Universidade de Brasília
Instituto de Humanidades
Departamento de Filosofia
Disciplina de Dissertação Filosófica 1
Orientador: Professor Doutor Agnaldo Cuoco Portugal
Orientando: Marcus Valerio XR - 02/98255






A Imortalidade da Alma no Fédon Platônico
Uma introdução ao conceito da
META-CONTINUIDADE MENTAL
A Continuidade da Mente além de nosso Horizonte Existencial






Brasília, 15 de Março de 2006


ÍNDICE

INTRODUÇÃO

ANALISANDO O FÉDON

A SOBREVIVÊNCIA DA ALMA

CRITICANDO O FÉDON

ALMA, ESPÍRITO E MENTE

O DUALISMO DE SUBSTÂNCIA

DELINEANDO UM NOVO HORIZONTE

BIBLIOGRAFIA

Página 03

Página 06

Página 09

Página 23

Página 23

Página 32

Página 45

Página 49

Dedico este texto a meu colega de rede
Edson de Oliveira Ataíde Júnior,
que me incentivou sobremaneira a me dedicar ao tema da Meta-Continuidade Mental.

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INTRODUÇÃO

Um eminente filósofo do século passado declarou que a Filosofia é uma terra de ninguém entre a teologia e a ciência 1, sujeita a ataques de ambos os lados. E se podemos entender isso na medida em que os filósofos podem se deslocar entre estas duas áreas com notável liberdade, abordando questões pertinentes a ambas e contra-atacando ambos os lados, ocorre porém que na contemporaneidade haja um aparente movimento de afastamento da Filosofia da primeira em direção à última, em especial no Novo Mundo.
Alguns pensadores parecem ficar envergonhados em abordar questões que são tipicamente tratadas pelas religiões, quando tais questões não pareçam ter lugar na ciência. Este projeto pretende ir na contra-mão desta tendência, pois abordarei aquilo que é costumeiramente chamado pelo confuso nome de "Vida Pós-Morte", ou melhor dizendo, a possibilidade de que nossa existência como seres auto-conscientes, de algum modo, continue mesmo após o evento físico da morte, por um tempo indefinido.
Para a viabilização deste projeto, é necessário um levantamento histórico amplo do pensamento filosófico a respeito. Por isso, não tenho pretensões de esgotá-lo somente nesta dissertação, e sim, estabelecer um passo inicial. Respeitando então a evolução do pensamento, creio que o melhor ponto de partida seria o primeiro grande pensador ocidental conhecido a escrever uma obra sistemática que aborda diretamente a questão: o Fédon, de Platão.
Nesta obra, uma defesa da imortalidade da alma, são lançadas basicamente todas as idéias fundamentais necessárias a uma reflexão sobre o tema. No entanto, tais idéias vêm entrelaçadas com uma série de outros elementos que podemos entender como superados pelo avanço de nossos conhecimentos filosóficos e científicos. Portanto, a principal intenção desta dissertação será filtrar esta obra e extrair elementos que se mantenham relativamente incólumes às investidas do renascimento e da revolução científica, e promover uma imunização a respeito de outros elementos que, sendo mais vulneráveis, ainda se perpetuem de modo impreciso em sistemas de pensamento contemporâneos, a fim de evitarmos incorrer em erros do passado.
Em geral esses elementos são terminológicos, a começar pelo termo "Vida Pós-Morte", que é desaconselhável por exigir uma re-interpretação do significado imediato. É evidente que nesta expressão, "vida", diferentemente de "morte", não se dá no sentido biológico, para o qual sequer há uma definição precisa, mas sim no sentido de existência como ser pensante e sensível, para o qual utilizarei o termo "Mente". Também preferirei evitar a expressão "imortalidade da alma", e boa parte desta dissertação se ocupará exatamente de explicar porque a palavra "alma" está duplamente fora de minha preocupação, pois vem impregnada de conotações
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1-RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, Capítulo - A Filosofia entre a Religião e a Ciência.

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desaconselháveis, a começar pela indefinição de se esta seria o depositário da individualidade, racionalidade, memória e etc, ou seria apenas um princípio "anima", idéias que estão ambas presentes também no termo "espírito". Além disso, não estou indagando da mesma ser imortal ou não, mas sim, se apenas continua por um período indefinido de tempo além de nosso comum e mais seguro horizonte de perspectiva.
Utilizarei então, introduzindo de forma gradual e futuramente em larga escala, o termo Meta-Continuidade Mental (MCM) com o objetivo de delimitar mais especificamente este objeto de estudo. Com a palavra "mente", espero simplificar o conceito central, pressupondo sua existência independente de sua natureza ontológica. Quer sejamos entidades dotadas de alma ou espírito, quer em sentido religioso ou filosófico, ou sejamos seres puramente materiais com propriedades cerebrais altamente complexas, podemos dizer que possuímos uma mente, mesmo que esta seja uma mera emergência ou epifenômeno do cérebro.
O termo "Continuidade da Mente" é comum entre os budistas 2, embora mais comum ainda seja "Continuum Mental", porém ele por si só é insuficiente para especificar o objeto de preocupação desta monografia, pois a existência de uma mera Continuidade Mental não me parece passível de questionamento. Podemos dizer que o adulto que escreve este texto e a longínqua criança que fui 30 anos atrás são a "mesma" pessoa simplesmente porque há uma continuidade específica, quer em meu corpo quer em minha mente, apesar das gritantes diferenças entre estes dois momentos de uma mesma linhagem existencial. A memória nos induz a supormos que somos a mesma pessoa que fomos ontem apesar das diferenças inevitáveis, e a própria identidade de um Ser é sustentada por nada menos que um feixe fenomênico contínuo interligado através do tempo.
Sendo assim, uma vez que a continuidade mental existe, resta saber se ela pode transcender nossa existência física, ou seja, prosseguir mesmo após a falência de nosso organismo, ou melhor ainda, se dar além de nosso "Horizonte Existencial" tangível, por isso acrescentei o termo "Meta", ou seja, além da mera continuidade.
Além do já exposto, creio que este trabalho tem a contribuir também como um exercício de uma idéia que me parece extremamente fértil filosoficamente, o conceito de Continuidade, que tem aplicações ontológicas e psicológicas extremamente relevantes. Tal conceito vem sendo explorado recentemente, na vanguarda de áreas como Filosofia da Mente e Fenomenologia. Tal conceito desponta, em minha opinião, como uma espécie de dissipador de certas confusões metafísicas, ao afirmar o valor da temporalidade como modo de definir um ente, numa espécie de priorização do Devir sobre a interpretação de tendência atemporal do Ser.
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2-GYATZO, Tengin (o 14º Dalai Lama). A Chave do Despertar da Sabedoria. Página 27.

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A Continuidade explica, entre outras coisas, porque podemos justificar a identidade entre dois entes temporalmente distintos ao mesmo tempo que explica porque outros entes, mesmo sendo muitíssimo mais similares em termos aristotélicos de acidentes, não podem ser identificados entre si. Bem como também a noção de "Continuador Mais Próximo"
3 age como um notável solucionador de dúvidas quanto a identidade de algo em certos dilemas que poderão vir a ser de importância vital no futuro.
Outra contribuição espero dar no sentido de apoiar um diálogo que tem sido pouco presente atualmente, entre a Filosofia da Religião e a Filosofia da Mente, com considerável intermédio da Epistemologia.
Outra justificativa que quero acrescentar é que tal tema é talvez o mais importante dilema da existência. Muito mais do que saber de onde viemos ou de onde veio o Universo, ou saber se existe Deus. Mesmo porque se a MCM existir, temos maiores possibilidades de responder a estas outras questões.
E além disso, essa dissertação também tem a intenção de fazer justiça a uma possibilidade ontológica que foi, infelizmente, negligenciada pela tradição filosófica contemporânea, que é o Imaterialismo de Berkeley, uma forma de Idealismo Monista. Enquanto o materialismo, que é um monismo, e o dualismo vem se deparando com certas dificuldades, esta outra possibilidade, que leva a um desenvolvimento que espero poder descrever como "Monismo Mentalista", funcionaria como uma alternativa válida e promissora.
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3-NOZICK, Robert. Philosophical Explanations (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1981). Esse conceito é usado com maestria por Richard Hanley na obra "A Metafísica de Jornada nas Estrelas", no capítulo que questiona se há continuidade entre as mentes de uma pessoa antes e depois de um processo de teletransporte molecular. Um exemplo de uso do conceito de "Continuador Mais Próximo" (Closest-Continuer) ao tema desta monografia, ver o texto Personal Survival And The Closest-Continuer Theory (International Journal for Philosophy of Religion, Vol. 41, 1997, pp. 13-23.) Disponível em www.eou.edu/~jjohnson/personalsurvival.htm.

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ANALISANDO O FÉDON

Neste capítulo, procedo a uma abordagem mista do Fédon , que reúne uma explanação sobre seu conteúdo fundamental a uma análise crítica de seus conceitos. Resumindo as principais idéias relevantes para o tema desta monografia, espero atingir um objetivo, o de embasar duas idéias fundamentais.
A primeira, mais óbvia, é que toda a argumentação, ao ser condizente com a Teoria das Idéias Platônica, é essencialmente dualista, os conceitos do Fédon dependem da aceitação da existência de uma "substância" não física, onde se localizariam as Formas Perenes e também a Alma. A segunda, que este termo, Alma (psyché) , embora seja compreensível e clássico, implica algumas dificuldades mesmo no âmbito platônico tradicional, dificuldades estas que se exponenciam na contemporaneidade, principalmente por misturarem dois conceitos inicialmente diferentes, o que representa intelecção, memória e identidade, e o que implica um tipo de essência vital, uma substância que permite a vida.
De 57a até 60a, o diálogo se inicia com uma contextualização e apresentação dos personagens Fédon, que testemunhara as últimas horas de Sócrates, e Equécrates, seu interlocutor, que o interroga como sucederam estes momentos finais. Fédon então inicia a narrativa em retrospecto do diálogo ocorrido entre Sócrates, Cebes e Símias, e outros personagens de menor participação.
O primeiro conceito filosófico a surgir é o da linha unidimensional de dor e prazer (60b), seguido da informação de que Sócrates compõe versos relativos às fábulas de Esopo, por influência de sonhos aparentemente divinos. Então entrando no tema propriamente dito, afirma que a investigação sobre o além-vida talvez caiba ao que está prestes a morrer (64a). Porém, não se deve cometer suicídio. Nas palavras de Cebes "Como pode dizer, Sócrates, que não é permitido fazer violência contra si mesmo, e, por outro lado, que o filósofo não deseja nada melhor do que poder seguir aquele que morre?" (61d)
Embora o diálogo seja fundamentalmente filosófico, possui uma proposta básica comum a todas as religiões, a idéia de que nossa existência não termina, ou pode não terminar, com a morte física. Temos aqui dois elementos típicos da maioria, se não todos, dos sistemas religiosos. Se por um lado considera-se ditosa a existência pós-morte para aqueles que vivem de acordo com certas diretrizes morais, por outro lado, há a restrição ao suicídio. Dificilmente poder-se-ia conceber um sistema religioso diferente, uma vez que obviamente a simples existência da primeira idéia poderia induzir ao suicídio.

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Sócrates responde: "... os Deuses são aqueles sob cuja guarda estamos, e nós, homens, somos uma parte da propriedade dos Deuses." (62b), e em seguida "...não havias de querer mal a um ser de tua propriedade que se matasse sem que tal lhe tivesses permitido? (...)" (60c)
Temos, então, um argumento também comum às religiões para desencorajar o suicídio, que é o de que somos uma certa "propriedade" das divindades. O argumento pode funcionar como: Uma vez que nossa existência não parece ter sido obtida por nós mesmos, mas sim dada por uma força superior, só a esta última caberia o direito de tirá-la, sob ameaça de punição. Seria interessante refletir se o nível de gravidade do ato suicida seria diretamente proporcional ao nível de gozo prometido no além vida, ou seja, quanto mais feliz seja a expectativa da vida futura, e portanto mais de acordo com os preceitos envolvidos, mais grave seria o "crime" de suicídio, e conseqüentemente, o inverso.
A partir de 62d surgem as dúvidas: Mas não devemos nos revoltar contra sentenças de morte impostas por outrem? Não devemos proteger nossa liberdade e vida mesmo das autoridades, submetendo-nos somente aos deuses? O indivíduo inteligente não deve desejar estar perto somente de quem lhe seja superior? Deveria Sócrates defender sua vida contra a sentença de morte? Sócrates responde que não fazê-lo seria um erro, não fosse a convicção de que muitíssimo provavelmente ele se reuniria com bons homens no além vida, e que certamente se juntaria aos deuses, pois há feliz destino para homens de bem. Portanto, Sócrates se alegra com a perspectiva da morte.(63c)1
Sócrates não chega a desenvolver mais o assunto, pois começa a entrar na essência do diálogo propriamente dito. A partir de 64a afirma que é possível que todos os que verdadeiramente se dediquem à Filosofia nada mais aspirem do que a estarem mortos. A morte é a separação da Alma do Corpo. O filósofo não visa as coisas do corpo, mas as da Alma. O corpo é empecilho para o trabalho do filósofo, pois atrapalha a busca da verdade, e se estará mais perto da verdade quando se está livre do Corpo, pois não é com este que conhecemos as "coisas em si" tais como o Belo e a Justiça. "E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio? (...) Quando é, pois, que a alma atinge a verdade? Temos num lado que, quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questão que seja, o corpo, é claro, a engana radicalmente." (65b)
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1-A questão que caberia aqui seria: Somente o suicídio ativo e direto seria reprovável? E quanto ao passivo e indireto? Isto é, o indivíduo que se deixa matar? E ao que o faz indiretamente, como por meio do abuso de drogas? Tais questões podem levar a questionamentos que poderiam ir contra a tese de que a morte que nos é imposta pode ser passivamente aceita, pois a partir de que ponto essa passividade não seria um ato suicida? Devemos nos submeter a autoridade ilegítimas ou corruptas? Tais questões são mais relevantes na Apologia de Sócrates.

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Sócrates primeiramente fala que o filósofo deveria aspirar à morte, mas é evidente que não está se referindo a um Não-Ser, e sim a um outro tipo de "vida". O termo "Vida Pós-Morte", ou similares, é contraditório por si mesmo, não raro induzindo ao erro. A expressão "Outra Vida pós-Morte" atenuaria essa contradição, mas seria plenamente eficaz apenas no caso da reencarnação, uma vez que a vida corpórea e a vida num plano espiritual seriam tipos diferentes de vida. Um termo mais exato seria "Outro tipo de Vida pós-Morte", embora comece a ficar um tanto carregado. Visto a imensa dificuldade de definirmos o que venha a ser simplesmente "Vida", deve ser pouco prudente introduzirmos a idéia de "tipos de vida". Seria uma solução razoável, talvez, apenas se não encontrássemos um outro modo de colocar a questão, o que pretendo fazer mais adiante.
Em 66b, é dito que se quisermos alcançar o conhecimento puro, o podemos somente livrando-nos do corpo, depois de mortos, ou seja, depois de fisicamente mortos. No entanto, essa expressão excluiria um outro tipo concebível de nova existência futura, que é a ressurreição corpórea, e dessa forma há uma notória incompatibilidade entre o platonismo e o cristianismo, pois embora ambos compartilhem a noção de Alma, no platonismo, influenciado pelo orfismo, há a ocorrência da idéia de reencarnação em novos corpos, radicalmente diferentes do corpo anterior, passando por todo o processo de concepção, gestação e crescimento, e com uma larga perda de conteúdos intelectivos, como a memória. Já o cristianismo introduz a idéia de uma reconstrução do mesmo corpo original, ainda que aperfeiçoado ao ponto de uma incorruptibilidade, ao mesmo tempo que rejeita a idéia de reencarnação, ao menos de acordo com a maioria dos teólogos. Na verdade, vertentes da teologia bíblica, as mais coerentes em minha opinião, negam a possibilidade de qualquer existência consciente da alma sem o corpo.2
A partir de 67b, é dito que, se for do modo como Sócrates pensa, ele estaria agora em vias de se encontrar com a verdade, pois se daria a libertação da corrupção do corpo e a entrada no Hades, que é onde os homens normais esperam apenas rever seus amores falecidos, enquanto o filósofo espera encontrar A Verdade. Sendo os filósofos os únicos que se dedicam à busca da verdade, ridículo seria temer a morte, que é o momento de encontrá-la.3
Até 69e, Sócrates conta que o homem que se revolta diante da morte decerto não é amante da sabedoria, mas sim do corpo. Ao filósofo cabe a coragem, a temperança, e o desdenho pelo corpo. Paradoxalmente, é por medo de um mal maior, a morte, que os homens comuns são corajosos, bem como a intemperança para com alguns prazeres faz alguns homens serem temperantes com outros. Portanto não é trocando medo por medo ou prazer por prazer, como se fossem moedas, que se obtém a virtude. Só há uma única moeda com a qual se pode comprá-la, a sabedoria. Separada da virtude, a pessoa que chega ao Hades se depara com um lamaçal, mas o que buscou a sabedoria se reunirá aos deuses. Por tudo isso, Sócrates não se revolta nem teme a morte.
Há muitas implicações interessantes nestes trechos, mas fogem ao presente tema. Entramos então na parte que mais interessa à presente monografia.

