fato, que percebera sutilmente, que Hane e Nani pareciam não se dar bem.

Hane estava empolgado com a conversa, quando então o computador doméstico anunciou uma mensagem urgente. Ele requisitou visualização e numa das telas na parede surgiu a imagem de um dos dirigentes dos sistema planetário de defesa. Um homem idoso, com a típica aparência de militar apesar das vestes de estilo que reconheceríamos como sacerdotal.

- Senhor Hane! Temos uma chuva de meteoros a caminho!

Pelo tom da voz todos sentiram a gravidade da situação. Hane se levantou e antes que pudesse perguntar qualquer coisa uma imagem infográfica surgiu representando as rochas que vinham em direção de Orizon, prevendo o impacto para menos de uma hora.

- Uma hora!? Por que não avisaram antes?! - Indagou Hane

- Só detectamos agora.

- O quê?! Um asteróide deste tamanho só foi visto a menos de 15 milhões de kms?!

- Surgiu de repente! Não fazia parte de uma rota prevista.

Sion já trazia roupas de vôo para Hane, que perguntou.

- Nessa velocidade não pode ser colisão acidental!

- Aparentemente não. Detectamos uma liberação de energia nuclear estranha no campo de asteróides 5-6 há 3 horas, rastreamos os céus mas sofremos interferências nos sensores. Quando vimos já estava nessa posição.

- Um liberação de Energia Nuclear? Um robô Ian?

- É o meu palpite Senhor Hane.

Hane fitou Ange e se despediu de forma polida mas seca. Deu um beijo em sua esposa. Uma porta se abriu no teto e logo ele saía a voar rumo ao céu. Do comunicador na gola de seu casaco ele perguntou:

- Já chamaram os rapazes?!

- Até agora o Senhor foi o único a responder.

- "Droga" - Pensou Hane. "Onde ele se meteram?"

A Filosofia da Mente tem um termo que diferencia uma mente real de uma simulação de mente. Esse termo é 'Intencionalidade'. Se um ultra sofisticado antróide puder simular tudo o que um humano faz, poderia aparentar ter uma mente, no entanto, ele faria tudo automaticamente, sem nenhuma intenção real por trás de seus atos. Já a mente humana é intencionada.
CHUVA DE METEOROS

Hane já estava a cerca de 300 km de altura, avaliando as imagens e gráficos sobre os meteoros que seu visor recebia via rádio, e emitia direto para o cortéx visual de seu cérebro, quando então avistou Doni esperando no alto e cercado por diversas câmeras rôbo voadoras, vestindo seu grosso casaco verde escuro de mangas de tecido rígido.

- "O quê?! A TV já está aqui?!" - Pensou. E então se aproximou de seu colega.

- Onde você estava? Porque não atendeu o chamado?

Doni estava nervoso, não podia falar nada que deixasse escapar a culpa de Seki, e sua própria conivência naquilo tudo. Ele já estava há horas sobrevoando aquela região do planeta, as câmeras haviam acabado de chegar, se respondesse as transmissões, saberiam de sua posição, que não era nada comum uma vez que estava longe da Segunda Cidade onde ele morava, e tal como Seki, ele não costumava fazer rondas.

Mas não era só isso, ele estava se arrependendo amargamente de ter permitido aquilo. Seki enviara um asteróide imenso! E estupidamente rápido!

- "O Seki é louco!!!" - Pensava. - "Pensei que ia enviar alguma coisa não muito perigosa mas..."

- Doni!?!? - Gritou Hane, já ganhando altura, e num estalo Doni respondeu. - Eu... Eu não estava recebendo bem as transmissões e...

- É aquele problema de novo? - Perguntou Hane se referindo a um dificuldade típica que Doni tinha de captar certas ondas de rádio.

- É! - Mentiu Doni. Hane não era o único deles a possuir uma deficiência, no caso a falta de visão normal. Diferente dos outros Doni era ocasionalmente "meio-surdo" para algumas frequências de onda. Mas ele já não tinha esse problema há anos, pois compensava liberando a percepção para outras frequências na qual podia "ouvir" ecos que complementavam a captação defeituosa, além de que o Controle de Aero Tráfego e a Segurança Planetária evitarem as frequências mais difíceis para ele.

Doni também tinha outra característica estranha. Quando disparava raios de energia de seus braços, eles tendiam a se dispersar, por isso usava um casaco cujas mangas eram feitas de uma liga plastimetálica de altíssima resistência, de modo a canalizar energia dos disparos à frente.

Já Luri não tinha desculpas para não estar ali. Além de ser o que voava mais rápido, ele era a maior antena já criada. Captava qualquer sinal com alta fidelidade. Era capaz de ouvir e distinguir as emissões radioativas das estrelas.

Já saíam da atmosfera, seguidos por câmeras de TV, quando Hane perguntou - Cadê o Seki!?

- Eu... - Agora Doni ficou ainda mais confuso. - Sei lá!

- Como não sabe?! Onde vocês tem andado afinal?!

Doni tinha que inventar alguma coisa pois Hane já o olhava desconfiado. Precisava de uma desculpa que justificasse seu desconhecimento sobre o paradeiro do irmão inseparável, assim como explicasse porque ele também não estava ali.

- Ele deve estar no Mar Setentrional.

- Do outro lado do planeta?!

- Disse que queria testar algumas... Técnicas.

- Só se for técnicas para impressionar platéias!

Doni engoliu em seco. E continuou. - É que nós... Não nós falamos desde ontem.

- Brigaram de novo?!

Doni fez que sim com a cabeça, meio constrangido por ter que mentir. Mas se não era verdade que tinha brigado com Seki, seria, pois ele estava furioso com o resultado de toda aquela insensatez.

- Não acredito que a segurança do planeta fique comprometida por causa das birras de vocês dois! E afinal cadê o Luri?!?!

Enquanto isso o planeta inteiro havia parado. Uma das grandes cadeias de TV capturava todas as atenções com as imagens exclusivas fornecidas pelas câmeras voadoras que mostravam Hane e Doni saindo do planeta para recepcionar a chuva de meteoros.

Umas das pessoas que captava as transmissões, embora não com imagens, era Seki, prestes a entrar na atmosfera após se desviar milhares de kms para despitar sua trajetória. Se engalfinhava numa difícil decisão. Se seguisse pelo espaço chegaria a tempo de participar da ação, pois na atmosfera sua velocidade máxima cairia drasticamente, mas havia dois problemas.

Se fizesse isso, Hane com certeza notaria que ele estava no espaço há várias horas, e iria querer saber porquê. Como explicaria seu súbito interesse pelo desconfortável vôo espacial? Ou como justificaria não se comunicar se já tivesse visto a chuva de meteoros?

Além disso, ele queria muito respirar. Seu corpo com certeza podia resistir, mas Ar, para ele agora, era uma necessidade psicológica fortíssima. Tinha certeza que seu desânimo se dava a isso.

Escolheu um meio termo, desceu para uma camada mais alta da atmosfera onde podia inspirar pelo menos ozônio, e com algum trabalho até convertê-lo em oxigênio, que era bem rarefeito a aquela altura.

Ficou um minuto se recuperando, com as próprias mãos próximo ao rosto capturava o ozônio e emitindo-lhe um dose de energia quebrava as moléculas em oxigênio que inspirava aos poucos.

Mas não havia tempo a perder, mesmo sem ter se saciado disparou rumo ao encontro dos companheiros. A fricção com a atmosfera serviria para dissipar a aparência de quem esteve a várias horas no vácuo, assim como para limpar parte das radiações cósmicas mais flagrantes.

Hane e Doni agora contemplavam a ameaça que se aproximava. Era difícil crer na velocidade das rochas. Quase 4 km/s! Nenhum ataque Ian antes enviara asteróides tão grandes com tanta violência.

Havia um problema clássico na metodologia de destruição de asteróides ofensivos. A não ser que eles fossem completamente desintegrados, o que só era fácil com os pequenos, era preferível deixá-los atingir as primeiras camadas da atmosfera, pois o aquecimento além de desgastá-los os tornava muito mais frágeis, exigindo bem menos energia para serem pulverizados em pedaços facilmente elimináveis pela atmosfera.

Mas para pelo menos um daqueles asteróides permitir a entrada na atmosfera era exponenciar o óbvio risco de que fragmentos perigosos atingissem o solo.

- É melhor irmos o mais rápido possível e destruí-los antes que se aproximem mais. - Disse Doni.

- Só nós dois?! - Respondeu Hane. - Acho que não vai dar.

- "Calma pessoal! Estou chegando!" - Era a voz de Seki entrando em suas estruturas cerebrais de telecomunicação. - "Chego em no máximo 8 minutos!"

Mas era um prazo demasiado, os meteoros já estariam perigosamente próximos. Seria muito difícil desintegrá-los totalmente a ponto de garantir que nenhum fragmento ainda fosse ameaçador. Pior, um mínimo erro e alguns fragmentos poderiam ser impulsionados a velocidades muito maiores.

- CADÊ O LURI!!?!!?!! - "Gritou" Hane mesmo estando no vácuo, e sua emissão de rádio chegou a doer na cabeça de Doni.

Os visores de todo o planeta estavam acompanhando a cena, os boatos já se multiplicavam. Os Ians voltaram! Era o maior temor. E dessa vez justificado, pois mesmo a Defesa Planetária estava convicta que esse fenômeno não podia ser natural. Para piorar, os astrofísicos regularmente entrevistados pelas emissoras estavam visivelmente preocupados.

- Já era! - Disse Hane. - Mesmo que Seki e Luri estivessem aqui não daria mais tempo de gerar uma Fusão Subnuclear suficiente para desintegrar por completo o asteróide. Vamos nos aproximar e começar a destruir os pequenos. Seki! Você fica como última linha de defesa.

E então os dois disparam rumo ao derradeiro encontro.

De repente. - "Estou indo." - Era a "voz" de Luri.

A Defesa Planetária informou que estava enviando uns dos poucos robôs de combate que ainda operavam. Alguns possuíam canhões nucleares que poderiam ajudar. Informou também que Luri estava vindo do espaço, pelo lado oposto do planeta. Estivera no cinturão de asteróides 3-4 investigando sinais eletromagnéticos estranhos.

Diferente de Seki e Doni, não era incomum Luri sair do planeta de vez em quando, embora suas incursões fossem menos regulares e metódicas do que as de Hane, e atendessem mais a herméticos ensejos pessoais do que à segurança planetária em si.

Finalmente estavam a distância de tiro. - Vamos destruir os menores primeiro. - Disse Hane. E se dividiram para cobrir os 8 asteróides. Três eram suficientemente pequenos para talvez serem desintegrados pela atmosfera, mas era melhor não arriscar. Quatro eram grandes demais, o suficiente para chegar ao solo causando estragos imprevisíveis. E o último podia ser suficiente para inviabilizar a vida em Orizon.

Um olho humano ainda não poderia distinguí-los da distância que Hane e Doni ainda estavam dos asteróides, nem mesmo as câmeras de TV, que haviam ficado bem para trás, conseguiriam, mas podiam obter ótimas imagens dos heróis.

