Universidade Faculdade Serra Geral, Dezembro de 2021 MBA (Master Bussiness Administration) em Ciências da Religião Marcus Valerio Xavier Reis O Futuro da Religião
A Religião do Futuro |
Dez anos após a publicação de minha última monografia, finalmente retomo a produção de textos de teor acadêmico, no caso, para uma faculdade particular à distância, como não poderia deixar de ser nesse período de pandemia, e cujos certificados, espero, logrem algum aumento de salário graças ao programa de titulação de minha empresa estatal. Apesar dessa diferença radical de ambiente com relação à UnB, procurei manter, por minha própria conta, o mesmo rigor e estilo que mantive nos textos anteriores, ainda que seja nesse caso possível uma flexibilidade maior. Marcus Valerio XR
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O primeiro ponto a se levantar é a condição singular ou plural do título desta monografia: não deveria ser “O Futuro das Religiões, e as Religiões do Futuro?” Essa dúvida perpassa a própria definição da área de estudo, Ciência da Religião, ou Ciência das Religiões? Ou mesmo Ciências da Religião ou Ciências da Religiões? Poderíamos também falar em “futuros”?
Em geral, neutralizo esse problema insistindo no neologismo Religiologia, significando a disciplina de estudo sobre o fenômeno religioso, onde utiliza-se ‘religião’ como uma ideia geral que substancia todas as ‘religiões’ existentes, sendo então necessário estabelecer um universal presente em todas as denominações. Ademais, sempre foco a análise do ponto de vista filosófico, portanto, de uma Filosofia da Religião, mesmo que sempre atenta às searas da psicologia, sociologia e antropologia. Assim, uma religiologia abrange, sim, mais de uma disciplina, ciências, e tanto foca em religiões enquanto tradições distintas, quanto em religião entendida como um fenômeno redutível a um universal.
Minha abordagem se baseia em monografias anteriores, em especial, minha dissertação de mestrado, Por uma EstÉtica Dourada – Projeto de uma Teoria Ética baseada no Sentimento de Empatia de 2010, que por sua vez, se baseia em trabalhos anteriores, em especial Rélica e Etigião – Desfazendo a Confusão, 2005, que visa exatamente distinguir as dimensões da Ética e da Religiosidade, e que, para isso, tem como base Psicogênese da Religião, 2003, entre outras que podem ser acessadas em Monografias.
Portanto, o presente texto pretende se harmonizar com uma tese defendida e aperfeiçoada há pelo menos 20 anos: que a religião, perfeitamente discernível da ética, é um fenômeno constitutivo e indelével para a experiência existencial da grande maioria das pessoas, constituindo a melhor tecnologia social já criada no sentido de organizar a cultura, e que não pode ser substituída por uma experiência puramente secular a não ser emulando seus elementos principais.
Essa emulação em geral é feita por ideologias que aplicam as mesmas características, como fortes princípios morais, redes de suporte social e luta por objetivos comuns coletivos que transcendem a mera existência pessoal, cujas consequência se estendem para muito além da vida de cada adepto, com vista a um futuro melhor para sociedade. A principal distinção entre a visão religiosa e as seculares, é que para a primeira um além-mundo é inegociável, tanto no sentido de uma origem, quanto de um destino final, ao passo que as ideologias seculares visam realizar suas escatologias no próprio mundo, ainda que, sempre, vindouro e distante.
Mas para uma melhor compreensão dessa proposta, é mister definir melhor os conceitos.
Todas as seguintes conceituações possuem algum grau de arbítrio, estando inseridas numa cosmovisão particular. Porém, se comunicam com diversas tradições filosóficas, e ainda mais importante, penso serem acessíveis ao senso comum. De certo, não poderia esperar consenso em torno delas, por também frequentemente rejeitar definições parcialmente consagradas em algumas vertentes. O que pretendo, aqui, é que elas sejam internamente consistentes e permitam uma linha de raciocínio clara.
Remetem a meu texto mais antigo sobre o tema, Psicogênese da Religião, de 2003, desenvolvido para a disciplina de Psicologia da Religião do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, sobre orientação do professor doutor Jorge Ponciano e do Mestrando Marco Aurélio Bilibio. Por isso, retomarei aqui definições que podem ser originalmente encontradas em http://xr.pro.br/monografias/Psicogen.html porém, atualizadas devido a evolução de minha reflexão sobre o tema.
Significando, etimologicamente, a religação do ser humano ao que se entende como ‘transcendente’, considero qualquer sistema de pensamento que pretenda conectar a experiência mundana a uma suposta realidade não plenamente, ou mesmo não totalmente, acessível aos sentidos, com o propósito específico de estabelecer um comprometimento com vista a fim previamente estabelecido, que será mais especificado adiante.
Essa definição pretende ser suficientemente elástica para incluir uma vasta gama de tradições e propostas, mas também suficientemente precisa para excluir fenômenos que não tenham essa noção de transcendência num sentido de algo fora da totalidade do mundo sensível.
É impor
tante notar, porém, que essa ‘transcendência’ pode assumir feições mais materiais, quando lidamos com propostas mais recentes que a deslocam de um plano espiritual para um plano, por exemplo, materialmente extraterreno, como as religiões ufológicas. Nesses casos, o além-mundo permanecesse inacessível à imensa maioria das pessoas, excetuando uns pouco agraciados por emissários que tem a prerrogativa de possibilitar o acesso que, por outro lado, não pode ser obtido apenas pelos meios mundanos.
É o pressuposto de que exista algo além da matéria, opondo-se dialeticamente ao ‘materialismo’. Este último reduz a totalidade do universo a fenômenos materiais acessíveis ao sentidos direta ou indiretamente, quer seja por meio de instrumentos mais sofisticados capazes de ampliar nossos recursos perceptivos, ou de inferências dedutivas ou indutivas por meios especulativos e matemáticos. O ‘espiritualismo’ pressupõe a existência de uma realidade que vai além dessa matéria, e cuja conexão com ela se dá de forma restrita e não redutível a processos metodológicos materiais, ou ao menos, não facilmente acessíveis a não ser que se siga algum procedimento devidamente estipulado pela visão espiritualista em si.
A importância dessa distinção é estabelecer que religião e espiritualidade não se identificam. É possível uma religião não ser espiritualista, como no já citado caso de alguma religião contemporânea que desloque o foco de um transcendente para um materialmente inacessível. Da mesma forma, é possível a espiritualidade não ser religiosa por não possuir uma proposta de religião, ou caso o possua, não derivar um comprometimento a uma doutrina específica, e assim, não há o supracitado comprometimento com vista a fim prévio e em geral bastante restrito. No entanto, é preciso estabelecer que a imensa maioria das religiões é espiritualista, em especial as mais tradicionais.
Embora as tradições estejam estruturalmente embrenhadas dos conceitos de ‘alma’ e ‘espírito’, tais termos se misturam e assumem significados distintos a depender do sistema religioso, podendo ambos serem identificados, ou assumirem papéis distintos. Em geral, um assume o papel de anima, ou força que “move” algo, e outro assume ou envolve o papel da ‘consciência individual’, mesmo que ateste que essa individualidade seja ilusória e possa vir a se dissolver.
No entanto, além das já naturais variações idiomáticas, os termos ‘alma’ e ‘espírito’ podem trocar de lugar no esquema de conceituação! Por isso, optei pelo uso de um termo simplificador e mais compatível com visões não religiosas a fim de estabelecer uma ponte onde seja possível transitar de um âmbito espiritualista para um materialista e vice-versa. Não importa o sistema, religioso ou não, espiritualista ou não, em todos os casos, eles aceitam ou ao menos são perfeitamente compatíveis com o conceito de mente.
