Antes porém, Ange providenciava uma outra fase de sua pesquisa. Em parte por marcante insistência de Nani, seu orientador, que não fora à festa por ser um tanto anti social, e fizera duras críticas à atitude de Hane no escândalo, o que confirmou sua desconfiança de que eles tinham divergências.
Ela concordou em estudar uma característica dos 4 heróis que estranhamente era desconhecida ao público, e a ela mesma. A natureza de seus super poderes.
Para isso conseguiu, graças a Nani, e em parte a Hane, uma entrevista com Ekzar, um físico que trabalhara no projeto que criara os super seres, e que agora vinha se dedicando a Filosofia.
Ekzar, apesar da idade, era aparentemente jovem. Cabelos compridos, um modo de se portar e se vestir despojado, até um linguajar em voga na juventude. Em parte devido a ter lecionado para estudantes de nível intermediário. Ele a recebeu com inusitado entusiasmo, em sua casa, uma construção afastada da primeira cidade, sobre uma colina.
Sentando numa poltrona, ele parecia mais animado do que ela, e após alguns comentários iniciais, onde disse conhecer trabalhos da psicóloga, falou em tom de suspense.
- Bom... Faz 10 ou 12 anos que a guerra acabou, a Defesa Planetária não tem mais poder político direto... Não devo mais nada a ninguém no projeto e... - Fez uma pausa dramática e olhou nos olhos dela, continuando. - Quer saber de uma coisa? Vou contar bem mais do que você espera. Pode se preparar!
Ange ficou surpresa, já percebera que estava sendo tão bem tratada em parte por possuir um comportamento muito diferente dos repórteres, que se limitavam em espalhar o mais sensacionalmente possível qualquer migalha de informação que conseguissem, mesmo assim, era estranho que Ekzar estivesse disposto a lhe confessar segredos.
- Você, e suponho todo mundo, quer saber a respeito de como nossos garotos funcionam não? Não acha simplesmente inacreditável que o público tenha tão pouco interesse sobre isso?
Ange concordou, e comentaram sobre suas teses a respeito do comodismo intelectual que se abateu sobre Orizon após a guerra.
- Eu cheguei a propor à Universidade que estruturássemos um novo campo de pesquisa, sobre a tecnologia que nos permitiu construir essas maravilhas que cruzam nossos céus e salvam nosso planeta. - Continuou Ekzar em tom desapontado. - Mas recusaram.
- Ah... Me lembro como se fosse ontem... Quando eu fui convidado para trabalhar num projeto científico que nem nome tinha, de tão secreto. No começo cheguei a pensar que estavam brincando comigo. Nada fazia sentido. Eram pesquisas sobre coisas aparentemente desconexas. - Fez uma pausa.
- Dezoito anos depois eles nasciam.
Ange usava suas expressões para exponenciar sua curiosidade e expectativa, mas ao mesmo tempo sua paciência em respeitar a dinâmica de seu interlocutor. Qualidade que os repórteres geralmente não tinham.
- Você sabe que eles não são carbônicos... Sabe?
- Sim. - Respondeu Ange embora com pouca convicção. - Ouvi falar... São silicônicos não?
Ekzar abriu um sorriso, como tendo um trunfo. - Mais ou menos. Toda a química do corpo deles se baseia em um composto especial de Silicatos, mas isso é só... Menos da metade...
Ange acompanhava atenta.
- Esse composto é capaz de formar cadeias variadas de moléculas, tendo como característica ser sempre transparente, e ter uma capacidade de acumular e irradiar energia muito melhor que a química carbônica.
- O Fotoplasma. - Completou Ange e Ekzar confirmou com a cabeça. Ela perguntou. - Afinal o que é o Fotoplasma deles?
- Você já deve ter notado a coincidência no fato de os Ians e os nossos rapazes serem ambos fotoplásmicos não?
- Claro. - Responde a psicóloga. - Mas sei que a química dos Ians é totalmente diferente.
- Sim. - Disse o físico filósofo, fazendo então uma pausa dramática. Subitamente mudou de tom. - O que Nani falou sobre mim?
Ange, surpreendida pela mudança de assunto demorou a responder.