Doni, que ia bem a frente, concentrou sua percepção radio telescópica e mirou no primeiro, seu braço direito brilhava intensamente, embora o brilho fosse acobertado pelo material da manga do casaco, e um raio ofuscante, inicialmente verde mas depois cada vez mais branco amarelado, atingiu o pedregulho milhares de kms adiante partindo-o em dois. Doni teve que disparar outra vez fazendo uma varredura a fim de desintegrar totalmente cada fragmento. A impressão que se tinha é que seus braços se transformavam em canhões. A mão desaparecia entre a energia luminosa, e a manga de plastimetal se enrijecia, lembrando um cano de disparo.

Como os fragmentos estavam muito espalhados, era hora de transformar sua peculiaridade em vantagem, recolheu as lâminas duras dos punhos e os disparos bem mais dispersos cobriram rapidamente a extensa área necessária para desintegrar todos os pedregulhos perigosos.

Hane por sua vez emitiu um único e intenso disparo, de seus braços cujos ossos brilhavam em cor vermelha para branca, que evaporou instantaneamente todo o pedregulho menor que vinha à frente dos outros, enquanto outro disparo de Doni reduziu outro à metade do tamanho, e o que restou se desviou da rota deixando de ameaçar o planeta.

- Agora os maiores. Vamos deixar o grandão por último. - Foi a orientação de Hane. Se tentassem destruir primeiro o maior, a explosão poderia acelerar os demais e lançá-los em rotas ainda mais difíceis de interceptar.

Os dois se reuniram e juntos apontaram os braços a frente. Quatro raios de fissão nuclear, cruzaram milhares de kms e atingiram em cheio o primeiro dos asteróides, que num segundo evaporou-se por completo.

Logo atrás dele vinha outro, bem maior. Repetiram a operação, mas desta vez o movimento de rotação do asteróide conferiu maior resistência à rocha, de modo que os raios se concentraram mais em um ponto causando uma explosão brusca cuja onda de choque afetou os outros que se seguiam, assim como lançou vários fragmentos, um deles vindo direto para eles com velocidade aumentada.

- Deixe comigo. - Disse Doni. E disparou a frente com os dois braços canhões. A rocha foi se desfazendo ao mesmo tempo que perdia velocidade. O brilho e o material gaseificado dificultava a visualização a distância, de modo de Doni deteve os disparos para observar melhor. Restavam dois pedaços ainda consideráveis.

O primeiro, pequeno, já estava em cima deles, nem houve tempo para atirar. Doni preferiu recuar e no momento certo, pulverizá-lo com um único soco, ou melhor dizendo, para que o meteoro se pulverizasse ao colidir com seu punho estendido. Hane por sua vez também recuou e se deixou atingir, oferecendo resistência e detendo o fragmento maior com as mãos, empurrando-o para fora da rota.

Se comunicaram com a Defesa Planetária que confirmou que todos os fragmentos ainda resultantes das explosões haviam sido desviados, não mais oferecendo risco ao planeta. Restava o grande e dois de médio tamanho, dos quais um se desviara da rota original mas ainda oferecia risco. Provavelmente iria tangenciar o planeta entrando pela atmosfera pelo lado oposto, em compensação o outro se posicionou bem a frente do maior, permitindo uma nova e mais promissora abordagem.

- Podemos usar esse como freio para o maior! - Disse Hane, pretendendo usar uma técnica semelhante a que Seki usara para impulsionar o asteróide, explodindo-o e deixando a onda de choque agir. Mas primeiro era melhor cuidar do outro, que acabara por se posicionar um pouco atrás do maior.

Enquanto a TV dramatizava o espetáculo, os observadores da defesa planetária finalmente puderam examinar melhor os 3 pedaços que restavam. O grande, e o pequeno que ia logo a sua frente eram feitos basicamente de ferro, níquel, quartzo, silício e outros compostos simples, mas o outro parecia muito mais denso.

Ampliaram os sensores e finalmente tiveram uma assustadora revelação. Transmitiram a advertência, porém Hane estava concentrando energia para um disparo mais forte e isso resultava num campo eletromagnético que impedia que qualquer transmissão lhe chegasse. Doni que estava mais próximo, conseguiu ainda assim captar fragmentos da mensagem. E entendeu.

- HANE!!! Não atire!!! Aquele asteróide é feito de...

Tarde demais, Hane já havia disparado no asteróide menor que estava quase atrás do grande, e a estupenda explosão brilhou como um sol. A onda de choque arremessou os rapazes deixando-os atordoados.

Urânio! Havia urânio naquela rocha, o suficiente para atingir a massa crítica, bastou o disparo de Hane para ocasionar uma violenta explosão nuclear que agora perturbava a rota dos outros asteróides.

Hane e Doni, pegos de surpresa, desmaiaram, e os dois asteróides ganharam um impulso extra além de um desvio inesperado de rota, suficiente apenas para dificultar a previsão de onde iriam cair.

Enquanto isso, Seki, há muito já arrependido da situação, pôde contemplar a explosão e sentir a situação se complicar dramaticamente. Após alguns cálculos a Defesa Planetária deduziu as novas rotas, o menor iria cair direto no litoral entre a Segunda e Terceira cidade. A onda gerada pelo impacto cobriria as partes costeiras, levando o mar ácido kms cidade adentro. Não havia tempo de evacuar as áreas, ou abrirem os abrigos, milhões morreriam! Pior! Acabavam de descobrir que também havia Urânio na rocha.

O grande por sua vez iria tangenciar Orizon já na estratosfera, daria um volta completa no planeta antes de atingir o solo com resultados apocalípticos.

Nem houve tempo para pensar, Seki voou direto para interceptar o que já vinha em sua direção, com isso ganhando a antes tão sonhada oportunidade de salvar sua cidade oferecendo um espetáculo que não se via há 12 anos. Por sua vez Luri, que acabara de chegar ao planeta pelo lado oposto, já sabia que devia esperar para interceptar o maior já na atmosfera.

Os dois asteróides se tornaram de fato meteoros simultaneamente, o menor entrando de frente na atmosfera, rumo a Seki. O maior entrando como previsto pela tangente, sofrendo então a violenta resistência do ar que rapidamente o transformou numa gigantesca bola de fogo. Por sorte o espetáculo não se deu acima de nenhum das cidades, ou o simples deslocamento de ar teria causado sérios danos.

Quem visse da superfície, mal poderia deduzir que a gigantesca bola de fogo estava caindo, pois parecia voar na horizontal, o que era ainda pior, pois causaria estragos numa área muito mais extensa.

Seki tinha uma decisão difícil, se atirasse no meteoro menor poderia detonar o Urânio, se tentasse segurá-lo nada garantia que conseguisse. Só havia um meio seguro, tentaria empurrá-lo para fora da rota.

Subiu mais alguns kms e então ficou a esperar, no momento certo passou a descer há cerca de dois km/s. Dessa forma pode ver o meteoro se emparelhar lentamente com ele e então partiu para interceptá-lo. Se aproximou, lutando contra a onda de choque, a fumaça e o fogo, até poder tocá-lo, e com o próprio corpo foi forçando-o a se desviar para uma rota que oferecesse o mínimo risco possível para as Cidades.

Mesmo a rocha já tendo perdido parte de sua massa na fricção com a atmosfera, ainda ofereceu considerável resistência, mas pouco a pouco ele foi inclinando o meteoro até colocá-lo quase na horizontal, e posicioná-lo de modo que oferecesse a maior área de resistência ao ar.

Por fim, afastou-se dele e passou a sua frente. Havia sentido a radiação do Urânio e percebeu que ainda era cedo para tentar desintegrá-lo, tinha que diminuir-lhe a quantidade bem abaixo da massa crítica.

Posicionou-se então bem a frente, pronto a recepcioná-lo. Nem pôde reparar que havia câmeras de TV no ar captando a eletrizante sequência. Calculou bem o ângulo e a posição e no momento certo aplicou um soco num amplo movimento de gancho, partindo a rocha novamente ao meio e arremessando as duas maiores partes mais para o alto.

Com a divisão das metades, além de alguns fragmentos menores que cairiam no mar, ele partiu ao encalço da que estava mais baixo. Tal como um míssil persegue o alvo, ele seguiu a rocha até atingir a distância ideal, então disparou raios de calor de seus braços que a evaporaram prontamente.

Só faltava o outro pedaço, que mesmo caindo ao mar oferecia perigo devido a força do impacto ser ainda capaz de talvez fazer ondas chegarem até a costa da Segunda Cidade.

Se adiantou a ele novamente, mas por azar acabaram entrando em nuvens densas e turbulentas. Ele se concentrou na radiação e se antecipou ao meteoro. Pela leitura radioativa, achou que talvez o Urânio ainda fosse capaz de detonar, era melhor quebrá-lo novamente.

Mas ele não pode ver que no interior das nuvens a rocha se dividiu em duas partes, uma delas fina, quase na forma de um disco, feita de minérios mais resistentes.

Ele previu certo a chegada da primeira e num único soco reduziu-a a pedacinhos e poeira, porém no interior das brumas turbulentas, não pôde distinguir bem a aproximação do outro pedaço, rodando e afiado como uma lâmina.

Tentou se desviar mas era tarde, a lâmina de pedra atingiu seu braço direito quase na altura do ombro, se partiu em vários pedaços que caíram ao mar mas também levou seu membro, que decepado, despencou das alturas vazando o que era o seu sangue, um fotoplasma brilhante e transparente.

Ele sentiu uma intensa dor que o deixou temporariamente desorientado, mas ainda pode ver os cacos das pedras atingirem a água, assim como seu braço. Teve receio de que a combinação de Fotoplasma e Urânio pudessem causar alguma reação desastrosa, mas nada ocorreu.

Pousou num parcos recifes em alto mar ainda sentindo a dor, olhou para o que fora o braço e disse para si mesmo. - Bem feito! - Respirou mais um pouco e então partiu para dentro da água em busca do braço perdido.

Enquanto isso, na solidão do espaço, um corpo nu flutuava a deriva. Era Hane, começando a recuperar a consciência. Suas roupas foram completamente destruídas pela onda de choque da explosão do asteróide de urânio. Boa parte de sua “carne” ainda estava deformada, mas aos poucos, se recompondo.

Era possível notar a pele ficando transparente, brilhando suavemente e se moldando à forma original até por fim parar de brilhar e recuperar a tonalidade da derme. A viseira também fora arrebatada, e suas córneas brilhantes sobressaíam em seu rosto.

Finalmente despertando, percebeu Orizon, começou a captar as transmissões e logo entendeu o que se passava. - Não posso fazer mais nada. Agora depende do Luri. - Voou não muito rápido até o corpo também inconsciente de Doni, e também quase completamente nu, restando apenas as mangas do casaco, e puxando-o pelo braço seguiu rumo ao planeta.