Quer a ‘mente’ seja vista como um mero subproduto, função ou epifenômeno cerebral, ou seja inserida dentro do conceito de alma ou de espírito, o fato é que ela é admitida como existente pela totalidade, ou quase, dos sistemas de pensamento. Assim, independente de termos ou não espírito ou alma, ou destes existirem ou não, todos temos, ou somos, uma mente, e é por meio dela que tudo fazemos, percebemos, pensamos e sentimos.
A maior importância desse termo se dá, porém, ao retomarmos o conceito de religião especificando suas características primordiais.
Retomando o conceito fundamental, a devida caracterização de um sistema de pensamento efetivamente religioso demanda os seguinte três elementos:
É o pressuposto da existência de um além-mundo, algo fora do alcance direto dos sentidos e do corpo, um lugar, ou tempo, ao qual não se pode chegar por meios comuns. Via de regra, trata-se de um pressuposto espiritualista, que estabelece uma realidade além daquela habitada pela experiência comum. Como dito, é possível, embora raro, uma religião não necessariamente possuir esse componente espiritualista, mas ainda assim ela flerta com um local inacessível por meios normais, quer seja um outro planeta, uma dimensão alternativa, ou mesmo um local terrestre somente alcançável sob condições especialíssimas. Na realidade, nisto está o próprio significado da palavra ‘religião’, que evoluiu da raiz latina religare, significando reconexão com o transcendente. Invariavelmente, também, é nesse transcendente que residem as explicações para os mistérios da existência, do mundo, das origens e do futuro.
Necessariamente, uma religião possui um método, um sistema de regras, uma demanda por um modo de ser que frequentemente se intersecciona com os princípios éticos e morais básicos, sendo aqui, ética, os preceitos de ordem mais universal sem os quais é impossível erigir uma sociedade, e moral, preceitos mais locais que variam no tempo e espaço. No entanto, frequentemente essas determinações também podem se desconectar completamente das dimensões mundanas da moral e da ética, e até mesmo se opor a elas. E embora haja uma ampla variedade de elementos doutrinários, um deles ocupa um local especial por ser absolutamente incontornável.
A perspectiva do fim, da morte, é talvez a mais determinante de todas as noções humanas, gerando uma infindável legião de resultados psíquicos, sociais e culturais. Saber, ou ao menos pensar, que a existência terá um fim, resulta no maior de todos os problemas, e assim, toda Religião deve, incontornavelmente, oferecer uma solução para essa terminalidade. É necessário dizer, porém, que essa solução não é necessariamente aplicável a todas as pessoas. Ela pode ser reservada apenas para os seguidores da doutrina, de acordo com requisitos próprios.
Há muitos elementos comuns em muitas ou algumas religiões, e que frequentemente são tidos, de forma equivocada, como indeléveis. Alguns deles não estando sequer presentes na doutrina da própria religião que se segue quando devidamente observada.
Por exemplo, é comum a crença em um mundo espiritual para onde as almas vão depois da morte, e que algumas pessoas estejam, agora, no céu, ou no inferno. Curiosamente, isso diverge mesmo do próprio Cristianismo, que quando tem sua teologia melhor examinada, tomando por base as referências bíblicas, de modo algum suporta tal ideia, e sim que os mortos estão em suspensão, esperando, inconscientes, o dia do Juízo Final quando serão ressuscitados.
Da mesma forma, a noção de uma escatologia do mundo, quando tudo se resolverá num processo restaurador, é contingente à religiosidade, estando sim presente nas religiões abraâmicas, mas não na maioria das demais grandes tradições.
Embora alguma forma de superação da mortalidade seja essencial para qualquer sistema religioso, isso pode ser entendido como ressureição, permanência num plano espiritual ou mental, formas de reencarnação ou integração com um plano absoluto, como desenvolvido detalhadamente em minha monografias relativa à temática de Meta-Continuidade Mental. Em religiões mais recentes, podem ser entendidas como a mera conquista direta da imortalidade, alguma forma de continuidade por clonagem ou mesmo integração mental em sistemas artificiais, a exemplo de religiões ufológicas como o Raelianismo ou Cientologia.
A origens e fim do universo também são opcionais, havendo forma religiosas que pregam uma realidade perpétua, ou ao menos não se pronunciam sobre qualquer mudança, como algumas crenças xamânicas e panteístas, ou o próprio Budismo, e por falar nele, entramos naquela que pode soar como a mais controversa de todas as assertivas aqui estabelecidas.
Pois não apenas existem religiões que prescindem dessa noção, como Jainismo, Taoísmo ou o próprio Budismo, bem como formas variadas de panteísmo e politeísmo que mesmo as vezes citando divindades, não há uma que ocupe um papel central e absoluto, como é o caso das religiões monoteístas. Ou que mesmo proponham um tipo “deus impessoal”, às vezes referido como uma mera “força”, uma “essência vital”, o “universo” ou outras forma de se referir a algo transcendente, ou mesmo imanente, mas total, absoluto, sinérgico, a respeito do qual não há possibilidade de uma relação pessoal direta.
Embora esse fato pareça bem claro especialmente em religiões orientais, ainda há muitos que o discutem tentando reinterpretá-las de modo a encaixar uma visão teísta similar, em geral utilizando o hinduísmo como exemplo intermediário, ou apelando para o conceito de monolatria em alguns sistemas politeístas onde existe uma divindade que ocupa um local especial.
Ainda que isso fosse defensável, não é possível negar que, ao exemplo máximo do Budismo, o próprio Buda não pode ser equiparado a algo similar ao monoteísmo tradicional, nem mesmo em função de seu paralelismo com a história de Cristo ou Krishna, pelo fato de ser claro que trata-se de um homem que se iluminou, mas jamais ocupou um papel de regente universal.
Portanto, a insistência em tentar ver algo similar ao nosso monoteísmo, especialmente de matriz abraâmica, em todos os sistemas religiosos, além de se tratar de notório etnocentrismo que tenta subordinar todos os demais sistemas à uma única visão infalivelmente vista como “a correta”, ainda exclui ou torna incompreensíveis outras formas de vivência assumidamente religiosas, como as religiões politeístas de matriz africana.
Por fim, embora seja possível citar vários outros exemplo de elementos não essenciais, embora comuns, nos diversos sistemas religiosos, a contingência de “Deus”, com ‘D’ maiúsculo para representar a distinção para com os deuses dos sistemas politeístas, é sem dúvida o mais crucial, pois sem sua devida assimilação, todo o seguinte a ser exposto nessa dissertação pode se tornar insustentável. Assim, mesmo que alguém pretenda insistir na ideia de que seja possível estabelecer a essencialidade de Deus na religiosidade, me resta pedir que ao menos suspensa essa pretensão para a devia apreciação da exposição a seguir.
Assim, fica fácil estabelecer um critério eliminatório para casos aparentemente limítrofes. Qualquer sistema de pensamento e crença que não tenha uma solução ao menos potencial para a finitude existencial, que não deriva um sistema de regras que vise conectar o seguidor a um plano transcendente, ou ao menos, além de seu alcance normal, necessariamente não será religioso, mesmo que possa conter alguns dos elementos supracitados nos itens não essenciais. E, deve-se pontuar, é necessário que tenha esses três elementos! A ausência de apenas um deles desqualifica o sistema da categoria de religião.
Um sistema pode postular a existência de um planto espiritual, mas não estabelecer critério algum de como podemos acessá-lo num pós vida, ou pode mesmo estabelecer, mas sem uma doutrina de comprometimento que amarre o fiel ao sistema de pensamento. Pode mesmo estabelecer a existência de um Deus, mas que não garante qualquer possibilidade de superação da finitude, ou pode prometer a imortalidade por meio do comprometimento com uma doutrina mundana, um compromisso sectário com sociedades secretas, mas sem que exista um plano transcendente a ser acessado por meio dessa doutrina. Em todos os casos, continuará não sendo uma religião.
E por fim, isso torna totalmente inadmissível que ideologias políticas, perspectivas científicas ou filosofias meramente existenciais sejam vistas como religiosas exceto por analogia, emulação ou paródia.
