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NUM FUTURO, NOUTRA TERRA

Esta estória se passa daqui a séculos no futuro, séculos após a humanidade se espalhar pela Galáxia, colonizando outros mundos, em outras estrelas. E embora não se relacione diretamente com qualquer evento de outros livros, faz parte do Universo DAMIATE.

Alguns destes mundos serão muito parecidos com a Mãe-Terra, e alguns destes humanos serão muito parecidos com os atuais filhos da Terra. E muitos mal se lembrarão da velha e distante Terra.

Alguns serão "melhores", outros "piores", mas sempre diferentes. Haverão novas vidas, novas aventuras, novos desafios, novas alegrias, e novas tristezas.

Haverão novos bens e novos males, novas conquistas, novas esperanças. Novos seres humanos e outros não exatamente, fisicamente "humanos".

E novos heróis.

Essa é a estória de quatro homens, quatro rapazes diferentes, cuja existência está comprometida desde o nascimento. Eles são remotos descendentes de antigos Super Humanos da Terra, e vivem em função do objetivo para o qual foram criados.

Uma estória de personalidades diferentes, de conflitos psicológicos humanos, de dramas pessoais, que neste caso, podem pôr em risco muito mais que vidas particulares.

Passa-se num sistema estelar distante do Sol, num mundo recém colonizado, alguns anos após eventos marcantes, numa era de paz.

Uma nova terra, uma nova morada, um novo Horizonte.

A palavra 'alma' deriva do termo latino anima, que por sua vez significa 'movimento'. Não é por acaso a semelhança com o verbo 'animar'. A alma é, essencialmente e originalmente, entendida como um mero princípio de movimentação. Os antigos entendiam que, uma vez tendo saído a alma do corpo, cessavam todos os seus movimentos, advindo a morte.
A VIDA EM FESTA

O sol no horizonte alaranjava as nuvens e o mar, e o vento fresco acariciava as praias onde milhares de pessoas, principalmente jovens, viviam os típicos lazeres e prazeres da vida.

Quem, de nosso mundo, os visse, concordaria não ser tão diferente de um belo fim de tarde nas praias brasileiras, embaladas por shows e diversão de vários tipos. Talvez sentisse falta das cabeleiras oxigenadas dos surfistas, e não se via loiros nesse mundo. Todos eram morenos ou mulatos. Resultado de séculos de mutações e costumes cujos motivos e origens escapavam à maioria.

Também notaria que não havia ninguém na água, nem mesmo muito perto de onde as ondas morriam. O mar, apesar de visualmente muito parecido com o da Terra original, não era adequado ao contato com a pele.

Num imenso e arrojado palco um grupo de rapazes se exibia com seus "instrumentos" musicais, feitos de luz que flutuava no ar. Na verdade todos eram cantores, e usavam as próprias cordas vocais para produzir os sons, que eram convertidos instantaneamente pelos sintetizadores em timbres que superariam orquestras. Eles mal poderiam ser comparados aos conjuntos de Rock de nosso tempo e mundo, mas o som, quem de nós pudesse ouvir, saberia não ser tão diferente.

Muita gente bonita por toda parte, rapazes e moças de todas as idades exibiam seus corpos e roupas, curtiam os benefícios de um mundo bem mais civilizado do que fora a maioria dos outros até então.

Apesar da fama e sucesso do conjunto musical a atuar, em frente ao palco algo roubava as atenções. Vários homens muito fortes se alinhavam em fila para um teste de resistência, uma disputa de forças.

Um deles se dirigiu ao local determinado para ter sua oportunidade. Havia uma comprida barra de metal muito resistente, e 12 belas garotas a seguravam uma ao lado da outra deixando apenas um espaço no meio, que ficava a menos de meio metro de uma pequena plataforma onde o robusto homem de meia idade subiu.

Se agachou e com mãos firmes e grandes agarrou a barra no centro de equilíbrio e após alguma concentração a ergueu bruscamente. As garotas ficaram penduradas, 6 de cada lado, rindo e agitando as pernas.

Apesar do notório esforço o homem manteve a barra por vários segundos até que a soltou, então uma voz anunciou seu sucesso.

- É isso senhoras e senhores! Meninos e meninas! O participante Telmi Blumana ergueu nossas 12 musas que totalizam 680 kgs, por 7 segundos e 3 décimos! Palmas para ele! Parabéns Sr. Telmi.

Entre as ovações e aplausos outros concorrentes aguardavam sua vez, dos outros que já haviam tido sua chance, alguns desanimavam ao ver marcas superiores às suas, outros comemoravam ao ver que seus desempenhos ainda estavam entre os mais altos.

O objetivo era manter as garotas suspensas no ar pelo maior tempo possível. Os melhores placares passavam para a próxima fase, onde mais uma moça era adicionada a cada lado da barra. Eram todas muito bonitas e de biotipos diferentes, mas os organizadores tinham o cuidado de equilibrar com precisão o peso total de cada lado da barra.

Agora restavam apenas 10 participantes que disputariam as 5 vagas finalistas. Com 14 moças a se dependurar, fazendo quase 800 kgs.

A rodada começou. Quem os tivesse avaliado e apostado meramente pela aparência teria um bom prejuízo. Os finalistas, apesar de todos indiscutivelmente fortes, variavam bastante no volume de seus músculos e tamanho de seus corpos.

Em torno do círculo onde o evento ocorria havia muitas pessoas. Algumas ocupavam lugares privilegiados. Muitos eram famosos. Haviam artistas de Vídeo e TV, músicos, palestrantes e humoristas reconhecidos. Mas dois em especial, eram sem dúvida os convidados de honra.

Dois rapazes jovens, belos, pareciam irmãos apesar de diferentes. Cercados de belas garotas, tietes, embora um deles tivesse a mão firmemente agarrada por uma atenta, cuidadosa e muito bela mulher.

Por fim, restaram os 5 concorrentes, e nenhum deles segurou a barra por mais que 3 segundos. Houve um intervalo, que haveria de ser longo para que os finalistas descansassem. A música e os gritos aumentaram de volume.

Talvez alguém ali batesse o recorde, que fora obtido anos atrás num concurso similar, 16 garotas somando 915 kgs por 1,7 segundos. Mas esse limite, valia apenas para homens normais.

- E agora pessoal! A pedido de todos, vamos insistir para que nossos convidados de honra nos dêem uma pequena demonstração de suas invejáveis habilidades!

A multidão começou a gritar. Diversas outras garotas correram para segurar na barra, chegaram a brigar para disputar cada cm que não estava coberto por mãos. Não houve desta vez nenhum cuidado, e pelo menos umas 30 seguravam a barra enquanto outras 20 tentavam.

Os rapazes em questão, os convidados de honra, se entreolharam como que meio constrangidos embora sorridentes, e os gritos de todos à volta não lhes deixaram muita escolha. Eles não iriam decepcionar seus fãs.

Um deles, o mais assediado, não por ser mais bonito mas porque não tinha uma namorada "oficial", saiu na frente, para delírio das moças. Enquanto o ritmo da música aumentava, o locutor passou a falar freneticamente.

O jovem subiu na plataforma. Diante dos monumentais homens que disputavam a prova ele era franzino. Estatura média, magro, as roupas não permitiam que se visse seu físico em detalhes para saber pelo menos se era atlético. Destoando de quase todos ali ele se vestia com uma camisa fina de mangas compridas preta, aberta, por sobre uma camisa branca, usava uma causa comprida também preta e calçava botas.

Seu rosto denunciava delicadeza se comparado às duras expressões dos levantadores de peso, mas lá estava ele, prestes a pegar na barra que tinha agora pelo menos o triplo do peso equivalente ao recorde mundial.

Mas ninguém ali esperaria que ele levantasse menos.

Quase que instantaneamente ele ergueu as moças no ar, sem sequer aparentar esforço, algumas delas escapuliram da barra causando desequilíbrio, mas o rapaz conseguiu remediar a situação facilmente.

Outra moças penduraram umas na outras formando uma grande confusão, a barra ficava pendendo de um lado a outro de acordo com a variação do contingente, mas o jovem não mostrava qualquer sinal de fadiga ao manter a barra no ar já há mais de 20 segundos.

Isso não era a única coisa impressionante. Algo roubava a atenção. Seu corpo brilhava!

Uma luminância verde só não era mais visível devido às roupas, mas era possível notar que sua pele era transpassada por uma luz interna, que variava de intensidade.

Mas nada disso era também inesperado, o próprio rapaz sorria despreocupadamente e de vez em quando, a luz, que sobressaía também em sua cabeça, revelava uma breve "Raio-X" esverdeado de seus dentes.

Então ele gritou: - Sua vez Doni!!!

Mas Doni, o outro convidado de honra, era menos desinibido, e sua acompanhante, que já fazia um duro esforço para afastar as tietes mais abusadas, sorriu para ele balançando negativamente a cabeça.

Porém todos riam e a multidão insistiu cada vez mais.

- É! Parece que nosso amigo está entre a Cruz e a Espada! Ora Senhorita Giena! Deixe seu namorado participar! - Disse o apresentador em tom bem humorado.

A bela Giena, de longos cabelos castanhos escuros, ainda tentava se recusar mas caiu na gargalhada sem entretanto largar do braço de Doni.

- Vai deixar o Sr. Seki fazer a festa sozinho?!

De repente Doni saltou de onde estava com sua namorada nos braços. Na verdade não saltou, ele flutuou rumo à plataforma onde estava seu companheiro, que simplesmente soltou a barra em cima dele sem avisar.