Ter intencionalidade é ter estados mentais direcionados a algo. Agimos não apenas por força mecânica cega, mas tendo em vista algum objetivo. Nossas emoções também são estados intencionais, pois há algo que de fato as sente. Um antróide poderia simular o choro e o desespero, mas nada haveria lá dentro que estivesse de fato sofrendo. Não teria subjetividade real.
ESPETÁCULO

Agora Luri se aproximava da imensa bola de fogo que rasgava os céus. Algumas câmeras ao longe podiam acompanhar a cena armagedônica, mas sequer podiam ver melhores detalhes dado o intenso brilho.

Luri emparelhou com o meteoro penetrando em sua onda de choque flamejante a mais de um km do núcleo de rocha incandescente, e foi se aproximando com dificuldade.

A situação era inédita. Nunca antes eles haviam se deparado com um meteoro tão grande voando a aquela velocidade. Era difícil saber inclusive quanto tempo demoraria para chegar ao chão, mas de certo o impacto provocaria no mínimo uma nuvem de poeira que cobriria Orizon por dias, talvez meses. E isso pensando com muito otimismo.

Com certeza a atmosfera não conseguiria desintegrar a rocha por completo antes do impacto, nem sequer reduzir sua massa o suficiente para evitar um desastre, portanto ele tinha que ser detido.

Porém levantá-lo, ou segurá-lo, seria impossível. Os super heróis possuíam seus limites físicos. Talvez nem se os 4 estivessem juntos. A medida que entrava na turbulência flamejante, desafiando uma verdadeira tempestade de fogo infernal, Luri ia descartando as possibilidades.

A primeira era simplesmente acelerar o processo de derretimento e evaporação da rocha, disparando raios de calor. Mas além do risco de também haver Urânio na rocha, nada garantia que seria possível uma total desintegração a tempo, assim como pedaços poderiam se desprender rumo ao solo sem que ele pudesse vê-los.

Então pensou em cortá-lo em dois, de modo que a atmosfera os destruísse mais rápido, mas os riscos eram semelhantes, além do fato de que mesmo assim ainda pudessem atingir o solo em pontos diferentes.

Só restava uma opção, muito arriscada, explodi-lo totalmente enquanto ainda estava alto. Dessa forma o Urânio poderia até ajudar, se posse possível promover uma única e potente explosão sobre uma área o mais deserta possível.

Começou então a perfurar um orifício no asteróide, de modo a se posicionar em seu interior o mais ao centro possível, e provocar a explosão de dentro. Os raios azuis intensos amoleciam a rocha, e ele ia escavando com as próprias mãos, que brilhavam como uma estrela azul clara.

A Defesa Planetária acabava de calcular a provável rota do asteróide. Ele deveria percorrer ainda cerca de 23 mil kms antes de atingir o solo, e o faria numa área que embora pouco habitada, causaria um desastre. Uma ilha de tamanho médio que provavelmente seria completamente desintegrada, a onda de choque pelo Mar e pelo ar daria a volta em torno do planeta atingindo as cidades pelo lado oposto com danos difíceis de calcular. A temperatura global subiria uns 3 graus. Isso sem contar o "Inverno" que envolveria o planeta por meses, impedindo o contato com o Sol Vermelho.

A bola de fogo sobrevoava agora as grandes cidades, e ainda que não exatamente sobre elas, oferecia um espetáculo aterrador. O deslocamento de ar provocou ventanias quentes que foram sentidas por toda a população, além de um estrondo que fazia a terra tremer.

Luri já estava no interior do meteoro, o melhor ponto para realizar a explosão. Infelizmente percebeu que os minérios eram mais resistentes do que pensava. Não seria fácil gerar uma onda de choque capaz de garantir sua pulverização completa. O que faria?

Por um momento pensou em explodir o próprio corpo. O que significava um suicídio. Chegou a refletir se não valia a pena abandonar a vida tão confusa. Tornar-se um mártir. O sacrifício final de um homem incompreendido. Mas logo afastou esses pensamentos. Ele estava apenas aproveitando mais uma chance para mergulhar em melancolia. E esse não era o momento. Além do mais, se ele realizasse o que eles chamavam de auto colapso, uma hiper excitação de seu próprio fotoplasma a ponto de desencadear um explosão sub nuclear, ele com certeza desintegraria completamente o meteoro, mas provavelmente levaria um bom pedaço do planeta também. Seria um tragédia ainda pior.

Enquanto isso Seki acabava da voltar do fundo do mar após achar seu braço decepado. Meio tonto, ele flutuava sobre a água tentando encaixar o braço no lugar certo e de modo soldá-lo de volta ao corpo. De repente, pressentiu a imensa bola flamejante cortando o céu.

Mesmo um pouco desorientado entrou em contato com seu irmão.

- "Luri! O que pretende fazer?!"

Luri foi pego de surpresa, não esperava receber um contato de Seki.

- "Explodir." - Respondeu.

- "Tem força suficiente pra isso?" - Perguntou Seki.

Luri hesitou. - "Não sei."

Seki pensou rápido. Olhou para o seu braço ainda separado do corpo. Pingando plasma brilhante. Então comunicou seu plano a Luri.

Era a solução! Sem dúvida! Rapidamente Luri saiu do buraco, atravessou as chamas e abandonou o meteoro que acabava de passar por Seki, tão rápido que este só ouviu o som quando a rocha já sumia no horizonte.

Seki não conseguia voar muito rápido, estava muito fraco, como explicou a Luri. Mesmo assim foi ao seu encontro.

Levantando uma coluna de dezenas de metros de água devido ao deslocamento de ar, Luri num vôo rasante chegou até Seki. Este simplesmente arremessou o braço ao alto onde Luri o agarrou já fazendo a meia volta. As câmeras de TV pegaram tudo.

Após Luri sumir no céu ao encalço da rocha ameaçadora. Uma câmera se aproximou de Seki, e ele disse meio que constrangido. - Para vocês verem que eu dou meu braço por este planeta!

Outras câmeras voavam atrás de Luri, mas não conseguiam alcançá-lo apesar de marcarem cerca de 1000 m/s. O meteoro já estava há cerca de 19 mil metros de altura e o impacto com o solo seria dentro de dois minutos e 20 segundos.

Luri finalmente alcançou novamente a bola de fogo, com cuidado, segurando o braço pendente, penetrou novamente nas chamas até que, com muito mais dificuldade do que antes, atingiu a superfície rochosa. Para sua desagradável surpresa o orifício havia sumido. Coberto por rocha derretida, gastou preciosos segundos para localizá-lo e conseguir de um só golpe entrar de novo no buraco.

Lá no fundo depositou o braço de Seki, fixando-o na rocha. Voltou para a saída e se preparou. Agora era simples. Uma vez separado do restante do corpo, qualquer parte de um deles, mesmo o sangue, tornava-se temporariamente instável a nível nuclear. Um único raio de prótons desencadearia uma reação de fissão.

Luri disparou já se afastando do buraco.

Algumas câmeras de TV esperavam onde provavelmente se daria o impacto, mas contemplaram uma luz mil vezes mais brilhante que o Sol Vermelho. Por segundos dispositivos elétricos de boa parte do planeta falharam, as câmeras também deixaram de funcionar por alguns momentos, caindo alguns kms, algumas se espatifaram no solo.

A onda de choque varreu os céus num espetáculo apocalíptico, porém sem causar danos significativos. A explosão se dera a quase 17 mil metros de altitude. O meteoro foi completamente desintegrado. O local deserto que sobrevoava teve sua paisagem consideravelmente mudada. Parte do mar ácido ferveu. Mas nenhum dano sério aconteceu.

Quase um minuto depois, a população de Orizon ainda via pela TV imagens das ondas causadas pela explosão, que produziram belos efeitos visuais nos céus. Então mostraram Luri, "caindo" suavemente rumo ao solo, meio que descansando e exibindo um sorriso de quem acabava de passar por uma sessão prazerosa de massagem, ou saía de um agradável banho quente.

Pousou sobre uma montanha e se deitou respirando fundo. Uma câmera se aproximou e pelo alto falante um dos repórteres falou.

- Inacreditável Sr. Luri! Absolutamente Fantástico! Tem alguma coisa a nos dizer? - Mas Luri, como era de se esperar. Apenas sorriu, e quase rindo ainda que baixo, respondeu um discreto. - Não.

E levantou vôo. Algumas câmeras o seguiram mas logo ele sumia no horizonte, além do alcance de qualquer veículo aéreo. Hane e Doni acabavam de chegar na Segunda Cidade, enquanto Seki, na praia, olhando a estrela vermelha no horizonte e a estrela branca já "submersa" na água, refletia sobre o resultado de sua insensatez.

Respirando muito intensamente, quase comendo o ar, se recuperava do desgaste. Uma nova formação sólida que equivalia aos ossos do braço já estava a se formar lentamente, pequenos prolongamentos translúcidos verde claros se moldavam lentamente também na forma de tendões.

Algumas naves pousaram e grupos de pessoas, a maioria repórteres, vieram correndo para lhe entrevistar. Mas Seki era muito vaidoso, e ao notar o aspecto desagradável de seu braço preferiu não aparecer em público até estar recuperado, além de que estava cheio de radiação. Tentando ser simpático despediu-se de longe com uma desculpa, e ainda que exausto voou para casa.

Havia conseguido o que pretendia. Um show como jamais se vira. Nem mesmo a batalha final contra os Ians gerara tanta comoção ao vivo devido ao fato de não ter sido devidamente televisionada.

Mal sabia ele que o destino lhes reservava espetáculo ainda maior. Muito maior.

Temos acesso direto à nosso próprio mundo mental. Sabemos que somos seres sensíveis, temos sentimentos, temos intenções reais. Porém, não temos o mesmo acesso à mente de outras pessoas. Em filosofia, isso é denominado "Problema das Outras Mentes". O que impediria que somente você tivesse uma mente real, e todos os demais fossem apenas simulacros sem mente?
DEFESA PLANETÁRIA

A sala de reunião da Defesa Planetária não era muito grande, mesmo porque em torno da mesa redonda havia apenas 14 cadeiras. Quatro eram reservadas aos Super Seres, mas como Luri não estava presente, como sempre, ela acabava ficando vazia com a exceção desta ocasião, onde a urgência e gravidade da situação permitiram que fosse ocupada por mais um membro respeitável da comunidade científica.

No ambiente apenas 5 mulheres, duas enfeitando a mesa com austera beleza. Seki e Doni sentados lado a lado, de frente para Hane, que estava entre os dois responsáveis maiores pelo Sistema Planetário de Defesa. Um deles perguntou. - Como vai o braço Sr. Seki?

Meio que pego de surpresa Seki saiu de seu incomum mutismo e fazendo movimentos com um braço aparentemente perfeito, que consumira dois dias de regeneração, disse num sorrisinho. - Diria que uns 97%!

Agitando os dedos completou. - Alguns movimentos ainda estão difíceis. - Tentando descontrair. Todos eles, até mesmo Luri, já haviam apresentado seus relatórios. Seki, um bom mentiroso, instruíra Doni no que dizer. E mesmo assim este estava muito constrangido, notava-se que escondia algo, embora pudesse ser também a vergonha de ter aparentemente se atrasado no cumprimento do dever.