E é justo nesse espírito de emulação que adentraremos a tese central dessa dissertação.
Essa paródia transgressora da famosa frase atribuída a Karl Marx pode ser considerada o referencial dialético em torno do qual a tese central é aqui defendida. Marx, ao declarar a religião como o “ópio do povo”, se referia claramente a seu papel alienador a serviço da classe dominante no sentido de desviar atenção das relações de poder e “anestesiar” a consciência da classe dominada. Dessa forma, independente do modo como possa ter surgido ou evoluído, a religião ficava reduzida a um mero instrumento ideológico sub estrutural, uma das inúmeras formas de criação de valores simbólicos e estéticos a serviço da manutenção da exploração de classe, e que, naturalmente, desapareceria quando a divisão de classes fosse eliminada num futuro comunismo utópico.1
Sigmund Freud, por sua vez, entendia a religião como resultando de um grande trauma 2, um fenômeno social que, apesar de constitutivo da experiência humana, poderia ser superado pelo desvelamento de seu mecanismo inconsciente, e que uma civilização pautada na superação das neuroses e psicopatologias tenderia a contingenciar.
Augusto Comte, por sua vez, pregava uma nova forma de “religiosidade”, mas justamente abandonando os fundamentos essenciais desta em favor de uma filosofia positivista, que pregava o conhecimento científico como a nova doutrina universal que solucionaria todos os problemas. 3
Thomas Hobbes, apesar de cristão crente numa religião revelada, acreditava que as religiões naturais eram produto de um processo evolutivo cultural que tentava dar sentido à realidade por meio de relações causais simbolicamente associadas, que com o tempo se transformavam em doutrinas mais complexas, mas sempre redutíveis a camadas de ilusão e ignorância. No entanto, diferente de David Hume, cuja visão psicogênica da religião era similar, isentava as religiões monoteístas dessa mesma matriz explicativa, ao passo que Hume naturalmente incluía a todas na mesma visão, de modo que perspectivas filosóficas mais sofisticadas tendiam, se não a superar por completo a religiosidade, ao menos reduzi-la a fenômeno puramente filosófico, com gradativa perda de importância social. 4
1. “O sofrimento religioso é, por sua vez e ao mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e o protesto contra o real sofrimento. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, e a alma das condições desalmadas. Ela é o ópio do povo.” Tradução livre de trecho de A Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Right.
2. Como se pode ver em Totem e Tabu, para Freud, a religião, que resulta de modos primevos como animismo e totemismo, é o resultado de um tabu como mecanismo psíquico de defesa de uma neurose traumática coletiva. www.cefas.com.br/download/1121
3. Comte propunha a evolução da humanidade em três estágios: Estado Teológico, e logo, religioso; Estado Metafísico, no caso, filosófico; e Estado Positivo, de teor científico. Assim, sua pretensa Religião da Humanidade, ou Religião Universal, era desprovida dos elementos que constituem a noção aqui defendida, e mesmo as noções mais tradicionais, de religião. “Curso de Filosofia Positiva”
Coleção "Os Pensadores" - Augusto Comte
4. Em O Leviatã, capítulo 9 - Da Religião, e História da Religião Natural, respectivamente.
Por fim, o Iluminismo de maneira geral acreditava que a religiosidade seria superada, de uma forma ou de outra, pelo progresso material e científico. O Liberalismo, cuja primeira grande conquista foi justamente a Reforma Protestante, criando novas opções praticamente individuais de crença, também tendia a esvaziar a religiosidade rumo a uma fragmentação que de fato ocorreu, mas também a um posterior desaparecimento.
O mesmo pode ser dito não só do Marxismo, mas também dos populares movimentos nacionalistas do Século XX, que embora emulassem a religiosidade em seus símbolos e narrativas míticas, tendiam a esvaziar as tradições mais consolidadas em favor de mitos mais antigos e diluídos de significado, e por isso mesmo mais similares a politeísmos folclóricos do que a sistemas religiosos mais rígidos e coesos.
Mas se tudo isso parecia razoavelmente plausível até meados do século passado, viria a se tornar cada vez menos crível posteriormente.
O pós-guerra foi acompanhado da Guerra Fria, e muitos puderam crer que um certo renascimento da religiosidade cristã no ocidente não passava de uma diferenciação simbólica relativa ao controverso ateísmo do bloco socialista, como aliás, os marxistas concordavam. Foi nessa época, por exemplo, que o Federal Reserve Bank norte americano adicionou a frase “In God We Trust” nas cédulas e moedas do dólar. Outros podiam, e ainda podem, crer que a religiosidade das massas se dá na medida de sua carência material, apelando para os dados dos países de índices de desenvolvimento humano mais elevados e seu crescente secularismo. E assim, um simples maior desenvolvimento geral leva a crer também numa redução geral da importância da religiosidade.
Por fim, houve aqueles que acreditaram que o crescimento da religiosidade ocidental próximo a virada do milênio, além de fatores relativos a problemas materiais, também obedecia a uma sensibilidade à mera força simbólica em torno do ano 2000, evocando crenças milenaristas e do segundo advento.
De fato, quase todas essas noções ainda são comuns e bastante críveis, de modo que a relação entre o nível de religiosidade e as camadas menos abastadas da população ainda é bastante notória. Embora 21 anos já tenham se passado, é pouco para afastar a força simbólica escatológica de uma virada de milênio, com direito a “apocalipses” de outras tradições, como a crença sobre o mito maia do fim do mundo em 2012, e o próprio crescimento cada vez mais impressivo do islamismo, inclusive sua “invasão” à Europa, ainda pode ser associado a uma resposta de populações menos abastadas à suas dificuldades materiais.
No entanto, ao longo de toda essa crível percepção, também é notório o fato de que mesmo os países mais desenvolvidos continuam abraçando cada vez mais paródias sucedâneas da religiosidade. No caso, pautas ambientalistas, feministas, racialistas, e outras ultimamente rotuladas, de forma equivocadas, como “identitárias”, todas assumindo ares de urgência escatológica ao ponto de parodiarem visões apocalípticas, quer seja o extermínio humano por meio da crise climática, quer seja uma revolução de gênero ou sexualidade rumo a um trans humanismo que superará até mesmo a distinção de sexos e a própria reprodução.
Ao mesmo tempo, temos notado uma explosão ainda mais recente de métodos de “treinamento” motivacional, os famosos coachs, com uma série de abordagens que utilizam técnicas neurolinguísticas e psicodinâmicas sociais muitíssimo parecidas com eventos religiosos gregários, regados a rompantes emocionais, técnicas de auto convencimento, repetições incessantes de frases de efeito pouco diferentes de mantras e orações, e que podem ser voltadas tanto para a prosperidade econômica quanto para questões pessoais e de relacionamentos afetivos.
Associada as já clássicas pautas socialistas, comunistas, nacionalistas ou liberais, o mundo está repleto de movimentos que emulam as religiões. Ideologias que muitas vezes descrevem um passado idílico, pregando alguma forma de retorno modificado a ele, elegem celebridades como se fossem profetas, com livros base incontornáveis, fomentam comprometimento rígido à causa e, por fim, mas ainda mais importante, seguem a mesma dinâmica sectária, se dividindo em ramificações que frequentemente conflitam entre si além de estarem em conflito com uma dita “ordem dominante” do mundo que precisa ser vencida, como se este “jazesse no maligno.”
Na realidade, é até bastante notório que as religiões tradicionais permanecessem muito mais coesas que a grande maioria desses movimentos, que passam por transformações radicais e rápidas, embora tenham, no máximo, um ou dois séculos de existência, (a maioria não tem sequer meio) em oposição aos milênios das religiões tradicionais.