Doni, que se vestia de modo semelhante a Seki embora com roupas mais refinadas, teve que reagir rápido e enquanto o braço esquerdo trazia a Senhorita Giena junto ao seu colo, o braço direito se moveu e agarrou a barra no ar, fazendo cair mais algumas moças e dando chance a outras.

Com apenas um braço ele manteve a barra erguida, com um pouco mais de trabalho para equilibrá-la devido ao frenesi ainda maior da moças. Mas houve uma consequência colateral. Seu corpo brilhou com o dobro da intensidade.

Uma luz verde ligeiramente amarelada fez visível por um instante todo o seu esqueleto, como se sua pele, carne e sangue ficassem transparentes e em cor de esmeralda. Depois Doni depositou as moças com cuidado no chão, a barra agora se mostrava entortada. Encerrando a brincadeira, sua namorada lançou-lhe um escandaloso beijo que arrancou vivas da platéia, e inveja de muitas garotas.

- Esse são nossos defensores minha gente! Palmas para eles. Para os senhores Seki e Doni! Nossos Anjos Guardiões!

E eles se limitavam a sorrir e acenar para a platéia quando uma multidão de garotas avançou para eles, em especial para o solteiríssimo e incorrigível Seki, mas eles levitaram e ficaram fora do alcance das mãos das moças ensandecidas.

Eles não eram concorrentes, é claro, eram convidados de honra, caso contrário a disputa seria muito limitada, pois só haviam mais dois outros Seres Humanos entre os 53 milhões de habitantes daquele planeta que podiam medir forças com eles. E eles não estavam ali.

Então Seki, exibicionista como sempre, se aproximou de uma câmera flutuante e seu rosto apareceu em telões assim como sua voz ecoou por toda a praia. Com uma desenvoltura de apresentador anunciou:

- É claro que isso não é tudo o que podemos fazer, mas não viemos aqui para isso, não é Doni?! - Doni se limitou a sorrir, e Seki continuou. - Além do mais não haveria barras nem garotas que aguentassem se usássemos força de verdade!

O público já era acostumado com a vaidade de Seki, ele era simpático, sempre bem humorado, Doni também, embora falasse menos. Mas o apresentador instigou. - Ora! Como você pode provocar nossa curiosidade desse jeito Sr. Seki?! Agora a platéia irá querer uma demonstração!

Todos gritaram ainda mais e Doni e sua namorada riram, Seki simulou um constrangimento e provocou ainda mais.

- Ah... Vocês não estão preparados para isso.

Foi como dobrar o volume de gritos da platéia. Seki esperava isso e olhou em volta por um tempo, então apontou para o palco musical, onde havia dois grandes cilindros de vidro. Se aproximou de Doni como se fosse falar em particular mas sua voz alta era muito bem captada pelos microfones, e ele sabia disso.

- Bem Doni! Por que não mostramos a nossos fãs uma coisa nova!?

Doni se fez de desentendido e Seki continuou. - Aqui não há nada para destruirmos ou arremessarmos. Mas podemos... "Iluminar" um pouco a situação.

Em voz bem mais baixa Doni perguntou. - Energização? - e Seki confirmou com a cabeça.

- Energização pura?! - Perguntou de novo em tom mais alto - Mas onde?! - E Seki apontou de novo para os cilindros, anunciando depois para as câmeras. - Vocês nunca nos viram usar nossos poderes de verdade pois como todos sabem, se liberarmos muita energia a radiação poderia ser letal para qualquer ser vivo, menos nós é claro.

E então voou graciosamente até o palco. - Mas esses visualizadores tridimensionais tem blindagem anti radioativa. - E no momento em que ele apontou finalmente notou que os cilindros, de cerca de 2m de altura e 1,5 de diâmetro exibiam imagens de músicos famosos, que pareciam estar de fato ali apesar de ligeiramente transparentes. Tratavam-se de visores 3D, onde uma imagem era construída ponto a ponto por canhões de fótons, de modo que quando bem ajustada, e com o vidro dos cilindros limpos, tinha-se a nítida impressão que havia de fato algo sólido em seu interior.

A multidão se empolgou com a idéia, embora um dos organizadores do evento tenha manifestado certa preocupação, mas não o suficiente para se pronunciar conta o entusiasmo geral.

Doni ficou um tempo olhando, pensativo. - Sei não Seki. Tenho dúvidas se isso aguenta. - Mas Seki nem se abalou. - É só subir a proteção. - E fez um sinal a um dos operadores de palco.

Imediatamente os cilindros foram envolvidos por uma grade de metal, 5 aros equidistantes ao longo da altura e 4 barras verticais em cada quadrante envolviam o cilindro para ocasiões de transporte.

Os organizadores do evento se entreolharam e suas expressões eram de concordância. O locutor gritou. - Uau!!! Essa eu quero ver! - Animando ainda mais a platéia.

No grego antigo, o termo psyche costuma ter o atributo de princípio vital, e costuma ser traduzido como 'alma'. No caso, essa força de vida é o próprio princípio animador. Existiria uma alma mesmo nas plantas vivas, que também tem movimentos, ainda que muito lentos, como o crescimento. Mas psyche, que evidentemente resultou em nosso termo 'psique', também traz a noção de inteligência.
SHOW DE LUZES

Pouco depois o espetáculo estava montado. Doni e Seki estavam cada um dentro de um cilindro. Os técnicos improvisaram medidores de eletricidade, calor, e radiação, colocando mostradores garrafais no alto da armação do palco. Os cilindros foram cobertos também com uma película escura e, por medida de segurança, um engenheiro improvisou delgadas válvulas de escape em cada cilindro.

- E agora, moças e rapazes, senhoras e senhores. Acho que teremos um belo festival luminoso!

E de dentro do cilindro foi possível ouvir o grito de Seki.

- Vamos lá Doni!

Era um tipo de disputa, ocasionalmente Seki e Doni faziam exibições em público, embora aquela fosse inédita. De repente Seki brilhou intensamente e mesmo através da película escura foi possível ver seu corpo se transformar em um plasma verde.

Doni o imitou logo em seguida e, assim como ele, logo fez com que seu esqueleto fosse ligeiramente perceptível, brilhando em tom verde com nuances sutis de amarelo.

Os medidores captavam vários ampéres elétricos, uma temperatura de menos de 500oC, o máximo recomendado pelos técnicos, o que obrigaria os rapazes a se conterem pois podiam geram milhares de vezes isso, e também detectava vários tipos de radiação embora ainda não perigosas.

Seki passou a brilhar mais intensamente e todo o seu corpo se tornou luminoso, suas roupas quase não eram perceptíveis. Doni o imitou, gerando uma nova explosão de luz que o envolveu.

Os medidores improvisavam um valor arbitrário e o enviavam aos placares, no momento Doni marcava 120 e Seki 112. Esses números eram uma média que representava entre outras coisas, Kilowatts, Candeles e Volts. Sabia-se que aquele nível de energia era suficiente para efeitos muito impressionantes, como demolir por completo um edifício de alguns andares ou vaporizar rochas de algumas toneladas.

Seki então deu um másculo grito de ânimo, e então seu corpo todo brilhou com mais intensidade, seus cabelos, embora na altura da nuca, esvoaçavam freneticamente e se tornaram transparentes e luminosos. Seu medidor foi para 357.

Doni esperou um pouco, com o placar ainda a 145, e então seu esqueleto se tornou por um instante a única coisa visível no interior do cilindro, a emitir uma luz quase branca embora ainda intercalada por tons esverdeados. Seu placar foi para 560.

Ele sabia que aquela fora a energia necessária para desintegrar totalmente um asteróide de cerca de 10 toneladas de ferro e níquel, que ameaçara se chocar contra um satélite há alguns meses atrás.

Seki parecia sorrir, pois seus dentes, brilhando intensamente em seu crânio luminoso destacavam uma aparência que a princípio era assustadora, mas à qual a população já se acostumara a ver em documentários sobre seus heróis. Gritou. - Mais força Doni!!! Não me decepcione. - E numa súbita explosão de energia que já ofuscava a platéia, seu placar foi para 1128.

Doni então se concentrou e pela primeira vez gritou, um pouco mais discreto e prolongado. Seu corpo agora era puro plasma luminoso e o esqueleto poderia ser examinado em detalhes não fosse ofuscar qualquer visão normal. Seu placar foi subindo devagar, 623, 785, 849, 1152, 1345, 1678 e de repente 3240.

Agora a radiação já era perigosa, se fosse liberada muitas pessoas poderiam ser contaminadas e ainda que dificilmente sofressem lesões muito sérias, poderiam passar dias em mal estar generalizado.

Seki não se fez de rogado, num estouro de luz que agora obrigou todos a fecharem os olhos independente de estarem olhando para o cilindro, atingiu 5456 no placar. Era suficiente para gerar uma onda de calor que vaporizaria tudo instantaneamente num raio global de uns 100m.

Apesar dos estouros de luz, com o tempo a intensidade do brilho ia diminuindo, isso associado ao fato da película protetora se tornar mais e mais escura, permitia que a platéia visse, ainda que pelos telões, os corpos luminosos de seus ídolos, levitando dentro do cilindro, os cabelos esvoaçando e totalmente transparentes, flashes de luz percorrendo o esqueleto e o que deveria ser carne por vezes parecer se solidificar brevemente.