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A SOBREVIVÊNCIA DA ALMA

A partir de 70a iniciam-se os questionamentos centrais ao diálogo, sendo o primeiro, se a alma realmente sobrevive à morte do Corpo, e como saber se esta também não se dissolve deixando totalmente de existir. A resposta traça uma longa linha de raciocínio, cujas idéias principais são:

1) Se é verdade que os vivos vêm de almas que estão no Hades, é seguro então que os Mortos para lá também deverão ir. Se não for possível demonstrar isso, é preciso outro argumento. (70d).

2) Tudo procede de seu contrário. Algo para se tornar pequeno precisa antes ser grande, para se tornar belo, antes ser feio. Logo, a vida provém da morte, e vice versa, o que se aplica a todos os seres vivos. Há reciprocidade no nascer das coisas, que provém de seus opostos. (70e)

3) O sono provém da vigília, e esta do sono, cada coisa é gerada do seu contrário. Visto que estar morto é o contrário de estar vivo, há reciprocidade causal. Logo os mortos provém dos vivos, e sendo assim, dos vivos provirão os mortos, de modo recíproco, o que demonstra que as almas dos que morrem irão para o Hades, de onde tornarão a viver. Se assim não fosse, a natureza seria falha somente no aspecto da morte.(71d)

4) Se o processo se desse apenas em linha reta, com o tempo todas as coisas iriam numa só direção, havendo então o Caos. Visto que este não ocorre, há então reciprocidade, um círculo causal que assegura os renascimentos, para evitar que tudo acabe por desaparecer na morte. Fica demonstrado que os vivos provêm dos mortos, que há o renascimento e que as melhores almas tem mais sorte que as outras.4 (72b)
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2-A Bíblia cristã evidencia uma peculiaridade única no rol das religiões, que é a possibilidade, fortemente defensável teologicamente, de que a alma uma vez separada do corpo entre num estado de total inatividade. Ela "dorme", e só retorna à consciência após a ressurreição. No entanto a influência do neoplatonismo no cristianismo fez com que tal interpretação fosse nublada em prol de uma releitura pagã similar ao orfismo, onde pode-se mesmo encontrar uma concepção de mundo subterrâneo plenamente correlata à da mitologia grega. O Novo Testamento inclusive emprega, em conjunto com termo hebraico "Geena", termos gregos típicos como Hades e Tártaro, além de Lago de Fogo (Limen tou piros) e Fornalha de Fogo (Kaminos Tou Piros), bem como Paradisos. Isso incita a uma correleção com a divisão do mundo subterrâneo grego, exposta ao final do Fédon. Alguns teólogos atuais como Renold J. Blank, tem defendido o resgate desta originalidade, que estaria mais de acordo mais com a tradição hebraica do Velho Testamento, onde não existe consciência para os que já partiram, e assim permanecerão até a ressurreição para o Juízo, em corpo glorioso.
3-Faltou talvez comentar que muitas vezes se teme mais a agonia do processo de morte do que a idéia da morte como fim, ou transição, existencial, visto que o processo de morte invariavelmente implica em dor.
4-"... melhores almas tem mais sorte que as outras." Esta última afirmação não foi ainda demonstrada.

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Com isso, temos aqui um resumo do que podemos chamar de Argumento dos CONTRÁRIOS. Aplicado não somente aos humanos, mas a todos os seres, tem como premissa associar o conceito de morte física com a partida da Alma para um outro plano existencial sutil.
Nesse ponto, por enquanto, creio que haja uma falha, pois se é seguro que como evento físico a morte faça parte do ciclo da vida, ainda não é seguro que exista de fato algo supra físico que sobreviva. Essa concepção traz em si a idéia de uma "anima", uma forma de conceber que o que ativa os seres vivos é um tipo de "sopro vital". Considerando-se isso, seria mesmo forçoso admitir que a morte implica a partida de tal "espírito", que anteriormente teria adentrado no organismo físico, mas tal não foi demonstrado. Já podemos ver então que há uma sobreposição nem sempre clara de dois conceitos distinguíveis, que são essa "vitalidade", e os conteúdos como inteligência, memória e individualidade.
Na realidade, a própria idéia de Alma como algo não físico ainda não foi demonstrada, o que mostra que este diálogo platônico é mais rapidamente compreendido por quem já possua familiaridade com a Doutrina das Idéias. Somente a seguir iniciam-se demonstrações claras da existência da dita Alma.
A partir de 73a tem início o tema da Reminiscência, o "Aprender, diz ele, não é outra coisa se não recordar" (em citação ao diálogo platônico Menon). Afirmando que todos reconhecem certos universais, como as figuras geométricas, e se é assim, é porque se recordaram, e porque antes conheciam. Ao se ver certas coisas, é possível recordar de outras similares, sendo esta uma forma de Reminiscência.
Reminiscência provém tanto dos semelhantes quanto dos dessemelhantes. Ao observamos as coisas, ocorrem-nos as relações de diferença e igualdade. No entanto, nenhuma coisa é igual a outra, mesmo assim temos a noção de igualdade. Se temos uma noção que não podemos descobrir pela experiência, é porque a aprendemos antes mesmo de nascer e o recordamos pela reminiscência. (74a-75c)
Isso se aplica a conceitos como Belo, Justiça, Piedade e etc, visto que são coisas que não podem ser vistas em forma pura no mundo, mas que porém, todos entendemos em forma de Idéias. Sendo assim, aprendemos estas coisas antes, esquecemo-las ao nascer, mas nos recordamos posteriormente. (75d)
As almas existem separadas dos corpos antes de assumirem a forma humana. (76c)
Se conceitos como o Belo e o Bom realmente existem, é forçoso admitir que a alma também existe antes do corpo. (76e)

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Já aqui, na essência do Idealismo Platônico, temos o "Argumento" da PRÉ-EXISTÊNCIA DA ALMA, no caso, alma no sentido explícito de inteligência, que podemos denominar "Mente". É esse argumento, associado ao anterior que resulta na tese de que o "nascer" biológico implica a entrada de uma mente no corpo. É curioso observar que tal argumentação só funciona para os humanos, é claro, uma vez que os demais viventes são considerados como irracionais e portanto incapazes de possuir, ou ao menos demonstrar, as categorias cognitivas que são entendidas como pré-existentes.
Desde já é importante destacar que tal argumentação funciona muito bem desde que aceitemos um Dualismo, a existência de uma Substância Material, e outra Ideal ou melhor dizendo Mental. Uma vez admitido esse dualismo de substância, o raciocínio me parece muito coerente. Na realidade, se entendemos que de fato há qualquer dualismo Matéria e Alma/Idéias/Espíritos/Mente, fica muito difícil negar a possibilidade da continuidade desta Inteligência além da morte, visto o nível de independência da mente em relação ao físico, no caso o cérebro. E por isso que vejo que o problema passará cedo ou tarde a se deslocar então para a questão entre haver ou não dualismo. Mas antes, é preciso verificar que soluções este "idealismo" pode oferecer.
Prosseguindo, o texto afirma que parece provada a pré-existência da alma, mas será que ocorre mesmo sua pós-existência? Por que não poderia ela, mesmo tendo origem anterior ao corpo, se dissolver juntamente com este? Basta adicionarmos o conceito anterior, que tudo nasce de seu contrário, e sendo assim a pós-existência não existe menos do que a pré-existência.(77a)
Sócrates utilizou uma direção argumentativa contrária ao que a maioria esperaria, uma vez que pretendeu provar primeiro a pré-existência da mente para depois argumentar em favor de sua Pós-Existência. A questão colocada porém, um tanto inusitada, e que não costuma ocorrer na religiosidade ou no senso-comum, seria a de que a morte física não implicaria também a destruição de uma substância mental talvez perpetuamente pré-existente, o que resultaria num "Retro-Sempiterno", ou seja, algo que não teve começo mas teria um fim. É uma implicação bem incomum na reflexão de "outro tipo de vida pós-morte" de qualquer ordem.
Mas a questão é rapidamente respondida por meio do argumento anterior, dos Contrários. Portanto podemos então resumir o argumento em:
1) A Mente Pré-Existe, pois há conteúdos mentais não aprendidas por experiência.
2) O Nascer implica uma entrada da Mente no Corpo, via Alma.
3) Visto que a Morte é o Contrário da Vida, implicaria a saída da Mente do Corpo.
Fica então formulada a Continuidade "Meta-Física" da Mente, por meio da Alma, considerando a Mente uma parte integrante desta, tanto pré-existente quanto pós-existente à vida física. Como coloquei antes, o argumento me parece bastante coerente se admitimos um dualismo, no entanto como ainda resta provar de fato um plano não material, essa demonstração é insuficiente para uma certeza epistêmica.

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A próxima afirmação relevante do texto é que, apesar de tudo, o medo da morte ainda assombra mesmo que tenha sido demonstrada racionalmente a vida pós-morte, tal como a criança é assombrada por coisas irracionais. Há em nós uma criança que precisa exorcizar esse medo. Uma vez que Sócrates está de partida, quem será esse exorcista? Há muitos que poderão ajudar, entre os bárbaros inclusive, há de se buscar um novo guia. (77d-78b)
Com que coisas é natural a dispersão? As coisas Compostas é que se dispersam nos elementos originais, as coisas Não Compostas não sofrem dispersão. As essências então, como o Belo e o Justo, são essências incompostas e portanto não sofrem alterações, visto que são as coisas compostas que se apresentam ora numa forma, ora noutra. Há duas espécies de coisas, as visíveis, compostas e que se alteram, e as invisíveis, incompostas que não se alteram. Sendo o corpo visível, é composto e se altera, porém a alma é invisível. (78c)
Ainda que quando unida ao corpo, a alma sofra as perturbações típicas deste, quando se volta ao sempiterno, ao elevado, puro, se "afastando" do corpo, ela conserva sua pureza. Sendo assim, a alma é das espécies de coisas invisíveis, incompostas e inalteráveis. (79b)
Poderíamos chamar este de Argumento da UNICIDADE DA ALMA, que visa afirmar sua indestrutibilidade e portanto perenidade. Pois se há dois tipos de coisas, as Compostas e as Incompostas, e se estas se relacionam diretamente às Visíveis e as Invisíveis, decorre que a Alma, sendo invisível, deve ser Incomposta, mesmo porque mantém sua pureza. Isso sugere então que a inteligência da Alma, a Mente, sobrevive à corrupção corpórea, afirmando novamente a Continuidade Metafísica, ainda que enquanto ligada ao corpo sofra temporárias alterações.
Aproveitando essa reflexão, acrescentemos comentários sobre um argumento comumente usado pelos adversários da idéia de sobrevivência da Mente após a morte, que é a indagação de qual seria o estágio mental que seria conservado após o fim da vida, uma Mente em seu melhor estado funcional ou a debilidade senil? Considerando que mesmo grandes Mentes costumam ao final da vida se degenerar, teríamos então no pós-vida Mentes envelhecidas e corrompidas perpetuamente conservadas? Cito como exemplo o texto de Keith Augustine "O Argumento Contra a Imortalidade" , que se inicia com a citação:
"Porém no estado atual da psicologia e fisiologia, crença em imortalidade não pode, em qualquer caso, reivindicar nenhum apoio da ciência, e tais argumentos tanto quanto é possível sobre o assunto apontam para a provável extinção da personalidade na morte." (Bertrand Russell, Religion and Science)
Embora eu concorde integralmente com a primeira afirmação, retifico a segunda, que só me soa válida se levarmos em conta um monismo materialista, que a meu ver não pode ser objetivamente provado. O trecho que quero destacar porém é:
Outro problema para sobrevivência em qualquer forma é o problema da regressão de idade, que é declarada por W. T. Stace: Quando um homem velho morre, qual tipo de consciência se supõe sobreviver? É a consciência de pouco antes de sua morte, que pode talvez ter se tornado imbecil? Ou é a consciência de sua meia idade? Ou é a mente infantil que ele tinha quando era um bebê? A questão não é que não tenhamos respostas para essas perguntas... A questão é que todas as respostas possíveis são igualmente sem sentido... [O] homem velho que morreu repentinamente reverterá para sua meia idade após a morte? E a criança que morre repentinamente se tornará madura? (Edwards, "Introduction" 60).5

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Considero esta objeção deste texto 6 fácil de superar. Evidentemente, para que houvesse uma devida continuidade existencial da mente, ela deveria conter todas as experiências do indivíduo. Portanto seria a continuação imediata de seu último estado antes da morte. A senilidade no entanto não necessariamente seria um problema uma vez que após separada do corpo a mente poderia se reabilitar, provavelmente progressivamente. Pelo raciocínio platônico, uma vez livre das vicissitudes da matéria ocorreria uma regeneração, que na verdade é uma hipótese comum ao próprio espiritismo popular, que é evidentemente influenciado decisivamente pelo pensamento platônico. Exemplos análogos temos em nosso próprio "horizonte existencial", uma vez que podemos experimentar períodos de temporária perda de nossas faculdades normais mesmo por anos, como crises neurológicas, depressão ou estados de intenso sofrimento ou distúrbios psiquiátricos. No entanto, é comum haver uma recuperação plena posterior, que não necessariamente deve invalidar as experiências do período de crise.
Após esta digressão, voltemos ao Fédon. Segundo Platão, uma vez no corpo, à alma cabe comandar, como convém ao divino e mais puro. (80a) Mesmo o corpo leva tempo para se dissolver, e pode ser conservado após a morte, se devidamente preparado. E mesmo quando não, algumas das partes são permanentes7, como ossos. A alma sendo incorruptível, ou quase, também se conserva, tal como as partes mais resistentes do corpo. A alma que se conserva íntegra, praticando a virtude, vai para a companhia de um bom Deus, onde está livre das vicissitudes do corpo. (80c-81a)
Por outro lado a alma que esteve muito ligada ao corpo, sem cultivar as qualidades superiores, mas apegada às temporárias, que sempre se apegaram às coisas visíveis e se afastaram das invisíveis, serão arrastadas para as partes obscuras do Hades, onde habitam fantasmas tenebrosos.8 É provavelmente este o destino dos maus.(81b-81e)
Os que praticaram glutonice irão para os corpos de porcos e asnos, os que praticaram o mal para os de lobos e abutres. Os que praticaram a virtude vão para espécies mansas e sociáveis, como abelhas e vespas, ou de volta à espécie humana, como pessoas moderadas. (82a-82c)
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5-Edwards, Paul. "Introduction." In Immortality. Edited Paul Edwards. New York: Macmillan, 1992: 1-70
6-Disponível em vários sites na internet, como: www.geocities.com/gilson_medufpr/caso.html , www.str.com.br/Atheos/caso.htm , www.ateus.net/artigos/critica/o_caso_contra_a_imortalidade.html
7-Não se conheciam os estágios mais avançados da decomposição?
8-Ao que parece a "observação" de espectros serve como confirmação dessa hipótese.