O próprio protestantismo, que como dito, foi o primeiro movimento liberal, inclui umas poucas tradições com mais de 200 anos e uma infinidade de subdivisões posteriores, muitas delas recentíssimas, e apesar da maioria estar inegavelmente dentro da categoria de religião, terminam tendo uma dinâmica quase secular em seu modo de operação, cada vez mais preocupadas com questões mundanas a exemplo da Teologia da Prosperidade, ou mesmo da Teologia da Libertação dentro da tradição católica.
A questão aqui é que parece evidente que mesmo que grande parte da sociedade abandone a religiosidade de fato, termina abraçando movimentos análogos a ela, replicando sua dinâmica e por vezes se comprometendo num nível existencialmente comparável, incluindo inegáveis formas de fanatismo e fundamentalismo.
Em suma, a maior parte da humanidade precisa de algo que lhes dê um sentido existencial, que necessariamente transcenda a si própria, mesmo que não de forma literalmente sobrenatural.
A maioria das pessoas se realiza na formação de famílias, e a família é, necessariamente, um empreendimento que transcenderá a vida de quem a constitui. Outros se realizam em atividades profissionais que invariavelmente deixam legados para o futuro. As supracitadas causas que parodiam as religiões são demais formas de se comprometer com algo que vai além da própria existência em si, e por fim, as religiões mantém seu papel tradicional para a maioria das pessoas.
Em suma, o sentido existencial plenamente humano só pode se realizar transcendendo a própria existência! É constatação praticamente axiomática, uma vez que algo só pode se mover em direção a outro algo além dela, e assim, a existência só assume um “sentido”, no ‘sentido’ explícito de “movimento para”, em relação a algo além dela própria, movimentando o ser humano num objetivo que está além de sua própria vida, e pelo qual vale a pena se dedicar, ou mesmo se sacrificar.
O próprio termo ‘motivação’ deriva etimologicamente no latim motivus, significando “movimento”. A própria palavra ‘sentido’ aqui não pode ser simplesmente vista como derivada do verbo ‘sentir’, embora possa se falar numa “sensação existencial”, mas, sobretudo, na derivação de ‘orientação’, tal qual a relação entre ‘sentido’ e ‘direção’ na física. Em suma, um mover-se a algo.
Assim, apesar da religião de fato cumprir um papel menor em comparação a momentos históricos passados, esse papel também passou a ser desempenhado por sucedâneos correlatos. Por novas fontes de sentido existencial que parodiam sua inspiração.
Agora, cabe retornar ao título provocativo deste tomo, que incialmente se explica justo nos casos excepcionais daqueles que ou não aderem nem a religiões nem a seus simulacros, ou se o fazem, é de modo superficial, estético ou hipócrita. E ao mesmo tempo também não se enquadram naquele excepcional e digníssimo caso dos que transcendem qualquer comportamento do tipo e encontram seu sentido existencial praticamente em si próprios, por meio de virtudes auto cultivadas que levam a graus mais elevados de arte, filosofia, ciência ou mesmo espiritualidade e mística não exatamente religiosas.
Falo dos hedonistas, que vivem para nada além da satisfação de seus próprios impulsos, ou que, ainda pior, incapazes de se guiar pelo princípio do prazer, apenas vivem em função da fuga do sofrimento.
Quando isso ocorre nas camadas menos privilegiadas da sociedade, desprovidos de um senso autêntico de religiosidade e entregues apenas aos prazeres e vícios mais primevos, costuma se recorrer às mais acessíveis drogas, em especial o álcool. Sendo que neste caso ao menos há uma justificativa para a miséria psicológica que se harmoniza com a material.
Mas e quanto aqueles que tem condições materiais muito melhores, mas vivem na mesma disposição hedonista ou reativa à dor? Estes também, quase infalivelmente, recorrem às drogas, em geral mais caras e mais sofisticadas, e a referência a opioides é apenas uma forma de simbolizar isso.
Para Marx, “o ópio do povo” era a “química” utilizada para tolerar a miséria material e fugir do sofrimento por meios das ilusões religiosas, mas o membro da elite que desassociado da religião e de seus mais sofisticados emuladores, recorre a formas literalmente ‘químicas’ de escape da realidade, ou analogamente na forma de simulacros ainda mais farsescos de religiosidade que visam apenas justificar esse impulso, tem nesse escape o seu próprio simulacro de sentido existencial. Não um movimento para algo maior que si, ou para aumentar a si, mas apenas um movimento em círculos em torno dos próprios instintos, do próprio Eros, ou pior, um movimento de algo do qual se quer fugir.
E sem isso, sem esse flerte erótico típico do hedonismo, só resta o tanatos ao qual reage, não raro levando muitos ao suicídio mesmo tendo condições privilegiadas.
Por fim, boa parte dessas paródias da religiosidade mantem essa mesmíssima característica hedonista ou desesperada de escape de uma miséria existencial profunda, e em geral substituem os temas mais comuns e essenciais da religião para modalidades radicalmente distintas, por vezes mesmo invertidas, daquelas que fornecem sentido existencial maior.
Enquanto para as massas, as religiões podem sim servir como resposta ao sofrimento concreto, para as elites, além das religiões, o hedonismo cumpre esse papel.
Nesse sentido, O Ópio é a Religião da Elite.
Independente da questão dos sucedâneos levantados, precisamos frisar a resiliência das religiões tradicionais na atualidade, tanto daquelas de teor literário, isto é, baseadas em livros canônicos, quanto das mais simples e antigas, que longe de estarem em desaparecimento, resistem não apenas de forma tradicional orgânica, como até mesmo ganham novos adeptos.
Não me parece necessário sequer citar fontes, uma vez que qualquer lista formulada por instituições de pesquisa facilmente encontráveis na internet fornecerá estimativas não muito distintas das seguintes.
Religião | População | % |
Deixando claro que essas aproximações são arredondamentos livres e especulativos, mas de modo algum dissonantes de estimativas reais, que por sinal, divergem dentro de uma média que está razoavelmente mantida aqui. Além disso, procuro fazer uma previsão relativa a um contingente populacional total já de 8 bilhões de habitantes, número que será certamente atingido ao longo do ano de 2022, salvo algum imprevisto muito mais impactante que a pandemia do coronavírus. |
Cristianismo | 2.4 Bilhões | 30% | |
Islamismo | 2.0 Bilhões | 25% | |
Hinduísmo | 1.2 Bilhões | 15% | |
Budismo | 0.5 Bilhão | 06% | |
Religiões Étnicas | 0.5 Bilhão | 05% | |
Outras Religiões | 0.4 Bilhão | 04% | |
Sem Religião | 1.0 Bilhão | 15% |
O importante aqui é deixar claro que 85% da humanidade está associada a alguma religiosidade, porém, é preciso frisar que grande parte desse contingente não é realmente um praticante ativo, visto que muitas pessoas apenas se declaram como pertencentes a alguma religião, ou são contabilizadas por censo, sem ter de fato qualquer envolvimento prático com ela. Além da já notória realidade dos cristãos não praticantes, o que em algum grau ocorre em todas as religiões, há também o fato de que, por exemplo, judeus costumam ser automaticamente contabilizados dentro da religião judaica mesmo que a maioria deles não pratique a religião de forma alguma, sendo muitos abertamente seculares e ateus. 5
Ainda assim, na mais comedida das hipóteses, podemos estimar que ao menos metade da humanidade possui um comprometimento significativo com sua religião, frequentando sua comunidade religiosa, praticando ritos, mesmo ocasionalmente, e crendo em elementos chave da doutrina.
Na realidade, não há sequer motivo para crer que isso tenha sido muito diferente, de um modo geral, no passado. Se por um lado é correto dizer que as sociedades tinham uma religiosidade mais forte e dominante, por outro, ainda mais pessoas praticavam suas religiões de forma automática, praticamente por inércia.
5. Jews in U.S. are far less religious than Christians and Americans overall.
Key findings about religion and politics in Israel.