Os placares já estavam em cerca de 10.124 para Doni e 12.234 para Seki, o que ainda não era nada para eles, apesar de que aquela energia, se convertida para essa função, poderia abrir um buraco de centenas de metros no solo.

Porém mesmo tentando conter a onda de calor, convertendo-a em outras formas de energia, foi impossível não passar do limite de 500oC, e agora a radiação, se liberada seria letal para todos num raio de dezenas de metros.

Um dos organizadores do evento percebeu que os escapes estavam sobrecarregando, deixando passar uma quantidade de vapor e calor não tão pequena para ser considerada segura. Ficou preocupado.

Porém os gritos e a música eram ensurdecedores. Ele tentou se aproximar de alguns técnicos e discutir sua desconfiança mas ninguém sequer o ouvia.

De repente...

Um raio vermelho desceu dos céus e atingiu um painel no palco, o volume da música caiu vertiginosamente deixando praticamente só os gritos do público que foram se tornando mais baixos. Outros disparos vermelhos atingiram as mangueiras de escape abrindo rombos e deixando uma coluna de ar e energia escapar para o céu no momento exato em que pequenas rachaduras começaram a se fazer notar nos cilindros.

Seki e Doni perceberam de imediato e rapidamente baixaram seus níveis de energia. Em alguns segundos, de perto de 15.000, foram caindo para 10.000, 7.000, 4.000, 2.000, até ficarem por volta de 300. A luz quase cessou e o burburinho remanescente foi abafado por uma voz estrondosa, grave e nada simpática.

-QUANDO É QUE VOCÊS VÃO DEIXAR DE SER CRIANÇAS!!!

Todos silenciaram e olharam para o céu que já era escuro. Um homem, de aparência bem mais madura, flutuava no ar. Vestia uma capa sobretudo cinza, calças folgadas e negras, com tênis brancos. Usava uma viseira negra inteiriça que lhe cobria por completo os olhos e tinha cabelos negros compridos e que se agitavam ao vento.

- Chegou o estraga prazeres. - Murmurou Seki.

Hane, o recém chegado super homem, pousou no palco e direcionando as mãos rumo aos cilindros, disparou discretas onda de energia vermelha que os fez em pedaços revelando Doni e Seki que já quase não brilhavam mais. Então outra onda de luz avermelhada varreu o palco eliminando totalmente a radiação letal.

- Enquanto vocês estão brincando aqui há trabalho esperando para ser feito!!! - Ralhou Hane com muita determinação, completando - E urgente!

- Porque não nos chamou? - Perguntou Doni mas se arrependeu logo em seguida. Hane se virou para ele, e embora não fosse possível ver seus olhos podia-se sentir a severidade da encarada. Era óbvio que com toda aquela barulheira, radiação e liberação de energia, eles não poderiam perceber e atender o chamado.

O organizador que percebera o perigo respirava aliviado, se aproximou de Hane para agradecê-lo mas este simplesmente o ignorou. E gritou novamente.

- Vamos, seus irresponsáveis! Se é que ainda conseguem voar! - E disparou rumo aos céus. A voz de Hane era impressionante, ele não parecia usar qualquer tipo de amplificador mesmo assim pôde ser ouvido por centenas de pessoas.

- Droga! - Reclamou Seki. Enquanto a banda começou a tocar de novo, assim que o painel de som foi reajustado. Doni descansou rapidamente, se concentrou para se certificar de ter eliminado toda a radiação e correu para abraçar sua namorada. Depois flutuou rumo ao céu quando então se virou e viu o colega ainda parado. Gritou num tom medianamente severo. - Vamos embora, Seki!

Mas o colega continuava falando com algumas garotas, Doni então o puxou pelo braço. - Ei! Peraí! É rapidinho! - Mas Doni não parou e continuou levando o companheiro para o ar, de onde ele gritou. - Daqui a pouco a gente se vê meninas! Só temos que salvar o mundo de novo.

Quando Doni lhe lançou um olhar meio sério, Seki apontou para a banda musical.

- Ei! Aqueles caras são bons!

Tal como a palavra grega psyche e o termo latino anima, a palavra 'alma' costuma misturar conceitos distintos. Força de movimento/vida, e inteligência/sentimentos. Mas com o avanço da ciência, ficou muito difícil considerar que exista uma força vital que explique a vida, que é vista apenas como uma forma especial de organização complexa material.
NO OLHO DO FURACÃO

De fato Doni e Seki até poderiam ter enrolado um pouco mais, pois voavam mais rápido do que Hane e logo, após cruzarem o mar, chegaram junto com ele a uma torre onde se localizava um centro de controle de tráfego aéreo.

Hane entrou ligeiro na sala, seguido pelos rapazes e perguntou a um dos homens que manipulavam os vários painéis luminosos. - Como está a situação?

O homem se levantou, mostrando dísticos em seu uniforme cinza que evidenciavam sua hierarquia no lugar. E respondeu. - A aeronave deu mais uma volta no interior do furacão, por enquanto está segura mas sua área manobrável esta cada vez mais reduzida.

- Nave apanhada por furacão? - Perguntou Seki.- Só isso?!

Hane ignorou o gracejo. - Alguma chance do furacão se dissipar?

- Nenhuma. E não temos muito tempo antes que ele se feche sobre a aeronave. - Respondeu o homem responsável pelo controle de tráfego aéreo.

- A situação é grave. - Completou um senhor já de idade avançada mas bastante saudável. - Melhor se apressarem.

- Alguma notícia do Luri? - Perguntou Hane.

- Não. - Respondeu o senhor. - Já enviamos várias mensagens mas ele não está em casa e nem responde.

- Muito bem! Vamos! - Ordenou Hane.

Logo em seguida os 3 estavam novamente no ar, voando a quase 500m/s e cada vez mais alto. Seki e Doni manifestavam o mesmo brilho verde, nesse caso ainda suave, Hane emanava um brilho avermelhado. E deixando rastros luminosos dobraram de velocidade.

A muitos kms dali, uma aeronave de passageiros enfrentava ventos turbulentos. Dera o azar de ser apanhada no centro de um furacão em formação. Nesse planeta havia naquela região formações repentinas de tempestades e furacões que se misturavam gerando um redemoinho eletromagnético.

Enquanto ainda estivesse no olho do furacão, a nave estaria relativamente segura, porém cada vez mais o redemoinho diminuía de tamanho, assim como aumentava de velocidade, e se fosse pega pelos ventos, a aeronave, com mais de 600 passageiros, seria destroçada, mesmo porque por ser uma nave panorâmica, boa parte de sua fuselagem era de material transparente e menos resistente do que as partes de metal.

O Sol avermelhado ainda iluminava o horizonte, tornando o local claro e as nuvens tempestuosas alaranjadas. A nave lembraria a forma básica dos aviões de nosso mundo, embora em arrojado delta. Tinha mais de 100m de comprimento por 80 de envergadura, e podia voar a mais de 600 m/s, embora raramente atingisse essa velocidade.

Mas agora os tripulantes estavam em maus lençóis. Tentavam reduzir ao máximo a velocidade, para aproveitarem o cada vez mais exíguo espaço no interior do furacão. Como se tudo mais não bastasse, repentinamente, um raio a atingiu, e embora não causasse danos sérios, desativou brevemente os motores e causou violenta turbulência,

O comandante tentou manter a calma, esperou o campo eletromagnético se dissipar para reativar os motores. Mas não aconteceu. Os motores pararam completamente, e a nave começou a perder altura.

A situação era grave, apesar da envergadura e da leveza da aeronave o impacto com o mar seria fatal. Os passageiros que até se mantinham razoavelmente controlados, entraram em pânico, crianças gritavam, objetos caíram para todos os lados.

Então correntes de ar estabilizaram um pouco o avião e, das janelas, os passageiros puderam ver a esperança.

Três fachos de luz surgiram das nuvens, dois verdes e um vermelho.

- Eles chegaram!!! - Gritou um garoto. - Estamos salvos! - Gritou outro.

Hane teve que pensar rápido, disse a Doni e Seki para não tentarem apoiar o avião pelo centro da fuselagem como estavam prestes a fazer, o casco simplesmente seria amassado e poderia até se partir. Orientou-os para se colocarem exatamente nos locais dos motores, um de cada lado da asa.

Naquele ponto a fuselagem era reforçada, eles apoiaram todo o corpo de costas para o fundo da asa, de modo a aumentar a área de contato, e logo, com seu típico brilho verde, a nave parecia ganhar motores novos, e voltou a subir novamente.

Hane se aproximou da cabine e encostou a cabeça no vidro, fitando os pilotos, sua poderosa voz se fez ouvir, e ele explicou a situação.

O furacão se fechava cada vez mais e em poucos minutos a nave seria envolvida por ventos de mais de 200 m/s, o que lhe destruiria em segundos. A nave tinha que ser retirada dali.

Doni e Seki, que tinham força e poderes praticamente idênticos, ergueram cada vez mais a nave, para enfrentar a parede de vento ao alto, onde era menos violenta. Era perfeitamente possível que eles arrastassem a nave até bem acima do furacão se tivessem espaço e tempo para a manobra, qualquer um deles tinha força para isso, o problema que não haveria nenhum ponto de apoio seguro para realizar esse movimento com rapidez sem danificar a estrutura da nave. Eles tiveram que controlar a velocidade para não correr o risco de envergarem as asas.

Enquanto isso Hane só tinha uma opção, abrir uma passagem através do vento. Ele entrou nas revoltas e assustadoras nuvens e uma luz vermelha intensa se fez notar.