- A situação, como vimos, é muito grave. - Disse um dos membros do atual Triunvirato que governava Orizon. - Nunca antes testemunhamos tamanho ataque à nossa civilização desde o fim da Guerra!

- É evidente. - Continuou o chefe do Instituto Astrofísico. - Que a explosão que deflagrou a chuva de meteoros no cinturão 5-6 não foi um evento corriqueiro.

Seki era muito cínico, mas estava profundamente incomodado. - Não é esse o problema! - Remediou, querendo chamar a atenção para o outro ponto da questão, que lhe era menos culpável. - O que eu quero saber é: Desde quando existe Urânio em asteróides?! - Completou num misto de curiosidade e revolta, enquanto pensava "Como é que eu podia advinhar que havia Urânio naqueles malditos asteróides!?"

O Urânio, sem dúvida fora o maior problema. Sem ele não teria ocorrido o quase desastre, o meteoro maior seria detido com muito mais facilidade.

Seki esfregava o braço direito constantemente, como que a criar uma justificativa para seu persistente embora discreto nervosismo, ainda estimulado pela lembrança do soco bem dado que Doni havia lhe aplicado um dia antes em represália a idéia estúpida pela qual se deixou levar. E ainda lembrando da resposta que Doni dera a sua pergunta sobre o Urânio. - "Podia ter examinado as rochas primeiro!!!"

- Não é impossível. - Disse um dos cientistas. - Mas realmente não sabemos de onde ele pode ter vindo. Provavelmente um planeta maior desintegrado.

- Ou mais um truque dos Ians. - Interrompeu uma das supervisoras da Defesa Planetária.

- O fato! - Disse um dos Presidentes. - É que isso dificilmente poderia não ser uma ação arquitetada por uma inteligência. Significa que a ameaça não acabou. Os Ians voltaram.

- Ou alguma outra coisa. - Disse a outra Presidente.

- Mas o que temos para trabalhar?! Por onde começaremos a procurar. É claro que eles já devem ter abandonado o local de operação. Não podemos vasculhar o Sistema Estelar inteiro a procura de não sabemos o quê.

- Sugiro sondarmos exaustivamente todos os cinturões de asteróides. Para começar. Instalar novos sensores e despachar sondas para todas as direções. Ainda que isso seja óbvio. - Disse o secretário de Defesa Espacial.

- É o que faremos. - Respondeu subitamente Hane. - Já combinei com o Luri de fazermos uma série de sondagens a começar pelo cinturão 5-6.

Enquanto isso Seki ardia de culpa por não pode falar sobre o estranho sinal que percebeu enquanto esteve no espaço preparando o espetáculo. Não haveria como explicar que estava lá justamente na hora do evento. Por outro lado, era só isso que diminuía seu constrangimento ao ver tamanha mobilização em torno de uma brincadeira de mau gosto, pois o tal sinal de fato era algo que justificaria certa preocupação.

As deliberações permaneceram por horas. Foram exibidas várias reconstituições dos eventos. Mais de uma vez Hane exigiu que deixassem Luri em paz, devido a suas estranhas ausências por vezes em vôos no espaço. Doni e Seki falaram pouco, se limitando a ocasionalmente dar alguma evasiva para acobertar pontos obscuros de seus relatórios. E Hane, estava desconfiado de algo.

Ficou estabelecido um estado de Alerta Amarelo, e ocasionais leis marciais estavam sendo estudadas.

Terminada a reunião, os 3 heróis e mais alguns outros se dirigiram para um evento contrastante ao que haviam acabado de estar. Era hora da maior festa já promovida em vários anos. Uma nova e badaladíssima comemoração em homenagem ao 4 super seres.

Mas pouco antes de chegarem ao local Seki e Doni deram uma desculpa e se afastaram de Hane pousando num local diferente. Finalmente, Seki contou tudo sobre o sinal que detectara pouco antes de enviar o asteróide.

- Aarghh!!! Mas que droga Seki!!! - Gritou Doni. - Não podemos esconder essa informação! É vital para a segurança do planeta!!!

- Não dá! Simplesmente não dá!!! - Respondeu Seki. - Como é que vou explicar minha presença lá!

- Olha aqui! Você disse que se houvesse algo errado você assumiria a culpa sozinho! - Lembrou Doni, mas logo em seguida remediou desanimado. - Mas como é que eu ia explicar que não sabia onde você estava justo quando você estava no espaço! Ninguém ia engolir essa... Droga!

Doni quase acertou Seki de novo mas preferiu esmurrar uma parede causando apenas um pequeno rompo. "Foi um acidente", diria depois.

Depois de um certo silêncio Seki finalmente falou. - Só tem um jeito. Começamos nisso juntos... Continuamos juntos. Vamos investigar essa porcaria por conta própria. Enquanto o Hane e o Luri vão para um lado, nós vamos para outro. Entendeu?

- Claro que entendi! Não sou burro!

- Tá! Calma... Quis dizer... Concorda?

Doni se acalmou e num sorriso sarcástico e conformado completou.

- Tenho escolha?

E se todas as demais pessoas fossem autômatos sem qualquer sentimento real? Ou se apenas alguns o fossem? Como podemos ter certeza de que aquela pessoa que conhecemos realmente tem uma mente com autêntica intencionalidade? Como diferenciar um antróide sofisticado de um humano? Mesmo já sabendo que um tem mente e outro não, se a simulação é boa, quem será o humano?
HOMENAGEM

A festa prometia ser um dos maiores eventos comemorativos de Orizon, mas não exatamente em termos de popularidade. O público era bastante restrito. Autoridades e celebridades dominavam a quase totalidade dos salões. Não havia quase pessoas desconhecidas. Ange, que recebera uma convite especial de Hane, era uma das exceções. O que não duraria muito tempo.

Hane, após passar em casa e mudar de roupa, acabava de chegar com sua Terceira esposa, Selxia, as outras 3 já estavam presentes. Não se tratava exatamente de uma poligamia institucional. Apenas Hane era muito sério em seus compromissos sentimentais, mas a demanda de pretendentes era tão farta que ele pôde se dar a esse luxo. Todas concordaram em dividí-lo, assim como centenas de outras concordariam.

Ao chegar Selxia se juntou as outras esposas, Xazian e Ria, e Sion veio para acompanhar seu marido, ela e Selxia não se falavam.

Numa mesa, cercados, estavam Seki e Doni, e para surpresa de Hane estavam sendo entrevistados por Ange, que dominava a situação. Dezenas de pessoas estavam atentas ao diálogo que ela travava com os heróis, que por sua vez, apesar da dispersão inicial, estavam cada vez mais envolvidos pela psicóloga. Giena, a namorada de Doni, já estava enciumada.

Mas surpresa maior foi quando Hane percebeu a chegada de Luri.

- Luri!? Ele veio!? - Hane se animou e foi receber o companheiro, tentando não demonstrar entusiasmo demais para não intimidá-lo. Mas ainda mais surpreendente foi que Luri já estava acompanhado de algumas pessoas. Parecia estar conversando, ainda que muito discretamente, e sorridente.

Enquanto isso Ange trabalhava, aproveitando a oportunidade. Era possível por vezes "ler" mais coisas na reação das pessoas em volta do que nos heróis. Seki e Doni estavam surpreendentemente interessados no que ela fazia, ela própria estava impressionada. Não esperava que fosse tão agradável a conversa.

Era evidente, é claro, que eles não estavam se portando como fariam se estivessem sós, mas isso fazia parte da pesquisa. Haveria outras oportunidades para entrevistá-los isoladamente.

Era notável também que Seki já estava de olho na psicóloga, cuja beleza inicialmente sutil, parecia ir se multiplicando a medida que ela falava. Seki tinha a impressão que cada vez que ela virava o rosto para ele, após conferir informações em seu visor de informações, estava mais bonita. Não demorou então a soltar um convite descarado, de que ela viesse conversar com ele a sós mais tarde. Ela porém declinou com tal elegância e bom humor que lhe arrancou gargalhadas, e aumentou ainda mais seu interesse.

Hane observando a cena já se divertia de antemão. Tinha certeza que Ange não era das que cairiam na cama de Seki. Dessa vez ele teria uma surpresa.

Luri, acompanhava um grupo pequeno. Era fato que muitas pessoas hesitavam em se aproximar dele. Não pela sua atitude de reserva, mas também pela sua aparência. Vestia roupas pretas. Como um uniforme de operações especiais. Luri também era mais alto que a média do ambiente, e usando botas de plataforma elevada, combinado com o fato de ser quem ele era, parecia um gigante, pelo menos simbolicamente.

Mas Luri estava diferente. Basicamente ouvia um conversa agradável entre algumas pessoas que ele conhecia de vista. Funcionários de instituições científicas e técnicos da Defesa Planetária, que lhe dispensavam uma atenção especial a medida que contavam suas histórias, que ele acompanha com bom humor e aparente interesse.

Foi então que a onda de surpresas atingiu mais um pessoa. Erika, uma bela e exótica morena, acabava de chegar com algumas amigas.

- Hã!!! É... O Luri! Não acredito! O Luri está aqui! - Ela exclamou para suas companheiras.

Erika gozava de elevada fama entre as celebridades. O motivo era o simples fato de ele ter sido uma das pouquíssimas, na verdade uma das únicas 4, mulheres que até hoje haviam se envolvido emocional e sexualmente com 3 dos Super Heróis de Orizon, das quais inclusive nenhuma das outras estava presente.

Ela namorara inicialmente Hane, depois Doni, e finalmente tivera algumas noites exclusivas com Seki, há não muito tempo atrás. Isso lhe dera uma condição social e publicitária que ele soube muito bem aproveitar, ficando famosa e requisitada. Mas ainda lhe era pouco.

- Eu não posso perder uma oportunidade dessas! É hoje!!! - Disse às amigas que não demoraram a entender. Se ela conseguisse estar com Luri, realizaria a façanha maior das tietes. Conseguiria algo único na história de Orizon. A única mulher a estar com os 4 Super Seres! Seria fenomenal. Com certeza os programas e revistas de celebridades estampariam sua imagem exaustivamente, e ela poderia triplicar as exigências que fazia para divulgar ou trabalhar como modelo, chamariz e coisas do gênero.

Não era a toa que Erika conseguira a façanha de possuir 3 dos Super Seres. Ela era imensamente bela, insinuante, envolvente. Suas curvas eram fenomenais, da altura de Luri, voz hipnotizante e além disso era inteligente. Apesar disso todos os 3 heróis aparentavam demonstrar uma certa decepção ao se tornar mais íntimos dela.

- Tem que ser agora. - Disse para si mesma e foi à luta.

Se aproximou ousadamente do grupo onde Luri estava e entrou na conversa. Com sua habilidade em jogar com palavras e interpretar papéis conseguiu não só acompanhar o assunto mas logo passou a dominá-lo.

A beleza é claro, ajudava, mas também o fato de que aquelas pessoas, inclusive Luri, não saberem quem ela era. Nenhum deles ligava para colunas sociais.