(Pew Research Center)
Já o religioso de hoje, exceto quando em países muito mais comprometidos com a fé, está diante de um mundo largamente secularizado ou de religiosidade diversa, e precisa ao menos ter consciência de que se diferencia dos demais. Algo que podia jamais ocorrer a uma pessoa numa comunidade religiosa mais tradicional do passado.
Para ilustrar isso de forma análoga, alguém que se declare budista no Brasil provavelmente terá comprometimento maior com sua doutrina que muitos que apenas são contabilizados como tal na Tailândia, onde se estima em 90% a população nesta denominação. Da mesma forma, alguém que se declare cristão no Afeganistão tem maior probabilidade de levar sua fé mais a sério do que alguém que o faça na Itália, especialmente considerando que além de minoritário (estima-se em 0,1% a proporção de cristãos afegãos), ainda existem tensões interreligiosas num país de massiva maioria islâmica especialmente influenciado por modalidades tribais significativamente mais radicais.
Tendo citado o islamismo, cabe lembrar que este tem crescimento expressivo previsto para as próximas décadas, em especial devido a maior taxa reprodutiva de suas populações, ao passo que do cristianismo, espera se estabilidade.
O que deve ser estimado aqui, de forma mais ampla, é quais fatores podem influenciar o contingente religioso do planeta nos próximos anos, visto que na atualidade é consenso que a religiosidade cresce, e a não religiosidade diminui. 6 Portanto, vamos examinar brevemente os fatores de crescimento mais óbvios, e os que poderiam estimular um decrescimento.
O primeiro fator de crescimento é obviamente reprodutivo. A população religiosa, em especial a islâmica, tem taxas de natalidade mais elevadas. E não apenas por sofrer de menor desenvolvimento material, como é comum ocorrer, mas também por uma questão cultural que faz mesmo famílias e sociedades muçulmanas mais abastadas terem taxas reprodutivas superiores às de outras tradições. Fato é que se espera que a população islâmica europeia, hoje por volta de 5%, dobre ou mesmo triplique nas próximas três décadas. 7
E enquanto a população nativa europeia de background cristão declina, o cristianismo continua a crescer em outras parte do mundo, em especial nas américas, não apenas pelo número crescente de conversões das denominações protestantes, pentecostais e neopentecostais, bem como pelo crescimento demográfico também maior da população cristã, ainda que menor que a islâmica. Ao mesmo tempo, populações não religiosas tendem a se reproduzir menos e declinar. 8
6. The Future of World Religions: Population Growth Projections, 2010-2050 - Why Muslims Are Rising Fastest and the Unaffiliated Are Shrinking as a Share of the World’s Population.
7. Europe’s Growing Muslim Population.
. Evangélicos já representam cerca de um terço da população do Brasil.
Why people with no religion are projected to decline as a share of the world’s population.
Assim, do ponto de vista reprodutivo, a perspectiva do crescimento da religiosidade é incontestável, e associado a isso, temos a tendência de que a grande maioria das pessoas que nascem em famílias religiosas tendem a permanecer fiéis, ao passo que o mesmo costuma se dar em famílias não religiosas, o que nos leva ao segundo fator.
A dinâmica de conversão é outra responsável por alterar contingentes religiosos, pois além do fato dessa não religiosidade “hereditária” já ser numericamente menor, a probabilidade de um nascido em família não religiosa se tornar religioso também é maior que o contrário. Ou seja, a quantidade de conversões da não religiosidade para a religiosidade costuma ser maior do que o inverso. 9 O que pode ser visto até pelo ponto de vista probabilístico no que se refere a relacionamentos afetivos, em especial casamentos. Como a população religiosa é maior, e como é muito frequente a adesão de uma parte do casal à condição de fé, ou não fé, do outro, a probabilidade de se adentrar uma religião, ou mudar de uma para outra, é maior que sair delas.
Assim, as tendências demográficas atuais, bem como as dinâmicas de conversão e abandono da religiosidade não dão margem para dúvida: a religiosidade está aumentando e não há qualquer sinal de que essa tendência se reverta a curto ou médio prazo. O crescimento populacional na África e na Ásia também se dá sob dominante influência religiosa, de modo que o secularismo não apenas se retrai entre as pessoas, mas promete se retrair mesmo entre os governos, tornando a ideia de Estado Laico cada vez menos popular.
Ademais, sabemos que outro fator de conversão é a situação material, na qual a pobreza costuma empurrar mais pessoas à religiosidade. Assim, qualquer degeneração da situação econômica de uma localidade costuma ser seguida de um aumento de conversões.
Por outro lado, notemos, como foi especulado no tomo anterior, que mesmo condições de fartura e riqueza não garantem satisfação a nível existencial, de modo que muitas pessoas se sentem inclinadas a buscar uma religião por motivos outros que a mera carência material, mas também por carências afetivas, ou mesmo espirituais, aqui no sentido de uma percepção de mundo cujo sentido existencial é experimentado como indissociável de uma religiosidade.
Assim, enquanto a pobreza de certo é fator relevante para o aumento da religiosidade, a riqueza, por outro lado, pode até não o ser, mas também não é um fator relevante para sua diminuição, em especial considerando ser numericamente inferior a pobreza.
Entretanto, é de se considerar que países mais desenvolvidos ainda assim apresentam índices de religiosidade certamente menores que os países menos desenvolvidos, embora a questão econômica material não seja o único fator, a exemplo dos países que integravam a União Soviética, cuja supressão da religiosidade era de ordem ideológica e chegou a ser uma política de estado. Após o fim da URSS, porém, um renascimento religioso ocorreu, com reconversões à Igreja Católica Ortodoxa, maior penetração do islã, e de outras denominações ocorrendo em escala significativa, mas ainda não suficiente para que os países ex-soviéticos não estejam entre os menos religiosos do mundo, para o que, de certo, níveis maiores de desenvolvimento material também contribuem. 10
9. Demographics of Religious Change
10. Dados do World Christian Database nas tabelas 2 e 3 nas páginas 488 a 491 em Religious Reestablishment in Post-Communist Polities.
Mas o que precisamos estabelecer aqui é que há dois fatores preponderantes a reduzir a incidência de religiosidade, que são o desenvolvimento material, e fatores ideológicos antirreligiosos. Listas de países menos religiosos invariavelmente possuem entre seus maiores expoentes representantes destas duas situações. 11 (Por sinal, retomando a provocação do capítulo anterior de que o entorpecimento é uma “religião” elitista, há também significativa convergência entre os países de menor religiosidade e maiores índices de alcoolismo. 12)
Assim, a únicas tendências que seriam capazes de deter o crescimento da religiosidade seriam o desenvolvimento material e posturas críticas contra a religiosidade em geral. Que são o que devemos examinar a seguir.
12. List of countries by alcohol consumption per capita
O biólogo britânico Richard Dawkins, popularizador da teoria do Egoísmo Genético e criador da Memética, também se notabilizou como uma liderança na militância secularista, ateísta e antirreligiosa em geral. Sua obra Deus – Um Delírio (2006) vendeu mais de três milhões de cópias, atraindo grande atenção do público e grande reação.
Não o único nem o primeiro. Em 1995 Carl Sagan (1934-1996) já havia chamado atenção com o excelente O Mundo Assombrado Pelos Demônios, que apesar de não ser realmente um livro antirreligioso, lançou as bases da crítica cética às mais variadas formas de crenças de frágil fundamentação, fazendo uma defesa do método científico e popularizando a detecção de falácias. Embora muito mais diplomático e menos hostil que Dawkins, Carl Sagan foi uma inspiração fundacional para muito o que viria a se chamar de Novo Ateísmo, cujos principais expoentes chegaram a ser apelidados de “Os Quatro Cavaleiros”, que além do próprio Dawkins, conta com o neurocientista Sam Harris e o filósofo Daniel Dennett, e contava com o jornalista Christopher Hitchens (1949-2011).