Hane não voava tão rápido quanto seus colegas, nem podia produzir eletricidade na mesma intensidade, mas fisicamente era bem mais forte e suas ondas de calor mais intensas. Gerando temperaturas de alguns milhares de graus ele criou um vácuo que abriu uma abertura no cone de vento. Não era uma passagem das mais tranquilas, mas a nave iria resistir.

Os termos 'espírito' e 'espirro' não são similares por acaso. Ambos derivam do latim spiritus, que tem conotação de ar, sopro. O mesmo acontece com o termo grego pneuma, que é traduzido como 'espírito' para o nosso idioma. Isso ocorre porque a idéia de espírito está associada a de que o corpo morria quando cessava sua respiração, e então supunha-se que perdia o 'sopro' da vida.
O QUARTO HERÓI

E de fato deu certo, enfrentando ventos bem mais amenos, filtrados pela parede de energia de Hane, o avião foi sendo conduzido por Doni e Seki com relativa segurança, os passageiros inclusive já estavam animados. Hane falava a seus companheiros para terem muito cuidado, mantendo a mesma força de impulso em cada asa. - Equilibrar essa nave não é igual equilibrar garotas na praia! - Disse ainda mal humorado.

Mas então um outro raio saiu das nuvens atingindo a parte de trás da aeronave. Um rombo foi aberto, a rachadura se extendeu e então a cauda da nave se entortou para esquerda, e por fim despencou, e nela haviam algumas dezenas de pessoas, por sorte amarradas a seus assentos.

A situação era péssima, Doni ou Seki não podiam soltar as asas da nave, sua estrutura não resistiria. Também Hane, naquele ponto, não poderia abandonar sua posição pois os violentos ventos do furacão atingiriam a nave com força total. Enquanto isso, viam, sem poder fazer nada, a parte traseira da nave despencando rumo ao mar. Hane ainda tinha a esperança de esperar mais um pouco até que pudesse descer e tentar alcançar a parte que caía.

Mas o mar ácido e revolto estava cada vez mais próximo daquelas pessoas que gritavam desesperadamente.

Então, descendo dos céus, o intenso facho de luz azul rasgou o ar em velocidade espantosa, chegando a gerar um estrondo sônico.

- Luri! - Gritou Seki. - Até que enfim.

Diferente dos rastros esverdeados de Seki ou Doni, aquele era de azul intenso e puro. O quarto herói alcançou a parte traseira cadente da nave como um raio, apenas algumas dezenas de metros antes do impacto com a água.

Logo depois o pedaço caído voltava às alturas, aos ventos menos violentos, erguido cuidadosamente por mais um homem de luz, cujo esqueleto emitia ofuscantes flashes azuis. Como aquela parte do avião era pequena, bastava erguê-la pelo fundo.

Finalmente a nave saiu do alcance do furacão e Luri, trazendo a parte de trás, não demorou para alcançá-los. Ele encaixou o pedaço de volta ao lugar e com raios de calor soldou toda a estrutura. Não ficou perfeito é claro, mas era seguro.

Agora ele, apoiando a parte de trás, ajudava Doni e Seki a carregarem a nave para longe da zona de perigo. Hane seguia à frente, atento aos movimentos de algumas nuvens ainda ameaçadoras.

Os passageiros agora não estavam apenas tranquilos mas até eufóricos. Para muitas pessoas, Hane, Luri, Doni e Seki não eram somente Super Humanos, eram deuses.

Horas depois chegavam a um aeroporto, onde delicadamente colocaram a nave do chão. Lentamente os passageiros foram retirados. Não houvera feridos graves mesmo entre os que estavam na parte da nave que quase caiu ao mar.

Todos queriam ver os heróis, que flutuavam acima da aeronave, Doni e Seki acenando, com as roupas, não apropriadas para a ação, um tanto esfarrapadas dado o vôo de alta velocidade. Luri vestia uma roupa inteiriça colante preta, coberta por uma jaqueta colete azul marinha.

Uma multidão de pessoas, repórteres, tietes, caçadores de autógrafos e etc, se engalfinhavam com os parentes dos passageiros, a segurança pediu a eles que, se fosse possível, se retirassem. Hane concordou de imediato e logo os 4 voavam de volta à Primeira Cidade.

No ar, apesar do vento, eles podiam conversar com facilidade, pois tinham algumas capacidades sensitivas especiais. - Luri! Você apareceu bem na hora! - Disse Doni.

- Onde você tava? - Perguntou Seki.

Após um período de silêncio e um sorriso discreto, Luri se limitou a um monossílabo que em seu idioma equivalia a: - Longe.

A palavra 'espírito' abrange então dois conceitos distintos. Um deles o de 'sopro de vida', uma força vital que anima o corpo. Quando este vai embora, sobrevêm a morte. Mas também inclui o conceito de inteligência, onde ocorrem os pensamentos e os sentimentos. Tal como o termo 'alma', a palavra 'espírito' tem duplo sentido. Vitalismo e Inteligência. Casos similares ocorrem em outros idiomas.
CONGRATULAÇÕES

Eles voltaram à torre onde antes Hane trouxera os companheiros. Ela estava cercada por uma multidão, e ainda que na plataforma superior que envolvia a sala de controle houvesse seguranças impedindo a invasão do público, não podia deter a presença dos repórteres e suas câmeras flutuantes automáticas.

Os 4 super humanos pousaram atrás da linha defendida pelos seguranças, Hane seguiu em direção ao recinto onde ficavam os analistas de tráfego, engenheiros e dirigentes, para fornecer uma relatório da situação. Enquanto isso Seki se aproximou dos repórteres e como sempre fazia contou uma versão sensacionalista do acontecido, contrastado pelas expressões de reprovação de Doni. Então apontou para Luri, que estava mais atrás.

- Mas vocês tinham que ver o Luri! Ele apareceu na hora H! Não fosse ele muita gente ia morrer!

Com isso alguns repórteres autorizados se aproximaram de Luri, mas ele apenas levitou e ficou flutuando fora do alcance. As câmeras voaram para mais perto dele mas quando se aproximavam e tentavam enquadrá-lo, ele gerava um campo eletromagnético interferindo no funcionamento dos aparelhos.

Logo depois Hane saiu da sala de controle e os entrevistadores se dirigiram para ele a fim de colher o relatório. Sua voz imponente dispensava amplifones.

- Tudo foi resolvido. Basicamente uma aeronave de transporte modelo CZ-32 da Aviação Aurora, que foi daqui para a Quinta Cidade, foi envolvida por uma inesperada formação eólica que resultou num tufão elétrico típico da região, embora raro nessa época do ano. A tendência desse tipo de tufão é ir se afunilando progressivamente, e como a aeronave estava presa em seu interior, cedo ou tarde seria atingida pelo cone de vento, o que com certeza a destruiria. Não podiam subir, pois a velocidade de subida da aeronave é inferior à de afunilamento do cone de vento.

Hane prosseguiu descrevendo o processo que usaram para remover a nave do interior do tufão. Havia uma inquietação geral sobre o assunto da ausência de Luri. Onde ele estava? Mas Hane logo justificou.

- Luri estava longe, numa verificação periódica sobre os mares equatoriais. A tempestade dificultou a comunicação e por isso ele só foi avisado com atraso. Mesmo assim chegou a tempo de evitar o desastre.

Não era verdade. Hane sabia onde Luri estava mas nada tinha haver com trabalho. Ele tinha o hábito de se isolar em pontos inacessíveis do planeta, ocasionalmente, e ignorar as transmissões. Na verdade Hane achava que ele estivera presente desde bem antes, mas só aparecendo quando a situação o exigiu, mesmo porque Luri podia captar qualquer frequência de rádio, com certeza tinha ouvido o sinal de socorro.

Terminada a explicação a multidão estava em alvoroço. A dirigente da Primeira Cidade chegou e prestou uma rápida homenagem aos 4 super seres, foi o único momento em que eles estiveram juntos no chão. Após um beijo no rosto de cada um, presenteou-os com uma pequena medalha de cristal e disse algumas palavras nada originais sobre a importância de Hane, Luri, Seki e Doni para a civilização de Orizon.

Nessa noite com certeza os noticiários televisivos teriam bastante trabalho, não só reconstituindo o acontecido como fazendo novas recapitulações dos feitos dos heróis ao longo dos anos.

Terminada a breve cerimônia, Hane ainda foi ter com os responsáveis de tráfego aéreo e depois levantou vôo rumo ao horizonte. Seki convidava a todos para uma comemoração mais animada numa famosa casa de diversões da cidade e a namorada de Doni acabava de chegar se atirando em seus braços.

Quando Seki se virou para insistir a Luri que viesse, mesmo tendo nenhuma esperança disso, ele já cortava os céus sumindo de vista.

Quando a ciência deixou de considerar uma força vital oculta por trás da vida, a acepção vitalista dos termos 'alma' e 'espírito' ficou obsoleta. Mesmo assim os dois termos continuaram a ser usados, com frequência juntos. Não raro um serve designar a parte intelectiva e outro a parte vital. Trocando de lugar de acordo com âmbito religioso ou filosófico.
ORIZON 5

Dentre os vários planetas colonizados ou habitados pela raça humana de origem terrestre, que constavam nos registros, Orizon era um dos mais parecidos geologicamente com a Mãe-Terra.

Orbitava uma estrela médio-gigante vermelha, 30 vezes maior que o antigo Pai-Sol mas de um brilho bastante fraco. Em torno dela havia vários outros planetas grandes, facilmente visíveis no céu noturno e às vezes mesmo no diurno, o que compensava a falta de satélites naturais.