- Não muito. Apenas insistiu que eu o visse, Hane chegou a cogitar outros cientistas, acho que só pra contrariar Nani, mas ele insistiu que eu falasse com você.
- Sei. Sabe que Nani trabalhou num projeto secreto de comunicação com os Ians? - Ange assentiu com a cabeça e ele continuou - O que ele lhe falou sobre isso?
- O Projeto Diplos? Que era promissor mas foi cancelado, que poderiam saber como os Ians percebiam a matéria, e poderia nos levar a entendê-los, quem sabe até a nos comunicarmos com eles.
- Só isso? - Ekzar arregalou os olhos. - Ah Nani. Não sei como consegue manter tanto segredo por tanto tempo. Sabe? É por isso que eu não falo com repórteres, pois sinto uma vontade terrível de contar coisas que o governo proibiu a todos nós, envolvidos nesses projetos, de falar.
- Do tipo?
- Tipo? Ah minha querida... Tipo que o Projeto Diplos foi muito, mas muuuiiito mais longe do que isso.
- Se comunicaram com os Ians?
Ekzar fez que sim com a cabeça, e tirou de um armário ao seu lado dois copos de refresco, servindo sua visitante.
- Não é segredo que tivemos desertores entre nós não?
- Eu sei. - Respondeu Ange provando o refresco. - Mas não consigo vê-los exatamente como desertores. Eram pessoas que achavam ser possível obter um acordo com os Ians.
- É... E também achavam que poderíamos avançar muito nossos conhecimentos científicos com eles. E nisso estavam absolutamente certas. Pois foi o que aconteceu.
Ange já começava a intuir os fatos, mas se fazia de pouco entendida.
- Mas quase ninguém sabe é que também houveram desertores Ians.
Mesmo assim Ange ficou surpresa. - Desertores?
- Os Ians que conhecemos não eram a forma de vida original. Os originais nunca vimos, mal sabemos como poderiam ser. Os Ians eram artificiais, uma forma de vida construída por não sabemos exatamente quem com o objetivo de ajustar esse sistema estelar à certas condições. Sabemos que seus criadores atualmente não estão aqui, e nem num raio de centenas de anos-luz a nossa volta. Nosso melhor palpite é que eles simplesmente nem existem mais, e que os autômatos Ians não passam de serviçais executando ordens que não mais tem serventia.
- Nosso melhor palpite... Ou nossa melhor desculpa para destruí-los? - Perguntou Ange. Ekzar sorriu.
- Que seja. O fato é que estes autômatos desenvolveram considerável grau de inteligência artificial até surgirem desentendimentos entre eles. Alguns entraram em contato conosco, através de instrumentos criados no Projeto Diplos. Nani liderava o contato, era nosso embaixador chefe.
- Nunca conseguimos conversar absolutamente nada que não fosse científico com esses Ians, mas eles pareciam ter uma curiosidade quase emotiva sobre nós, e sobre nossos conhecimentos. Houve um intercâmbio extremamente produtivo, embora nós, é claro, tenhamos tido muito cuidado em não lhes revelar nada que pudesse ser usado contra nós, e sabíamos que eles também nos escondiam muita coisa.
Uma expressão de Ange deteve Ekzar. - Você está querendo dizer... Que os Ians nos ajudaram a construir os Super Humanos?
O sorriso de Ekzar não deixou dúvidas.
- Como eram os Ians?
- Nós nunca vimos um frente a frente. Eles são seres... Eram sem um corpo definido, como células e por vezes tentáculos. Não se adaptavam a gravidade, sobreviviam no vácuo ou em certos fluidos. E até estranho que ficassem aqui neste sistema estelar, com tantos outros com estrelas tão mais brilhantes. Não podiam entrar em contato com oxigênio e viviam unicamente de luz e calor e de alguns gases nobres. A presença de certos compostos minerais em seu organismo, inclusive ferro, os tornava ligeiramente avermelhados ou róseos, mas sempre transparentes. Apesar dessa aparência primitiva possuíam centros nervosos semelhantes a cérebros, de alta complexidade.
- E como eles ajudaram... Por que ajudaram...