A virada do milênio parecia promissora para o que se tornou uma daqueles paródias de religiosidade (não tomada aqui em sentido depreciativo), um movimento de militância materialista, secularista e ateia que tem na religiosidade justamente a “Raiz de Todo o Mal?”, título do documentário de 2006 apresentado pelo próprio Dawkins.
No Brasil tivemos a Sociedade Terra Redonda, que muito antes de popularização do terraplanismo, era A principal representante das ideias de Carl Sagan, seguido pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), ainda hoje atuante, tendo como grande representante Daniel Sottomaior, que chegou a participar de um programa de TV na Rede Globo, debatendo, entre outros, contra Silas Malafaia. Essa associação tem se envolvido em algumas campanhas publicitárias e contendas jurídicas e legislativas em torno da temática religiosa. 13
Com quase 22 anos de Século XXI, essa promessa parece ter ficado num futuro do pretérito. O crescimento da religiosidade no Brasil e no mundo permanece, ao passo que o contingente de não religiosos, dos quais a maioria não se envolve em qualquer militância antirreligiosa, diminui tanto por deficiência reprodutiva quanto por conversões.
Atualmente, as principais frentes de hostilidade contra religiões, além de outras religiões, costumam vir não de grupos essencialmente ateus e agnósticos, mas sobretudo de militâncias feministas e abortistas, a exemplo dos ataques violentos, com depredações, incêndios e agressões físicas, contra igrejas católicas na Argentina, Chile, Colômbia e México 14 e outros países, coisa que os movimentos de ateus e agnósticos, jamais ensejaram fazer.
13. A exemplo da campanha veiculada em Salvador e Porto Alegre, inspirada em campanhas europeias, da Lei do Pai Nosso em Apucarana-PR e da realização de festa religiosa em espaço público em Vacaria-RS.
Cabe observar, que diferente de movimentos seculares como a ATEA, os movimentos em prol da liberação do aborto, pautas feministas ou pró sexualidade alternativas, não são orgânicos, isto é, surgidos espontaneamente da iniciativa popular, mas criados e financiados por meio de fundações estrangeiras, a maior parte norte americanas, e operados por meio de ONGs também de origem estrangeira.15
O ponto que nos interessa aqui é, que dessa forma, não se pode incorrer no equívoco de que eles representem um real levante popular contra suas próprias tradições, mas anomalias pontuais, que mesmo quando conseguem ter algum efeito contra o alvo, que no caso, tem sido sempre o cristianismo católico, no máximo abrem caminho para o crescimento do cristianismo protestante, dito “evangélico”16 ou no caso europeu, para o islamismo.
Ou seja, independente do que se pense deles, não são um sintoma de real retração da religiosidade, mas, talvez, mais uma espécie de ato de desespero perante a inegável retração da antirreligiosidade. Ademais, eles parecem claramente contraproducentes, precipitando reações de coesão em populações religiosas antes mais dispersas, bem como gerando simpatia pelas mesmas, provável motivo pelo qual há um curioso pacto de não divulgação dessas ocorrências na dita grande mídia.
As próprias intenções das organizações que financiam esses movimentos parecem nebulosas, uma vez que são invariavelmente as mesmas que também financiam think thanks em favor do liberalismo econômico, incluindo privatizações, desregulação de mercado de capitais, isenção de impostos aos mais ricos e similares.
E daqui, entramos numa teia de forças que se opõem mutuamente de formas inusitadas, cujas pretensões são difíceis de elucidar, mas que invariavelmente vão no sentido de fomentar ainda mais o aumento da religiosidade. Pois os tais movimentos associados à “esquerda” terminam, dialeticamente, fortalecendo a religiosidade popular por oposição, ao passo que o liberalismo econômico, fartamente implementado na América Latina e tendo sempre como resultado final o aumento da pobreza, termina também empurrando mais pessoas em situação de carência para as hostes religiosas.
15. Esse fato, mais uma vez, é absolutamente omitido dos grandes noticiários, mas fácil de ser confirmado pela internet. Embora que ainda com algum trabalho, bastam procuras direcionadas dentro dos sites de grande fundações, tanto por buscadores externos quanto por buscadores destas mesmas plataformas. Porém, há uma espécie de “código” a ser utilizado. Dificilmente se acha termos como ‘abortion’ ou ‘feminism’, mas para o último, o que temos é ‘gender’, quase sempre associado a ‘issues’, ‘equality’ ou ‘oportunity’, e para o primeiro, o eufemismo é invariavelmente ‘reproductive rights’. Algumas das organizações são fundações “beneficentes” tais como Open Society Foundations, Ford Foundation, Rockefeller Family Fund, Gates Foundation, Kellogs Foundation, ou grandes bancos como JP Morgan & Chase (que financia o movimento MeeToo), Goldman Sachs ou Citi Group ou fundos de investimento como a Black Rock. Em todos os casos, é possível encontrar programas de financiamento, ou mesmo listas com as organizações impulsionadas, bem como vários textos e relatórios perfeitamente alinhados com a temática que muitos ingenuamente creem ser uma prerrogativa da esquerda política ideológica.
A situação se torna ainda mais insólita, com ares de surrealidade 17, quando colocamos a crescente influência oriental no cenário. Não é novidade que estamos diante de uma nova versão de “Guerra Fria” entre o ocidente: EUA, União Europeia, OTAN, e seus aliados; contra o bloco eurasiano encabeçado por Rússia e China, e seus aliados como Vietnã, Coréia do Norte e Laos, ao oriente, e Belarus, Donbass (leste da Ucrânia) ao ocidente, com potenciais aliados como Turquia e Hungria, além de Irã, Síria e Líbano no Oriente Médio.
Diante disso, via de regra os movimentos conservadores, marcados por religiosidade, vêm no oriente uma espécie de “nova ameaça comunista”, turbinados por discursos neoconservadores que misturam a religiosidade cristã com o liberalismo econômico e sionismo. Isso não os impede de se encantarem com os discursos conservadores de líderes como Vladimir Putin, as medidas reativas de Viktor Órban (Hungria) ou Recep Tayyip Erdogan (Turquia), bem como a evidente maior resistência chinesa contra agendas de gênero e sexualidade e o renascimento da religiosidade. Ao mesmo tempo, porém, continuam a apoiar o mesmo bloco econômico alinhado à essas pautas que eles mesmos se opõem!
O que nos interessa aqui, é que não importa quem vença, as religiões, de uma forma geral, ganham, pois toda militância contra as pautas típicas do aborto, sexualidade e feminismo infalivelmente fortalece as pautas religiosas, ao mesmo tempo que o simples medo de uma hipotética, e deve-se frisar, absolutamente inexistente, “ameaça comunista”, também o faz! Ao mesmo tempo, qualquer avanço da frente euroasiática também implica em renascimento cada vez maior da religiosidade, visto que o ocidente é visto por eles como associado a essas modalidades de secularismo anti-tradicionais.
Em completa oposição às ilusões neoconservadoras ocidentais, a “esquerda” chinesa é culturalmente conservadora, se opondo a quase todas as pautas que no ocidente são associadas à esquerda, exceto, justamente, as de teor econômico relativas à redistribuição de renda, intervenção do estado na economia, assistencialismo etc.18
17. Sem querer mudar o foco dessa dissertação, assim o digo devido ao fato de que os conservadores ocidentais, em geral vistos como “direita”, se associam a valores que são muitíssimos mais caros aos orientais, em especial russos e chineses, do que ao próprio ocidente, de modo que alguma lucidez deveria lhes fazer tentar uma aproximação, e não uma hostilidade, com os eurasianos. Republicans see China More Negatively than Democrats A situação chega ao ponto de haver um apoio explícito a Israel e ao sionismo, sem que se dê conta de que este é essencialmente anti-cristão e mais hostil a esse conservadorismo do que o Islamismo. Há uma espantosa ironia no fato de que os que se posicionam contra o feminismo, as pautas de sexualidade e suas “Paradas Gay”, apoiem justamente o único país médio oriental onde estas são largamente praticadas, enquanto severamente rejeitadas nos países islâmicos. Valendo lembrar que o Islã, embora rejeite o dogma da Encarnação divina de Cristo, ainda assim o reconhece como o mais santo dos profetas, ao passo que para o judaísmo Jesus Cristo é visto como nada menos que um farsante. Para uma análise minha mais detalhada sobre o assunto, recomendo meu vídeo sobre Neoconservadorismo.