Também havia uma nebulosa rosada que oferecia belos espetáculos em certas épocas, mas o mais notável era uma segunda estrela, que na verdade orbitava a estrela maior como um planeta. Era uma anã branca, menor que os outros 5 gigantes jovianos daquele sistema estelar e que de 3 em 3 anos eliminava as noites por vários meses. E antes ainda houvera um outro imenso planeta gasoso, o nono a partir da estrela, que infelizmente fora destruído, privando os céus de mais um belo astro, e teorizavam alguns, teria havido também, em tempos remotos antes da chegada dos humanos no sistema, uma terceira estrela.

Orizon não era a princípio habitado por formas de vida superiores, estava num estágio embrionário, com recém formados aminoácidos embora algumas moléculas mais complexas já começassem a ocorrer, e já tivesse quantidades razoáveis de Oxigênio e Ozônio.

Quando as primeiras naves humanas chegaram, fugitivas do Grande Êxodo, iniciaram um intenso processo de terra-formação que demorou 130 anos. Anos na medida da velha Terra. Até lá quase um milhão de pessoas se espremeram em estações espaciais, naves e planetas inóspitos, vivendo em cúpulas protetoras.

Ao fim do processo o planeta se tornou habitável, com ar respirável e temperatura amena e agradável no eixo equatorial, onde estava o único continente habitado por um aglomerado de imensas cidades interligadas. Mas não havia qualquer flora ou fauna perceptível e portanto todos os animais e vegetais eram descendentes da Terra.

Os mares eram ácidos, sua água não era potável e era mesmo corrosiva principalmente para a pele humana, embora alguns se atrevessem a desafiar a beira das praias com roupas protetoras.

Trezentos anos depois havia quase 53 milhões de pessoas no planeta. Ficara ninguém nas velhas colônias ou estações, e a incorporação de Orizon na vida dos humanos foi tão intensa que durante todo esse tempo não houveram viagens espaciais significativas. Houve um fenômeno psicológico de massa que levou a humanidade a se apegar a seu mundo de tal forma que não havia interesse em explorar outros e nem mesmo sequer em estabelecer contato com outros planetas interestelares. Ocorreu inclusive uma estagnação e mesmo um retrocesso tecnológico, embora a estrutura técnica de Orizon garantisse a todos os seus habitantes uma vida farta, segura e produtiva.

Praticamente não havia doenças, nem fome, criminalidade ou grandes desastres naturais. O planeta era geologicamente estável e muito antigo, de modo que seu núcleo era consideravelmente mais frio do que a média dos planetas vivos.

Tinha exatos 10 mil kms de diâmetro embora fosse mais denso. Nesse mundo não seriam necessários os velhos arredondamentos da aceleração gravitacional para facilitar os cálculos dos estudantes de física, pois a aceleração de gravidade era exatamente 10 m/s2.

Seu período de rotação também era próximo ao terrestre, 25 horas, mas sua translação era de mais de 900 dias da antiga Terra, de modo que o Ano era uma medida arbitrária próxima ao padrão antigo, mas de 350 dias do planeta, o que equivalia ao antigo ano de 365 dias de 24 horas da Terra.

Mas esses eram fatos lembrados por uma ínfima minoria, pois a população de Orizon de certa forma, abraçara um modo de vida quase hedonista. Poucos realmente se preocupavam em manter e desenvolver o conhecimento, uma espécie de elite, não por acaso que detinha a maior parte do poder administrativo.

Mas pouco importava, o padrão de vida era muito alto. Todos tinham moradia, alimentação, educação e saúde gratuitas. Era fácil conseguir emprego, principalmente na muito desenvolvida área de entretenimento e lazer. Alguns filósofos chegavam a dizer que o Inconsciente Coletivo de Orizon tinha um histórico de conquista do paraíso, descendendo de gerações que após passar séculos vagando no espaço e sofrendo limitações em estações espaciais, agora se rendia a uma vida sem grandes problemas.

O que era estranho, pois apesar de os últimos 10 anos serem de paz e tranquilidade, onde se podia contar nos dedos de uma mão o número de fatalidades que ocorriam num ano no planeta inteiro, Orizon tivera períodos muito perturbados, em guerra com uma estranhíssima forma de vida de origem extra estelar, e que ofereceu riscos à própria sobrevivência desta pequena parte da humanidade.

As gerações atuais não se lembravam, pois nem se interessavam, mas Luri, Doni, Seki e Hane lutaram na última guerra, sendo decisivos para a derrota final do inimigo.

Apesar de que um fantasma ainda rondava as mentes de alguns.

Tornou-se difícil saber algo a respeito da alma ou do espírito, e tais palavras foram perdendo o sentido. Como surgiram em contextos da ampla ignorância sobre a natureza, era difícil usá-las com precisão. Porém um outro termo, derivado do latim mens, pode ser usado com o significado puro e simples de inteligência, sem a confusa idéia de vitalistmo. É a palavra 'mente'.
DONI E SEKI

Eram bons vivants. Celebridades. Famosos. Compareciam a quase todos os altos eventos sociais, recheavam revistas e programas de Coluna Social, faziam comerciais, viviam para a fama.

A população de Orizon os tinha como deuses, eles preenchiam uma série de necessidades idólatras das massas, serviam como relações públicas, eram símbolos identificadores, luzes de esperança e, se divertiam bastante.

Embora ambos fossem badalados, abertos ao público e com extensos fãs-clubes, tinham peculiaridades diferentes.

Doni fazia o tipo "cavalheiro", bom moço. Sempre tinha uma namorada, ainda que por menos de uma semana, mas nesse período, era sempre monogâmico. Nenhum de seus namoros durou mais que 6 meses, e ele jurava que tinha esperanças de encontrar a mulher de sua vida. A cada rompimento de relacionamento, acendiam as esperanças de milhares de pretendentes por alguns dias, até que os colunistas e "repórteres" denunciassem a Nova namorada de Doni.

Era notório também que todas elas se beneficiavam muito, pois o simples fato de se namorar Doni abria portas, e todas as suas ex namoradas também viraram celebridades. A beleza é claro, ajudava, mas elas tinham um perfil, era verdade que Doni tinha uma exigência mínima em termos de conteúdo psicológico, não era lá grande coisa mas não dava para dizer que ele ligava só para aparência, apesar de que todas elas eram lindas.

Além disso Doni ainda posava de amante das artes, de preocupado com questões sérias e vez por outra pronunciava algo que era visto pelas massas como muito profundo em termos intelectuais ou sentimentais.

Seki era bem diferente. Fazia o tipo playboy, garanhão, festeiro e promíscuo. Até tinha ocasionalmente o que podia-se chamar de namoradas, mas várias ao mesmo tempo. Levava por vezes até uma dezena de tietes para cama sem qualquer constrangimento, sua lista de amantes já devia estar na casa dos milhares, só mesmo menor do que o número de integrantes da fila de espera, lutando por uma chance de transar com o super humano.

Era bem mais acessível do que Doni, embora o "prêmio", fosse menor, no máximo alguns dias de fama ou com mais sorte, de centro das atenções caso ocorresse algum fato mais interessante. Mas de qualquer modo, os "paparazzi" de Orizon mantinham uma cuidadosa e completíssima lista de todas as mulheres que pelo menos adentraram um quarto reservado com Seki.

Questões de saúde não eram problema, pois doenças não só eram raras em Orizon como ainda por cima, os 4 Super-Heróis também não só eram absolutamente imunes ao que quer que fosse, como ainda eram de certa forma "esterilizados" e esterilizantes.

Eram também, ao que tudo indicava, estéreis. Não se poderia engravidar de um deles, ou pelo menos era o que a maioria dos entendidos dizia. Chegaram a ocorrer alegações de paternidade, mas nenhuma demorou mais que uns dias antes de desabar no primeiro teste genético. Não era possível, entretanto, comparar a bagagem genética de um dos 4 com o do suposto descendente, pois na verdade eles sequer tinham sangue ou qualquer célula que se pudesse considerar carbônica. Mas todos os cidadãos de Orizon tinham o DNA registrado nos arquivos digitais, e ao se testar o código genético do feto, o pai era instantaneamente indicado.

Seki não parecia levar nada a sério, era sempre bem humorado e extrovertido e com uma queda para show business. Dizia-se que na verdade arrastava Doni consigo. Ele sempre contava seus feitos e os de seus companheiros em ação, mas qualquer um sabia que não poderia esperar muita fidedignidade de seus relatos.

As opiniões femininas divergiam muito em decidir quem era o mais atraente. Eles eram parecidos, mesma altura e tipo físico, mesmos tons de pele, cor de cabelos e olhos. Morenos, olhos e cabelos negros. Doni geralmente usava cabelos bem curtos, Seki um pouco mais compridos, um tipo "cuia" mas bastante revolto.

Doni era também mais elegante, mesmo porque suas namoradas cuidavam disso. Frequentemente ele recebia presentes de famosos produtores, para divulgação de suas marcas. Seki era mais despojado embora também sofisticado, e sua falta de cuidado, seu visual mais rebelde, tinham um charme em especial para muitas mulheres.

Eles também eram equivalentes em seus poderes, voavam quase à mesma velocidade, "geravam" energia em níveis e intensidades parecidas. Quando brilhavam, a luz que emanava de seus corpos era branco esverdeada. Por vezes era possível ver seus órgãos internos e ossos, como se fossem todos feitos de um material translúcido e verde.