- Eles nos permitiram examinar a matriz orgânica de sua forma de vida. Fomos capazes de compreender a base de sua complexidade biológica não carbônica, até podermos reproduzi-la. Surgiu então um projeto, apoiado largamente pelo Nani, que visava construir formas de vida no padrão dos Ians. Mas logo percebemos que não haveria grandes aplicações práticas, principalmente no que se referia a aplicações bélicas. Sempre soubemos como matá-los e como destruir suas máquinas. Eles não suportam choques físicos ou doses muito intensas de energia tanto quanto nós.
Ange fez um expressão quase maliciosa.
- Senhor Ekzar... O que são os nossos garotos?
Ekzar parecia sentir um enorme prazer em falar.
- Logo depois surgiu um projeto de criar uma forma de vida híbrida. Mas logo se revelou inviável. As nossas formas orgânicas, baseadas em Carbono, dependem de Oxigênio, que é letal para Ians. Mas nós já havíamos aprendido como criar formas de vida fotoplásmica, mesmo que com outras bases.
Ekzar fez mais um pausa. - Desde a antiga Mãe-Terra já se havia obtido bons resultados em produzir formas de vida baseadas em Silício, então juntamos esses dois conhecimentos, e criamos um padrão fotoplásmico com compostos de Silício.
- E qual era o objetivo inicial desse projeto?
- Vários. Nani e alguns outros pensavam em criar uma forma de vida intermediária de modo a... Talvez, criar uma ponte diplomática entre nós e os Ians. Outros apenas tinham finalidades de pesquisa. Foi então que alguém teve uma idéia espetacular.
- Criar Super Seres?
- A princípio alguns pensavam em criar máquinas e robôs de combate com tecnologia Ian. Lembre-se que naquela época estávamos em plena guerra. Éramos nós ou eles. Qualquer avanço em nossa capacidade de destruir Ians era uma esperança maior de sobrevivermos. Pensaram de tudo. Desde criar robôs para se infiltrar entre os Ians, até tentar desenvolver novas e revolucionárias armas. Finalmente alguém sugeriu criarmos Super Seres, para compensar a ausência que temos de Super Metanaturais.
Ekzar fez outra pausa, bebeu um resto de refresco e recostou.
Ao contrário do que a Ciência humana pensava há séculos atrás o Universo não tem leis tão rígidas e imutáveis quanto parecem a um observador de um local específico. Mesmo no âmbito galáctico, há consideráveis distorções nas leis naturais que somente viagens interestelares extensas podem evidenciar.
Uma das características marcantes em Orizon era a dificuldade em se desenvolver habilidades mentais consideradas como Mentônicas, isso é, capazes de converter uma força fundamental em outra. Assim não se podia, ou era muito difícil, produzir por exemplo telecinésia, que é Força Mental convertida em Gravitacional, da mesma forma como era quase impossível na velha Terra, com a exceção da fase DAMIATE, que governou o planeta por cerca de 40 anos, e seus Hiper Metanaturais.
Ange conhecia bem essa história, e perguntou. - Quer dizer que os rapazes são... Hiper Metanaturais?! - Ficando boquiaberta e amargando o suspense que Ekzar a fazia sentir.
- Não exatamente. Sabemos que é possível em certos setores da galáxia desenvolver os ditos dons Metanaturais, aqui e na velha Terra é praticamente impossível. E por quê?
- Porque existem... - Tentava Ange. - Barreiras mentônicas?
- Não existem barreiras mentônicas. O que há é uma tendência nesses locais, Sistema Solar e Sistema Orizon, em que todas as partículas fundamentais, os mentons livres, são absorvidas pela matéria. Para que a Metanaturalidade funcione, é preciso que a mente seja capaz de manipular mentons sem interferência de certas forças concorrentes, que sugam as partículas. Mas se é assim, como é possível que se na Terra os melhores Metanaturais mal conseguissem mover uma moeda, e mesmo assim se perdessem entre milhões de charlatões e loucos, DAMIATE tenha criados Hiper Metanaturais? Por sinal tão poderosos quanto os nossos garotos.
Ange pensou e pensou. - Eu... Não sei.