18. No texto What it Means to Be ‘Liberal’ or ‘Conservative’ in China, mostra a complexidade do espectro cultural chinês, que tal qual no ocidente, vai muito além da paupérrima dicotomia esquerda e direita, que em geral inviabiliza qualquer compreensão real dos fatos, e é por sinal a grande responsável pela enorme confusão que impera em nossa sociedade, impedindo de compreender os fatos mais básicos ao ponto de chamar um liberal econômico de “extrema direita” e colocar num mesmo naipe lideranças absolutamente antagônicas em seu posicionamento geopolítico e econômico como Vladimir Putin, Donald Trump e Jair Bolsonaro, ou, ainda pior, Olavo de Carvalho, Steve Bannon e o filósofo russo Alexander Dugin, cujos vagos pontos de semelhança são absolutamente insignificantes diante das abissais divergências.
E o que é visto como “liberalismo” na China é mais ou menos o que também se entende nos EUA, justamente as pautas de sexualidade, raça, gênero, drogas etc. populares apenas entre as elites urbanas do país e ridicularizadas com o termo depreciativo baizuo.19
O conservadorismo é indissociável da noção da tradição, e a China, embora ainda tenha uma expressiva parcela da população desassociada de religiões, em especial devido à Revolução Cultural Maoísta, tem também como tendência um renascimento cada vez maior da religiosidade, uma vez que a política do filho único foi revogada em 2016. Assim, como invariavelmente ocorre, as famílias mais conservadoras e tendentes à religiosidade irão se reproduzir mais do que as famílias mais seculares, liberais e ocidentalizadas. E cerca de metade da população chinesa já é praticante de alguma religião das grandes tradições ou religiões étnicas tradicionais mais locais.
Enfim, sob qualquer ângulo que se observe, as posturas antirreligiosas, que já não são capazes de conter o crescimento religioso, tendem a se retrair com o tempo, e assim, O Futuro das Religiões, em qualquer prazo discernível por projeções estatísticas, em geral até 2050 ou 2100, parece estar garantido, deixando menos claro quais religiões prosperarão mais, além do islamismo e seu crescimento imbatível.
Resta nos agora inverter a especulação e refletir sobre a segunda parte do título deste texto, que ainda assim sustenta que mesmo que os prognósticos fossem completamente opostos, a religiosidade ainda estaria longe de qualquer ocaso.
19. Literalmente significa “esquerda de branco”, referindo-se à esquerda elitista ocidental, que tal como na China e em praticamente qualquer lugar do mundo, é a maior defensora das pautas em questão que não tem real adesão e aprovação popular.
Retomo aqui o questionamento inicial da introdução, pois ao falarmos do futuro da religião, o dizemos do fenômeno religioso em si, que na realidade envolve distintas religiões, visto ser absolutamente incompatível com a espécie humana qualquer tipo de pensamento único e monolítico. Mesmo que o islã dominasse a totalidade da humanidade, essa convergência sequer teria sentido, visto que as divisões internas apenas iriam se acentuar ao ponto do surgimento de inúmeras subdivisões entre as quais muitas teriam até mesmo sua condição ‘islâmica’ negada, como também acontece com algumas vertentes do já largamente dividido cristianismo.
O que quero colocar em questão não são as religiões tradicionais cujo futuro já parece garantido, mas sim, caso ocorresse o contrário, caso as condições econômicas estivessem claramente melhorando, o secularismo de fato estivesse crescendo e as religiões tradicionais se retraíssem, teríamos afinal um futuro, como disse o próprio Richard Dawkins, bright?20
Aqui, resta apenas a especulação baseada em algumas inferências que podemos extrair do nichos de maior desenvolvimento onde a religiosidade, é, de fato, menos determinante, e dessa forma, minha interpretação da pretensão de Dawkins de que um certo “novo iluminismo” traria uma consciência mais elevada da visão de mundo geral, é ambígua. (Na melhor das hipóteses!)
Por um lado, a experiência dos países mais desenvolvidos demonstra sim uma retração na religiosidade ao mesmo tempo que na violência e crime em geral, e assim, é de se esperar que as religiões que restem minimizem qualquer relação nesse sentido. Ou seja, ao menos os crimes que envolvem religiões terminam minorados, gerando algum ganho na qualidade da religiosidade restante em oposição a queda na quantidade.
Como a pobreza deixa de ser um fator relevante a empurrar pessoas para a fé, espera se maior quantidade de autêntica vocação espiritual, aquele que procura o transcendente não para solucionar problemas materiais, mas para realmente transcender o mundo em si, mesmo quando satisfatório. E ainda que o simples conforto material não elimine outras questões de ordem sentimental e interpessoal, ainda assim, o número de pessoas que procuram a religiosidade por motivos mais elevados tende a aumentar.
Além disso, a redução de tensões sociais também abre espaço para maior tolerância interreligiosa, e sobretudo para novas vivências que podem resultar em novas iniciativas espiritualistas e novas religiões, com potencial para aperfeiçoar ainda mais os sistemas de crenças, depurando ou minimizando elementos que são resultado de insuficiências e desconhecimentos típicos do passado.
20. Literalmente ‘brilhante’, é uma das vertentes do Novo Ateísmo na tentativa de fomentar um Movimento Bright de pensamento naturalista. Inicialmente proposto por Richard Dawkins e Daniel Dennett, dois dos “Quatro Cavaleiros” supracitados. A ideia, em paralelo com outros movimentos de causas seculares, seria estimular o advento de uma consciência dos malefícios da religiosidade e de sistemas de crenças supersticiosos, contanto com um certo otimismo ainda plausível quando, em 2003, foi publicado por Dawkins o ensaio The future looks Bright.
Isso deve ser considerado principalmente porque grande parte do legado tradicional das religiões está maculado por elementos definitivamente não relacionados à busca pelo transcendente em si, nem mesmo pelos melhores elementos que a harmonizam com a ética. Num cenário desses, parece haver espaço para uma religiosidade mais autêntica, livre de questões mundanas que dificultam ou mesmo impedem uma elevação maior num sentido existencial.
Assim, pode se esperar, não só de alguma nova religião, mas de versões mais elevadas das religiões tradicionais, quem sabe, algum ganho de qualidade que faça com que seja melhor termos poucos e bons religiosos, do que muitos e ruins, no sentido daqueles que vivenciam um fé distorcida pelo sofrimento mundano ao ponto de se voltar contra a própria existência ou a de outros. Por outro lado, é preciso considerar que os antes referidos simulacros de religiosidade estão cheios de novidades constrangedoras e inequivocamente deletérias.
Criacionismo, terraplanismo, respiracionismo, antivacinismo, doutrinas de gênero que negam a pura realidade física dos sexos, bem como chegam até mesmo a tentar coibir o uso do conceito de ‘mãe’ 21, ambientalismos que pretendem extinguir a humanidade, abortismo e toda uma horda espantosa de insanidades que em muito superam o que há de pior nas religiões. E se algumas delas estão em algum grau conectadas às religiões tradicionais, nenhuma das grandes vertentes e instituições jamais as endossou, sendo na verdade versões sectárias e não reconhecidas.
Assim, fica evidente que as religiões não estão sozinhas em termos de produção de crenças exóticas, extremamente antissociais e potencialmente destrutivas. Ou seja, e ideia de que sua superação abriria espaço para uma sociedade mais intelectualmente avançada não se verificou, nem mesmo para outras formas de associação social necessariamente mais benéficas.