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Para junto dos deuses, somente os que se dedicaram à sabedoria, os filósofos, acautelando-se contra os apetites do corpo e não seguindo riquezas e honrarias. Os filósofos sabem que nada devem fazer contra a filosofia e seguem a direção por ela sugerida. (82c-82d)
Esta analogia implica a possibilidade de que alguns elementos mentais se dissolvem e outros não. Os mais diretamente ligados ao corpo pereceriam, tal como o próprio, os mais ligados às Idéias sobreviveriam, bem como os elementos Mentais atrairiam a Mente para seus semelhantes.
O interessante dessa concepção é que ela justifica a idéia de uma "Justiça Divina", porém sem elementos exatamente éticos, ou seja, o que determina o destino das mentes não seria exatamente uma "legislação" no sentido de recompensa e punição, mas antes uma atração "natural" entre os similares.
Esta interessante idéia nos leva a crer que originalmente o Universo poderia não ser essencialmente ético, mas que nós atribuímos essa idéia a sua natureza intrínseca, de modo que nossos juízos éticos estariam de acordo com certa ordem natural de eventos. Haveria então o bem na natureza, mas não por ser o Bem, mas por ser a Natureza, ou melhor dizendo, o que é bom estaria de acordo com certas diretrizes naturais.

O texto prossegue afirmando que os filósofos sabem que quando a Filosofia passa a dirigir-lhes a alma, esta está ligada ao corpo, de modo que é forçada a ver a realidade como através de grades. Sabe que o pior dos males é conferir ao prazer ou sofrimento mais intensos a qualidade de mais real das coisas, quando na verdade se trata de coisas visíveis e transitórias. Estes são como pregos que prendem a alma ao corpo, e esta é obrigada a assumir os hábitos do corpo, impedida de se purificar e logo caindo de volta em outro corpo assim que a morte lhe leva ao Hades, ficando alheia da divindade. (83a-83e)
A similaridade com doutrinas budistas é flagrante.9 Nota-se que: Ou houve uma desconhecida ligação de idéias na antiguidade, uma vez que a Filosofia grega e a Oriental surgem e se desenvolvem quase ao mesmo tempo, ou o que é mais provável, há uma convergência natural no pensamento quando este é levado a examinar as mesmas questões sob contextos similares. Nesse caso, o que quero enfatizar mais é o dualismo intrínseco das duas doutrinas.
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9-Como exemplo o atual mais famoso divulgador do Budismo, o 14o Dalai Lama Tenzin Gyatso. Um resumo da concepção do budismo tibetano pode ser visto em O Despertar da Visão da Sabedoria, Editora Teosófica, Brasília-DF 1992. Especificamente nas páginas 25 a 28, onde destaco: "...o conhecimento não se origina de fontes materiais, pois estas são de natureza diversa daquela da mente. Pelo contrário, após o surgimento de causas de natureza não material, o conhecimento aparece para nós como tendo exatamente esta mesma natureza não material, (...) Cada estado mental* surge na dependência de outro estado mental*." (* citta, que também se traduz "Mente".)

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Voltando ao texto: devem ser temperantes e corajosos os verdadeiros filósofos, pois aprendem que não serão libertos do corpo para depois voltarem a ser acorrentados, mas sim que fiel à razão e acalmando as paixões, não teme que sua alma se dissolverá aos ventos, ficando então em nenhum lugar. (84a-84b)
Mas seria como a dissolução no absoluto? Nirvana? E quanto à companhia dos Deuses no Hades? O fato destas implicações terem ficado sem resposta reforça ainda mais a similaridade com conceitos do Budismo, onde esta perspectiva de dissolução constitui elemento central doutrinário.
Seque-se um prolongado silêncio e meditação de Sócrates, que então continua dizendo que é como os cisnes, que quando próximos da morte, sendo pertencentes a Apolo, cantam alegremente, ao contrário do que pensam os caluniadores que dizem que estes cantam de tristeza. Símias diz: Se nesta vida não for impossível saber a esse respeito ("Vida Pós-Morte") algo definitivo, é extremamente difícil. Mas será fraqueza deixar de analisar de todos os modos o que foi dito, e não devemos abandonar o assunto enquanto não cansarmos. Assim, temos o dilema: aprender e descobrir do que se trata, ou se impossível, adotar a melhor e menos contestável opinião, e nela confiarmos na travessia da vida, caso não venhamos a ter uma palavra divina. Diz também que nem tudo o que Sócrates disse ficou bem fundamentado. (85a-85b)
É certo que quando está arruinado o instrumento musical, a música que ele tocava não deixa de existir. Porém, antes da total corrupção deste já é possível a interrupção de sua capacidade de tocar. Correlatamente, o corpo, mesmo que degenerado, permanece mesmo depois do desaparecimento de muitas das faculdades racionais dos humanos, sendo assim, e no caso de ser a alma a mistura harmônica de todos os elementos físicos, não seria esta destruída mesmo antes da total corrupção física? (86a-86d)
Sócrates, após um tempo de silêncio, admite o valor do argumento e oferece a palavra à Cebete, que diz não discordar da pré-existência da alma, mas sim de sua pós-existência. Contesta o argumento de 80c a 81a, sobre permanecerem partes mais resistentes do corpo após a morte, e sendo assim, a Alma, que é muito mais resistente, necessariamente deveria permanecer. Para isso, faz a analogia do velho tecelão, na qual uma roupa usada e feita por ele mesmo, que ainda subsista após sua morte, não serviria de prova para sustentar que ele ainda estivesse vivo. Como em geral o corpo humano é mais durável que uma roupa, seria como afirmar que o fato da roupa permanecer implicaria que o tecelão teria que ter permanecido também. (87a-87e)
Desta forma Cebete refuta notavelmente o argumento de que a permanência de parte do corpo poderia demonstrar a permanência da Alma, que seria ainda mais resistente. De modo ainda mais ousado, retomando a mesma analogia, usa um argumento até hoje muitíssimo explorado pelos adversários da possibilidade da permanência transcendente da Mente, ainda que revestido de toda uma terminologia científica contemporânea.

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Ao mesmo tempo, apresenta um argumento não contra essa possibilidade de transcendência, mas contra a imortalidade, que são coisas diferentes. O fato da mente poder existir além da morte física não implica necessariamente em que esta seja imortal, mas sim que tenha uma resistência maior do que aparente.
O argumento prossegue com a idéia de que a alma é como o tecelão que continuamente tece a própria roupa, usando várias ao longo da vida, até que morre antes do desgaste da última, No entanto, ao fazê-lo, é como se a roupa se desgastasse aceleradamente, dissolvendo-se na putrefação. Correlatamente, poder-se-ia dizer que a Alma usa vários corpos ao longo de várias vidas, porém, num dado momento, também deixa de existir. Sendo assim, é bem possível que a atual existência seja a última, e que a morte da Alma coincida com a morte do corpo. (88a-88b)
Aqui o diálogo toma um novo rumo, uma vez que promoveu uma forte auto-crítica. Nesse momento do texto, Fédon interrompe a narrativa e comenta sobre a desagradável impressão que acometeu aos ouvintes de Sócrates, como se um argumento decisivo emergisse contra a imortalidade da alma. Então louva a sagacidade e elegância com que Sócrates superou tal argumento, onde Fédon serviu de escudeiro à maneira de Iolau para Hércules, visto que Sócrates enfrentava argumentos de duas frentes. (88c-89c)
Antes de proceder sua argumentação, Sócrates adverte contra o perigo dos extremos, achar que uma aparente falha num argumento implica neste ser de todo errôneo, bem como o inverso, pois a maioria está num meio termo tal como a maioria dos homens está numa estatura média e numa moral média, sendo raros os muito altos ou baixos, ou totalmente bons ou maus. Adverte também para prestar atenção aos interesses por trás do argumento, e para dar mais valor à Verdade do que a ele próprio. (89d-92a)
É curioso notar como mesmo 2300 anos depois, após incontestes avanços na área da neurobiologia, a essência do questionamento não tenha mudado muito. A versão moderna do argumento das roupas reaparece inusitadamente na questão da continuidade, que será tema de nosso capítulo final. A troca constante de roupas é comparável à incessante transformação do organismo humano, que se regenera e troca suas células praticamente por completo em pouco mais de uma década.
Platão considera que haja uma Alma que se preserva, apesar de sua relação com o corpo, e isso garante a identidade humana ao longo do tempo. O corpo é então um processo dinâmico, e como nem Platão discorda, a Mente também é. A questão colocada é muito similar à atual que afirma que mesmo que haja um dualismo de substância, uma vez que o corpo se corrompe, nada garante que o mesmo não aconteça com a Mente. Um de meus principais objetivos é mostrar que há algo de errôneo nesta afirmação, mas somente quando formos capazes de separar os conceitos de Alma e Mente devidamente a fim de evitar maiores dificuldades. Mas retomemos o texto.

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Se aprender é recordar, então, admite-se que a alma pré-existe ao corpo, o que é aceito pelos dialogantes. Dessa forma, não pode ser um tipo de "harmonia", ou "afinação" 10, visto que se configura somente após ser executada por uma estrutura pronta que pré-existe à mesma, no caso um instrumento. Além do fato da harmonia / afinação ser claramente composta, quando antes (78c-79b) já se havia admitido que a Alma fosse única (92b-92e). Sócrates lança o primeiro ataque a esse perigoso argumento de uma forma que depende de qual seja a melhor tradução para armonia. Por um lado esta é de fato composta, o que parece não se admitir da Alma, embora isso talvez não faça sentido 11, visto que esta agrega diversos conteúdos como as várias reminiscências. Por outro lado, é estranho afirmar que a harmonia suceda necessariamente o instrumento, visto que já pode ter sido composta anteriormente, e então ser executada. Isso até mesmo levaria a uma interessante analogia com o Mundo das Idéias, como se a harmonia em si fosse a Idéia, e sua execução no instrumento, que em geral não é perfeita, somente um reflexo da mesma. Traduzido esse conceito como afinação, o argumento possui força muito maior.
Voltando à unidade da Alma, como poderia ser sustentada diante da ampla variedade de conteúdos mentais? Mesmo o mundo das Idéias é claramente composto! Nesse caso, uma vez que a cada vida a Alma coleciona novas experiências que perduram, fica estranho sustentar essa unidade a não ser num aspecto da Alma, que é o aspecto vital. Nesse caso, esse princípio vital poderia ser único mas separável dos conteúdos formais da Mente, que parecem muito bem ser coletivos.
Afinação, segundo Platão, não pode proceder de modo diferente dos elementos, pois não os conduz, mas sim é conduzida por eles, podendo estar afinada em grau maior ou menor, de acordo com o que é produzido pelos elementos que conduzem o som. Se a Alma assim fosse, também assim deveria proceder, considerando que a afinação estaria nas Virtudes e a desafinação nos Vícios, e assim a Alma deveria participar da natureza dos Vícios, assim como a afinação deveria participar da natureza da desafinação, o que é contraditório. (93a-94a)
A afinação também deve estar de acordo com os elementos que a conduzem, já a Alma pode se opor ao corpo, de modo a resistir-lhe às paixões, visto que assim não sucede à afinação, a Alma não pode ser um tipo de afinação.(94b-95a)
E finalmente um argumento aparentemente decisivo, que funcionou mais por negar a analogia entre afinação e Alma, embora algumas peculiaridades pareçam persistir. Se a Alma reencarna, passa por experiências diferentes, incluindo no "além vida", pois levaria as consequências de sua última encarnação.
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10-Agradeço ao professor Luis Márcio Nogueira Fontes a sugestão de tradução do termo grego armonia como "afinação".
11-Hackforth, inclusive, considera falacioso atribuir à armonia a idéia de não aceitação de gradações.

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Que acontece com os conteúdos da Alma que antes humana, renasce num animal? Ao que parece somente as reminiscências do Mundo Ideal, por sinal coletivas, se perpetuam indefinidamente, mas a personalidade específica de cada encarnação poderia muito bem se dissolver por completo.
Recapitulando o argumento de Cadmo, a Alma poderia ser precedente ao corpo e sobreviver por algum tempo após a morte deste, porém, nada garantiria que fosse de fato imortal, podendo um dia vir a perecer. (95a-95e)
O diálogo então parece voltar a um ponto anterior, visto que tal questão parece ter ignorado o Argumento da Indestrutibilidade da Alma.
Sócrates retoma dizendo: "Outrora me interessava saber História Natural, e conhecer as causas das coisas, porém a medida que indagava, percebi que não só não as descobria, como mesmo deixava de saber o que sabia, a exemplo da questão da soma das unidades. (96a-97b) Estudando Anaxágoras, considerei que tudo fosse organizado pela Mente, de modo a ordenar a Natureza da melhor forma possível. Assim, dediquei-me a estudar este mestre e descobrir as razões das coisas assim serem, da Melhor e da Pior forma, sendo a primeira a definir a ordem da natureza." (97c-98b)
Aqui surge finalmente um termo (nóus) que poderia ser traduzido como "mente", ou por vezes "espírito", e que tem claramente a implicação de uma Inteligência. É interessante então notar que a palavra "espírito" em outras tradições designa exatamente a "vitalidade" que anima os seres vivos, a exemplo do "sopro de vida" bíblico. Assim, conceitos de Alma e Espírito se confundem, e por vezes são usados com conotações opostas.
Sócrates continua dizendo que se decepcionou ao ver que apesar da insinuação da causa mental, Anáxagoras recorria sempre ao Éter, Água e Ar como causa das coisas. De forma similar à que atribui como causa das coisas as condições materiais, tais como responder a questão "Por que estou aqui?" afirmando que devido aos músculos e ossos estarem nesta posição. Opinião absurda. E nem sequer procura conceber a potência verdadeiramente causadora. Assim, impedido de encontrar um autor que de fato conheça as causas, bem como conhece-la por si próprio, Sócrates empreende investigação em busca da mesma. (98c-99d)

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Faltava a distinção aristotélica das causas, pois Sócrates está a criticar aqueles que sendo indagados da Causa Final, ou ao menos Eficiente, respondiam da Causa Material ou Formal. Esse é um exemplo de como o avanço do pensamento, e o surgimento de novas terminologias, podem ajudar a esclarecer ou mesmo dissolver os problemas. O mesmo pode ocorrer com o uso exclusivo do termo Mente para a questão de nossa sobrevivência individual. Outro detalhe interessante é notar que o termo nous logo se retira do diálogo sem maior significância.
Sócrates se precaveu contra o risco de fitar diretamente a verdade, e ficar cego tal como quem fita diretamente o Sol, e por isso aventurou-se pelo pensamento e investigou a partir do princípio que se mostre mais forte, e sirva de guia. (99e-100a)
Existe o Belo e o Bem em Si, assim como a Grandeza e a Pequeneza, e é por participar destas realidades que algo pode ser considerado Belo, Grande ou Pequeno. Da mesma forma, é por participar da Dualidade que é possível a Soma. (100b-100e)
Um homem pode ser menor que um e maior que outro por participar da Grandeza e da Pequenez, embora não das duas ao mesmo tempo no mesmo aspecto, pois a Pequenez não pode se tornar Grandeza e vice-versa. (101a-101c)
Mas isto não seria negar o Princípio de que uma coisa nasce de seu contrário? Não, pois antes foi dito que de um Contrário procede o outro contrário, mas não que este Contrário se torna o outro contrário. (103a-103c)
Essa indagação parece colocar uma contradição entre esta idéia e as contidas em 71d-72a, porém Sócrates a rebate com um esclarecimento que pode ser uma precursão do princípio Lógico aristotélico da Não-Contradição.
Prosseguindo: Não somente os princípios contrários se repelem, mas também coisas que deles participam. A neve que participa do princípio do frio, se derrete se exposta ao fogo, que participa do princípio contrário do calor. E também outros princípios se repelem mesmo sem serem contrários, como o 3, que não pode se tornar 2 sem sofrer transformação, pois participam de princípios diferentes, porém não contrários. (130d-104c)
Mas não seria assim devido ao 2 e 3 participarem respectivamente dos princípios contrários de par e ímpar? Sim, mas no caso há vários tipos de entidades que partilham do Par ou Ímpar, porém ao aproximar-se uma de outra, a contrária se retira. Mesmo sem ser o contrário de 2, o 3 não o aceita. (104e-105a)
Parece difícil distinguir entre uma idéia e outra. Não seria talvez que o 2 e o 3 se repelissem mesmo sem ser contrários, mas sim que os princípios de par e ímpar o fizessem. Sendo assim, os auto repelentes sempre seriam de fato contrários. O argumento parece se assentar no princípio de Não-Contradição.