- Quase ninguém sabe. - Respondeu Ekzar. - Deixamos a última colônia da Terra há quase 500 anos e estamos a mais de 19 mil Anos-Luz de distância. Não sabemos quase nada que tenha ocorrido lá além da última sonda que recebemos com notícias de 150 anos atrás. Mesmo assim trouxemos em nossos registros muitas informações que não são liberadas para a maior parte das pessoas. Essa informações seriam capazes de entreter mentes ativas como a sua por toda a vida.
- Exemplos? - Ange estava entre a curiosidade mórbida e o autocontrole.
- DAMIATE fez o que fez porque possuía um dispositivo que conhecemos como “Modulador de Força Mentônica”. Era um tipo de capacitor que hiper amplificava a capacidade de uma mente devidamente treinada em produzir um padrão de mentons ordenado que convertia as outras Forças. Com isso conseguiu criar os...
- Anjos Guardiões Estelares. Os Hiper Metanaturais da Terra.
- Isso! Que eram tão ou talvez mais poderosos que os nossos Super Humanos.
- E quem construiu esses, Moduladores de Força? Teriam sido os... ZENITRONS?
Ekzar ficou impressionado com a erudição da moça. - Hum... Você sabe sobre os ZENITRONS... Não! Não sabemos quem os construiu. Eram apenas 12. Mas não eram Zenitrons. A propósito! Sabe que eles possivelmente estiveram em Orizon há mais de um milênio atrás? Achamos até que eles batizaram o sistema com esse nome e o registraram nos arquivos hexagonais da galáxia. Aliás Orizon é um nome de sonoridade tipicamente Zenitron.
Ange parou para refletir. Ela conhecia história antiga da Terra, e história de outras civilizações galácticas. Dos registros da Aliança Hexagonal, compostas pelas 6 raças humanóides conhecidas incluindo a terrestre. Sabia sobre DAMIATE e seus 12 Anjos Guardiões. Mas não estava conseguindo conectar todos os dados num raciocínio coerente, insistiu em se manter no assunto.
- Mas o que tem haver isso com os nossos... Por acaso eles tem algo semelhante a esses tais Moduladores de Força?
- Ah... Foi aí que eu entrei. Ekzar deu mais outra pausa. - Quando fui chamado ao projeto tudo isto já havia acontecido, fui escalado para liderar uma das equipes que tinham por objetivo tentar reproduzir algo similar ao tal Modulador de Força Mentônica.
- Como eram esses dispositivos?
- Ninguém sabe ao certo. Aparentemente eram muito simples. Uma pequena esfera de cristal com uma incomum formação molecular no centro. Mas os materiais eram indecifráveis. Porém conhecíamos algumas características gerais. Nós pretendíamos então criar um tipo de estrutura molecular que se mantivesse coesa mas não precisasse de forças nucleares, ou seja... Tínhamos que criar um tipo de matéria cujos átomos não se agregam da mesma forma que na matéria normal.
- E o fotoplasma? Onde entra nisso?
- Ah sim... Bem. Usando a Matriz de fotoplasma de silicatos fomos capazes de produzir toda uma química de alta complexidade, comparável à química carbônica. Reproduzimos, passo a passo, todos os estágios de evolução química necessária para obter organismos vivos complexos, capazes de se reproduzir e evoluir. Hum... Nunca vou me esquecer... Dos tanques fotoplásmicos de produção de vida. Foram produzidos mini ecossistemas de seres luminosos de vários tipos.
- E o que foi feito desses seres?
- Foram... Sacrificados. Vou chegar lá. Bem, esses organismos que desenvolvemos não eram nem carbônicos nem Ians, podiam sobreviver por longo tempo no vácuo e em praticamente qualquer tipo de meio, não tinham problemas com oxigênio e precisavam apenas de luz e calor e de uma dose discreta e constante de Silício, ou compostos siliconados.
- O fotoplasma se alimenta de sílicio?!
- Basicamente.
- Isso inclui nossos super heróis?
- Certamente.
- Como?!
- Eles não precisam comer, como nós. Eles simulam os atos de comer e beber apenas porque nós os projetamos para serem capazes de fazer isso, assim como de sentir e apreciar certos sabores. Mas não tem a menor necessidade de ingerir alimentos. Tudo o que eles precisam fazer é respirar.
- Respirar?!
- Sim. Eles se alimentam basicamente dos compostos silicatos que existem no ar. E o ar de Orizon...
- É rico em silício.