Como também sugerido antes, há até mesmo uma relação inversa entre a religiosidade de um local e sua tendência ao entorpecimento e demais posturas nocivas, de modo que os seus sucedâneos além de incluírem movimentos e crendices irascíveis, também envolvem adesão a pulsões nada construtivas socialmente e ainda menos no sentido existencial. Assim, embora certos contextos como esse possam incluir um aumento do bom senso, do humanismo no melhor sentido da palavra, e de posturas mais inteligentes e refinadas, é possível que a tendência dominante termine sendo contrária, invalidando qualquer ganho.
21. Respiracionismo, ou Respiratorianismo é uma obscura doutrina que nega a necessidade de alimentação, e que os humanos podem viver apenas de ar e luz, também conhecida “Inédia”. A tentativa de coibir a palavra mãe já foi combatida inclusive por J.K.Rowling , a autora de Harry Potter, que sofreu tentativa de cancelamento por defender também o uso da palavra ‘mulher’ invés de “pessoas que menstruam”. No Brasil, essa... com o perdão da palavra, sociopatia... teve com representante a socióloga feminista Marília Moschkovich, cujos tweets originais que causaram extrema e péssima repercussão, e justa retaliação, foram posteriormente deletados, mas depois da consternação, foram discretamente repostados com muita aprovação. Publiquei duas críticas a esse respeito disponíveis em 30 de Junho de 2020, e 02 de Julho de 2020, também acessíveis em meu próprio site (na ocasião de uma provável eliminação do conteúdo, como já ocorreu antes) em 30/06/20 e 02/07/02. O Voluntary Human Extinction Movement é uma iniciativa ambientalista de nome autoexplicativo. Por fim, abortismo se diz da pretensão de descriminalização incondicional do aborto sem qualquer ônus moral, ético, jurídico ou econômico. Conceito que analiso em vários textos acessíveis em Abortismo.
Ademais, como já vimos, qualquer tendência nessa direção tende a ser inviabilizada pela simples queda nas taxas reprodutivas, prosperando apenas por um breve período de aproximadamente meio século, ou duas gerações, até que a disparidade do crescimento populacional dos segmentos mais tradicionalistas neutralize as tendências não religiosas ou de novas religiosidades claramente disfuncionais.
Assim, a única forma de uma nova religiosidade futura, ou caso queira se dar outro nome como nova ‘espiritualidade’ ou mesmo ‘filosofia’, ter um mínimo de estabilidade, é se esta integrar muitos dos elementos da religiosidade tradicional, o que invariavelmente envolve posturas pró natalistas e incompatíveis com doutrinas de gênero, ambientalismo desmedido ou crenças que põem a própria existência em risco. Ou seja, ou os simulacros de religiosidade terminam copiando ainda mais as religiões de fato, ou estão condenados a uma brevidade historicamente anômala.
Soma-se isso ao fato de que somente doutrinas que fornecem um sentido existencial pleno realmente prosperam, e que não há questão existencial mais crucial e decisiva que a perspectiva da morte, então, pelos elementos essenciais anteriormente expostos, somente autênticas novas religiões efetivamente conseguiriam substituir as religiões tradicionais, postulando uma transcendência efetiva, oferecendo uma proposta de superação da mortalidade, e conectando-as por meio de uma doutrina bem definida.
Com essa três características preservadas, independente de quaisquer outros elementos, teremos uma religião de fato, embora até mesmo isso seja insuficiente para uma necessária permanência, visto que qualquer elemento que se volta contra a sobrevivência material ou reprodução terminará por abreviar essa nova religião. 22
Assim, a hipótese de um futuro em que as religiões tradicionais efetivamente declinem tende a, numa visão mais otimista, apenas dar espaço a novas religiosidades, e não a uma real ausência de religião. Do contrário, a tendência é haver uma proliferação caótica de crenças instáveis e efêmeras, muitas delas potencialmente ainda mais perigosas que o belicismo já presente em algumas vertentes das grandes tradições. Embora seja necessário apontar que um mundo com armamentos capazes de destruição em massa em poder de lideranças imbuídas de religiosidade de viés apocalíptico correria extremo risco de destruição global colocando toda a humanidade, ou mesmo toda a vida na Terra, em risco.
Nesse sentido, algumas religiões são potencialmente mais perigosas que outras, e nesse aspecto, as versões neoconservadoras se destacam, dentre as mais expressivas, como especialmente preocupantes devido a seu viés milenarista, frequentemente ansioso pelo fim dos tempos e o Segundo Advento de Cristo. São também as mais belicosas, e intimamente ligadas a máquina de guerra estadunidense, o dito deep state, e uma série de posturas abertamente hostis que veem nas tensões geradas em torno de Israel praticamente uma boa notícia, uma vez que esse empreendimento humano é visto com a realização de profecias escatológicas judaicas que precipitam o fim dos tempos, adaptando-a precariamente à cosmovisão cristã.
22. A exemplo de religiões literalmente suicidas como a seita de Jim Jones, ou o Heaven’s Gate , ou violentas como a de David Koresh.
Por outro lado, temos comunidades islâmicas prontas para reagir a essas hostilidades, embora o Islamismo não tenha uma escatologia tão explícita quanto a cristã no sentido de antecipar sinais do últimos dias e reiterar um fim próximo.
Ainda assim, não há sinais claros de uma possível Terceira Guerra Mundial além das intermináveis tensões que já nos acompanham há meio século, e evidentemente, caso uma tragédia de grandes proporções ocorra, mais uma vez, o que teríamos infalivelmente seria um fortalecimento ainda maior das religiões tradicionais.
Mas voltando ao exame da possibilidade de um novo contexto global pacífico e próspero, e infelizmente, muito pouco provável, que tipo de nova religiosidade poderíamos esperar?
Além do pouco já dito, nos resta a incerteza, e a esperança, e nesse sentido, melhor seria uma religião futura que procurasse promover uma síntese dos melhores elementos das grandes tradições, com uma visão filosófica mais profunda e que ao mesmo tempo que mantenha o interesse no transcendente, ajude a ter uma conduta mundana que aperfeiçoe as condições materiais para que mais pessoas procurem a religiosidade pelos motivos mais elevados.
Que seja uma religião que demande em seu seguidor uma elevação ética, espiritual e intelectual, e não um rebaixamento a crendices obtusas, que se harmonize com o desenvolvimento científico não disputando narrativas em searas que nada levam a realização espiritual, mantendo o divino nas “lacunas” irrevogáveis da origem da mente humana, do universo e do pós-morte.
Uma religião, ou várias, que integrem o aperfeiçoamento humano em todos os níveis, convidando ao aprofundamento interior, mas também à expansão da consciência e conhecimento, que honre o mundo em que vive, mas abrace a exploração espacial, que dignifique o ser humano, mas louve o desenvolvimento tecnológico, e cujo divino se espalhe para muito além daquilo que pensávamos ser os limites do universo.
Ou mesmo, que isso seja feito também pelas religiões tradicionais, harmonizadas com um conhecimento impensável na época em que surgiram, sem insistir em dogmas materialmente refutáveis e que conserve os elementos maiores da nobreza humana sem prejudicar a produção, e a reprodução, da vida.
Com isso, só nos resta torcer para que o futuro nos traga uma religiosidade mais estável, capaz de manter o interesse transcendental enquanto alivia o sofrimento do mundo, que não irá cessar apenas pela prosperidade material. Se isso será feito na forma de versões mais refinadas das religiões mais tradicionais, ou em novas e inéditas religiões, ainda é incerto.
Certo apenas, é que a ideia de uma humanidade irreligiosa parece completamente irreal, e não há qualquer expectativa de que isso se realize em qualquer prazo concebível.
Ou as atuais religiões permanecerão no futuro, ou o futuro nos trará novas religiões.
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