Não demorou para que outras pessoas tivessem a atenção capturada. Outras possíveis tietes mais comedidas, pois neste ambiente não eram permitidas manifestações, repórteres também não caracterizados, e curiosos em geral não demoraram a perceber as intenções da moça.

De qualquer modo ela não demorou a realizar o tido como impossível, desviou Luri do grupo inicial levando-o a caminhar para um saguão ao ar livre. Com a ajuda providencial das amigas, que atraíram e desviaram outros que os acompanhavam, foi pouco a pouco isolando o herói.

Perspicaz, percebeu, mesmo com as poucas palavras de Luri, que aquele momento era raro. Luri não estava iniciando uma nova fase de maior integração social. De modo algum, muito provavelmente acontecia naquele momento um singular estado emocional favorável do super humano, que ainda mais provavelmente voltaria a sua reserva de sempre.

Talvez nunca mais ela tivesse a oportunidade. Tinha que ser naquele dia, naquela hora.

É possível que, no entanto, a falta de intencionalidade, ou outra peculiaridade exclusiva de uma mente real, impeça que um autômato consiga de fato simular com perfeição um ser humano. Se assim for, jamais um antróide conseguirá se passar por humano por muito tempo. Um exame atento irá desmascará-lo, ou se isso não for possível, teremos que considerá-lo tendo uma mente real.
A UM PASSO DA GLÓRIA

Finalmente eles estavam a sós, numa parte bem reservada do saguão. Erika conseguia distrair Luri conversando não sobre os grandes feitos dos heróis, ou do que as pessoas sentiam quando estavam em perigo, mas sim misturando assuntos pouco comuns entre a maioria das pessoas. Como astronomia e a inspiração poética que astros causavam na pessoas, sobre música e arte. Ela não demorou a detectar partes sensíveis de Luri.

Já tinha meio caminho andado. Talvez ela não conseguisse de fato envolvê-lo sexualmente. Mas se eles fossem vistos ao menos abraçados... Isso já seria suficiente para pelo menos criar boatos, que dificilmente seriam desmentidos por Luri e muito menos por ela.

Hane, se tivesse visto, teria intervido, mas estava ocupado dispensando atenção a autoridades, enquanto Seki já havia sumido, junto com algumas das mais belas moças do local, e Doni ainda conversava com Ange apesar da já evidente insatisfação de sua namorada.

O monossilábico Luri estava enfeitiçado por Erika. Difícil dizer que nível de atração ele sentia por ela, ou o que de fato o fazia estar ali, atento às palavras dela. Mas ele parecia de fato interessado no que ela dizia. Assuntos sobre poesia, mística, tão incomum naquele contexto social, e coisas subjetivas que surpreendentemente pareciam despertar a curiosidade de Luri.

Porém as poucas investidas mais ousadas dela até agora não haviam surtido efeito algum. Ela tentou várias abordagens. Elogios, olhares insinuantes, carícias sutis, perguntas sobre o que ele achava dela. Mas Luri não apresentava nenhum reação esperada de um homem, pelo contrário, ele parecia desanimar toda vez que ela tentava.

Por fim, já perdendo a paciência, ela o envolveu com os braços, e aproximou o corpo com tal graça, temperada por olhar fatal e respiração insinuante, que homem normal algum, os outros 3 super heróis inclusos, deixaria de ser afetado, tendo pelo menos uma ereção.

Várias pessoas estavam olhando, algumas até chegando mais perto. Hane inclusive acabava de vir a procura do colega, pretendendo apresentar-lhe algumas pessoas. Todos viram então subitamente, Luri empurrar Erika ao chão.

Ela caiu assustada, derrubando uma bandeja de bebidas que estava na mesa atrás dela. Luri parecia um criança assustada, diante de uma ameaça. As pessoas se aproximaram, atônitas, e Erika perdeu a compostura.

- Seu idiota!!! Qual é seu problema!?!? - Gritou se levantando. Luri nada respondeu e a essa altura eles já estavam cercados por várias pessoas.

Erika então, aos gritos, pegou copos de bebidas e arremessou em Luri. A cena então foi patética. Luri estava completamente acuado, incapaz de reagir, parecendo uma pessoa indefesa perante um monstro ameaçador até que de repente a empurrou ao chão de novo derrubando também dois homens que vinham segurá-la. Então com uma expressão de vergonha e embaraço indescritíveis, ele disparou aos céus como um foguete, causando um deslocamento de ar que derrubou Erika pela terceira vez logo que ela se levantava.

Finalmente Hane chegou e parecia lhe estender o braço, que ela estava prestes a agarrar para se levantar enquanto resmungava palavras nada agradáveis. Mas então, para seu susto, Hane a agarrou pelo pescoço e a ergueu ao alto.

- Sua vigarista! O que foi que você fez?!?!

Todos ficaram assustados. Erika levou as mãos ao pescoço, não estava de fato sufocando, Hane teve o cuidado de lhe segurar de modo inofensivo, mas parecia, além de é claro estar doendo.

- Tudo estava tão bem e você tinha que aparecer para estragar tudo não é?! - Hane falava como alguém íntimo que já se indispusera com ela antes, o que era verdade.

A cena não era nada bonita, mesmo com a viseira, tinha-se a impressão que os olhos ocultos de Hane disparavam fogo. - Se-Senhor Hane... - Tentava dizer um dos anfitriões.

Embora todos estivessem chocados com a cena, ninguém tinha coragem de tentar deter Hane. Ninguém aprovava o modo óbvio como Erika tentou seduzir Luri, mas aprovavam menos ainda o modo como ele a empurrou, e muito menos o modo como Hane estava lidando com ela. Mas quem iria simplesmente intervir?

Doni chegou e ficou não menos chocado. - Hane?! O que é isso?!

Mas ele parecia tão hesitante em abordar Hane quanto qualquer outro, se limitando a pedir calma de um modo mais polido do que a situação parecia exigir.

Alguns cientistas e administradores, bem como outros mais envolvidos no governo, sabiam que os 4 super heróis tinham bloqueios psíquicos e neurológicos que os impediam de machucar seriamente qualquer pessoa, e só por isso ficaram mais tranquilos apesar de estarem não menos chocados.

Chegou Seki, atraído assim como centenas de pessoas, pela confusão. Ouviu um breve resumo do ocorrido mas pouco se importou.

- Hane! Pare com isso! Solta ela! - Gritou ao companheiro, mas foi ignorado.

- Solta ela Hane!!!

- Não se meta! Eu conheço muito bem essa oportunista! - Respondeu Hane enquanto Erika, misturando a pouca dor que sentia com uma simulação de sufocamento, aumentava teatralmente a dramaticidade da situação.

Seki então levitou alguns cms do chão, seu cabelos esvoaçaram e ficaram ligeiramente transparentes. Sua pele brilhou. E gritou violentamente.

- SOLTA ELA HANE!!!!!

Foi um susto geral. Hane finalmente lhe dirigiu o olhar, e mesmo com a viseira, foi possível notar em torno de seus olhos um brilho vermelho.

Hesitou em reagir num gesto de desafio, como para demonstrar que não aceitava ordens de quem quer que fosse, e então soltou bruscamente a moça que caiu ao chão desorientada, logo sendo acudida por várias pessoas.

Hane também levitou, seus cabelos, bem mais compridos, também esvoaçaram como se estivessem submersos em água. E se tornaram vermelho transparentes como delicadas fibras ópticas.

Isso aliado a ameaçadora luz que já envolvia as maçãs de seu rosto e a testa, fez muitos ali crerem estar prestes a presenciar o inesperado, uma troca de agressões entre dois dos semi-deuses de Orizon.

Seki manteve a pose, e Hane também. Mas apenas tempo suficiente para impor um certo medo. Então, subitamente, disparou rumo aos céus. Atrás de Luri.

Segundos depois Seki pousou no chão respirando aliviado, assim como os presentes. Pôs a mão na cabeça e deixou escapar um "ufa".

A festa não demorou a esvaziar.

A opinião pública criticou a atitude de Hane e questionou a de Luri, mas também não foi clemente com o comportamento de Erika, que de fato gozava de má fama como aproveitadora e chantagista. Comentaram também a passividade de Doni e elogiaram a firmeza de Seki.

Juízes, políticos, o Triunvirato de Orizon, todos se envolveram na questão. Poderia ter ocorrido algo similar a um processo jurídico não fosse os detalhes óbvios de os heróis terem acabado de salvar o planeta, e segundo que se ocorresse de Hane ser algo como "condenado" a alguma coisa, e decidisse não cumprir. Quem faria valer a determinação?

O escândalo ocupou os noticiários por um bom tempo, muitas pessoas opinaram contra ou a favor das partes, mas menos de uma semana depois tudo estava acobertado, e pouco mais se tocava no assunto.

Seki e Doni procuraram Erika pessoalmente, e dada a reserva do encontro, os boatos desgastaram ainda mais o já decadente relacionamento de Doni e Giena, que foi dado por encerrado. As pretendentes podiam comemorar, estava aberta a temporada de disputa por Doni.

Por fim foi Ange quem reconciliou os rapazes. Hane pediu desculpas a Erika, e a Seki, e até fez uma média com o público. Luri nunca mais foi visto, por ninguém, e logo deixou de ser comentado.

Ange, em parte cumprindo sua tarefa de pesquisa, e em parte já envolvida pessoalmente com os Super Seres, fez da reaproximação uma oportunidade de estudo comportamental.

Foi ter novamente com Hane, onde com alguma dificuldade, obteve a simbólica autorização de tentar abordar Luri, que não estava atendendo nem mesmo a ele.

- Eu não sei. Devido ao que aconteceu... - Disse Hane. - Temo até pela sua segurança. Quero dizer... - Completava embaraçado. - Talvez fosse um boa oportunidade para...

- Não se preocupe. Não pretendo agarrá-lo. - Disse Ange num tom alegre. Hane riu, lembrando os elegantes foras que ela dera em Seki, após alguns dias se encontrando com ele, entrevistando-o, e fazendo sessões reservadas de psicanálise. Seki por fim desistira de tentar, mas ficou amigo dela, assim como Doni. Aliás todos adoraram Ange.

Ela se preparava para iniciar então a parte mais delicada de seu trabalho. Abordar Luri.

Por fim combinou com Hane de irem visitar o quarto semi-deus de Orizon alguns dias depois. Cujo endereço quase ninguém sabia.

Existe um conceito filosófico chamado 'Teste de Turing', que afirma que qualquer ser aparentemente inteligente que consiga ser indistinguível de um humano real, em termos mentais, deverá ser considerado como tendo uma mente, e por decorrência, sendo humano. E se um computador, ou mero programa, for capaz disto? Então, deletar o programa poderia ser considerado assassinato!
TEOGONIA

Antes porém, Ange providenciava uma outra fase de sua pesquisa. Em parte por marcante insistência de Nani, seu orientador, que não fora à festa por ser um tanto anti social, e fizera duras críticas à atitude de Hane no escândalo, o que confirmou sua desconfiança de que eles tinham divergências.