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Mas o texto prossegue afirmando que se admitimos que algo deixa de participar de um princípio sem que este se destrua, (ao se tornar 3, o 2 deixa de ser par, mas o Princípio de Par não é perdido), então sendo a morte o contrário da vida, ao se aproximar do corpo, o princípio da vida, que é a alma, deve se retirar, pois não pode participar da morte. Logo, a alma é imortal. Assim, ao chegar a morte, o que for mortal, o corpo, morrerá, mas o que é imortal se retira, e assim são os humanos então fundamentalmente imortais, assim como ainda mais os deuses. Embora já esteja tudo muito bem estabelecido, resta porém uma análise mais profunda dos fundamentos deste discurso. (105c-107b)
Vemos aqui uma abordagem nova, de que a alma é, entre outras coisas, o "Princípio da Vida", e assim não poderia compartilhar o seu contrário, a morte. Esse pode ser chamado o Argumento da MÚTUA EXCLUSÃO, no caso, entre alma/vida e morte. Embora em termos conceituais isso pareça facilmente aceitável, poder-se-ia considerar que neste caso Alma, tomada no sentido de anima, seria um mero "sopro vital", sem que necessariamente implicasse possuir os conteúdos mentais. Mas uma vez parece evidente a confusão decorrente do termo Alma.
É notório que o que irá justificar essa necessária correlação será, mais uma vez, a Doutrina das Idéias, que pressupõe que a mente está repleta de conteúdos formais imortais. A subordinação de todo esse discurso ao pressuposto do Dualismo está mais que evidente.
Sócrates afirma que se a alma é imortal, convém cuidar dela não apenas nesta vida, mas o tempo todo. As almas no Hades são guiadas por demônios ao seu destino. As ditosas encontram sua moradia apropriada, ao lado de almas justas e deuses. As que se apegaram ao corpo podem ficar presas ao mundo visível, tendo que ser levadas à força pelo demônio 12, e não encontrarão boas companhias. (107c-108c)
Já próximos do final do texto, de 108d a 113c ocorre uma magnífica exposição do Mito do Destino das Almas, com uma descrição bastante detalhada dos mundos subterrâneos e celestiais. Infelizmente pouco importa ao tema em questão, mas merece ser elogiada.
Nesse mito, todos os mortos são julgados de acordo com seu procedimento em vida. Os irrecuperáveis, devido a crimes terríveis, são lançados para sempre no Tártaro. Os recuperáveis também vão para o Tártaro, mas as ondas os desviam para o Cócito ou para o Priflegetonte, onde vagam por maior ou menor tempo até receberem o perdão de suas vítimas, e rumarem para a lagoa Aquerúsia, aonde vão diretamente os de comportamento mediano. Lá banham-se e se purificam de penas mais leves, sendo absolvidos e recompensados de acordo com seus méritos. Os santos são dispensados da vida subterrânea e passam a residir na Terra 13. Entre estes, os suficientemente purificados pela Filosofia vivem sem corpo e em moradas ainda mais belas. É preciso fazer de tudo em vida para adquirir a virtude, e então gozar as recompensas. (113d-114c)
Talvez o mais curioso seja que apesar da influência grega no cristianismo, e até a atualidade, não só o termo "demônio" possuía uma outra conotação como a idéia do mundo subterrâneo era deveras distinta.
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12-Convém lembrar que aqui, "demônio" inclui todos os entes espirituais, e não somente os malignos. Aliás, em geral, os demônios da mitologia grega não são malignos. Somente após o cristianismo, com base na teologia bíblica, que o termo demônio passou a designar necessariamente um ente maléfico.
13- Provavelmente a Terra subterrânea, equivalente talvez aos Campos Elíseos.

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O Hades não admite tradução para nossas concepções atuais de Inferno, e mesmo mundos ditosos, como os Campos Elíseos, são para os antigos gregos, no subterrâneo. Vale lembrar que na Mitologia grega pode-se dividir o Mundo Subterrâneo ao menos em 4 partes. O Hades seria o local de entrada, onde todos são julgados. Os maus são lançados a um local equivalente ao Inferno, e os bons seguem aos Campos Elíseos. O Tártaro, para algumas concepções, seria o inferno dos imortais e Titãs.
Nos momentos finais do texto, Sócrates declara que não é sensato afirmar positivamente que se dê exatamente como o assim exposto. Quanto à alma porém, que é imortal, deve-se proceder de forma semelhante. Admitir tal posição é um ato de Fé, que compensa o risco da posição contrária, e para a qual se ajusta com facilidade aquele que abraça uma vida de cultivo à alma, à instrução e às virtudes, que lhe caem como jóias da mais feliz indicação. (107c-115a)
A prudência platônica, um cuidado contra o dogmatismo, se manifesta de forma notável aqui, e há algo muito sutil mas de grande importância, que é a vantagem em apostar no Pós-Vida. Pois Sócrates declara: "Mas crer que é uma coisa semelhante o que se dá com nossas almas e o seu destino - porque a alma é evidentemente imortal - eis uma opinião que me parece boa e digna de confiança. Belo será ter esta coragem! É preciso repetí-lo como fórmula mágica e é - palavra! - por tal razão que há muito estou a falar nessa lenda mitológica. Pois bem! Considerando estas crenças, deve permanecer confiante sobre o destino de sua alma o homem que durante sua vida desprezou os prazeres do corpo e os ornamentos deste, ..."(114d-115a).
Podemos ver que há um nítido teor reconfortante nessa convicção, que torna a normalmente angustiante perspectiva da morte em algo até mesmo regozijante. Comparemos isso com o que é dito anteriormente: "...se verdadeiramente a alma é imortal, cumpre que zelemos por ela, não só durante o tempo atual, isso a que chamamos viver, mas também pela totalidade do tempo; pois seria um grande perigo não se preocupar com ela. Admitamos que a morte nada mais seja do que uma total dissolução de tudo. Que admirável sorte não estaria reservada para os maus, que se veriam nesse momento libertos de seu corpo, de sua alma e da própria maldade! Mas, em realidade, uma vez evidenciado que a alma é imortal, não existirá para ela nenhuma fuga possível a seus males, nenhuma salvação, a não ser tornando-se mais sábia." (107c-107d)
Ou seja, por uma questão de prudência, é mais sábio viver de acordo com a perspectiva da não dissolução. Temos então uma precursão da famosa Aposta de Pascal. Espero que isso fique ainda mais evidente se recorrermos a um outro texto platônico, Apologia de Sócrates, que ao final declara: "...ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!" (Apologia de Sócrates 40d)

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Como Apologia de Sócrates e Fédon são textos que podem ser relacionados, mesmo porque o último é como uma seqüência do primeiro, podemos inferir que Sócrates acredita ter demonstrado que, caso o destino não seja o nada, será de modo similar ao que acredita. Nesse caso, praticamente reduzimos o possível destino pós-morte a algumas opções comparáveis. Dessa forma, mesmo que não possamos reivindicar certezas sobre o tema, há meios de se avaliar as melhores crenças e as devidas posturas diante delas. Esse é o tema com o qual pretendo fechar esta monografia.

Finalmente, de 115b a 118, Sócrates dá suas últimas recomendações, conversa e consola seus amigos e familiares, é reconhecido como justo mesmo pelo seu carrasco. Enfrenta com dignidade e coragem sua prova final enquanto choram seus companheiros, que o consideraram o mais justo e mais sábio dos homens.

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CRITICANDO O "FÉDON"

Como disse ao início do capítulo precedente, defendo duas teses fundamentais. Primeiramente, uma tese que não enfrenta maiores dificuldades. A teoria das idéias é dualista, pressupondo a existência de uma outra classe de coisas além daquilo que podemos experienciar diretamente por meio dos sentidos. Mas essa tese também vai mais longe, pois afirma que não só o discurso platônico, mas qualquer outro discurso que vise estabelecer a sobrevivência de nossa individualidade após a morte física inevitavelmente será Dualista ou, melhor dizendo, será Não-Materialista, pois pode ser também um monismo em que a única substância não seja a matéria, mas sim aquilo que constitui nossa capacidade de pensar.
Todavia, essa primeira tese fica mais clara se examinada em conjunto com a Segunda Tese, pela qual acho mais prudente começar.
ALMA, ESPÍRITO e MENTE

Um dos motivos que me levam a começar por esta segunda tese é que a mesma já se fez presente. Trata-se da problemática terminológica envolvida na palavra chave usada por Platão. Insisti bastante no capítulo anterior nas dificuldades que o termo Alma implica. Derivado do termo grego psiché, pode ser traduzido também como "fantasma", "sopro" ou "princípio vital", ou anima. Esta última obviamente sugere aquilo que "move", "anima" os seres. Desta forma, tudo o que apresente algum tipo de movimento próprio de certa forma teria uma "alma", haja visto Tales de Mileto considerar que os magnetos o tinham.1
Já na antiguidade, o próprio Aristóteles detectava a ambiguidade do termo, que fundia os conceitos de "movimento" e de "percepção", e sequer havia ainda considerado toda a implicação religiosa. Curiosamente, entre os poetas pré-filosóficos há quem faça distinções notáveis, como Homero que utilizava psiché apenas para a idéia de "sopro vital" em si, e thymos para a parte intelectiva.1
Fundir essas duas idéias distintas numa só talvez tenha sido até uma solução econômica para Platão, que seguramente conhecia a cultura helênica, Orfismo e Pitagorismo inclusos. O conceito de alma platônico é, então, clara e curiosamente composto, havendo ao mesmo tempo o princípio vital e a parte intelectiva, e tal fusão permanece em grande parte até a contemporaneidade, e em muitos casos também incorporando automaticamente a idéia de imortalidade.2
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1-PETERS, F.E. Termos Filosóficos Gregos, Um Léxico Histórico. Lisboa: Calouste Gulbenkian 1983. Verbetes psyché e nous.
2-GRUBE, G.M.A. Plato´s Thought. Capítulo IV The Nature of the Soul.

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Em várias passagens do próprio Fédon, Sócrates defende a imortalidade da alma quase que por definição, como sugere o Argumento da Mútua Exclusão em 105b-107b, nesse caso, lançando mão da significação de vitalidade. Por outro lado, defende a pré-existência da mesma em seu sentido mental, 73a-76e. Ou seja, no que se refere a defender a questão da imortalidade, talvez seja vantajoso misturar os conceitos.
Se considerarmos que há quatro argumentos principais no Fédon, teremos que o Argumento dos Contrários (70d) e o da Mútua Exclusão se aplicam ao conceito de vitalidade, ao passo que o Argumento da Pré-Existência, ou Reminiscência, aplica-se ao conceito mental. Já o Argumento da Unicidade (79b) parece se aplicar aos dois sentidos. Nesse caso, esses argumentos reforçam-se uns aos outros tendo como ligação exatamente a associação dos conceitos de vitalidade e de intelecção.
Vejamos como exemplo o seguinte trecho do diálogo sobre o argumento dos contrários, iniciando-se em 70d.

Sócrates:...as almas dos que morreram existem ou não no Hades? Segundo uma velha doutrina, já aqui regressam de novo, renascendo dos mortos. Ora, se isto assim é, se efetivamente os vivos renascem dos mortos, que pensar senão que as nossas almas ali existiam? Pois se não existirem lá, jamais haveria, creio, a possibilidade de renascerem. Se conseguirmos tornar evidente que os seres vivos provêm dos mortos e de nenhuma outra coisa, isso bastará para comprovar a dita existência das almas. Do contrário, teremos que recorrer a outra argumentação.
Cebes:Sem dúvida.
Sócrates:Pois bem, se queres ir mais facilmente ao fundo do problema, não o encares apenas em função da espécie humana, mas também do conjunto dos animais e plantas, de tudo aquilo que, enfim, está sujeito à geração. E tendo em conta a totalidade dos seres, vejamos se é segundo esse princípio que toda a geração se processa, se é dos contrários, sempre que uma relação desse tipo se verifica: por exemplo, no Belo, contrário do feio; no Justo, contrário do injusto; e assim em mil outros casos. Analisemos, pois, este ponto: se tudo o que existe em relação de oposição se origina necessariamente a partir do seu contrário e apenas dele. Concretizando: quando um dado objeto se torna maior, não será forçosamente a partir de um anterior estado de pequenez que depois passa a maior?
Cebes:Sim.
Sócrates:Admitamos que se torne menor: não será ainda a partir de um anterior estado de grandeza que se torna menor?
Cebes:Exato.
Sócrates:E não é também do mais forte que se origina o mais fraco, tal como o mais rápido, do mais lento?
Cebes:Decerto.
Sócrates:Que tal? Quando uma coisa se torna pior, não é porque antes era melhor, ou quando se torna mais justa, porque antes era mais injusta?
Cebes:Que dúvida!
Sócrates:Bastam, portanto, estes exemplos para concluirmos que todo e qualquer ato de geração se processa dos contrários para os contrários...
Cebes:Seguramente.
(...)
Sócrates:Existirá um contrário de "estar vivo", tal como, por exemplo, o dormir em relação ao estar desperto?
Cebes:É evidente.
Sócrates:Qual?
Cebes:O estar morto.
Sócrates:Ora, se na verdade são contrários, geram-se reciprocamente e, visto serem em número de dois, são também em dois os processo de geração que entre um e outro se verificam. 71d

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Este argumento claramente se refere à alma no seu sentido, praticamente homônimo, de "vida", que se aplica não só aos humanos, mas a todos os seres vivos. Um pouco adiante, porém, veremos que o diálogo prossegue com um outro argumento, que por sua vez trata, a alma como o depositário da intelecção exclusiva dos humanos. Trata-se do argumento da Reminiscência, que inicia-se em 72e.

Sócrates:É também quanto a mim Cebes, o que podemos ter de mais certo! Não estamos, efetivamente, a ser vítimas do erro ao concordar neste ponto; pelo contrário, tudo isso são realidades mais que evidentes: o renascer, a geração dos vivos a partir dos mortos, a sobrevivência das almas dos que morreram.
Cebes: O que aliás, Sócrates, não vem senão reforçar essa conhecida teoria que trazes constantemente à baila, ou seja, que o aprender não é senão um recordar; segundo ela, é indispensável que tenhamos adquirido, em tempo anterior ao nosso nascimento, os conhecimentos que atualmente recordamos. Ora, tal não seria possível se a nossa alma não existisse já algures, antes de encarnar nesta forma humana. De modo que, até sob este prisma, dá idéia que a alma é imortal.
Símias: Mas, Cebes, que provas há a favor disso? Lembra-mas, pois de momento, não as tenho muito presentes.
Cebes: Basta uma, e bem elucidativa: é que, quando interrogamos as pessoas, desde que saibamos interrogá-las, elas são por si capazes de explicar corretamente tudo o que se lhes peça; ora, se não tivessem já um conhecimento inato e uma correta visão das coisas, de forma alguma estariam em condições de fazê-lo. E se em seguida lhes pusermos na frente diagramas ou outras figuras do gênero, então se obterá a prova mais cabal de que assim é.
Sócrates:Porém, Símias, se nem assim estás convencido, vê se concordas com esta explicação que vou te dar. Duvidas, não é verdade, que o aprender, como lhe chamamos, possa ser uma reminiscência?
Símias: Quem, eu, duvidar? Nada disso! Simplesmente, falta-me passar pelo tal estado de reminiscência que a teoria pressupõe! Verdade seja que, com o lamiré de Cebes, já me sinto quase recordado e convencido... O que não significa que tenha menos interesse em ouvir essa explicação que tens para nos dar.
Sócrates:Ei-la, pois! Estamos de acordo, não é verdade, em que para haver reminiscência, é imprescindível que antes tivesse tido conhecimento do objeto que se recorda?
Símias: Claro. 73c

E a explanação ainda procede com diversos exemplos de casos de reminiscências, até que a partir de 77a, quando os interlocutores de Sócrates admitem, por força do argumento da reminiscência que a alma certamente pré-existe ao corpo, mas cobram a evidência de sua pós-existência, Sócrates retoma então o argumento anterior. Como se segue.


Cebes: ...que a nossa alma existia antes de nascermos. Resta ainda provar, portanto, que ela existe para além da morte, tal qual existe antes de nascermos, sem o que não ficará completa a demonstração.
Sócrates:Mas completa está, Símias e Cebes! Basta que articules este mesmo argumento com aquele em que previamente concordamos, ou seja, que tudo o que é vivo provém do que está morto.