- Exatamente. Muito mais do que na maioria dos planetas habitados que conhecemos por meio de nossas bibliotecas. Um habitante da Mãe-Terra por exemplo poderia ter problemas aqui em Orizon, ao respirar doses consideráveis de compostos silicatos no ar. Nós fomos adaptados biogeneticamente.
- Então eles se alimentam.
- Sim. Respirando. Mas não necessitam de Oxigênio, Nitrogênio, Protóxio de Hidrogênio e etc. Só precisam de silicatos. Por isso nem precisam respirar com tanta frequência. Podem passar dias no vácuo do espaço, embora períodos muito prolongados tendem a lhes enfraquecer. Mas podem também respirar em outros ambientes desde que possuam alguns silicatos básicos. Na pior das hipóteses, podem comer certos tipos de minerais. Mas nunca precisaram disso.
- Então por que eles gostam, ou parecem gostar, de comer?
- Porque nós os programamos para isso. Para serem o mais humanos possível. Criamos toda uma estrutura neurológica para que eles consigam reagir a certas substâncias químicas e produzir impulsos cerebrais baseados nisso, criando um universo de sensações semelhantes ao nosso.
- Entendo. - Ange sentia-se um pouco incomodada com o modo como Ekzar dizia serem os rapazes, "produzidos", "programados".
- Tudo neles é simulado! Nada é exatamente como nós. Eles reagem ao ambiente de forma similar, sua estrutura biológica apesar de fotoplásmica é detalhisticamente correspondente à nossa. Tomamos todo o cuidado para que eles sejam simulacros biológicos perfeitos, capazes de nos imitar em tudo, de modo a serem tão humanos quanto nós. Até criamos uma série de padrões completamente inúteis para sua existência, mas necessários para que eles fossem humanos como nós, tais como a sensibilidade gustativa, tátil, a capacidade de sentir prazer físico, traduzidos em impulsos elétricos produzidos por cérebros fotoplásmicos siliconados construídos em absoluto paralelismo com sua inspirada matriz carbônica.
- Fascinante. - Disse Ange, pretendendo adiar questões existenciais.
- Embora nem tudo tenha saído como pretendemos. - Continuou Ekzar. - Nenhum de nós até hoje sabe por que nenhum deles gosta do sabor de morangos por exemplo. - Disse num tom de displicência, encostando-se no sofá e bebendo mais um gole de refresco. - Acreditamos que possa ter sido uma confusão com o sistema de rejeição a drogas e álcool que implantamos neles.
- Rejeição a drogas?!
- Claro! Não poderíamos permitir que seres como eles se embriagassem ou ficassem fora de si, não?
- Sim! Claro! Mas estou me referindo ao fato de que se eles não reagem aos químicos como nós, provavelmente não seriam afetados por álcoois.
- Sem dúvida. Mas não podemos desconsiderar a possibilidade de embriaguez ou entorpecimento psiquicamente sugestionado. Assim como tivemos muito trabalho para isolar diversas substâncias que misturadas à química deles pudessem causar algum efeito similar, e assim criar rejeições neurológicas à todas.
Ange ficou pensativa, considerando o fato de eles serem tão biologicamente determinados. Então preferiu mudar de assunto.
- Eles se reproduzem?
- Celularmente sim. Seus corpos possuem, como já disse, todas as características dos nossos porém em sua versão fotoplásmica. Só que o fotoplasma permite uma série de vantagens, sua regeneração é muito mais rápida, e todas as suas células podem se regenerar plenamente, mesmo as nervosas, embora tenhamos criado certos empecilhos para que seus cérebros não sejam muito diferentes dos nossos. Com um refinado controle de química sílica fotoplásmica conseguimos produzir o equivalente ao ADN, que dá as instruções de construção de todos os detalhes de seu corpo, mas... Apesar disso tudo eu me refiro apenas a reprodução celular, divisão, capaz de manter o corpo físico. Eles são, como nós, colônias vivas de micro organismos celulares.
- Eles em si, não podem se reproduzir.
- Claro que não. Mesmo porque só fizemos homens.
- Por que então não fizeram também mulheres?