Juntos, formavam um meio termo.

Se era duvidoso que existisse uma força vital, um sopro animador, era porém certo que existe algo racional, inteligente, sensível. Portanto, a palavra 'mente' se tornou mais adequada. Não significa que não exista algo que mereça ser chamado de espírito ou alma, mas é incerto. Porém, com certeza existe algo que merece ser chamado de Mente, quer seja material ou não.
HANE

Acabava de chegar em casa, driblando como sempre os não muitos repórteres que tentassem se aproximar dele. Nesse caso jornalistas bem mais arrojados, pois colunistas sociais e sensacionalistas em geral... Melhor nem se aproximar de Hane.

Ele era quase a antítese de Seki e Doni. Nada simpático, não sorria, sempre sério e só falava o necessário. Era de seus depoimentos que a população conhecia a versão mais precisa dos eventos que eles viviam. Também, nem pensar em querer vê-lo nos programas de auditório, revistas de celebridades e etc, a não ser flagrado em fotos distantes.

Hane também não se envolvia com tietagem, era casado, com 4 esposas. Uma quinta se separara meses atrás. Tinha poucos amigos, e eram raros os privilegiados que frequentavam sua casa.

Essa casa era um imenso apartamento, de 3 níveis, numa das grandes torres residenciais de uma área nobre da Primeira Cidade. Hoje era dia de Xazian, a mais recente de suas esposas, que chegara a receber alguma badalação da mídia.

Todos os humanos de Orizon eram morenos ou mulatos, Xazian se destacava por possuir uma tez mais escura, exótica e muito atraente, enormes olhos amendoados e lembraria uma odalisca árabe da velha Terra, o que fascinara à primeira vista o super humano.

Embora poucos o conhecessem, sempre opinavam que ele "é legal depois que o conhece". Mas Hane não fazia o menor esforço para alterar sua "fama de mau", não raro era ríspido, arrogante, e nada sutil. Certa vez destruíra um dirigível automático por estar executando músicas populares das quais ele não gostava sobre o bairro onde vivia. Em nada se identificava com as massas, suas opiniões eram chocantes, se não exatamente antagônicas ao senso comum, ao menos muito duras e francas.

Era também intelectualizado, conhecia bastante da história de Orizon e da antiga Terra, dominava amplos conceitos de física, era o estrategista do quarteto, e embora não exatamente o líder, acabava assumindo a coordenação quanto as situações exigiam.

Xazian acabara de se preparar para receber seu marido. Hane entrou pela abertura do teto e logo ela recolheu suas roupas jogando direto no desintegrador. Todos eles deviam destruir suas vestes após enfrentarem alguma ação.

Nu, Hane aparentava ser o mais robusto e encorpado dos 4 heróis, "nu" em termos, pois continuava com a extensa viseira cobrindo por completo os olhos, pegando a parte inferior da testa e escondendo bem abaixo das cavidades oculares.

Xazian, delicada, o tocou. - Não vai tirar o visor?

Sério e comedido ele respondeu. - Acha que já está acostumada?

- Talvez não. Mas nunca acostumarei se não tiver oportunidade.

- Está bem. - Respondeu ele, em seguida acionando calmamente alguns mecanismos no visor, que então de destacou um pouco do rosto. Logo depois a extensa peça que chegava até a parte de trás do pescoço, foi deixada numa penteadeira. Seus longos cabelos negros ficaram totalmente soltos.

Ele se olhou no espelho como se isso fizesse algum sentido. Hane era opticamente cego, só enxergando com o visor. Mas isso não era um grande problema pois tinha várias percepções extrasensoriais que compensavam ou mesmo superavam a visão normal.

Mas o principal motivo do visor não era esse, e sim, como Xazian podia relembrar agora, seus olhos serem muito perturbadores.

Hane quando brilhava, diferente de seus parceiros, emitia uma luminosidade vermelho rosada, mas, ainda mais diferente, é que no que se referia a seus olhos, isso era inevitável. Por algum motivo suas córneas brilhavam sempre, num tom vermelho luminoso intenso, as íris já eram estranhamente brancas, e as pupilas emitiam outro vermelho acentuado.

Além disso, emanava uma constante névoa translúcida e brilhante que dissolvia-se cms após se afastar dos olhos, geralmente ascendendo na vertical. Devido a essa luz nas córneas suas retinas não funcionavam, a função do visor era servir de câmera e enviar as imagens digitalizadas através de fortes impulsos eletromagnéticos que reverberaram no córtex visual. Além é claro de ocultar aquela sinistra peculiaridade.

Não adiantava também fechar os olhos, a luz atravessava as pálpebras, o que somado ao fato de que na verdade toda a região da cavidade ocular apresentasse um brilho, tornava sua aparência ainda mais incômoda.

Xazian não escondeu o ainda insistente espanto, mas acentuou o sorriso. Ela não tinha idéia de como Hane a via, ele não falava muito no assunto, mas todos tinham a impressão que ele enxergava normalmente, ainda que, quando sem o visor, olhasse bem menos para as pessoas ao falar com elas, assim como não acompanhasse visualmente as coisas a sua volta.

Delicadamente ela tomou suas mãos. - Sabe. É verdade que assusta, no começo. Depois a gente se acostuma, como eu já me acostumei. Aí... Começa a ser fascinante.

- Fascinante? - Disse ele um pouco surpreso, embora fosse claro que suas esposas e amigos mais íntimos de fato agissem como dissera Xazian, mas somente após algum tempo, porque na primeira experiência todos ficavam atemorizados.

- Sim. - Respondeu ela. - É misterioso, divino, tem um quê de maligno, mas mesmo assim... Sedutor. - E então o beijou. Suavemente.

Logo mais tarde ele foi tomar um banho, comum como o de qualquer outra pessoa embora precedido de uma explosão esterilizante de luz.

Xazian, que era a recém-casada, possuía aquele entusiasmo que nas outras já, com a exceção de uma, não era tão intenso. Era perdidamente apaixonada, e ficaram juntos a noite toda.

Fazer amor com um dos 4 super seres não era tão diferente do que com qualquer homem normal, ainda que ocasionalmente, em geral nos momentos de êxtase, eles pudessem brilhar suavemente.

Por fora, era impossível distinguir um deles de qualquer ser humano normal, a exceção óbvia dos olhos de Hane, embora apresentassem uma perfeição física e uma textura de pele das mais apuradas e estéticas.

Por dentro era difícil afirmar, pois cortar a pele de um deles, além de muito difícil, era simplesmente abrir um foco de luz. Ele não tinham exatamente sangue, mas sim o que podia-se chamar de Foto Plasma, seus ossos eram de fato transparentes, e na medula corria uma substância que quando excitada, provocava o efeito "Raio-X".

Essa substância foto plásmica estava na verdade espalhada em todo o corpo, embora se concentrasse mais na medula. Era possível a eles por exemplo fazer apenas o coração brilhar, e emanar uma luz que atravessava o tórax. Se cortados, o "sangue", que era radioativo, saía transparente e luminoso, e perdia o brilho na medida em que o ferimento fechava, questão de minutos, desaparecendo então, "sangue" e ferimento, por completo.

Hane era também, dos 4, o mais responsável no que se referia à sua função. Ele assumia integralmente seu papel de defensor planetário. Estava plenamente atento a tudo o que pudesse exigir a interferência dos Super Humanos.

Isso incluía até mesmo regulares rondas noturnas. Naquela noite, no meio da madrugada, ele decidiu sair. Vestiu suas roupas, uma capa sobretudo branca no caso. Xazian acordou. - Vai trabalhar? - Perguntou em tom ligeiramente melancólico.

- Não demoro. - Respondeu ele. - Vou visitar o Luri.

E deu-lhe um beijo de boa noite, saindo então pela janela rumo ao céu estrelado. Xazian não escondeu um discreto lamento por ele sair justo na sua noite, mas era compreensiva.

O mundo pode ser ilusão, um imenso sonho coletivo. Poderia ser uma simulação digital inserida diretamente no cérebro. Até o corpo pode ser ilusório. Podemos ser apenas um cérebro imerso num líquido amniótico conectado a eletro estimuladores que geram nossa percepção. Talvez nem haja cérebro, e sim uma pura mente a sonhar. Só uma coisa é certa: A mente é real.
LURI

O Quarto Semi-Deus de Orizon era o mais misterioso. Jamais dera uma entrevista, pouquíssimos o tinham visto de perto e praticamente ninguém tinha qualquer idéia de como seria sua voz.

Diferente de seus irmãos, Luri brilhava num tom que podia variar do Azul puro ao Ciano. Era o mais rápido de todos, gerava feixes e pulsos eletromagnéticos com muito mais facilidade, e aparentava ser também o mais destemido, ousado e compenetrado de todos.

Mas Luri tinha problemas psíquicos sérios. Sua timidez era crônica, ele praticamente não falava, não se relacionava, não tinha amigos, não visitava ninguém. Vivia só para o trabalho, e o resto do tempo passava em total isolamento. Morava numa afastada ilha de imensas propriedades, mas diferente de todas as outras, sua casa era pequena e escondida entre árvores. Seus vizinhos jamais o viram e a maioria sequer sabia que ele vivia ali.

Hane, após prestar atenção numa discreta chuva de meteoros, o que era sempre importante pois Orizon era constantemente ameaçado por asteróides, aumentou a velocidade e logo chegou à ilha onde vivia seu companheiro.