Tomemos agora exemplos dos demais argumentos, começando pelo da Unicidade (78b)

Sócrates:Vejamos, não é o ser composto, de natureza compósita, que em princípio se desagrega, decompondo-se exatamente nos elementos que o compunham? E se um ser simples existe, não é apenas esse, mais do que qualquer outro, que está em princípio isento de sofrer tal processo?
Cebes:Parece-me que é exato.
Sócrates:Muito provável, então, que os seres que se mantêm constantes e idênticos a si mesmos sejam os simples, e aqueles que estão sempre em mudança e nunca permanecem idênticos sejam os compostos?
Cebes:Assim também me parece.

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Em seguida, Sócrates associa-se a idéia de Unicidade com a de Invisibilidade, pois sendo todas as coisas materiais compostas, é evidente que as incompostas seriam imateriais e não captáveis pelos sentidos. Mais adiante:

Sócrates:Ora, suponhamos, se te apraz, que há duas espécies de realidade: uma, visível, e outra, invisível. (79b)
Cebes:Suponhamos.
Sócrates:E ainda, que espécie invisível se mantém constante e idêntica a si mesma, ao passo que a visível jamais mantém identidade.
Cebes:Suponhamo-lo também.
Sócrates:Ora, vê, no homem há duas coisas distintas a considerar: por um lado, o corpo, por outro, a alma?
Cebes:Nem mais.
Sócrates:E com qual das espécies dizemos nós que o corpo mais se identifica e se aparenta?
Cebes:Salta aos olhos de qualquer um. É com a espécie visível
Sócrates:E que dizer da alma? Será uma realidade visível ou invisível?
Cebes:Aos olhos dos homens, pelo menos, não é visível, Sócrates.
Sócrates:Decerto! Nem é preciso dizer que se trata de coisas visíveis ou invisíveis à natureza humana! Ou estás pensando em qualquer outra?
Cebes:Não, é na dos homens.
Sócrates: Pois bem, em que ficamos quanto à alma? É coisa que possa ver-se ou não?
Cebes:Não.
Sócrates:Invisível, portanto?
Cebes:Sim.
Sócrates:Por consequinte, a alma apresenta maior similitude com a espécie invisível, e o corpo, com a visível?
Cebes:Nem pode deixar de assim ser, Sócrates!

E agora passemos para o da Mútua Exclusão (105b), que se segue logo após uma série de raciocínios antagonizando os conceitos de Par e Ímpar, Calor e Frio e etc.

Sócrates:...o que se manifesta num corpo que o faz estar vivo?
Cebes:Certamente, a Alma. (...)
Sócrates:Portanto a alma, qualquer que seja o objeto que ocupe, traz sempre em si a vida quando nele entra?
Cebes:Sempre, com efeito.
Sócrates:E existe algum contrário de vida, ou não?
Cebes:Existe.
Sócrates:Qual?
Cebes:Morte.
Sócrates:Ora, de acordo com o que antes se reconheceu, jamais a alma aceitará o contrário daquilo que traz consigo?
Cebes:É mais que evidente.
Sócrates:Vejamos ainda, qualquer objeto que recuse a natureza de "par", que nome lhe damos nós agora?
Cebes:O de "não-par".
Sócrates:E àquele que não acolhe a justiça ou a arte das Musas?
Cebes:Ao primeiro, de não-justo; ao segundo, de não-músico.
Sócrates:E ao que não acolhe a morte, como lhe chamamos nós?
Cebes:Não-mortal.
Sócrates:Ora, é certo que a alma não acolhe a morte?
Cebes:Sim.
Sócrates:Seque-se, pois, que é imortal?
Cebes:É imortal. 106a

Tal como o argumento dos contrários, com o qual guarda semelhança, o argumento da mútua exclusão se aplica à característica de vitalidade da alma, ao passo que o da unicidade se aplicaria provavelmente também ao aspecto cognitivo. Como vemos, a transição de um conceito para o outro garante a eficiência da argumentação platônica em diversas ocasiões.

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No entanto, ocorre ao menos um caso de uma tensão entre um conceito e outro. O Argumento da Unicidade da Alma, por exemplo, é usado em resposta ao medo da perspectiva da não existência pós morte. É evidente, então, que para tal argumento ter força, seria necessário que este sustentasse a sobrevivência de nossa identidade pessoal, que obviamente, só pode se dar na mente. No entanto, tal argumento se aplica muito mais à vitalidade, principalmente se pensarmos num tipo de essência invisível e indestrutível, pois Sócrates estabelece essa relação em contraste à relação das coisas visíveis e destrutíveis, na medida em que antagoniza os fenômenos de corrupção corpórea, que age sobre o visível e destrutível, com a idéia de que a alma invisível não se corrompe. As coisas seriam corruptíveis por serem compostas, mas a alma seria incorruptível por ser una.
Portanto, o argumento implica relacionar a invisibilidade à indestrutibilidade, e esta por sua vez à unicidade. Inicialmente, é difícil ver porque tal relação seja tida como tão espontânea e evidente para a mentalidade platônica. Hackforth 3 acredita que isso se dê por influência de Parmênides, com sua concepção de um Ser com exatamente estes atributos do invisível, indestrutível e indivisível. No entanto, em contrapartida, a questão da reminiscência claramente exige que a alma possua conteúdos compostos, pois há várias idéias distintas entre si, como: ímpar, triângulo, pequeno e etc.
Sendo assim, há dificuldades nessas relações de conceitos no Fédon, como no caso da suspeita transição de idéias exposta anteriormente quando a partir de 77a indaga-se que apesar de aparentemente provada a pré-existência por meio da reminiscência, que evidentemente implica em conteúdos intelectivos, Sócrates sugere apenas adicionar o Argumento dos Contrários (70a-72b), que, por sua vez, claramente requer o conceito de alma como vitalidade.
A ambiguidade começa a se tornar ainda mais grave quando chegamos a 97c, onde surge o termo nous, que pode ser traduzido por espírito, intelecto, inteligência ou mesmo por mente, ainda que sendo usado por Platão mais num sentido de "ordenação racional", que por sua vez contém idéia similar à de Logos. Ora, podemos então afirmar que a alma platônica seria composta de vitalidade e espírito, e isso apenas no Fédon, pois em outras obras, como A República, ocorre a divisão trinária da alma.
Tais concepções diferem sensivelmente, sendo a última ainda reafirmada nas obras Fedro e Timeu. A mais significativa diferença é que enquanto o Fédon propõe uma alma única, que contem a racionalidade em oposição ao corpo que contém as paixões e instintos, a concepção tripartite integra estes últimos numa terceira parte da alma chamada apetites, sendo evidentemente a parte inferior, e curiosamente mortal, tal como a parte intermediária coragem, de modo que somente o Logos, a parte racional da alma, é de fato imortal. 3
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3-HACKFORTH, R. Phaedo. Cambridge University Press. 1955. Páginas 11,12.

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Uma vantagem desta concepção é que ela se livra de algumas dificuldades, como a proposição de que as almas que priorizaram os valores do corpo seriam atraídas para partes obscuras do Hades ou renasceriam em corpos de animais impuros (81b-82c). Se a alma não contivesse qualquer conteúdo relativo a tais impurezas, como poderia ela ser atraída para tais destinos? Se todos os elementos inferiores estivessem restritos ao corpo, não haveria o que ser atraído na alma. Assim, a idéia de que tais elementos integrem uma parte inferior e mortal da alma é mais coerente, e a consequência inevitável é que a alma é composta, integrando uma parte superior, intelectiva, que estaria mais de acordo com a idéia de mente ou espírito no uso da passagem em 97c, que lança mão do termo nous.
Portanto, em ambas as concepções, a alma platônica possui uma parte que podemos chamar de mente, pois seria estranho afirmar que ela possui um espírito visto que este último poderia se referir melhor à vitalidade em si.
Nossa palavra "espírito" originalmente também significa sopro vital, e essa vitalidade, como é notável na mitologia hebraica, tem a função de animar o corpo. Logo no primeiro livro da Bíblia vemos a expressão "espírito de vida" em passagens como "...toda a carne em que há espírito de vida;(...)" [Gênesis 6:17], que no original é ruwach. Este termo é o mais empregado para as mais diversas significações de espírito, como "...o espírito de justiça, e com o espírito de ardor." [Isaías 4:4], ou "...e veio sobre ele o Espírito de Deus." [Números 24:2] ou na própria "...mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas." [Gênesis 1:2]. 4
No Novo Testamento, a tendência continua com o termo grego "pneuma", que é usado em "Espírito Santo" (pneuma hagios) [Mateus 1:18] e mesmo para "espíritos imundos" (pneuma ho akathartos) [Marcos 3:11]. Múltiplas aplicações ocorrem em: "Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele." [Romanos 8:9], onde podemos destacar pneuma Theos e pneuma Christos. E tal uso da palavra vai até o Livro das Revelações: "...que são os sete espíritos de Deus, enviados por toda a terra." [Apocalipse 5:6], onde o original é hepta tou Theos pneuma. A palavra pneuma, evidente raiz de termos relativos a ar em nosso idioma, é também associada à psucho no grego Koiné, e evidentemente psyche no grego clássico.5
Além de ser muito difundida no ocidente, essa concepção ocorre também no oriente. O ideograma japonês Ki, por exemplo, é o mesmo tanto para "espírito", quanto para "ar" e mesmo para "vontade". Ao passo que os japoneses têm também um ideograma específico para espírito/alma/mente, no sentido exclusivamente intelectivo, que é seishin. 6
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4-A Bíblia de referência é a versão João Ferreira de Almeida
5-HURT, John. King James Bible with Strong's Dictionary And Hebrew and Greek Concordances. 2001
6-OHNO, Massao. Curso Elementar De Kanji. 1994. Páginas 152 e 153. Dicionário Básico Japonês-Português páginas 345 e 638. Aliança Cultural Brasil Japão. 1994.

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Nesse ponto, há que se destacar também a versatilidade da terminologia no sânscrito, usada pelo budismo. O termo "alma" novamente traduz atman, num sentido também equivalente a espírito mas sem correlacionar-se com a vitalidade, que por sua vez normalmente associa-se ao termo prana, que traduz também "respiração" num sentido explícito de "força vital". Nenhum desses, porém, é usado na filosofia tibetana para identificar a intelecção, que emprega o termo citta, no sentido de mente.7
A ausência de uma terminologia mais precisa também possui variações no próprio ocidente, pois se as línguas neo latinas, português, espanhol e italiano, possuem o mesmo termo "mente", herança do latim mens, e o inglês possui o termo mind. Por outro lado o francês e alemão não possuem nenhum equivalente específico, usando respectivamente espirite e geist, com as mesmas implicações de vitalidade. Provavelmente não por acaso a Filosofia da Mente é tradição muitíssimo mais forte nos países de língua inglesa, em especial nos E.U.A., que na Alemanha ou França.
O ponto onde afinal quero chegar é que os termos "alma" e "espírito", podem significar a mesma coisa, no caso tanto mente quanto vitalidade, podem cada qual significar um e outro, permitindo as duas combinações, tanto quanto podem cada um significar ambos. No mínimo um destes termos poderia ser dispensado, já que podem ser sinônimos. Ou melhor seria se cada um assumisse apenas uma significação, o que acontece em algumas doutrinas, porém ocorrendo casos inversos. Como exemplo, voltemos ao Evangelho, onde temos exemplos como "...Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento." [Mateus 22:37], que possui seus equivalentes em Marcos [12:30] e Lucas [10:27]. Pose-se notar aqui que "alma" foi tomada com tendo atributos distintos de "entendimento", que é o atributo fundamental na concepção do Fédon. Curiosamente, também foi tomada como distinta de "coração".
Em outras passagens do Novo Testamento temos claramente a idéia de distinção entre alma e espírito, como em "E o próprio Deus de paz vos santifique completamente; e o vosso espírito, e alma e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo." [I Tessalonicenses 5:23], onde se pode ver que os humanos possuem ao menos três constituintes primários. Ainda mais explícita é a passagem "Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão de alma e espírito, e de juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração." [Hebreus 4:12], onde fica clara a idéia de que alma e espírito são distintas e divisíveis.
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7-MONIER-WILLIAMS, A Sanskrit-English Dictionary, Universidade de Oxford, EUA. 1898

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Não obstante, a idéia de um conflito entre corpo e alma, similar à platônica, também pode ser vista em "Amados, exorto-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências da carne, as quais combatem contra a alma;" [I Pedro 2:11]
Dessas sobreposições e transições, o termo "mente" segue significativamente ileso, tendo derivado do latim mens, que em geral traduz nous do grego, Santo Agostinho, na obra O Livre Arbítrio, é um de seus adeptos, usando os termos alma e mente, diminuindo a possibilidade de confusão. Comparando, por exemplo, os capítulos VIII a XI do Livro Primeiro, que tratam da mente como sendo não corpórea e inexistente nos animais, e os Capítulos XX e XXI do Livro Terceiro, que tratam da origem e destino das almas, entende-se a mente como uma parte integrante da alma humana, mais especificamente a parte racional.
Creio que na atualidade o único termo capaz de permitir uma discussão mais objetiva seja 'mente', pois significa de imediato aquilo que mais nos interessa, nossa individualidade, inteligência, memórias e sentimentos. Como um precedente claro disto temos o ramo da Psicologia, que apesar de ser composta pelo termo "psique", se define como área de estudo da mente e ou comportamento. As palavras alma e espírito, no que se refere a seu significado de vitalidade, há muito foram obsoletizadas pelas descobertas científicas que esvaziaram a sustentabilidade de qualquer substância vital, visto que a vida em geral é vista hoje em dia como um modo específico de organizar a complexidade. E mesmo que vista apenas em sua dimensão intelectiva equivalente à mente, elas evocam uma série de conotações tradicionais que não costumam contribuir com o esclarecimento.
Uma dessas conotações é o conceito de imortalidade, que costuma ser considerada uma propriedade intrínseca da alma. No entanto, se pretendemos examinar a possibilidade da mente sobreviver à morte do corpo, não necessariamente temos que nos comprometer de imediato com sua imortalidade. Curiosamente, é exatamente o que o Fédon faz. Se é evidente que a imortalidade implicaria necessariamente a sobrevivência pós-morte, por outro lado, tal imortalidade me parece uma tese muito mais forte e ousada, e de difícil demonstração.
Além disso, os termos "alma" e "espírito" podem ser utilizados numa série de conotações paralelas, como "o espírito da coisa" ou "a alma do negócio", o que não costuma ocorrer com o termo mente, e não creio que a conjugação do verbo "mentir" no presente do indicativo na terceira pessoa do singular seja um problema. Ademais, estas conotações populares para "espírito" e "alma" revelam a já disseminada tendência a ver seus significados como um tipo de "essência" constituinte, que embora esteja mais para o significativo de "mente", ainda engloba a idéia de uma substância fundamental.