- Porque nunca conseguimos chegar ao refinado estágio de reprodução sexuada. Atingimos somente o nível de desenvolvimento orgânico pluricelular assexuado. Só fomos capazes de produzir organismos mais complexos graças aos Ians que nós ajudavam, que nos forneceram dados preciosos sobre como construir robôs fotoplásmicos.
- É isso que eles são? Robôs?
- Basicamente sim, só que sua complexidade é tanta que permite o advento daquilo que nós torna humanos. A consciência.
- Mas mesmo assim, poderiam ter produzido versões femininas.
- Seria mais complicado. Lembre-se que precisávamos que eles fossem o mais humanos possível. Para isso era necessário simular com a maior precisão que conseguíssemos todas as atitudes e naturezas biológicas que caracterizam um ser humano, para fazer uma mulher, teríamos que simular certas características de reprodução que são muito mais complicadas, como a produção do Óvulo. Sem isso, corríamos o risco de produzir seres que não teriam todas as características humanas, e dessa forma poderiam não se comportar exatamente como humanos.
- Mas e quanto a produção de espermatozóides?
- Eles não produzem. Seu sêmem não passa de um líquido estéril sem nenhum material genético fértil. A produção deles não requer tanta elaboração biológica quanto a períodica produção de óvulos de gametas femininos. As mulheres são seres mais complexos, apesar de serem um estágio cromossomicamente mais incipente de vida. Nós até podíamos, mas naquele momento era melhor apelar para o mais simples. Lembrem-se que eles são seres construídos artificialmente, não foram gerados de forma sexuada, apenas criamos uma matriz capaz de se replicar seguindo certas instruções, e a ativamos. Se fossem mulheres, quereríamos que eles, elas, se humanizassem o máximo possível, isso poderia incluir o desejo de maternidade, o que seria extremamente complicado.
Ekzar finalmente deu uma pausa e Ange respirou, bastante surpresa com as informações. Para manter a objetividade, tentava afastar da mente questões existenciais, se os rapazes teriam as mesmas modalidades de consciência, ou todas as possibilidades espirituais.
- Mas ainda não entendi como isso se relaciona com os tais Moduladores de Força Ment...
- Foi onde eu entrei! Minha missão era criar algo semelhante. Eu e minhas equipes tentamos por anos até conseguirmos produzir não um para cada ser consciente, como eram os dos 12 Anjos, mas na verdade colônias de mini Semi-Moduladores!
Ekzar estava visivelmente empolgado, quase eufórico. Era típico de quem vinha guardando aquela história há anos, sem poder compartilhá-la com alguém que de nada soubesse, pois todos os envolvidos no projeto dispensariam a maior parte daquelas informações.
- O antigo Modulador de Força Mentônica continua um mistério, e sinceramente, não acredito que ninguém na Galáxia saiba como ele funciona. Mas conseguimos uma solução parecida, criamos um certo tipo de "célula"... Viva, embora muito diferente... São como cristais que se reproduzem e que funcionam como canalizador de Mentons. Eles não se mantém graças às forças nucleares ou elétromagnéticas, mas sim graças a atração mentônica pura, hiper amplificada, e extremamente instável.
Ange chegou a se assustar. - Mas! Então ele são...
- Verdadeiras bombas mentônicas vivas! Mas não explodem. Os cristais não duram muito tempo, pois manter matéria densa com força mental pura é altamente dispendioso e perigoso, mas antes de morrer cada cristal produz uma única cópia. Veja bem! Eles não se dividem como as células, e sim produzem um auto clone. Agora pense...
... O que é um Menton?!
- Uma unidade primordial de existência. Acredito que mantido pela consciência de...
- Isso! Chega. Não vamos entrar nas especulações metafísicas e místicas do Menton. Sabemos, embora jamais tenhamos entendido como, que os Mentons são manipuláveis por consciências não? E apenas uma Mente Sensciente, ou melhor, uma Mente com um certo nível de auto consciência, pode manipular Mentons puros, e consequentemente garantir que alguma coisa grande se mantenha apenas por força mentônica pura. Sendo assim, qual o único tipo de ser vivo capaz de suportar essas estruturas em seu próprio organismo?
- Sere autoconscientes... Humanos.
