A última série da Marvel, AGATHA ALL ALONG (2024), título de difícil tradução, que acabou ficando no Brasil "Agatha Desde Sempre", me foi muitíssimo aprazível, apesar de sua produção tecnicamente modesta, com efeitos especiais que valem mais por um charme de estilo anos 80, especialmente nos cenários, que por realmente impressionarem. Deixa claro que a Marvel, apesar do aparente desgaste da tal Fase 4, está longe de esgotar seu repertório de boas surpresas.
No entanto, esta série liderada pela ótima Kathryn Hahn só pode ser plenamente apreciada por quem assistiu a primeira dessas séries, a insuperável WANDAVISION (2021), a meu ver, uma das melhores coisas já produzidas na história da TV!
O único problema é que WandaVision também exige, para ser devidamente apreciada, que se tenha visto no mínimo Vingadores: Era de Ultron (2015), Capitão América: Guerra Civil e a dobradinha Avengers Infinity War e Endgame. Idealmente, claro, que se conheça não só os filmes do Marvel Cinematic Universe, mas até mesmo alguns do X-Men Universe, que é totalmente separado!
De qualquer modo, WandaVision é uma obra única, cujos 9 episódios podem ser divididos em evidentes 3 partes.
Nos três primeiros, somos apresentados a nada menos que uma típica sitcom em preto e branco, com as personagens Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate interpretada por Elizabeth Olsen, e Visão, interpretado por Paul Bettany, que antes também interpretara a inteligência artificial JARVIS, nos filmes do Homem de Ferro e nos dois primeiros Vingadores, quando então se torna o androide de vibranium Vision.
Mas estes vingadores não estão aqui promovendo atos heroicos, e sim vivendo vidinhas simples e mundanas num subúrbio chamado Westview, onde ela é uma dona de casa e ele um funcionário de uma empresa de computadores, vivendo situações basicamente hilárias com direito a risadas de fundo.
Sabemos, desde o princípio, que são eles, tendo inclusive seus devidos superpoderes, mas se o espectador já avisado fica perplexo perante o tom completamente inovador da série, que em nada lembra os filmes, um espectador desavisado pode perfeitamente achar se tratar de uma real comédia do tipo A Feiticeira (1964), embora em estilo mais anos 50, com uma personagem que pode lembrar I Love Lucy (1954) embora no geral a referência principal seja The Dick Van Dyke Show (1961). Estes dois últimos não foram exibidos no Brasil em suas épocas.
O primeiro episódio é inteiramente preto e branco com a exceção de uma pequenina luzinha vermelha que aparece durante um comercial, pois até comerciais de época são exibidos como intervalos no programa. Já o segundo, já passando para o estilo anos 60, começa a incorporar elementos coloridos incidentais mais notáveis, e onde pela primeira vez se houve algum breve questionamento sobre, afinal, que raios significa tudo aquilo. Ao final, o episódio se torna totalmente colorido para a surpresa dos próprios personagens, o que permanecerá no terceiro episódio, agora no estilo anos 70, quando eventos cada vez mais absurdos começam a acontecer, começando a despertar preocupações dos personagens.
Mas é só no segundo trio de episódios que ocorre uma completa mudança narrativa, e o foco agora sai do restrito programa de comédia de Westview e somos apresentados ao mundo externo, que está ciente de que uma cidade inteira desapareceu e que qualquer coisa que tente adentrar seu perímetro também desaparece, obrigando o governo, por meio da instituição S.W.O.R.D. a isolar a área com rígida segurança militar para que os cientistas possam pesquisar o estranho fenômeno.
Não demoram para descobrir que a única coisa que sai da zona delimitada é um sinal de TV, transmitindo nada menos que os episódios que assistimos anteriormente, onde os personagens são reconhecidos, e além dos famosos super-heróis, são também identificados os demais participantes do show como sendo antes cidadãos comuns de Westview.