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Tanto no senso-comum quanto na cultura pop, o termo "alma" é suficientemente difundido e distorcido a ponto de ser possível a idéia "perder a alma" e continuar vivendo, em alguns casos mantendo praticamente todas as suas capacidades intelectivas, seja aceita como fazendo algum sentido. E não deveriam ser surpreendente tais crenças, pois mesmo no âmbito acadêmico tal termo suscinta confusões.
Por outro lado, o termo "mente" permanece ileso de tais mal entendidos mesmo nesses âmbitos populares e midiáticos de massa, o que reforça a idéia de que possui uma integridade, coerência e resistência muito mais apropriada a uma discussão acadêmica. Mesmo pessoas de baixa intelectualidade ou inteligência, dificilmente dizem alguma impropriedade séria quando usam a palavra "mente", ao passo que o uso dos termos "alma" e "espírito" são sempre confusos mesmo entre os mais sofisticados intelectuais.
O uso exclusivo do termo "mente" não apenas tornaria a discussão menos sujeita à essas diversas interferências tanto no mundo acadêmico quanto no popular, tornaria também mais atual, aproximando-se da atual Filosofia da Mente, que tem andado sintonizada com as mais recentes conquistas da Neurologia e Ciência da Computação. Haja visto a indissociável relação com a Filosofia da Linguagem, Lógica e Filosofia Analítica em geral. Filósofos como John Searle, Noam Chomsky e Daniel Dennett têm estado na vanguarda da relação entre Filosofia e Biologia, e mesmo cientistas como Richard Dawkins e Susan Blackmore tem contribuído com a Filosofia da Mente por meio de propostas inéditas e ousadas como a Memética.8
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8-Sobre a Memética, verificar o último capítulo de "O Gene Egoísta", de Richard Dawkins. Ed Itatiaia Belo Horizonte/Rio de Janeiro, 2001. E BLACKMORE, S.J. The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 1999. Dawkins pode ser considerado o "pai" da memética, visto que foi o criador do conceito, Blackmore a mãe, devido a ao seu subsequente desenvolvimento. A idéia se baseia da teoria egoísta do gene, que analisa a evolução biológica não a nível de espécie ou de indivíduo, mas a nível genético. Os verdadeiros agentes da evolução seriam então os replicadores químicos elementares, os genes, que teriam surgido em algum momento na Terra primitiva e ao longo da história desenvolveram vários meios de reprodução até chegar ao seres macroscópicos. Os animais e plantas seriam como imensos robôs colônias de genes, com o objetivo de aumentar suas chances de continua replicação. Desta idéia, Dawkins sugeriu que surgiu um novo replicador, o "meme", que pode ser entendido como um mínimo pacote de informação com vista a se perpetuar fazendo cópias de si mesmo e instalando-os em outros cérebros. Nossas idéias, sistemas de crenças e em última instância, nossa própria personalidade seriam então "memeplexos", isto é, sistemas colônias de memes, da mesma forma como nossos corpos são colônias de genes, se unindo em grupos para se replicar, bem como disputando contra outros grupos. Dentre as inúmeras consequências desta idéia, a que mais gosto de destacar é o poder replicador virtualmente infinito dos memes, bem como sua capacidade adaptativa. De certa forma, é um paralelo da virtual imortalidade elementar da propriedade mental. É possível então estabelecer uma relação disto com a noção platônica de imortalidade mental, ainda que num sentido mais funcional.

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O DUALISMO DE SUBSTÂNCIA

Minha primeira tese é que Platão é, num certo grau, um dualista, visto que postula uma distinção entre o perene mundo das idéias e o corruptível mundo sensorial. Certamente não tão explícito quanto um dualismo cartesiano, com sua distinção radical entre substância extensa e substância pensante, e também não um dualismo maniqueísta, apesar da afim tensão entre a invisível e indestrutível substância que compõe a alma e a mutável substância material, pois em Platão não parece haver a implicação de Maniqueu com relação a uma necessária escatologia separativista do mundo.1
Poder-se-ia ver o platonismo não como um dualismo, mas como um "gradualismo", visto que há níveis de emanações do Logos no universo platônico que parecem sugerir que a diferença entre a alma e o corpo é antes quantitativa que qualitativa. Contudo, a radical oposição com que muitas vezes a tensão corpo e alma é sugerida parece antagonizar suas substâncias além de uma mera proporção entre o incomposto fundamental, e composto derivado, que viria a ser parte da solução atomista.
Minha proposição aqui é argumentar que o platonismo apresenta então problemas típicos de qualquer dualismo. Se radical como o de Descartes, a questão do relacionamento entre as duas substâncias, se menos radical, a questão de até que ponto a similaridade entre as "duas espécies de realidade" (79b) podem nublar a eficiência das distinções entre o indestrutível e o corruptível.
Ademais, cumpre atentar então para alternativa do Monismo, onde as duas espécies de coisas podem ser reduzidas a uma só, e também uma solução intermediária, o Dualismo de Propriedades, bem como o curioso Monismo Anômalo de Davidson.
Parece muito tentadora a idéia de contrastarmos uma natureza tangível e uma intangível, no caso, a da matéria e a da mente. Uma simples auto reflexão nos leva a crer que nossos pensamentos possuem privilégios não legados aos objetos materiais, como o faz Sócrates. Parece ao menos didático pensarmos em termos de dois níveis de realidade, invariavelmente a sutil como sendo a "matéria-prima" do pensamento, da mente, e a densa como a do mundo físico.
É evidente então que, tendo atributos diferentes haja alguma dificuldade sincrônica entre as substâncias, e aqui surge o primeiro grande problema, largamente usado na crítica a Descartes.
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1-O profeta persa Manes, ou Maniqueu, século IIdec, postulava a existência de dois princípios perenes no universo, um material e outro imaterial, que eram vistos respectivamente como um princípio maligno e um princípio benigno. Todo o sofrimento se dava devido à mistura destes dois princípios, sendo que o maligno jaz na matéria e o benigno na alma. Somente com a subordinação do primeiro pelo segundo era possível resistir aos malefícios da existência, e somente com a separação final dos dois, por meio da morte, era possível experimentar a libertação maior. Tal escatologia se aplicava também ao próprio universo, visto que um dia haveria a separação final e total de ambos os princípios, restabelecendo assim a harmonia. Enciclopédia Mirador Internacional Volume 13, Maniqueísmo. Editora Encyclopaedia Brittanica Do Brasil São Paulo - Rio de Janeiro, 1983. página 7201

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Uma das formas de explicar o porquê da substância pensante não ser diretamente detectável e mensurável por meio dos sentidos seria alegar sua radical estranheza à matéria, mas isso leva de imediato ao problema da comunicação entre as substâncias, pois mente e corpo devem interagir, e sendo assim, devem ao menos compartilhar uma única propriedade em comum. Por outro lado, se tal compartilhamento ocorre, deveria ser possível a detecção de um pelo outro, e até agora isso parece jamais ter sido possível a partir da substância densa. Além do que isto nos levaria a suspeitar de que ambas as substâncias possam ser reduzidas a uma.
No monismo podemos considerar que tal dificuldade de detecção entre tais substâncias se dê por propriedades distintas que estas assumem, ou podemos simplesmente concluir pela não existência de uma delas. Nossa concepção contemporânea e científica de mundo permitiu uma solução monista que eliminou qualquer substância espiritual e mental. O materialismo é bastante coerente, e é concebível graças ao nosso conhecimento do cérebro e de psicologia, sem os quais seria muito difícil negar a existência de um plano existencial sutil que explicasse nossos pensamentos e demais fenômenos tidos como sobrenaturais, ainda que tenha havido algumas escolas consideradas materialistas na Grécia antiga, assim como também no oriente.2
Como podemos ver em 81d, "aparições" fantasmagóricas que hoje seriam explicadas pela sociologia ou psicologia, no contexto platônico demandavam uma explicação diferente, e uma série de outros mitos e sensos comuns compunham uma mentalidade que tornava pouco evitável a postulação de um plano invisível. Dessa forma, é claramente compreensível que o pensamento em tal contexto concebesse um universo composto pelo visível e o invisível, da mesma forma que foi feito por todas as religiões e mitologias em todos os contextos humanos conhecidos.
Isso nos leva ao dualismo, que permeia a quase totalidade das religiões e que teve no platonismo seu representante ocidental antigo mais sofisticado em termos de pensamento. Mesmo assim, esse pensamento não está livre de implicações inerentes a tal concepção. Se na antiguidade, pensar na ocorrência de fantasmagorias poderia ser uma evidência para a possibilidade de contato entre as duas substâncias, hoje em dia, e mesmo antes de Platão, uma inquirição cuidadosa e racional poderia neutralizar tais alegações, e não teríamos qualquer evidência clara da ocorrência de fenômenos oriundos de uma substância do domínio da alma, ou para Platão, das idéias, como ele próprio admite. Se assim, porque tal evidência não ocorre? Por que as coisas indestrutíveis e incompostas devem ser completamente indetectáveis? Responder que é devido a uma natureza diferente da de nossos sensores corpóreos, e mesmo de nossos instrumentos, é uma alternativa racional, mas que nos leva à solução cartesiana de negar similaridades essenciais entre as substâncias.
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2-As escolas hindus Samkhya e Lokayata, ou Charvaka, são consideradas materialistas. Lokayata: A study in Ancient Indian Materialism: Debiprasad Chattopadhyaya, People's Publishing House, New Delhi.

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Para abordarmos o famoso problema Mente-Corpo, ou problema do dualismo, cumpre examinarmos rapidamente a filosofia cartesiana, visto que em conjunto com o platonismo, constituem as mais notáveis filosofias dualistas do ocidente, e também as mais similares entre si no que se refere à ação causal entre mente e corpo, que jamais é negada. O problema pode ser melhor expresso pela indagação de como é possível que duas substâncias totalmente distintas possam agir uma sobre a outra. A falta de terminologia precisa parece ter ocultado esse problema na antiguidade, mas este se tornou explícito e desafiador na modernidade, e praticamente intransponível, pois Descartes não aceita a idéia de uma mente que se "instala" extensivamente no corpo, mas sim que o comanda de um âmbito restrito. Isso é coerente com a idéia de que a substância mental não compartilha a natureza extensional da matéria, e dessa forma, não pode se "alastrar" nela como pensavam também Aristóteles e os escolásticos.5
Descartes, apesar de sua obra dualista, nunca forneceu uma explicação detalhada e eficiente de como a ação se daria, embora tenha lançado várias sugestões. Uma delas implicava reduzir a "área" de contato para uma pequena circunscrição do cérebro, a glândula pineal, até então de função desconhecida e que ocupa o centro da caixa craniana. Seria nesse pequeno reduto que ocorreria o fenômeno, e somente neste, isto é, na glândula pineal humana, visto que os animais seriam autômatos completamente mecanicistas, para Descartes.3
Outras sugestões seriam: que haveria praticamente um tipo de terceira substância que faria tal ligação, que tal ligação fosse feita por Deus (ocasionalismo), ou como o próprio Descartes sugeriu, que pensássemos em tal ação da mesma forma como pensamos que o peso age sobre um corpo forçando-o para baixo, embora o peso em si não seja um objeto material.4
Todas essas sugestões são porém insuficientes para solucionar o problema, pois o peso é evidentemente uma propriedade da matéria, talvez mais difícil de ser vista por Descartes porque este pensava a matéria em termos de Extensão, e não de Massa, como viria a fazer Newton. Alegar que Deus promove o contato também não explica o como, e invocar uma terceira substância parece até piorar o problema, embora sua maior contra-indicação, penso eu, seria que poderíamos então reduzir matéria e mente a essa terceira substância, o que nos levaria a um monismo. Por fim, a glândula pineal também em nada ajuda na solução, pois apenas isola o problema numa "caixa-preta".
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3-Cartas de Descartes à Marquesa de Newcastle, 23 de novembro de 1646, e a More, 5 de fevereiro de 1649.
4-GAUKROGER, Stephen. Descartes - Uma biografia intelectual. Ed.UERJ, 2002. No capítulo 10, no tópico "A Mente no Corpo", o autor faz uma análise das cartas cartesianas abordando opiniões do autor sobre o tema. Embora negue que Descartes tenha postulado uma terceira substância, parece haver traços de ocasionalismo em algumas de suas mensagens, que no entanto só viria a ser desenvolvido posteriormente por outros filósofos como Malebranche.
5-MARQUES, Jordino. Descartes e Sua Concepção de Homem. Edições Loyola, São Paulo, 1993.

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Para melhor direcionar essa questão, lembremos que Descartes frisava que a ação da mente sobre o corpo não era da mesma natureza que a de um corpo sobre o outro, é claro, e com isso ele pretendia deixar claro a total diferença entre as substâncias. Algumas analogias também podem nos ajudar a enfocar melhor o problema deste raciocínio.
A primeira é a das linguagens idiomáticas. Quando dois falantes de idiomas totalmente distintos se encontram pela primeira vez, tal qual os primeiros contatos históricos entre culturas européias e silvícolas americanas, a comunicação só é possível porque apesar da total distinção dos dois idiomas, há gestos, entonações e expressões faciais que agem como ligação entre as duas culturas, e ajudam no complexo e lento processo de interpretação mútua. Não é difícil imaginar que caso duas culturas não tivessem qualquer recurso simbólico em comum, seria impossível desenvolver a comunicação. No âmbito humano é evidente que tal não ocorreria, pois uma série de configurações biológicas sempre irá nos garantir o compartilhamento de alguma característica, aliás, ocorre o mesmo até em nossa relação com os animais. Já, se imaginarmos uma cultura extraterrestre, é mais fácil visualizar essa possibilidade, que tem sido uma preocupação dos cientistas envolvidos nos projetos de procura por sinais de vida inteligente, bem como foi dos cientistas da NASA que prepararam o pacote de apresentação da cultura terrestre a bordo da primeira sonda espacial a deixar o sistema solar. É evidente que caso não haja um mínimo compartilhamento ao menos de "universais" cognitivos e lógicos básicos, qualquer comunicação seria impossível.
A segunda analogia vem do cada vez mais útil, como analogia, campo da informática, que tem sido largamente explorado das mais diversas formas desde logo após Alan Turing, nos mais diversos campos da neurobiologia, filosofia da mente e psicologia, sempre com as devidas ressalvas, e mesmo no senso comum. Se examinarmos a distinção hardware e software, podemos pensar nos mesmos como similares ao dualismo corpo e mente, mas é evidente que o software pode ser reduzido a meros impulsos eletromagnéticos, que por sinal são largamente manipulados na central de processamento dos hardwares, e assim, tudo pode ser reduzido à uma mesma substância eletromagnética, que é propriedade intrínseca da matéria. As analogias informáticas ainda virão nos ajudar em outras ocasiões, mas por hora, vemos que é exatamente por um raciocínio similar que a mente tem sido reduzida a um conjunto de informações, ou funções, do cérebro, sendo o Funcionalismo uma posição muito comum na atual filosofia da mente.

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Abandonemos Descartes e voltemos a Platão, onde embora não caiba toda esta terminologia, o problema pode ser aplicado de forma muito similar. Sendo claro que corpo e alma agem um sobre o outro, como o fazem? E isso não se resume à questão corpórea humana, pois também há alma nos animais. Além disso, é ao menos sugerido que mesmo sem corpo, a alma pode ser influenciada, e influenciar, o mundo físico. Como algo invisível, incomposto e indestrutível se comunicaria com o visível, composto e destrutível?6
Estas palavras já podem nos dar alguma pista, ao mesmo tempo que denotam uma implicação inversa, pois não seria difícil imaginar que assim a matéria bem poderia ser composta pelos incompostos elementos da alma, e dessa forma, teríamos algo similar ao Atomismo, que é evidentemente um monismo. Além disso, ainda temos a idéia de que há níveis de gradação das coisas materiais em direção ao imaterial, se pensarmos que há partes da alma que melhor se relacionam com os elementos do corpo.
Podemos então chegar a um impasse. O platonismo é ou não dualista? Se sim, caímos no problema da comunicação, se não, teríamos outras implicações problemáticas, pois Platão insiste em que a alma é diferente do corpo, e se ambas fossem constituídas de uma mesma substância, ou teríamos a possibilidade de corpos indestrutíveis, ou de almas destrutíveis. Na realidade, esta implicação parece ser suficiente para garantir o dualismo de Platão, pois um monismo, ao que tudo indica, inviabilizaria tal posição, visto que anularia as rígidas distinções entre a natureza do corpo e a da alma, que são evidentemente preciosas no Fédon.
O Argumento da Unicidade, por exemplo, não iria contra a idéia de um monismo gradualista platônico, visto que a alma manteria sua condição indivisível, e poderíamos supor, à maneira de Leibniz, que a matéria fosse formada por "colônias de almas". Isso nos levaria, porém, a um incômodo panpsiquismo, que teria similaridades com o "pneuma" da física estóica.7, o que curiosamente ocorre em religiões contemporâneas.8 Mas ainda mais graves seriam as consequências de supor um monismo se levarmos em conta o argumento da Mútua Exclusão, que evidentemente tende a estabelecer uma dicotomia entre ideal e material, o mesmo poderia ser dito da Reminiscência, e por fim, o argumento dos Contrários talvez até favoreça tal monismo, visto que poderíamos supor que matéria é gerada da idéia e vice-versa.
Como parece, não há um posicionamento muito claro, nestes argumentos básicos, a favor de um dualismo ou de um monismo em Platão. O Fédon não apresenta tal preocupação, e de uma forma geral, a distinção entre Imanência e Transcendência nos gregos antigos ainda parece pouco nítida até a filosofia aristotélica e sua divisão explícita dos mundos sub e supralunares.
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6-Gregory Vlastos, em sua análise do Timeu, ressalta as similaridades da física platônica com o atomismo, enfocando que a grande diferença é que enquanto os atomistas não admitem transformações para seus átomos, que possuem variadas formas, Platão concebe um âmbito de transformações específicas para seus componentes materiais essenciais, que são triângulos, uma espécie de elemento "sub-atômico". VLASTOS, Gregory. O Universo de Platão. Editora UnB 1987. Capítulo 3 - Teoria da Estrutura da Matéria.
7-A idéia de pneuma dos estóicos, que era um tipo de Alma, evidentemente de caráter similar ao gasoso, que a tudo penetrava de forma fluídica. ABRANTES, Paulo. Imagens de Natureza, Imagens de Ciência. Editora Papirus, Campinhas - SP 1998.
8-Espiritismo de Allan Kardec compartilha da idéia de existência de um Fluido Universal Primário.