- Exatamente!!! Por isso todas as colônias de seres vivos fotoplásmicos tiveram que ser destruídas, pois tentamos injetar nelas nossos semi moduladores, mas como se tratavam de seres de menor complexidade, e menor consciência, eram muito mais instáveis. Só deixamos as que são de fotoplasma puro, que eram a minoria e tinham mais dificuldade em sobreviver. Com isso feito, havíamos descoberto então um meio de produzir nossos próprios Moduladores de Força, mas eles só poderiam ser ativados em organismo de alta complexidade, e por isso saltamos de formas de vida primitivas como celenterados, para seres de alta complexidade, simulacros humanos!
- Sa... Saltaram... Não fizeram testes antes em seres inanimados ou...
- Não! Não seria possível! Apenas seres conscientes, com mente razoavelmente desenvolvida poderiam estabilizar os semi-moduladores, que ficam espalhados em sua própria medula fotoplásmica, e que só podem ser suportados por ele. Se injetássemos esses cristais em humanos normais eles simplesmente queimariam os tecidos, envenerariam rapidamente as células com radiação. Se os injetássemos em Ians eles seriam hiper excitados pela luminosidade latente, e amplificariam a energia em demasia, matando-os ainda mais rapidamente. Mas com nosso fotoplasma especial, de silicato, tínhamos o meio necessário para que um ser com mente avançada pudesse funcionar. Tínhamos o projeto todo, na teoria tudo se encaixava, só faltava por em prática, e produzir de uma só vez o organismo fotoplásmico e os semi-moduladores numa mesma matriz, mas tinha que ser tudo ao mesmo tempo, não dava para fazer experiências intermediárias, não era possível nem mesmo gerar um processo de divisão celular semelhante ao humano começando de um zigoto, pois não haveria mente suficientemente desenvolvida para estabilizar os moduladores durante o processo.
- Então tiveram que criá-los já crescidos?
- Já com cerca de 11 meses de idade, bêbes é claro, de alto desenvolvimento, mas com uma mente que evoluiria a medida que os semi-moduladores iam se organizando, ficando mais potentes e se adaptando. Eles ficaram adultos em menos de 8 anos e finalmente alinhamos os moduladores em sua estrutura final.
- E deu certo na primeira tentativa?
- Sim!!! Acertamos de primeira! Todos os 4... Quero dizer, a princípio seriam só 3, mas como percebemos que sobraria material, decidimos fazer mais um.
- Seki ou Doni.
- Exatamente! Os gêmeos! Antes tínhamos pensado em gerar 3 seres com graus diferentes de espectro plásmico e frequência de modulação de força mentônica, o que resulta nas peculiaridades e nas cores de cada um, quando percebemos que poderíamos gerar mais, e que não teríamos outra oportunidade, decidimos criar duas versões do nível intermediário. O que foi ótimo, pois incluímos algumas variações experimentais que garantiram que nessa segunda versão, o RY-4, Seki, fosse o mais metabolicamente perfeito de todos, pois o Hane é cego, Doni é incapaz de ouvir algumas frequências eletromagnéticas e Luri simplesmente não tem olfato. Não teve como sair tudo como planejamos, mas como disse era só uma oportunidade.
- Por quê? Por que não teriam outra oportunidade?
- Porque consumimos um planeta joviano inteiro para produzi-los!
Ange arregalou os olhos. - O quê?! Então Orizon 9 não foi destruído pelos Ians?!
- Não! Nós o usamos para produzir a matriz dos garotos. Bombardeamos o imenso planeta gasoso com bombas de fusão pura e o transformamos brevemente numa estrela, logo depois de termos depositado as matrizes atômicas e mentônicas necessárias. Consumimos o maior planeta do sistema para conseguir estabilizar os semi-moduladores, e simultaneamente os inserirmos na matriz de fotoplasma, que logo em seguida foi moldada na forma de nossos pequenos bebês deuses!
Ekzar fez uma pausa e comentou orgulhoso. - Fascinante não?
Ange, boquiaberta, mal acreditava, e já pensava poeticamente quando Ekzar falou. - Orizon 9 foi o útero gigante onde eles nasceram.
Ange chega ficou arrepiada com a idéia, era por isso que só haviam eles 4, porque para produzir mais teriam que consumir outros planetas. E pensar que tantas pessoas odiavam os Ians pela destruição de Orizon 9, o mais belo astro dos céus!