Ela concordou em estudar uma característica dos 4 heróis que estranhamente era desconhecida ao público, e a ela mesma. A natureza de seus super poderes.

Para isso conseguiu, graças a Nani, e em parte a Hane, uma entrevista com Ekzar, um físico que trabalhara no projeto que criara os super seres, e que agora vinha se dedicando a Filosofia.

Ekzar, apesar da idade, era aparentemente jovem. Cabelos compridos, um modo de se portar e se vestir despojado, até um linguajar em voga na juventude. Em parte devido a ter lecionado para estudantes de nível intermediário. Ele a recebeu com inusitado entusiasmo, em sua casa, uma construção afastada da primeira cidade, sobre uma colina.

Sentando numa poltrona, ele parecia mais animado do que ela, e após alguns comentários iniciais, onde disse conhecer trabalhos da psicóloga, falou em tom de suspense.

- Bom... Faz 10 ou 12 anos que a guerra acabou, a Defesa Planetária não tem mais poder político direto... Não devo mais nada a ninguém no projeto e... - Fez uma pausa dramática e olhou nos olhos dela, continuando. - Quer saber de uma coisa? Vou contar bem mais do que você espera. Pode se preparar!

Ange ficou surpresa, já percebera que estava sendo tão bem tratada em parte por possuir um comportamento muito diferente dos repórteres, que se limitavam em espalhar o mais sensacionalmente possível qualquer migalha de informação que conseguissem, mesmo assim, era estranho que Ekzar estivesse disposto a lhe confessar segredos.

- Você, e suponho todo mundo, quer saber a respeito de como nossos garotos funcionam não? Não acha simplesmente inacreditável que o público tenha tão pouco interesse sobre isso?

Ange concordou, e comentaram sobre suas teses a respeito do comodismo intelectual que se abateu sobre Orizon após a guerra.

- Eu cheguei a propor à Universidade que estruturássemos um novo campo de pesquisa, sobre a tecnologia que nos permitiu construir essas maravilhas que cruzam nossos céus e salvam nosso planeta. - Continuou Ekzar em tom desapontado. - Mas recusaram.

- Ah... Me lembro como se fosse ontem... Quando eu fui convidado para trabalhar num projeto científico que nem nome tinha, de tão secreto. No começo cheguei a pensar que estavam brincando comigo. Nada fazia sentido. Eram pesquisas sobre coisas aparentemente desconexas. - Fez uma pausa.

- Dezoito anos depois eles nasciam.

Ange usava suas expressões para exponenciar sua curiosidade e expectativa, mas ao mesmo tempo sua paciência em respeitar a dinâmica de seu interlocutor. Qualidade que os repórteres geralmente não tinham.

- Você sabe que eles não são carbônicos... Sabe?

- Sim. - Respondeu Ange embora com pouca convicção. - Ouvi falar... São silicônicos não?

Ekzar abriu um sorriso, como tendo um trunfo. - Mais ou menos. Toda a química do corpo deles se baseia em um composto especial de Silicatos, mas isso é só... Menos da metade...

Ange acompanhava atenta.

- Esse composto é capaz de formar cadeias variadas de moléculas, tendo como característica ser sempre transparente, e ter uma capacidade de acumular e irradiar energia muito melhor que a química carbônica.

- O Fotoplasma. - Completou Ange e Ekzar confirmou com a cabeça. Ela perguntou. - Afinal o que é o Fotoplasma deles?

- Você já deve ter notado a coincidência no fato de os Ians e os nossos rapazes serem ambos fotoplásmicos não?

- Claro. - Responde a psicóloga. - Mas sei que a química dos Ians é totalmente diferente.

- Sim. - Disse o físico filósofo, fazendo então uma pausa dramática. Subitamente mudou de tom. - O que Nani falou sobre mim?

Ange, surpreendida pela mudança de assunto demorou a responder.

- Não muito. Apenas insistiu que eu o visse, Hane chegou a cogitar outros cientistas, acho que só pra contrariar Nani, mas ele insistiu que eu falasse com você.

- Sei. Sabe que Nani trabalhou num projeto secreto de comunicação com os Ians? - Ange assentiu com a cabeça e ele continuou - O que ele lhe falou sobre isso?

- O Projeto Diplos? Que era promissor mas foi cancelado, que poderiam saber como os Ians percebiam a matéria, e poderia nos levar a entendê-los, quem sabe até a nos comunicarmos com eles.

- Só isso? - Ekzar arregalou os olhos. - Ah Nani. Não sei como consegue manter tanto segredo por tanto tempo. Sabe? É por isso que eu não falo com repórteres, pois sinto uma vontade terrível de contar coisas que o governo proibiu a todos nós, envolvidos nesses projetos, de falar.

- Do tipo?

- Tipo? Ah minha querida... Tipo que o Projeto Diplos foi muito, mas muuuiiito mais longe do que isso.

- Se comunicaram com os Ians?

Ekzar fez que sim com a cabeça, e tirou de um armário ao seu lado dois copos de refresco, servindo sua visitante.

- Não é segredo que tivemos desertores entre nós não?

- Eu sei. - Respondeu Ange provando o refresco. - Mas não consigo vê-los exatamente como desertores. Eram pessoas que achavam ser possível obter um acordo com os Ians.

- É... E também achavam que poderíamos avançar muito nossos conhecimentos científicos com eles. E nisso estavam absolutamente certas. Pois foi o que aconteceu.

Ange já começava a intuir os fatos, mas se fazia de pouco entendida.

- Mas quase ninguém sabe é que também houveram desertores Ians.

Mesmo assim Ange ficou surpresa. - Desertores?

- Os Ians que conhecemos não eram a forma de vida original. Os originais nunca vimos, mal sabemos como poderiam ser. Os Ians eram artificiais, uma forma de vida construída por não sabemos exatamente quem com o objetivo de ajustar esse sistema estelar à certas condições. Sabemos que seus criadores atualmente não estão aqui, e nem num raio de centenas de anos-luz a nossa volta. Nosso melhor palpite é que eles simplesmente nem existem mais, e que os autômatos Ians não passam de serviçais executando ordens que não mais tem serventia.

- Nosso melhor palpite... Ou nossa melhor desculpa para destruí-los? - Perguntou Ange. Ekzar sorriu.

- Que seja. O fato é que estes autômatos desenvolveram considerável grau de inteligência artificial até surgirem desentendimentos entre eles. Alguns entraram em contato conosco, através de instrumentos criados no Projeto Diplos. Nani liderava o contato, era nosso embaixador chefe.

- Nunca conseguimos conversar absolutamente nada que não fosse científico com esses Ians, mas eles pareciam ter uma curiosidade quase emotiva sobre nós, e sobre nossos conhecimentos. Houve um intercâmbio extremamente produtivo, embora nós, é claro, tenhamos tido muito cuidado em não lhes revelar nada que pudesse ser usado contra nós, e sabíamos que eles também nos escondiam muita coisa.

Uma expressão de Ange deteve Ekzar. - Você está querendo dizer... Que os Ians nos ajudaram a construir os Super Humanos?

O sorriso de Ekzar não deixou dúvidas.

- Como eram os Ians?

- Nós nunca vimos um frente a frente. Eles são seres... Eram sem um corpo definido, como células e por vezes tentáculos. Não se adaptavam a gravidade, sobreviviam no vácuo ou em certos fluidos. E até estranho que ficassem aqui neste sistema estelar, com tantos outros com estrelas tão mais brilhantes. Não podiam entrar em contato com oxigênio e viviam unicamente de luz e calor e de alguns gases nobres. A presença de certos compostos minerais em seu organismo, inclusive ferro, os tornava ligeiramente avermelhados ou róseos, mas sempre transparentes. Apesar dessa aparência primitiva possuíam centros nervosos semelhantes a cérebros, de alta complexidade.

- E como eles ajudaram... Por que ajudaram...

- Eles nos permitiram examinar a matriz orgânica de sua forma de vida. Fomos capazes de compreender a base de sua complexidade biológica não carbônica, até podermos reproduzi-la. Surgiu então um projeto, apoiado largamente pelo Nani, que visava construir formas de vida no padrão dos Ians. Mas logo percebemos que não haveria grandes aplicações práticas, principalmente no que se referia a aplicações bélicas. Sempre soubemos como matá-los e como destruir suas máquinas. Eles não suportam choques físicos ou doses muito intensas de energia tanto quanto nós.

Ange fez um expressão quase maliciosa.

- Senhor Ekzar... O que são os nossos garotos?

Ekzar parecia sentir um enorme prazer em falar.

- Logo depois surgiu um projeto de criar uma forma de vida híbrida. Mas logo se revelou inviável. As nossas formas orgânicas, baseadas em Carbono, dependem de Oxigênio, que é letal para Ians. Mas nós já havíamos aprendido como criar formas de vida fotoplásmica, mesmo que com outras bases.

Ekzar fez mais um pausa. - Desde a antiga Mãe-Terra já se havia obtido bons resultados em produzir formas de vida baseadas em Silício, então juntamos esses dois conhecimentos, e criamos um padrão fotoplásmico com compostos de Silício.

- E qual era o objetivo inicial desse projeto?

- Vários. Nani e alguns outros pensavam em criar uma forma de vida intermediária de modo a... Talvez, criar uma ponte diplomática entre nós e os Ians. Outros apenas tinham finalidades de pesquisa. Foi então que alguém teve uma idéia espetacular.

- Criar Super Seres?

- A princípio alguns pensavam em criar máquinas e robôs de combate com tecnologia Ian. Lembre-se que naquela época estávamos em plena guerra. Éramos nós ou eles. Qualquer avanço em nossa capacidade de destruir Ians era uma esperança maior de sobrevivermos. Pensaram de tudo. Desde criar robôs para se infiltrar entre os Ians, até tentar desenvolver novas e revolucionárias armas. Finalmente alguém sugeriu criarmos Super Seres, para compensar a ausência que temos de Super Metanaturais.

Ekzar fez outra pausa, bebeu um resto de refresco e recostou.

Ao contrário do que a Ciência humana pensava há séculos atrás o Universo não tem leis tão rígidas e imutáveis quanto parecem a um observador de um local específico. Mesmo no âmbito galáctico, há consideráveis distorções nas leis naturais que somente viagens interestelares extensas podem evidenciar.

Uma das características marcantes em Orizon era a dificuldade em se desenvolver habilidades mentais consideradas como Mentônicas, isso é, capazes de converter uma força fundamental em outra. Assim não se podia, ou era muito difícil, produzir por exemplo telecinésia, que é Força Mental convertida em Gravitacional, da mesma forma como era quase impossível na velha Terra, com a exceção da fase DAMIATE, que governou o planeta por cerca de 40 anos, e seus Hiper Metanaturais.

Ange conhecia bem essa história, e perguntou. - Quer dizer que os rapazes são... Hiper Metanaturais?! - Ficando boquiaberta e amargando o suspense que Ekzar a fazia sentir.

- Não exatamente. Sabemos que é possível em certos setores da galáxia desenvolver os ditos dons Metanaturais, aqui e na velha Terra é praticamente impossível. E por quê?