Desceu discretamente no local, minimizando seu brilho. Apesar da noite escura e da quase total falta de iluminação externa no terreno, pôde perceber o descuido com que o jardim de um dos mais poderosos seres de Orizon era tratado, assim como odores pouco agradáveis de excrementos de animais.

Em compensação no interior da casa havia um cheiro de desinfetantes e produtos de limpeza tão forte que poderia fazer desmaiar uma pessoa normal, como Hane notou ao atravessar a porta, que como sempre estava aberta, e entrar. Sabia que Luri já devia estar sentindo sua presença. Por isso avançou calmamente por um cômodo que lembrava uma cozinha, e que estava uma bagunça. Cruzou um corredor pouco iluminado por luzes ligeiramente esverdeadas e entrou num minúsculo quarto.

Lá havia cartazes na parede, de alguns grupos musicais, de algumas mulheres famosas e de seus companheiros. O quarto também era um caos, havia roupas, objetos pessoais, brinquedos e instrumentos musicais, esparramados ou amontoados. Havia muitos gatos pela casa, mas a maioria devia estar fora. Eram a única companhia de Luri.

O rapaz se sentava numa pequena cama de solteiro, que mal dava para ele, o mais alto dos 4 Super Seres. Ainda vestia as roupas de quando ajudou a resgatar a aeronave, inclusive com a medalha, não tirara nem mesmo as botas, que pisavam sobre o lençol.

Ele abraçava os joelhos, e chorava, com tremores.

"Mais uma crise." Pensou Hane. Esperou alguns minutos e depois sentou-se ao seu lado. - Olá, Luri. - Acariciou-lhe a cabeça de forma quase paternal. - Vim ver como você está.

Luri se limitou a um discreto sorriso, e calmamente se levantou. Tirou as botas e o colete jogando-os ao chão, ficando só com um colante negro que revelava um corpo mais esbelto e atlético que o de seus irmãos. Hane colheu o colete e o dobrou, retirou a medalha e a colocou ao lado das outras, num quadro na parede, que ainda deu trabalho para ser nivelado.

Foram até uma copa, ao lado da cozinha, que diferente do resto da casa estava bem arrumada. Luri pegou duas canecas de chocolate, e ficaram a bebê-las sem olhar um para o outro. Aliás a dispensa devia possuir mais de uma centena dessas canecas, que já traziam o chocolate pronto e eram recicláveis, não havendo aparentemente qualquer outro alimento. Não que fosse necessário, as necessidades alimentares dos super humanos eram totalmente diferentes, e aquele chocolate inclusive era completamente dispensável. Eles nem sabiam porque bebiam.

- Os zeladores não vêm mais? - Perguntou Hane, e entendeu que Luri não se sentia à vontade com eles. - A casa está uma bagunça! Não quer marcar um dia para que façam uma faxina?- Entendeu que sim. - Amanhã?

Luri concordou com a cabeça, deixando claro que se ausentaria enquanto os zeladores cuidassem de tudo. Hane deu uma volta pelo ambiente e perguntou. - Porque não ficou para a comemoração?

Ainda que já soubesse a resposta esperou que uma expressão facial discreta do amigo demonstrasse que ele não se sentia à vontade com multidões. Hane concordou com a cabeça.

Em nenhum momento Luri emitiu qualquer som, apenas fazia discretas expressões que Hane interpretava com precisão plena. Ele sabia "ler" em todos os trejeitos do companheiro o que ele queria dizer, e com tanta eficiência que por vezes se esquecia de que Luri não estava falando, e chegava depois a ter a nítida impressão que ele respondia em alto e bom som.

Hane ficou um tempo em significativo silêncio.

- Estou preocupado com você Luri. Está muito isolado. Você podia se relacionar mais. Do que tem medo? Você é um de nós! É admirado! É amado pela população.

- Sei. - Respondeu surpreendentemente Luri, e Hane tentou não chamar a atenção para o fato de ele ter falado.

- Você já teve uma namorada Luri?

Hane ficou esperando uma resposta, que não veio nem mesmo em forma de expressões faciais. Luri era um rapaz bonito, tanto de rosto quanto corpo, sua voz, quando dada a se ouvir, não era das mais envolventes, mas fazia um misto de mocidade ingênua e charme jovial.

- Você é muito atraente Luri. Milhares de mulheres, as mais lindas garotas, fariam tudo para namorar você. Porque não dá a elas uma chance... Porque não dá a você! Uma chance.

Como resposta, expressões faciais que falavam sobre a timidez, a dificuldade de se relacionar. Luri sabia muito sobre coisas que a maioria dos seres humanos jamais poderia, mas parecia nada saber sobre coisas que todos os seres humanos dominavam.

- Claro! Não precisa ser como o Seki e o Doni! Aqueles playboys! Nem precisa ser como eu. Pode ser um meio termo. Pode ser...

- Eu. - Respondeu Luri, dizendo que era apenas como ele era, e não sabia ser diferente. Não adiantava mudá-lo. Era a idéia que suas expressões e trejeitos transmitiam.

Hane parou, meio que pego de surpresa, pensou e achou uma forma de continuar a abordagem. - E você realmente sabe quem é você?

Luri se contraiu, e balançou negativamente a cabeça, levantando depois o queixo em sinal de "me diga você".

- Você é um deus!!! - Hane elevou a voz. - Um deus, Luri! Isso não é só o que todos pensam, é o que nós somos! Você sabe o que quero dizer com isso?!

- Quero dizer que nós vivemos coisas que a maioria das pessoas jamais irá sonhar, e nós levamos isso conosco. Sabe... Eu acredito que nossa mente sobrevive após nosso fim corporal... Claro, nem sabemos se nós 4 morreremos como os humanos normais. Mas... Não creio que seremos eternos fisicamente. Não?

Luri concordou com a cabeça e Hane prosseguiu. - Tenho certeza de que nós, não nascemos nesses corpos por acaso. Não é qualquer um que poderia ter sido ligado a esses organismos de foto plasma que nós temos. Não foi só o acaso Luri. Nós somos especiais!

Deu mais uma volta e de costas para o colega enfatizou. - Você é especial. - Depois encarou-o novamente. - Sinceramente, não consigo entender do que você tem medo.

Sentou ao lado de Luri de novo, quis ser engraçado. - Homossexual eu sei que você não é! Nem sexualmente inativo. - E pegou o rosto do amigo com as mãos. - Vamos... Não deixe a vida passar assim.

Luri insinuou que falaria alguma coisa, mas desistiu, como Hane esperava. - Faça alguma coisa. Amanhã... Dê uma volta sobre a cidade, chame a atenção. Não precisa falar com ninguém, só apareça onde haja pessoas que possam te ver. Verá como todos o admiram.

Fez o amigo se levantar e caminhou rumo a porta. - Não posso demorar. - E passaram para o lado de fora, onde Hane abraçou seu irmão.

- Luri. Faça isso. Por você. Por nós. Não se isole.

Hane era quem mais se aproximava de Luri, mesmo Doni e Seki ainda possuíam alguma distância dele, embora bem menor que qualquer outra pessoa. A "mãe" dele, morrera há alguns anos.

Como "mãe", entendamos as babás que cuidaram dos super humanos ao longo da infância, pois eles não tiveram verdadeiras genitoras, tendo sido "construídos" artificialmente.

Se as aparências servissem, elas talvez esclarecessem a questão. Hane tivera a mais duradoura de todas as "mães", diferente de Seki que tivera alta rotatividade e quantidade. Doni e Luri foram um meio termo, e de certa forma eles tinham a timidez em comum, com a diferença que Doni era bem menos fechado, e se deixasse levar por Seki.

Luri era um mistério generalizado para a população, pouco se publicava sobre ele. O motivo era simples, Hane o defendia, a todo custo.

A maioria dos editores e diretores de TV pensava bastante antes de publicar algo sobre Luri. Hane era intolerante com relação a qualquer coisa que pudesse ser embaraçosa. Com certeza ninguém teria coragem de insinuar abertamente que Luri pudesse ser homossexual ou impotente, ou qualquer coisa que explicasse seu comportamento estranho. Por muito menos Hane já havia certa vez destruído uma gráfica, e levantado um apresentador de TV pelo pescoço.

Era verdade, que ainda que submetidos às leis de Orizon, os 4 super seres não tinham quem as impusesse sobre eles além deles mesmos. Mas apesar de ocasionais excessos de Hane, jamais houvera problemas sérios, todos eles foram muito bem educados, e muito bem projetados.

Hane entrou pela janela. Xazian acordou de imediato, abraçando-o e manifestando preocupação. - É o Luri. - Disse ele.

- Estou muito preocupado.

Um certo filósofo pôs em duvida toda sua percepção e pensamento, descobriu que só uma coisa era certa. "Penso, Logo Existo." foi a conclusão. Mesmo que o universo, as idéias e as certezas matemáticas fossem enganadoras, alguma coisa teria que ser enganada. Não se pode duvidar daquilo que duvida, o "eu" pensante. Pode-se dizer que este ser sensível é a, ou está na, mente.
UM ESTUDO COMEÇA

Na ampla tela, de cerca de 5 de largura por 2, e ligeiramente recurvada em volta da espectadora, imagens nítidas exibiam um documentário bastante badalado pela mídia. Como de costume após eventos marcantes, os 4 super seres eram mais uma vez o tema de uma gama de programas de TV, que sempre conquistavam audiência.