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Mas um argumento mais plausível que parece eliminar a chance de um monismo platônico pode ser inferido do Timeu, o diálogo onde a questão da constituição substancial do mundo é mais detidamente tratada. Para Platão, toda a matéria pode ser resumida em 4 elementos que são associados a 4 dos poliedros regulares. A terra seria representada pelo Hexaedro, ou Cubo, visto que estes podem ser empilhados e montados de forma relativamente estável, o que indica a rigidez deste elemento. O Icosaedro, que com suas 20 faces triangulares mais se aproxima de uma esfera, representaria a água e sua fluidez. O ar seria relacionado ao Octaedro, um meio termo entre o icosaedro e o Tetraedro, que representa o último elemento físico, o fogo, pois este poliedro é evidentemente o mais cortante e penetrante de todos, em consonância com as propriedades do calor.
Mas eis que temos um quinto (e são somente 5) poliedro regular, o Dodecaedro. Platão via este como representante da substância imaterial, da alma, pois suas faces pentagonais seriam em essência dissociadas de transformações possíveis com os demais poliedros. E embora o hexaedro possua faces quadrangulares, Platão as divide em triângulos retângulos, da mesma forma que o faz com os triângulos equiláteros das faces dos outros 3 poliedros. Porém tal divisão de fato não pode ser tão facilmente aplicada nos pentágonos que compõem as faces do dodecaedro.9
Com isso, fica mais que evidente a natureza distinta das duas substâncias, sem falar que no Timeu há uma cosmogênese que pressupõe desde o princípio uma distinção entre o Caos, que é mistura dos 4 elementos, e o princípio cósmico inteligente do Demiurgo, que molda o mundo a partir do caos.
Por fim, para reforçarmos ainda mais o dualismo platônico com base apenas no Fédon, voltemos à questão da alma afinação/harmonia, onde é rejeitada duramente a idéia de que a alma seja apenas um arranjo ordenado das partes do corpo, o que é exatamente a idéia pressuposta pelo nosso materialismo contemporâneo. Ao não aceitar essa possibilidade de redução ao físico, como a afinação pode ser reduzida ao estado da lira, Platão sacramenta a distinção transcendental entre o mundo físico e o mundo das idéias.
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9-É criticável tal solução platônica. Dos poliedros regulares, somente tetraedro, octaedro e icosaedro possuem faces triangulares equiláteras, o hexaedro resistiria a essa compatibilidade devido a suas faces quadrangulares. Platão sugere que todas as faces podem ser subdivididades em triângulos irregulares menores, porém as proporções das subdividões de um triângulo equilátero e de um quadrado são diferentes, de modo que somente movendo-se seus vértices tais mutações seriam possíveis. Isso não passou desapercebido pelos críticos de Platão, o próprio Aristóteles levantou o problema. (Gregory Vlastos, O Universo em Platão, editora UnB 1987, página 57). Ademais, tal possibilidade também permitiria a construção de faces pentagonais a partir de 3 triângulos irregulares, o que levaria à interação do quinto elemento com os demais. Mas em defesa de Platão podemos supor a hipótese de que uma vez que seja razoável reduzir o universo a 4 elementos físicos mais o quinto elemento, e visto que dispomos de apenas 5 poliedros, parece mais intuitivo admitir o cubo como sendo o representante da terra. Platão também via o dodecaedro como o mais próximo da esfera, o que, num contexto de "perfeição geométrica", justificaria sua escolha como o elemento mais elevado.

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Admitindo então que o Fédon é dualista, deixemos um pouco de lado o problema da comunicação e pensemos que, assim, fica estabelecida a existência de uma substância específica onde ocorre o mental. O mesmo evidentemente deriva de todos os sistemas religiosos conhecidos. Não só a tradição abraâmica como as antigas religiões célticas e os recentes espiritismo e Teosofia, mas também as tradições orientais como o Budismo, o Xintoísmo e o Sikhismo. Há porém, no oriente, uma proposta significativamente distinta, o Bhramanismo, que propõe um monismo onde somente a substância mental é real, sendo o mundo físico uma mera projeção ilusória, maya.
Está na hora, porém, de trazer de volta a analogia hardware e software, desta vez a favor de Platão, pois se considerarmos a natureza eletromagnética do software como análoga à natureza intelectiva da alma, podemos, então, comparar a natureza vital da alma como análoga à propriedade que a eletricidade tem de "dar vida" aos computadores. É como se, ao ligarmos o sistema eletrônico, o "sopro vital eletromagnético" entrasse no corpo do hardware, animando o processador central, os discos magnéticos e as memórias, e só isso permitisse a viabilização e ação da informação de caráter software.
Mesmo assim, podemos agora resumir a problemática do platonismo do Fédon em 3 dimensões distintas, cada qual relacionada a um conhecimento acessível a cada época.

A primeira é de teor terminológico, ou ontológico, e diz respeito ao modo como o texto associa certos conceitos a "realidades" ideais. Uma breve abordagem de similaridade aristotélica e gramatical pode desafiar frontalmente o Argumento dos Contrários, que é caracterizado por contrapor adjetivos como se fossem substantivos. Sócrates afirma que o "pior" se origina do "melhor", que o "quente" se origina do "frio" e etc. Mas essa "ontologização" é seguramente discutível, pois que sentido há na palavra "quente", ou no termo "ruim", que não apenas a expressão de um estado psicológico?
Explicando melhor, nada é quente ou frio por si só, a água a 10oC seria quente para qualquer esquimó no ártico, e fria para um banhista na praia de Copacabana ao sol de 40oC, os termos "quente" e "frio", bem como "alto" e "baixo", "grande" e "pequeno", e similares, não fazem qualquer sentido específico objetivo. O que faz sentido é que uma coisa seja maior ou menor, mais ou menos quente, mas alta ou mais baixa e assim por diante. Ou seja, tais conceitos só fazem sentido como relações. Quando alguém diz que tem "muito" trabalho pela frente, faz no máximo expressar sua baixa disposição psicológica com uma expectativa, bem como quando alguém diz que tem um pequeno problema, apenas expressa que o tal problema seja ele qual for não deverá constituir um aborrecimento significativo ou demandar um esforço "maior". Como podemos ver, essas expressões só podem expressar conteúdos subjetivos, ou traduzir relações, visto que em geral consideramos pequeno algo que seja menor que a maioria das outras coisas.

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Dessa forma, ao tomar esses adjetivos como expressões de realidades ideais, Platão parece fazê-lo de um modo arbitrário e quase sofismático, visto que empresta um teor de objetividade a um conceito que não tem qualquer sentido não subjetivo ou analógico. A situação se agrava quando consideramos o Argumento da Mútua Exclusão, onde essa reificação se radicaliza a ponto de conferir substancialidade definida aos adjetivos, e de suas propriedades além de claras, se tornarem passíveis de conflito. Ao antagonizar a natureza do par e do ímpar, e associá-la à dicotomia vida e morte, fica excluída a gradação, o que é ainda mais grave quando lembramos que a mesma dicotomia costuma ser comparada às dicotomias citadas na ontologização de adjetivos citados no Argumento dos Contrários. Onde por sinal, a associação entre os dois argumentos e sua aparente contradição não passou desapercebida, como visto em 103a. (Vide página 19.)
Ao recusar a gradação, Platão conclui que à eminência da morte, como se esta fosse uma essência que se apossa do corpo, a vida se retira, levando consigo a alma, ou melhor, a alma é, em si, a própria vida, ao mesmo tempo que transporta a mente. O problema é que essa recusa da gradação vai de encontro exatamente à única coisa que faz sentido nos adjetivos/substantivos contrários, que é sua relação. O quente, além de expressão de subjetividade, só faz sentido como uma relação de "maior calor" em relação a algo, ou seja, uma superioridade gradual. Enfim, Platão empresta uma diferença qualitativa e mutuamente exclusiva, a termos cuja única diferença plausível é quantitativa. O resultado final se assemelha a uma falácia do falso dilema misturado a uma comparação descabida.

A segunda dimensão, como já vimos, é a do próprio dualismo em si. Tal como o de Descartes, o dualismo platônico é do tipo que admite a interação entre mental e físico, diferentes dos dualismos ocasionalista e paralelista leibniziano, e sendo assim, fica devendo uma explicação de como o mental e o físico devem interagir. O problema, resumindo, era menos notável na antiguidade, tornando-se mais explícito na modernidade. Em sua maior parte, creio, devido a uma aceitação cada vez menor da ocorrência de fenômenos tidos como espectrais e fantasmagóricos, expondo a falta de evidência de relações diretas mente e corpo.
Não obstante, é preciso frisar, isso não implica desqualificar o dualismo de substância como uma alternativa válida para a composição do universo. O problema existe, mas o fato de não encontrar solução satisfatória não pode ser tomado como uma evidência a favor de sua inviabilidade. É bom acrescentar que sua alternativa, o monismo, quer de natureza mental ou material também apresenta problemas significativos.

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O materialismo apresenta um obstáculo aparentemente também intransponível: explicar a mente e a autoconsciência numa perspectiva reducionista, o que tem sido o foco da Filosofia da Mente, Psicologia Cognitiva e Neurobiologia. O problema pode ser resumido pela idéia de que não conseguimos explicar os fenômenos mentais apenas com base em configurações neurológicas, visto que isso seria, evidentemente, impotente como demonstrativo da subjetividade. Ou negamos tal subjetividade e autoconsciência, o que é, para a grande maioria das pessoas, totalmente inaceitável, ou pressupomos que ela possa ser implementada por estruturas puramente físicas, o que nos leva a algumas consequências perturbadoras, visto que teríamos que conceder o estatuto de humanidade a qualquer máquina que um dia venha a apresentar de modo convincente comportamentos externos característicos dos seres humanos.10
Gosto de expor esse dilema por meio das posições de alguns filósofos da mente notáveis, como Daniel Dennett e John Searle. Dennett argumenta, em sua obra Tipos de Mentes 11, que é, sim, possível implementar mentes equivalentes às humanas em outros sistemas físicos, como computadores. Já Searle nega tal possibilidade, colocando que tal emergência da mente só pode advir do cérebro biológico 12. Se Dennett estiver correto, podemos admitir que, de algum modo, nossa subjetividade e auto consciência seriam um tipo de ilusão, algo que, sem dúvida alguma, soaria a Descartes como ultrajante. Se Searle tiver razão, resta explicar que tipo de propriedade intrínseca da massa cerebral lhe garante esta exclusividade em produzir mentes. O físico Roger Penrose até mesmo levantou uma teoria quântica a esse respeito, alegando que somente certas configurações sinápticas micro tubulares típicas de nosso cérebro permitiriam a emergência de um fenômeno quântico que geraria a consciência 13.
É interessante notar que todos estes filósofos são, em princípio, monistas. Mais interessante ainda é perceber que tal monismo não conseguiu ainda explicar a mente, o que levou Davidson a postular o Monismo Anômalo 14. Nesse caso, embora tudo no universo seja físico 15, somente a mente não poderia ser explicada por leis físicas, constituindo um tipo de anomalia. De certa forma, é uma admissão da impossibilidade de redução conceitual do mental ao físico, apesar da pressuposição de sua redução substancial. Por outro lado Penrose alega que é nossa falta de conhecimento sobre as leis físicas que nos impedem de compreender a mente.
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10-No caso, seria um sistema capaz de passar num "Teste de Turing". TURING, Alan. "Computing Machinery and Intelligence". 1950
11-DENNETT, Daniel. Tipos de Mentes. Editora Rocco. Rio de Janeiro.1997
12-SEARLE, John R. A redescoberta da Mente. Editora Martins Fontes. 1997
13-PENROSE, Roger. A Mente Nova do Rei., editora Campus Ltda, Rio de Janeiro, 1991.
14-DAVIDSON, Donald. Mental Events. Em Lawrence Foster & J.W. Swanson (Orgs.), Experience and Theory. The University of Massachusetts Press. 1970
15-Bom lembrar que em geral os filósofos da mente empregam o termo "Fisicalismo", para evitar certas implicações do termo "Materialismo", em especial, a conotação de "matéria" como um tipo específico de entidade necessariamente constituído de massa. Há alternativas à essa concepção de unidade fundamental da natureza, como modalidades especiais de energias, campos quânticos ou super cordas. No entanto, prefiro manter o uso do termo "materialismo", visto que podemos considerar matéria num sentido menos restrito. Nesse caso, não haveria distinções relevantes entre "materialismo", "fisicalismo" ou mesmo "naturalismo".

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Espero resumir o problema num tipo de apelo ao paradoxo. A mente é como nossa janela para o mundo, é o olho que "vê" todos os fenômenos, o nosso único "ponto de vista". Sendo assim, ela pode "ver" tudo, menos a si própria. Não podemos conhecer objetivamente a mente porque isso implicaria abrir mão de nossa subjetividade, o que é claramente absurdo.
Não podemos negligenciar que, qualquer que seja o modo de pensamento ou de investigação, qualquer que seja a teoria ou metodologia envolvida, o fato inconteste é que todo o universo sempre passará pelo filtro de nossa própria mente, da mesma forma como não importa como seja ou esteja a imagem e a luz do mundo a nossa volta, ela terá que obrigatoriamente passar pelos nossos olhos para chegar ao cérebro. Nossa consciência individual, nossa subjetividade, está irrevogavelmente presente em todo e qualquer tipo de estado mental que vivenciamos, e tal vivência interna é completamente solitária e inviolavelmente íntima.
Disto decorre que não podemos nos esquecer que estudar a mente não pode estar dissociado da idéia de estudar a nossa própria mente. Não faz sentido existir um estudo inconsciente da consciência, pois esta, assim como a mente, a subjetividade, a intencionalidade, não são elementos sujeitos a plena objetividade, pois não podemos nos desvencilhar deles, e assim, tentar entendê-los não pode ser dissociado de tentar entender a nós mesmos.
Por fim, resta ainda uma alternativa que sequer tem um nome bem delineado. Costumo chamá-la de Mentalismo, mas este nome tem outras significações que em nada se relacionam à única alternativa lógica ao materialismo e ao dualismo. Costuma ser mais comumente citado como "Idealismo Monista", e se trata evidentemente de reduzir o físico ao mental, ou seja, existiria somente a substância mental.
Embora este mentalismo tenha, evidentemente, dificuldade em explicar a matéria, nele há uma dissolução espontânea do problema da consciência, visto que esta seria automaticamente dada. Ou melhor, a mente seria o pressuposto existencial do universo. "Eu penso, logo existo", poderia resumir o dogma fundamental. Nesse caso, a ilusão seria a matéria, o que leva imediatamente à questão de como a mente "cria" o mundo material? Por que não temos controle direto sobre ele? Todas as mentes participam desta criação?
A escassez de literatura ocidental contemporânea sobre essa possibilidade talvez revele a intensidade do viés materialista que se popularizou na filosofia da mente, e na filosofia em geral, contrastada apenas pelo viés dualista dos filósofos com inclinações teológicas. Ou seja, uma alternativa lógica e praticamente evidente parece ter ficado sistematicamente ignorada mesmo após o Imaterialismo de Berkeley.16
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16-BERKELEY, George. Tratado Sobre Os Princípios Do Conhecimento Humano. Editora Nova Cultural. 1989. O termo "Imaterialismo" me parece pouco adequado para um projeto contemporâneo por não especificar sua característica monista, pois poderíamos conceber mais de uma substância imaterial.