- Uma mãe que morreu no parto... - Sussurou Ange.
- Não! Não no parto, na concepção, pouco antes de administrarmos o Raio-Y!
Ange ainda estava tão desnorteada com as implicações da morte de Orizon 9 que demorou a reagir a última frase do filósofo.
- Raio-Y?! O que é isso?!
- Ah! Desculpe. Esquecei de dizer algo mais interessante. Como você sabe todo o ser vivo, no fundo, é uma fêmea, é preciso acrescentar algo para que se torne macho. Criamos esse paralelismo também. Assim que nasceram, ele eram meninas, mas como queríamos evitar as implicações mais imprevisíveis do organismo feminino nós os tornamos machos. Você sabe que os 12 Anjos da Mãe-Terra eram todos homens, e ninguém sabe muito bem porque o Modulador de Força não funcionava em mulheres. Por outro lado temos conhecimentos de outros sistemas estelares onde apenas mulheres desenvolvem super habilidades mentônicas. O Raio-Y é o apelido de um feixe eletromagnético estimulador que forçava o equivalente ao DNA deles a assumir a aparência masculina. Foi uma das partes mais delicadas pois se lançado em excesso poderíamos exceder sua masculinidade a ponto de torná-los equivalentes a uma antiga aberração cromossômica que havia na população da antiga Terra.
- Os supermachos?
- Sim. O cromossomo YY. Pior. Se exagerássemos ainda mais no Raio-Y eles poderiam simplesmente se desfazer. Aliás...
Ekzar pensou em contar algo. Falou consigo mesmo, era talvez o mais bem guardado dos segredos, mas finalmente, decidiu que pelo menos uma coisa tinha que ser preservada, era imprudente revelar essa informação. Então mudou de assunto.
- Só tivemos uma chance, mas tudo foi muito bem calculado, alguns Ians nos ajudaram em detalhes que não poderíamos resolver. Por fim, deu tudo certo. Os rapazes cresceram rápido, foram criados por atenciosas babás e só desenvolveram seus maiores poderes depois de grandes. Fizemos tudo para que tivessem uma infância o mais agradável possível mas sempre reforçando neles o sentido de sua existência. Diferente de nós, seres humanos, ele sabem quem os criou, e para quê foram criados, nunca foram abandonados e seus criadores sempre lhes deram atenção. Procedemos uma cuidadosa educação totalmente de acordo com a já prevista matriz neurológica favorável, obtida através de anos de intensos cálculos que ocuparam os mais poderosos computadores que já criamos. E mesmo assim, eles ainda tem seus defeitos... Mas... Se tudo fosse perfeito seria muito chato não?
Ekzar encerrou, e Ange, mesmo notando que ele ainda se disporia a contar mais, pediu um tempo para organizar as informações, recapitulou alguns pontos e por fim concluiu.
- Estou verdadeiramente impressionada senhor Ekzar. Nem sei por onde começar. Eu nem sequer posso revelar essas informações desse jeito, o governo não deixaria!
- Eu sei. - Respondeu o físico filósofo. - Converse com o Nani, ele terá outras novidades, e juntos você poderão decidir o que fazer.
Pouco depois Ange se despedia, após recapitular alguns tópicos e agradecer muito seu anfitrião. Ekzar se sentia com a alma lavada em poder contar tudo o que fora obrigado a guardar segredo por tanto tempo. Só então ocorreu a eles que aquele momento talvez fosse o menos indicado para revelar tanta informação, uma vez que um clima de guerra estava no ar novamente. Ironias do destino.
Ange adentrou seu pequeno veículo aéreo, que lembraria um de nossos carros esportivos mais arrojados, e partiu rumo aos céus, em frente a gigante estrela vermelha e a pequenina anã branca.
Mas ficou pensando sobre o que o físico filósofo dissera ainda pouco antes dela entrar em seu veículo, como que relembrando um detalhe curioso.
- "Ah! Quer mais um dado interessante para uma psicóloga? Sabe quem recebeu a maior intensidade de Raio-Y?"
Ange nem precisou pensar, e lhe respondeu quase de imediato.
- Foi o Hane.