- Porque existem... - Tentava Ange. - Barreiras mentônicas?

- Não existem barreiras mentônicas. O que há é uma tendência nesses locais, Sistema Solar e Sistema Orizon, em que todas as partículas fundamentais, os mentons livres, são absorvidas pela matéria. Para que a Metanaturalidade funcione, é preciso que a mente seja capaz de manipular mentons sem interferência de certas forças concorrentes, que sugam as partículas. Mas se é assim, como é possível que se na Terra os melhores Metanaturais mal conseguissem mover uma moeda, e mesmo assim se perdessem entre milhões de charlatões e loucos, DAMIATE tenha criados Hiper Metanaturais? Por sinal tão poderosos quanto os nossos garotos.

Ange pensou e pensou. - Eu... Não sei.

- Quase ninguém sabe. - Respondeu Ekzar. - Deixamos a última colônia da Terra há quase 500 anos e estamos a mais de 19 mil Anos-Luz de distância. Não sabemos quase nada que tenha ocorrido lá além da última sonda que recebemos com notícias de 150 anos atrás. Mesmo assim trouxemos em nossos registros muitas informações que não são liberadas para a maior parte das pessoas. Essa informações seriam capazes de entreter mentes ativas como a sua por toda a vida.

- Exemplos? - Ange estava entre a curiosidade mórbida e o autocontrole.

- DAMIATE fez o que fez porque possuía um dispositivo que conhecemos como “Modulador de Força Mentônica”. Era um tipo de capacitor que hiper amplificava a capacidade de uma mente devidamente treinada em produzir um padrão de mentons ordenado que convertia as outras Forças. Com isso conseguiu criar os...

- Anjos Guardiões Estelares. Os Hiper Metanaturais da Terra.

- Isso! Que eram tão ou talvez mais poderosos que os nossos Super Humanos.

- E quem construiu esses, Moduladores de Força? Teriam sido os... ZENITRONS?

Ekzar ficou impressionado com a erudição da moça. - Hum... Você sabe sobre os ZENITRONS... Não! Não sabemos quem os construiu. Eram apenas 12. Mas não eram Zenitrons. A propósito! Sabe que eles possivelmente estiveram em Orizon há mais de um milênio atrás? Achamos até que eles batizaram o sistema com esse nome e o registraram nos arquivos hexagonais da galáxia. Aliás Orizon é um nome de sonoridade tipicamente Zenitron.

Ange parou para refletir. Ela conhecia história antiga da Terra, e história de outras civilizações galácticas. Dos registros da Aliança Hexagonal, compostas pelas 6 raças humanóides conhecidas incluindo a terrestre. Sabia sobre DAMIATE e seus 12 Anjos Guardiões. Mas não estava conseguindo conectar todos os dados num raciocínio coerente, insistiu em se manter no assunto.

- Mas o que tem haver isso com os nossos... Por acaso eles tem algo semelhante a esses tais Moduladores de Força?

- Ah... Foi aí que eu entrei. Ekzar deu mais outra pausa. - Quando fui chamado ao projeto tudo isto já havia acontecido, fui escalado para liderar uma das equipes que tinham por objetivo tentar reproduzir algo similar ao tal Modulador de Força Mentônica.

- Como eram esses dispositivos?

- Ninguém sabe ao certo. Aparentemente eram muito simples. Uma pequena esfera de cristal com uma incomum formação molecular no centro. Mas os materiais eram indecifráveis. Porém conhecíamos algumas características gerais. Nós pretendíamos então criar um tipo de estrutura molecular que se mantivesse coesa mas não precisasse de forças nucleares, ou seja... Tínhamos que criar um tipo de matéria cujos átomos não se agregam da mesma forma que na matéria normal.

- E o fotoplasma? Onde entra nisso?

- Ah sim... Bem. Usando a Matriz de fotoplasma de silicatos fomos capazes de produzir toda uma química de alta complexidade, comparável à química carbônica. Reproduzimos, passo a passo, todos os estágios de evolução química necessária para obter organismos vivos complexos, capazes de se reproduzir e evoluir. Hum... Nunca vou me esquecer... Dos tanques fotoplásmicos de produção de vida. Foram produzidos mini ecossistemas de seres luminosos de vários tipos.

- E o que foi feito desses seres?

- Foram... Sacrificados. Vou chegar lá. Bem, esses organismos que desenvolvemos não eram nem carbônicos nem Ians, podiam sobreviver por longo tempo no vácuo e em praticamente qualquer tipo de meio, não tinham problemas com oxigênio e precisavam apenas de luz e calor e de uma dose discreta e constante de Silício, ou compostos siliconados.

- O fotoplasma se alimenta de sílicio?!

- Basicamente.

- Isso inclui nossos super heróis?

- Certamente.

- Como?!

- Eles não precisam comer, como nós. Eles simulam os atos de comer e beber apenas porque nós os projetamos para serem capazes de fazer isso, assim como de sentir e apreciar certos sabores. Mas não tem a menor necessidade de ingerir alimentos. Tudo o que eles precisam fazer é respirar.

- Respirar?!

- Sim. Eles se alimentam basicamente dos compostos silicatos que existem no ar. E o ar de Orizon...

- É rico em silício.

- Exatamente. Muito mais do que na maioria dos planetas habitados que conhecemos por meio de nossas bibliotecas. Um habitante da Mãe-Terra por exemplo poderia ter problemas aqui em Orizon, ao respirar doses consideráveis de compostos silicatos no ar. Nós fomos adaptados biogeneticamente.

- Então eles se alimentam.

- Sim. Respirando. Mas não necessitam de Oxigênio, Nitrogênio, Protóxio de Hidrogênio e etc. Só precisam de silicatos. Por isso nem precisam respirar com tanta frequência. Podem passar dias no vácuo do espaço, embora períodos muito prolongados tendem a lhes enfraquecer. Mas podem também respirar em outros ambientes desde que possuam alguns silicatos básicos. Na pior das hipóteses, podem comer certos tipos de minerais. Mas nunca precisaram disso.

- Então por que eles gostam, ou parecem gostar, de comer?

- Porque nós os programamos para isso. Para serem o mais humanos possível. Criamos toda uma estrutura neurológica para que eles consigam reagir a certas substâncias químicas e produzir impulsos cerebrais baseados nisso, criando um universo de sensações semelhantes ao nosso.

- Entendo. - Ange sentia-se um pouco incomodada com o modo como Ekzar dizia serem os rapazes, "produzidos", "programados".

- Tudo neles é simulado! Nada é exatamente como nós. Eles reagem ao ambiente de forma similar, sua estrutura biológica apesar de fotoplásmica é detalhisticamente correspondente à nossa. Tomamos todo o cuidado para que eles sejam simulacros biológicos perfeitos, capazes de nos imitar em tudo, de modo a serem tão humanos quanto nós. Até criamos uma série de padrões completamente inúteis para sua existência, mas necessários para que eles fossem humanos como nós, tais como a sensibilidade gustativa, tátil, a capacidade de sentir prazer físico, traduzidos em impulsos elétricos produzidos por cérebros fotoplásmicos siliconados construídos em absoluto paralelismo com sua inspirada matriz carbônica.

- Fascinante. - Disse Ange, pretendendo adiar questões existenciais.

- Embora nem tudo tenha saído como pretendemos. - Continuou Ekzar. - Nenhum de nós até hoje sabe por que nenhum deles gosta do sabor de morangos por exemplo. - Disse num tom de displicência, encostando-se no sofá e bebendo mais um gole de refresco. - Acreditamos que possa ter sido uma confusão com o sistema de rejeição a drogas e álcool que implantamos neles.

- Rejeição a drogas?!

- Claro! Não poderíamos permitir que seres como eles se embriagassem ou ficassem fora de si, não?

- Sim! Claro! Mas estou me referindo ao fato de que se eles não reagem aos químicos como nós, provavelmente não seriam afetados por álcoois.

- Sem dúvida. Mas não podemos desconsiderar a possibilidade de embriaguez ou entorpecimento psiquicamente sugestionado. Assim como tivemos muito trabalho para isolar diversas substâncias que misturadas à química deles pudessem causar algum efeito similar, e assim criar rejeições neurológicas à todas.

Ange ficou pensativa, considerando o fato de eles serem tão biologicamente determinados. Então preferiu mudar de assunto.

- Eles se reproduzem?

- Celularmente sim. Seus corpos possuem, como já disse, todas as características dos nossos porém em sua versão fotoplásmica. Só que o fotoplasma permite uma série de vantagens, sua regeneração é muito mais rápida, e todas as suas células podem se regenerar plenamente, mesmo as nervosas, embora tenhamos criado certos empecilhos para que seus cérebros não sejam muito diferentes dos nossos. Com um refinado controle de química sílica fotoplásmica conseguimos produzir o equivalente ao ADN, que dá as instruções de construção de todos os detalhes de seu corpo, mas... Apesar disso tudo eu me refiro apenas a reprodução celular, divisão, capaz de manter o corpo físico. Eles são, como nós, colônias vivas de micro organismos celulares.

- Eles em si, não podem se reproduzir.

- Claro que não. Mesmo porque só fizemos homens.

- Por que então não fizeram também mulheres?

- Porque nunca conseguimos chegar ao refinado estágio de reprodução sexuada. Atingimos somente o nível de desenvolvimento orgânico pluricelular assexuado. Só fomos capazes de produzir organismos mais complexos graças aos Ians que nós ajudavam, que nos forneceram dados preciosos sobre como construir robôs fotoplásmicos.

- É isso que eles são? Robôs?

- Basicamente sim, só que sua complexidade é tanta que permite o advento daquilo que nós torna humanos. A consciência.

- Mas mesmo assim, poderiam ter produzido versões femininas.

- Seria mais complicado. Lembre-se que precisávamos que eles fossem o mais humanos possível. Para isso era necessário simular com a maior precisão que conseguíssemos todas as atitudes e naturezas biológicas que caracterizam um ser humano, para fazer uma mulher, teríamos que simular certas características de reprodução que são muito mais complicadas, como a produção do Óvulo. Sem isso, corríamos o risco de produzir seres que não teriam todas as características humanas, e dessa forma poderiam não se comportar exatamente como humanos.

- Mas e quanto a produção de espermatozóides?

- Eles não produzem. Seu sêmem não passa de um líquido estéril sem nenhum material genético fértil. A produção deles não requer tanta elaboração biológica quanto a períodica produção de óvulos de gametas femininos. As mulheres são seres mais complexos, apesar de serem um estágio cromossomicamente mais incipente de vida. Nós até podíamos, mas naquele momento era melhor apelar para o mais simples. Lembrem-se que eles são seres construídos artificialmente, não foram gerados de forma sexuada, apenas criamos uma matriz capaz de se replicar seguindo certas instruções, e a ativamos. Se fossem mulheres, quereríamos que eles, elas, se humanizassem o máximo possível, isso poderia incluir o desejo de maternidade, o que seria extremamente complicado.