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Apesar de algumas dificuldades típicas, penso que essa possibilidade teria algumas vantagens interessantes. Ela seria mais simples do ponto de vista occaniano, visto que descartaria a desnecessária "hipótese" de uma realidade física independente apelando para a alegação cartesiana da maior facilidade em conhecer a mente do que o corpo.17 Poderíamos dizer que a existência da mente é simplesmente mais garantida do que a do corpo, e sendo assim, há uma segura realidade mental e uma possível realidade material. Lembrando, é claro, que ao fazermos tal afirmação não podemos evitar um ponto de partida egocêntrico, visto que a evidência prima facie desta existência mental é a nossa mente individual.
Visto que ao menos uma mente existe, a "minha", é provável que existam também outras mentes. Somando a isso as dificuldades de postulação de um dualismo, e confrontados com a possibilidade de redução ao monismo, o monismo idealista seria a teoria mais simples tanto do ponto de vista ontológico quanto epistemológico.
A ocorrência fenomênica do mundo material constitui um claro desafio, mas é bom lembrar que este poderia se dar apenas a nível ontológico, nunca nomológico. Não haveria alteração alguma na Física Clássica, Teoria da Relatividade ou Termodinâmica. Poderia haver implicações relativas à Física Quântica, mas somente num âmbito de meta-ciência, visto que é exatamente o que tem ocorrido a pensadores que tem tentado fazer uma ligação entre a vanguarda da ciência e concepções orientais monistas.18 Assim, nossas atuais concepções científicas, para qualquer efeito prático ou teórico, em nada seriam afetadas, mas nossas concepções epistemológicas teriam que responder de modo diferente ao que tem sido corrente na filosofia analítica em geral.
Tal mentalismo, que talvez ainda espere um nome mais apropriado, tem representantes mais expressivos longe da academia, entre místicos Nova Era em geral, além de remanescentes de religiões orientais. Possivelmente a mais notável religião a trabalhar com o conceito de um universo mental seja a Seicho-no-Ie.
Mas um monismo mentalista mais apropriado a uma alternativa filosófica coerente deveria se livrar de uma série de postulações relativamente arbitrárias na maioria destes sistemas religiosos, mantendo sua simplicidade com poder explicativo e fornecendo uma frente de diálogo com o fisicalismo dominante na filosofia da mente, bem como servindo de ligação entre esta e a filosofia da religião. E isso, seguramente não é uma tarefa fácil de ser realizada.
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17-DESCARTES. Meditação Segunda - Da Natureza do Espírito Humano; E de Como Ele É Mais Fácil De Conhecer Do Que O Corpo.
18-CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. Editora Cultrix. São Paulo. 1985. GOSWANI, Amit. O Universo Autoconsciente: Como a consciência cria o mundo material. Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1998.

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Além das opções dualista e monista, temos o Dualismo de Propriedades, que é basicamente um monismo mas cuja substância assume duas características distintas. De uma certa forma, é o que tem ocorrido em grande parte do materialismo na filosofia da mente, pois é muito difícil negar que exista ao menos uma classe de eventos de características mentais que reivindicam alguma propriedade peculiar.
Parece mesmo difícil explicar a consciência sem ajuda de algum recurso similar, no caso mais corrente, a propriedade exclusiva da matéria para emular a mente. Mas podemos também pensar o inverso, numa propriedade da mente para emular o material. Assim, é bem possível que esse Mentalismo fosse um dualismo de propriedades, possivelmente uma espécie de Emergentismo reverso.19

A última dimensão é, por fim e mais uma vez, a da difícil associação do conceito de Mente ao conceito de Vida, que é essencial na obra de Platão, mas que não sobreviveu sequer até Descartes, que considerava a vida corpórea em moldes puramente mecânicos. A idéia de que exista um tipo de essência vital oculta imanente caiu definitivamente quando seu último remanescente, o princípio ativo da geração espontânea, foi falseado pela onda repercusiva das experiências de Louis Pasteur, já no século XVIII.
Dessa forma, na contemporaneidade é inadmissível pensar nesta natureza vitalista da alma, ainda que a analogia eletromagnética do software lhe seja favorável, pois esta coincidência entre a parte informacional e a energética, necessárias ao funcionamento dos sistemas informáticos, é meramente contingente. Tanto poderíamos ativar engenhos complexos sem eletricidade como poderíamos criar armazenamentos de informações não magnéticos.
Seria interessante notar também que mesmo no âmbito platônico fica a questão de qual a necessidade do mundo material em vista da perenidade do mundo ideal. Visto que o mundo físico parece ser dependente do mundo das idéias, e que este existe por si, porque o Demiurgo moldou o mundo? Porque as almas encarnam em corpos? Porque é necessária sua vitalidade intrínseca para animar a matéria?
São questões que, por mais interessantes que sejam, não me parecem mais adequadas à discussão contemporânea.
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19- Dualismo de propriedades onde a partir de uma propriedade intrínseca a uma substância, emerge um nova propriedade com poder causal. É, por sinal, a posição de John Searle. Essa posição difere do Epifenomenalismo por que neste a mente não teria poder causal. A partir desta idéia, pode-se articular um mentalismo de onde a propriedade material emerge da mente. Se tanto o materialismo quanto o mentalismo forem dualismo de propriedades, cria-se um consenso monista e a dúvida se transfere para qual seja a propriedade original.

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Depois disto tudo, afinal, o que resta então do Fédon? Apesar de muitos de seus elementos nos parecerem como anacrônicos e pouco úteis para o pensamento contemporâneo, creio que haja uma conquista intelectual triunfante, que é a idéia mesma de uma natureza mental. Apesar de todos os nossos avanços nas mais diversas áreas do conhecimento, a possibilidade de que exista uma substância mental autônoma não pode ser negada. Ela é, seguramente, uma alternativa válida.
Historicamente, Platão foi o primeiro ocidental a sistematizar tal concepção, e apesar da evolução de seu conceito, a essência da idéia permanece pouco alterada. Quer exista alma, espírito ou não, o certo é que temos uma dimensão cognitiva. Temos Mente, e muitas de suas propriedades, como vistas hoje pela psicologia, operam de modo similar ao concebido pelo platonismo.
Não precisamos nos comprometer com formas perenes, metempsicose, universais ou ideais, mas a idéia de que o mental seja uma substância submetida a uma natureza própria, com leis próprias, é bastante plausível. Algumas destas leis podem ser os pressupostos da Lógica Clássica, bem como talvez seja coerente eliminar a distinção entre o Logicamente Possível e o Fisicamente Possível, mas reduzindo este último ao primeiro. Enfim, a exploração das possibilidades da existência da substância mental ainda tem muitos desafios pela frente.
A Mente, e sua Meta-Continuidade, quer no dualismo ou no monismo, são então a preocupação última desta dissertação.

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DELINEANDO UM NOVO HORIZONTE

Platão legou a humanidade uma doutrina de substância mental, ainda que mergulhada numa estrutura conceitual bastante diferente do modo como podemos conceber hoje. A partir dele foram desenvolvidos vários outros sistemas de pensamento, mesmo assim, a maioria ainda lhe deve a idéia central de um plano existencial que está além de nossa percepção mas que interage causalmente conosco. Qualquer dualismo de substância interacionista não pode ocultar o fato de que certos elementos platônicos persistem em nossa contemporaneidade, e uma das maiores evidências disto é a ainda ampla utilização do termo "alma", ainda que, atualmente, desprovido de sua significação vitalista.
Richard Swinburne 1, por exemplo, dialoga com a filosofia da mente, e sabe usar o termo mente com a precisão necessária a uma abordagem contemporânea. No entanto, ele fornece uma explicação dualista na qual a mente humana só poderia ser entendida mediante a substância da alma. O que quero frisar é que de um modo ou de outro, o termo "mente" deve ser utilizado. Se nos comprometermos com uma tese mais fraca, e mais cética, podemos trabalhar com este conceito sem nos pronunciar se o mesmo, em última instância, será viabilizado por uma substância mental ou por uma mera constituição funcional de um cérebro material. Portanto, a mente existe como o núcleo de nossa existência. Somos basicamente seres mentais, que por meio de operações mentais, vivenciam o mundo, fazem juízos, tem crenças e esperanças.
De todas as nossas características, uma das mais interessantes é nosso apego pela existência. Somos seres que existimos, sabemos que existimos e queremos existir, e que, no entanto, temos uma perspectiva de não-existência. A experiência que adquirimos no mundo nos leva a crer que podemos deixar de existir assim que nosso corpo falhar, bem como que podemos não ter existido antes. Somos confrontados com a possibilidade de sermos, como dizia Welte 2, um hiato entre duas inexistências.
Diante disto, muitos advogam que apesar das aparências, nossa existência real transcende este horizonte físico, como foi o caso de Platão, no entanto, se assumirmos uma posição cética, veremos que não temos garantia alguma de que assim seja, e assim, podemos sintetizar a questão: Nossa mente continuará a existir além de nosso horizonte físico?
Para especificar esta questão, uso a expressão Meta-Continuidade Mental., que se refere basicamente a idéia de nossa mente possuir alguma continuidade além do que chamo de nosso Horizonte Existencial, ou seja, o período de existência onde há uma clara continuidade dentro de um período de tempo.
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1-SWINBURNE, Richard. The Evolution of The Soul. Oxford University Press, 1997.
2-WELTE, Bernhard, Filosofia de La Religión, Barcelona, Herder, 1982. Capítulo Segundo.

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A solução platônica desta questão implica a idéia da existência de uma substância mental. Se tal substância existir de modo relativamente independente do corpo, a Meta-Continuidade é plausível, ou possivelmente garantida, quer isso se dê num dualismo ou num monismo mentalista. Se, por outro lado, tal substância não existir, sendo o universo puramente material, essa plausibilidade é, muito provavelmente, revogada por completo, ao menos num monismo materialista completamente redutivo, isto é, sem dualismo de propriedades.
Ao que parece, porém, não há possibilidade de obtermos um conhecimento seguro de qual dessas possibilidades corresponde melhor à uma descrição objetiva de nosso universo, o que nos deixa num impasse epistemológico.
Pessoalmente, estou inclinado a considerar um monismo mentalista por uma série de fatores, e um deles se relaciona a um dos mais fundamentais problemas da Epistemologia, o Solipsismo. Digo isso, porque até agora, ao que parece, o Solipsismo tem resistido como uma hipótese simples e irrefutável. Quer o universo seja materialista ou dualista, a simples existência da mente e sua subjetividade torna o Solipsismo imune a refutações. No entanto, tenho considerado que um mentalismo poderia neutralizar o solipsismo, na medida em que esvaziaria sua coerência interna anulando a diferença entre uma única mente envolta num sonho fenomênico gerido por uma poderosa inconsciência, e uma multiplicidade de mentes imersa num sonho fenomênico gerido por diversas inconsciências.
Esse mentalismo provavelmente teria também suas leis, e, sendo substância, certos princípios análogos aos princípios de nossas teorias de constituição da matéria. Em meus anteriores esboços de uma teoria mentalista, que praticamente não se apresentaram neste dissertação, trabalhei com hipóteses como a "Indestrutibilidade Atômica" do mental, que em seu nível mais fundamental, seria ao menos tão indestrutível e perene quanto os elementos fundamentais de nossa teorias físicas. Outro princípio seria o de "Identidade Descontínua" do mental, que seria, neste caso, bem diferente da matéria, pois se um objeto que existe hoje for destruído, e depois de um certo intervalo de tempo for construída uma réplica perfeita do mesmo, seguramente elas não serão o mesmo objeto, visto que são descontínuos. No mundo mental porém eles seriam o mesmo objeto.
Tudo isso, provavelmente, é uma modernização de conceitos platônicos, afinados com recentes descobertas da física e da Teoria da Informação, como a Memética. É um projeto que está latente nesta dissertação, e que prevê futuras dissertações subsequentes, muito provavelmente, passando pelo pensamento medieval de Agostinho e Tomás de Aquino.
Mas, apesar disto, se este mentalismo falhar no objetivo de fornecer uma plausibilidade maior à Meta-Continuidade Mental, ainda nos restará um alívio para nossa ansiedade existencial.

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O do próprio agnosticismo em si, pois devido ao impasse espistemológico e a natureza terminal da possibilidade de inexistência, acreditar positivamente numa existência além de nosso horizonte perceptivo é uma postura isenta de possibilidade de refutação, embora passível de confirmação. Ou seja, quem acreditar numa meta existência, desde que não se preocupe em especificar suas peculiaridades, não tem possibilidade de experienciar seu erro, visto que assumir a postura contrária só resulta na possibilidade de experienciar o erro.
Trata-se, então, de um aperfeiçoamento da aposta de Pascal, também previsto e prenunciado com maestria por Platão, tanto no Fédon quanto na Apologia de Sócrates (vide página 21), e sem incorrer no erro de reduzir arbitrariamente uma gama de possibilidades à apenas duas. Considerando que o nosso futuro seja a Existência ou a Não-Existência, Ser ou Não-Ser, podemos legitimamente falar em apenas duas possibilidades mutuamente exclusivas e então combiná-las com duas posturas distintas, a da crença e a da não-crença em algum forma qualquer de meta-existência.
É importante frisar que estamos falando de uma postura de crença incondicional, ou seja, não se refere a uma crença específica em algum tipo de meta-existência, mas apenas à crença da meta-existência em si, sem lhe emprestar nenhuma particularidade além do mero ser. Nesse ponto, tal consolação não funciona, em absoluto, em qualquer sistema religioso tradicional. Uma vez que acreditemos nessa possibilidade, ficamos na posição confortável de não correr o risco de decepção, pois se estivermos errados, nosso destino será a extinção, onde não ocorre nenhuma forma de consciência. Ou seja, jamais saberemos se estivermos errados.
Por outro lado, se estivermos certos, é possível que saibamos, e se essa perspectiva tiver algum valor subjetivo passional, nos será certamente vantajoso crer nela. Talvez, seja mais evidente colocarmos a questão do ponto de vista oposto.
Se mantivermos uma crença negativa, tendo certeza de nossa futura extinção, evidentemente não teremos a oportunidade de confirmar tal crença, pois estando certos, mais uma vez, jamais saberemos, mas se estivermos errados, poderemos experienciar o erro, e mais uma vez, se houver algum valor subjetivo negativo envolvido, o que é bem provável, estaremos nos colocando numa condição desconfortável, pois a continuidade da existência poderá levar o niilista a uma situação de não aceitação da condição de estar em outro horizonte existencial, o que pode forçá-lo a assumir condutas incompatíveis com sua nova realidade.

Assim, a aposta positiva na Meta-Continuidade Mental seria sempre vantajosa.

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Finalizo essa dissertação com uma reflexão recente, que me acometeu num sobressalto.
Ora, tudo o que temos é existência. Nem mesmo em nossas perspectivas mais materialistas, não sabemos quando deixaremos de existir. Da mesma forma também é impreciso nosso princípio de existência, pois embora saibamos quando nascemos, nossa consciência individual desperta numa nebulosa continuidade no período de alguns anos, em geral impossível de ser demarcada, e só temos uma idéia melhor deste princípio graças aos depoimentos de nossos tutores.
Como seres existentes, não temos nenhuma possibilidade de experienciar qualquer não-existência, mesmo quando inconscientes por algum fator extremo, e quando não temos nenhuma atividade onírica, não temos nenhuma vivência deste período de inconsciência, e se acordarmos após dias ou anos, não teremos tido nenhuma sensação deste período de tempo. Isto decorre da total incompatibilidade de nossa existência com a inexistência, a qual não podemos sequer conceber.
A morte física é uma forma de supormos que deixaremos de existir, e tal suposição se baseia exclusivamente no testemunho do mundo em que vivemos. Essa suposição não tem nenhum apoio interno, não tem nenhum cabimento em nossa existência mental, que não pode conceber a não existência em nível algum.
Podemos conceber muitas coisas não existentes, duendes, fadas, alienígenas, magias ou toda uma série de absurdos. Podemos conceber muitas coisas fisicamente impossíveis, e podemos ao menos discursar sobre coisas logicamente impossíveis, pois temos, em termos aristotélicos estéticos, uma dimensão do poeticamente possível. Curiosamente nem mesmo este último grau tem qualquer chance de expressar o Nada.
Sendo assim, como podemos crer na morte? Na inexistência? Que nos é totalmente inconcebível.
Assim em situações em que sou confrontado com a questão:

Você acredita em vida após a morte?

Penso que talvez a pergunta não faça sentido, e estou mais inclinado a contra perguntar:

Você acredita em morte?
Marcus Valerio XR

12 de Março de 2006

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