Ange esperava que o programa fizesse jus ao anúncio e abordasse aspectos em geral ignorados pela maioria dos documentários sobre o assunto, como a Guerra contra o Ians, ou a natureza física dos rapazes.

De fato ela teve que admitir ao final que o programa realmente fora bem além do normal, mas para ela, uma estudiosa, não fora de grande ajuda, o conteúdo útil acabou sendo basicamente o mesmo.

Os 4 super seres tinham nascido há cerca de 27 anos, ninguém tinha muita certeza, e com menos de 10 anos de idade tinham se tornado a nova arma secreta de Orizon contra os Ians. Quando todo o maquinário militar do planeta foi exterminado pelo inimigo, os 4 rapazes na verdade passaram a ser a única força de combate do planeta.

Porém foram mais que suficientes, ao longo de 4 anos fizeram o que todas as naves e robôs de combate anteriores não fizeram em quase 300 anos de hostilidades periódicas, eles aniquilaram praticamente todas as bases dos Ians, espalhadas por vários pontos do sistema estelar. Pouco a pouco os ataques do inimigo se tornaram mais raros, até que numa cartada final, ocorrida há 12 anos, os Ians pregaram um susto em toda a humanidade com uma manobra extremamente ousada.

Haviam enviado um único e poderoso robô fotônico que arremessou vários asteróides rumo ao planeta, alguns inclusive passaram causando estragos mas a maioria foi detida pelos 4 super heróis. Com a destruição do robô, nunca mais se teve notícia significativa do inimigo, e finalmente Orizon entrou num longo período de verdadeira tranquilidade.

De lá até aqui, os rapazes se limitaram a destruir os constantes asteróides que volta e meia ameaçavam o planeta ou seus satélites artificiais, assim como evitar desastres ou ocasionalmente, perseguir e destruir veículos inimigos remanescentes, em geral de reconhecimento.

Ange sabia ser muito pouco, mas era um começo. Ela tinha uma ambição intelectual inovadora, produzir o primeiro tratado psicológico público profundo dos 4 rapazes. A maneira como eles se comportavam e viam o mundo a sua volta, suas expectativas e motivações, suas verdadeiras biografias e personalidades.

Era de fato inédito, pois só ao fim da guerra, oficialmente encerrada há 10 anos, eles se tornaram acessíveis à população e desde essa época o clima de comemoração que parecia nunca acabar havia favorecido apenas abordagens superficiais sobre os heróis, que não permitiam qualquer mergulho significativo em sua personalidade. Ninguém, era verdade, parecia disposto a isso, como se ainda houvesse uma festividade infinita a ser apreciada antes de se pensar em qualquer trabalho.

De fato, esse problema não atingia apenas a Psicologia, e em especial os super seres, mas era de âmbito geral. Aparentemente, o fim do clima de tensão desacelerou a Produção Acadêmica vertiginosamente, como se todos precisassem de férias após séculos de intensas pesquisas. Essa tendência na verdade se iniciara desde a época que os 4 heróis surgiram.

Ange queria mudar isso, promover uma pesquisa ampla sobre as psiques dos rapazes, da população e sua paixão por eles, de como funcionava esse mecanismo de dependência entre endeusados e endeusantes, e o que poderia-se esperar no futuro.

Na Torre 3 da Universidade Única de Orizon, o senhor Nani olhava pela janela, imerso em pensamentos que atingiam décadas no passado. Ele já era professor quando a mídia anunciou pela primeira vez que os cientistas haviam desenvolvido uma nova arma secreta contra os Ians, uma arma secreta humana.

Nani presenciou toda a mudança de paradigma acadêmico. A transição do discurso belicista, voltado para produção de armas, e expansionista, para o discurso retroativo, voltado para maior interiorização humana. Viu mais e mais cientistas abandonarem as áreas técnicas e se concentrarem nas teóricas. A evasão da Ciência para a Filosofia e da Filosofia para a Arte.

Ele não sabia bem o que pensar disso tudo, por um lado a tranquilidade era tudo o que sempre se sonhava, por outro, a ameaça de estagnação intelectual era muito incômoda. E ele já se sentia entediado.

Por isso, foi com muito ânimo, que ao ver o título provisório de uma proposta de pesquisa, o professor Nani passou a ler as sinopses do trabalho de uma certa psicóloga jovem mas já conceituada. "Psicoanálise dos Deuses de Orizon e das Massas que os Adoram: relações de dependência emocional, idolatria, substituição da intuição mística, perspectivas transcendentais." Eram frases que o instigavam. Não tardou a convocar Ange à sua sala para uma entrevista pessoal.

Ao vê-la, ficou ainda mais animado. Ange era de uma beleza exótica e intrigante. Num certo momento podia-se dizer que seus olhos eram grandes, mas de um outro ângulo pareciam pequenos. As vezes os lábios pareciam grossos, mas de repente, de acordo com o sorriso, finos.

Era de pele bem escura e bronzeada, em Orizon só haviam morenos e mulatos, o que a tornava quase irreal. Seu olhar era penetrante, mas não exatamente sedutor, e sim curioso, como se quisesse saber tudo de todos. Não parecia a princípio muito acessível, mas era possível, às mentes mais observadoras, notar que bastaria uma abordagem adequada, no caso inteligente e educada, para que se pudesse fazer uma boa amizade.

Tal abordagem, e demais qualidades, Nani tinha de sobra. Começaram animadamente a conversar. Ange se empolgou ao perceber que esse orientador parecia realmente interessado, muito mais do que ela esperava. Por fim, após várias trocas de idéias, o professor explicou:

- Não estranhe, é que ultimamente tenho visto tantas propostas ruins que uma como a sua é uma grande alegria. Mas não é só isso. Acho essa idéia excelente! Mesmo. Não me lembro de ter visto nada parecido nem no tempo da Guerra.

Ange notou de imediato que ele tocou no assunto com certo saudosismo que alguns chamavam saudade "nonista", em relação à época em que o nono planeta gigante ainda existia, ou o período em que a nuvem de gás resultante de sua explosão ainda era bela de ser vista, até se dissipar completamente, pouco antes do fim da guerra. Alguns até diziam poeticamente que ter destruído o nono planeta foi o que selou o destino do Ians, como se o Universo os tivesse punido.

Não era incomum tal saudosismo, a pesquisa científica e atividade filosófica eram indiscutivelmente melhores. Para quem não tinha que se envolver diretamente no conflito contra os Ians, era muito instigador. Como que lendo seu pensamento, ele completou.

- Não. Não pense que eu não me envolvia. Fiz parte do "Projeto Diplos".

Ange arregalou os olhos. - A tentativa de estabelecer comunicação com os Ians?!

- Exatamente. - Concluiu triunfante. Agora Ange entendia melhor seu interesse. E prosseguiu.

- E o senhor não teria pesquisas inconcluídas?

- Sim. Com certeza tenho. Não só isso. Até hoje acho que houve pouco empenho do governo em tentar estabelecer um contato pacífico com os Ians. Tive muitas propostas recusadas por falta de orçamento, afinal todo o dinheiro era gasto em armas, e não só nas defensivas!

- Humm... Exemplos?

- Por exemplo?! Que tal um dispositivo de adaptação óptica "Globo Ocular Humano para Cilindros Fotossensíveis das Sondas Ians"?

- Isso é possível?!

- Tenho certeza que sim. Seria o primeiro passo no sentido de promover uma convergência no modo como nós e os Ians percebiam o Universo a nossa volta.

Ange tinha dificuldade em esconder o fascínio, mas queria se concentrar em seu projeto. Como que percebendo que estavam mudando de assunto Nani se adiantou, meio que resistindo à tentação de contar mais sobre o Projeto Diplos.

- Por isso acho que uma abordagem como a sua poderia agora, além da vanguarda em Psicologia de Massa, reacender questões que ficaram adormecidas. Agora que não há mais guerra... - Ele riu desajeitado. - Nem Ians... Estudos deste tipo perdem as implicações relativas a segurança planetária. Viram Exo-Arqueologia.

- Tem razão senhor Nani. Nada de protocolos, nem requerimentos de segurança ou...

- Ter que se explicar à Defesa Planetária! - Completou ele aumentando o tom de voz, depois sorrindo novamente. - Então!? Quando pode começar?

- Eu pretendo fazer uma viagem de férias antes, encontrar meu namorado que vive na Última Cidade. Não nos vemos há tempos.

Nani pareceu fazer um ar de desânimo, e completou. - O problema é que só posso lhe dar o suporte, principalmente financeiro, nesse semestre atual, pois no próximo entro de licença e sinceramente... - Então cochichou. - A próxima diretora não me parece gostar muito de Psicologia.

Foi um balde de água fria para Ange. Ela gostara muito da idéia de ter Nani como orientador. Tudo estava dando certo demais. Mas ele agora estava prestes a sair, e depois, quem garante que conseguiria um orientador tão animado com sua pesquisa?

- Bem... Posso reconsiderar senhor Nani...

Ele esperou ela completar, mas dado a demora ele mesmo disse.

- Posso esperar essa semana. Mas temos que começar este mês.

Ange pensou mais e mais.

- Está bem. Amanhã eu lhe dou a resposta.

Há quem pense que tudo é matéria, tudo pode ser detectado e medido, que o corpo e o cérebro são reais, mas não a mente. Poderia-se esperar outra coisa? Como um olho que tudo vê, mas não pode ver a si próprio, a mente é o que tudo percebe, mas nada pode percebê-la. Pensar que algo externo seja real mas não a mente, é trocar o certo pelo duvidoso. Só a mente é certa.