Ekzar finalmente deu uma pausa e Ange respirou, bastante surpresa com as informações. Para manter a objetividade, tentava afastar da mente questões existenciais, se os rapazes teriam as mesmas modalidades de consciência, ou todas as possibilidades espirituais.

- Mas ainda não entendi como isso se relaciona com os tais Moduladores de Força Ment...

- Foi onde eu entrei! Minha missão era criar algo semelhante. Eu e minhas equipes tentamos por anos até conseguirmos produzir não um para cada ser consciente, como eram os dos 12 Anjos, mas na verdade colônias de mini Semi-Moduladores!

Ekzar estava visivelmente empolgado, quase eufórico. Era típico de quem vinha guardando aquela história há anos, sem poder compartilhá-la com alguém que de nada soubesse, pois todos os envolvidos no projeto dispensariam a maior parte daquelas informações.

- O antigo Modulador de Força Mentônica continua um mistério, e sinceramente, não acredito que ninguém na Galáxia saiba como ele funciona. Mas conseguimos uma solução parecida, criamos um certo tipo de "célula"... Viva, embora muito diferente... São como cristais que se reproduzem e que funcionam como canalizador de Mentons. Eles não se mantém graças às forças nucleares ou elétromagnéticas, mas sim graças a atração mentônica pura, hiper amplificada, e extremamente instável.

Ange chegou a se assustar. - Mas! Então ele são...

- Verdadeiras bombas mentônicas vivas! Mas não explodem. Os cristais não duram muito tempo, pois manter matéria densa com força mental pura é altamente dispendioso e perigoso, mas antes de morrer cada cristal produz uma única cópia. Veja bem! Eles não se dividem como as células, e sim produzem um auto clone. Agora pense...

... O que é um Menton?!

- Uma unidade primordial de existência. Acredito que mantido pela consciência de...

- Isso! Chega. Não vamos entrar nas especulações metafísicas e místicas do Menton. Sabemos, embora jamais tenhamos entendido como, que os Mentons são manipuláveis por consciências não? E apenas uma Mente Sensciente, ou melhor, uma Mente com um certo nível de auto consciência, pode manipular Mentons puros, e consequentemente garantir que alguma coisa grande se mantenha apenas por força mentônica pura. Sendo assim, qual o único tipo de ser vivo capaz de suportar essas estruturas em seu próprio organismo?

- Sere autoconscientes... Humanos.

- Exatamente!!! Por isso todas as colônias de seres vivos fotoplásmicos tiveram que ser destruídas, pois tentamos injetar nelas nossos semi moduladores, mas como se tratavam de seres de menor complexidade, e menor consciência, eram muito mais instáveis. Só deixamos as que são de fotoplasma puro, que eram a minoria e tinham mais dificuldade em sobreviver. Com isso feito, havíamos descoberto então um meio de produzir nossos próprios Moduladores de Força, mas eles só poderiam ser ativados em organismo de alta complexidade, e por isso saltamos de formas de vida primitivas como celenterados, para seres de alta complexidade, simulacros humanos!

- Sa... Saltaram... Não fizeram testes antes em seres inanimados ou...

- Não! Não seria possível! Apenas seres conscientes, com mente razoavelmente desenvolvida poderiam estabilizar os semi-moduladores, que ficam espalhados em sua própria medula fotoplásmica, e que só podem ser suportados por ele. Se injetássemos esses cristais em humanos normais eles simplesmente queimariam os tecidos, envenerariam rapidamente as células com radiação. Se os injetássemos em Ians eles seriam hiper excitados pela luminosidade latente, e amplificariam a energia em demasia, matando-os ainda mais rapidamente. Mas com nosso fotoplasma especial, de silicato, tínhamos o meio necessário para que um ser com mente avançada pudesse funcionar. Tínhamos o projeto todo, na teoria tudo se encaixava, só faltava por em prática, e produzir de uma só vez o organismo fotoplásmico e os semi-moduladores numa mesma matriz, mas tinha que ser tudo ao mesmo tempo, não dava para fazer experiências intermediárias, não era possível nem mesmo gerar um processo de divisão celular semelhante ao humano começando de um zigoto, pois não haveria mente suficientemente desenvolvida para estabilizar os moduladores durante o processo.

- Então tiveram que criá-los já crescidos?

- Já com cerca de 11 meses de idade, bêbes é claro, de alto desenvolvimento, mas com uma mente que evoluiria a medida que os semi-moduladores iam se organizando, ficando mais potentes e se adaptando. Eles ficaram adultos em menos de 8 anos e finalmente alinhamos os moduladores em sua estrutura final.

- E deu certo na primeira tentativa?

- Sim!!! Acertamos de primeira! Todos os 4... Quero dizer, a princípio seriam só 3, mas como percebemos que sobraria material, decidimos fazer mais um.

- Seki ou Doni.

- Exatamente! Os gêmeos! Antes tínhamos pensado em gerar 3 seres com graus diferentes de espectro plásmico e frequência de modulação de força mentônica, o que resulta nas peculiaridades e nas cores de cada um, quando percebemos que poderíamos gerar mais, e que não teríamos outra oportunidade, decidimos criar duas versões do nível intermediário. O que foi ótimo, pois incluímos algumas variações experimentais que garantiram que nessa segunda versão, o RY-4, Seki, fosse o mais metabolicamente perfeito de todos, pois o Hane é cego, Doni é incapaz de ouvir algumas frequências eletromagnéticas e Luri simplesmente não tem olfato. Não teve como sair tudo como planejamos, mas como disse era só uma oportunidade.

- Por quê? Por que não teriam outra oportunidade?

- Porque consumimos um planeta joviano inteiro para produzi-los!

Ange arregalou os olhos. - O quê?! Então Orizon 9 não foi destruído pelos Ians?!

- Não! Nós o usamos para produzir a matriz dos garotos. Bombardeamos o imenso planeta gasoso com bombas de fusão pura e o transformamos brevemente numa estrela, logo depois de termos depositado as matrizes atômicas e mentônicas necessárias. Consumimos o maior planeta do sistema para conseguir estabilizar os semi-moduladores, e simultaneamente os inserirmos na matriz de fotoplasma, que logo em seguida foi moldada na forma de nossos pequenos bebês deuses!

Ekzar fez uma pausa e comentou orgulhoso. - Fascinante não?

Ange, boquiaberta, mal acreditava, e já pensava poeticamente quando Ekzar falou. - Orizon 9 foi o útero gigante onde eles nasceram.

Ange chega ficou arrepiada com a idéia, era por isso que só haviam eles 4, porque para produzir mais teriam que consumir outros planetas. E pensar que tantas pessoas odiavam os Ians pela destruição de Orizon 9, o mais belo astro dos céus!

- Uma mãe que morreu no parto... - Sussurou Ange.

- Não! Não no parto, na concepção, pouco antes de administrarmos o Raio-Y!

Ange ainda estava tão desnorteada com as implicações da morte de Orizon 9 que demorou a reagir a última frase do filósofo.

- Raio-Y?! O que é isso?!

- Ah! Desculpe. Esquecei de dizer algo mais interessante. Como você sabe todo o ser vivo, no fundo, é uma fêmea, é preciso acrescentar algo para que se torne macho. Criamos esse paralelismo também. Assim que nasceram, ele eram meninas, mas como queríamos evitar as implicações mais imprevisíveis do organismo feminino nós os tornamos machos. Você sabe que os 12 Anjos da Mãe-Terra eram todos homens, e ninguém sabe muito bem porque o Modulador de Força não funcionava em mulheres. Por outro lado temos conhecimentos de outros sistemas estelares onde apenas mulheres desenvolvem super habilidades mentônicas. O Raio-Y é o apelido de um feixe eletromagnético estimulador que forçava o equivalente ao DNA deles a assumir a aparência masculina. Foi uma das partes mais delicadas pois se lançado em excesso poderíamos exceder sua masculinidade a ponto de torná-los equivalentes a uma antiga aberração cromossômica que havia na população da antiga Terra.

- Os supermachos?

- Sim. O cromossomo YY. Pior. Se exagerássemos ainda mais no Raio-Y eles poderiam simplesmente se desfazer. Aliás...

Ekzar pensou em contar algo. Falou consigo mesmo, era talvez o mais bem guardado dos segredos, mas finalmente, decidiu que pelo menos uma coisa tinha que ser preservada, era imprudente revelar essa informação. Então mudou de assunto.

- Só tivemos uma chance, mas tudo foi muito bem calculado, alguns Ians nos ajudaram em detalhes que não poderíamos resolver. Por fim, deu tudo certo. Os rapazes cresceram rápido, foram criados por atenciosas babás e só desenvolveram seus maiores poderes depois de grandes. Fizemos tudo para que tivessem uma infância o mais agradável possível mas sempre reforçando neles o sentido de sua existência. Diferente de nós, seres humanos, ele sabem quem os criou, e para quê foram criados, nunca foram abandonados e seus criadores sempre lhes deram atenção. Procedemos uma cuidadosa educação totalmente de acordo com a já prevista matriz neurológica favorável, obtida através de anos de intensos cálculos que ocuparam os mais poderosos computadores que já criamos. E mesmo assim, eles ainda tem seus defeitos... Mas... Se tudo fosse perfeito seria muito chato não?

Ekzar encerrou, e Ange, mesmo notando que ele ainda se disporia a contar mais, pediu um tempo para organizar as informações, recapitulou alguns pontos e por fim concluiu.

- Estou verdadeiramente impressionada senhor Ekzar. Nem sei por onde começar. Eu nem sequer posso revelar essas informações desse jeito, o governo não deixaria!

- Eu sei. - Respondeu o físico filósofo. - Converse com o Nani, ele terá outras novidades, e juntos você poderão decidir o que fazer.

Pouco depois Ange se despedia, após recapitular alguns tópicos e agradecer muito seu anfitrião. Ekzar se sentia com a alma lavada em poder contar tudo o que fora obrigado a guardar segredo por tanto tempo. Só então ocorreu a eles que aquele momento talvez fosse o menos indicado para revelar tanta informação, uma vez que um clima de guerra estava no ar novamente. Ironias do destino.

Ange adentrou seu pequeno veículo aéreo, que lembraria um de nossos carros esportivos mais arrojados, e partiu rumo aos céus, em frente a gigante estrela vermelha e a pequenina anã branca.

Mas ficou pensando sobre o que o físico filósofo dissera ainda pouco antes dela entrar em seu veículo, como que relembrando um detalhe curioso.

- "Ah! Quer mais um dado interessante para uma psicóloga? Sabe quem recebeu a maior intensidade de Raio-Y?"

Ange nem precisou pensar, e lhe respondeu quase de imediato.

- Foi o Hane.

Se a Intencionalidade for dispensável para uma perfeita simulação mental, teremos grandes dilemas éticos sobre máquinas inteligentes. Devemos criá-las? Poderemos destruí-las? Serão elas de fato humanas? Se a Intencionalidade não for dispensável, então jamais criaremos máquinas realmente pensantes. O problema é que, não temos como saber. O 'problema de outras mentes' persiste.