Embora a ação externa revele os antecedentes aos eventos da série e tenha um tom mais investigativo e de intrigas, é na ação interna de Westview, em que continuam os episódios do seriado, que a situação começa a se tornar dramática. Nas linhas gerais a comédia permanece, mas começa a dar lugar a tons mais sérios que embora ainda sejam tratados com alguma leveza, escondem nuances que mais se encaixariam no terror.
Temos que as pessoas comuns tem sido forçadas a viver como personagens, e que quando se conscientizam disso, ficam horrorizadas com o modo como perderam por completo o controle não só de suas vidas, mas de seus corpos e mentes, e que aqueles que são personagens de segundo plano estão presos em ciclos de repetição infinita de ações que lembram aqueles "personagens não jogáveis" dos videogames, condenados a uma movimentação mecânica irrelevante e sem sentido, e suas mentes, ao menos ocasionalmente, se dão conta disso.
Ainda pior, todas as crianças ficaram presas em suas casas, por não interessarem a narrativa, e embora isso seja apenas sugerido, a sensação delas, e de seus pais, incapacitados de libertá-las, parece ser infernal.
Do lado de fora, está claro para as autoridades e cientistas que Wanda simplesmente escravizou toda a cidade para uma atuação compulsória numa espécie de sonho, usando seus já conhecidos poderes telepáticos e telecinéticos, mas demonstrando habilidades novas que vão muito além. Só resta a dúvida de que esteja o fazendo de forma consciente ou não, ou com que propósito.
As respostas, claro, só vem no trio final de episódios, com uma especial reviravolta ao fim do episódio 7, com a inesquecível revelação que daria título ao spinoff "Agatha All Along", com um formato musical pitoresco irresistível que fez a maioria dos fãs repetir o trecho mil vezes ficando hipnotizados pelo jingle viciante.
É aí que confirmamos que apesar das ações de Wanda serem semiconscientes, por vezes lutando até mesmo contra a reação de Visão, contaram com a interferência de uma feiticeira muito mais antiga e misteriosa.
Só nesse terceiro bloco teremos aquilo que é mais típico dos filmes da Marvel: lutas entre bruxas e androides superpoderosos, mas com nuances surpreendentes, ou as conexões com outras séries como Agents of S.H.I.E.L.D (ainda que não seja realmente necessário conhecê-la) ao mesmo tempo que põe em cheque conexões que antes pareciam um passo rumo ao multiverso, ou o fato da devastadora luta entre dois super seres comparáveis ao Super Homem acabar sendo resolvida num diálogo filosófico.
Infelizmente, é justo na tentativa de extender para um multiverso, que posterior à série teríamos o problemático, na melhor das hipóteses hilário, Dr. Estranho no Multiverso da Loucura, que estragando quase tudo o que toca, também desenvolve pessimamente temas cruciais de WandaVision ao mesmo tempo que ignora de forma incompreensível outros.
Também não ajuda que uma das personagens que é introduzida na série, termine sendo retomada posteriormente justo numa das mais desastradas produções da Marvel, a infeliz The Marvels.
Mas ignorando-os, desenvolvimento muito melhor acabamos tendo em Agatha All Along, que apesar de muitíssimo diferente, inclusive num tom mais leve e cômico, ainda é profundamente relacionando a WandaVision e, este sim, desenvolvendo devidamente alguns de seus temas.
Por fim, eu mal arranhei a superfície aqui, não sendo sequer necessário alertas de spoilers. A mim, WandaVision continua sendo a melhor série da Marvel, no sentido geral, merecendo ser vista e revista e conseguindo, sozinha, já justificar os filmes anteriores. E só por se relacionar com ela, a já boa Agatha All Along se torna melhor ainda.
Este recomendadíssimo vídeo faz uma rica compilação de informações sobre o mito de Lilith que surpreendeu até mesmo o autor de As 4 Damas do Apocalipse, em especial por focar em pontos menos centrais ao imaginário mais difundido, mas por isso mesmo, ainda mais interessantes por expandir o tema tanto em âmbitos da antiguidade quanto da contemporaneidade.