É natural, com raras exceções, querer fazer parte de grupos, e isso se dá em vários níveis. Familiares, vizinhança, categorias profissionais, torcidas, religiões, etc.
De forma paralela, agindo em conjunto por meio de estruturas sociais, é natural dos grupos quererem abrigar o maior número possível de pessoas, e conformá-las o máximo possível aos seus moldes.
Quando uma tradição religiosa como os russelitas impede que seus membros jurem a bandeira e se tornem cidadãos plenos com todos os direitos e deveres civis, não o fazem visando proteger o indivíduo de uma tirania do Estado, mas sim porque ela própria quer modelar o indivíduo o máximo possível sob seus próprios parâmetros, não aceitando interferências de algo que considere acima dela.
Quando mega empresas reclamam da intervenção do estado em seus negócios, ou querem flexibilizar leis trabalhistas, não o fazem para proteger os trabalhadores de ditames estatais ou por exigirem liberdade de mercado acessível a todos, e sim porque querem elas próprias ditar todas as leis sobre seus integrantes submetendo-os ao máximo de controle possível com vista ao próprio benefício.
Verdadeiros amantes da Liberdade não apenas querem estar a salvo de ser controlados por alguém, mas sobretudo, a ninguém querem controlar.
Toda instituição, todo grupo que possua um mínimo de regras, não pode prescindir do controle. Toda organização tem que controlar, e quer fazê-lo o máximo possível.
Por isso, desconfie sempre que ver organizações reclamando do controle estatal.
Seja de que ordem for, quando reclamam da presença de um estado ( exceto aqueles inegavelmente opressores ), todo o grupo que finge clamar pela liberdade está muito provavelmente clamando mais pelo seu direito próprio de controlar.
As religiões que em pleno estado secular bradam contra uma suposta interferência do estado nos assuntos religiosos, mesmo que tal interferência seja de ordem puramente civil, estão evidentemente lamentando a impossibilidade delas próprias intervirem no que bem quiserem, como de fato o fizeram historicamente.
Lamúrias de religiosos de que o estado intervém em seus direitos no fundo não passam de lamentos pelo poder político historicamente perdido, e que se depender delas, será recuperado o mais rápido possível.
Ainda mais hipócritas são os setores econômicos que reclamam da regulação estatal, como se defendessem apenas livre oportunidade e iniciativa. Na verdade, principalmente as grandes corporações, no fundo sonham em elas próprias exercerem controle total sobre a sociedade, totalmente imoderadas por uma força maior.
Se a Civilização é impossível sem uma força reguladora, a escolha recai apenas sobre como se modera a intensidade e amplitude do controle sobre os indivíduos.
Há duas formas básicas de possuir grande poder controlador.
Exercer Influência Maior num grupo Menor de indivíduos;
Ou, exercer influência Menor num grupo Maior de indivíduos.
Isso significa que para que um grupo pequeno possa exercer controle sobre um indivíduo a ponto deste desafiar diretamente um grupo maior, esse controle tem que ser mais intenso, caso contrário o controle do grupo maior prevalece.
Por exemplo. O Estado, o grupo maior, nos controla por meio de leis que pouco afetam nossa liberdade pessoal. Precisamos cometer crimes previstos em lei para que o Estado intervenha em nossa liberdade. Mas grupos menores podem exigir de nós coisas que o Estado jamais exigiria, como ditar o modo como devemos nos vestir, com quem podemos nos relacionar, ou que tipo de livros podemos ler.
Mas a partir de um certo ponto, essa forma de controle acaba ferindo a proteção a liberdade individual conferido pelo poder Estatal a todo cidadão. E é principalmente nesse momento em que o grupo menor se sente tolhido em sua liberdade de tirar a liberdade dos indivíduos que controla.
Não que isso seja sempre errado, pois existem excessos do Estado nesse sentido também. Apenas não são o caso aqui.
No nosso contexto, o Estado é quem nos garante, direta ou indiretamente, a própria liberdade, coibindo que líderes locais, pais abusivos ou maridos ciumentos exerçam controle tirânico sobre sua área de influência. Longe de ser perfeito, é exatamente nas falhas dessa presença estatal que ocorre a quase totalidade dos abusos a que somos acometidos.
Costumamos ser frequentemente vítimas de outros indivíduos, grupos e empresas, e o que nos defende é o Estado, além de iniciativas privadas ou individuais que invariavelmente tem que contar com a colaboração estatal, como instituições filantrópicas, grupos de ajuda ou amparo interpessoal. E com todo direito, quando sofremos tais abusos, clamamos pela ação estatal.
Mas existe uma propaganda anti-estatista, incitada por organizações poderosas que se lamentam de não poder controlar elas próprias os seus membros da forma como bem entendem, ao mesmo tempo que tentam de toda forma incluir mil e um meios de regular a vida e invadir a privacidade dos cidadãos. Isso gera uma ruptura conceitual em muitas pessoas.
O mesmo indivíduo que reclama de câmeras de segurança nas ruas temendo o poder estatal, será o que reclamará da falta de segurança e dos meios de punir os agressores quando for vítima de um crime.
Também, quando somos vítimas das ingerências do Estado, também podemos apelar ao próprio Estado para nos proteger, visto que seu esquema de poderes separados permite uma auto contenção. É claro que nem sempre isso funciona. Nada é perfeito.
Cabe ao povo delimitar o poder estatal, e se revoltar quando o mesmo extrapola limites toleráveis. Nesse caso, mais uma vez apela-se à alguma outra instância do Estado, ainda que seja elegendo representantes para alterar a legislação. Somente em casos extremos, quando o Estado não mais atende ao interesse da maior parte da população e foi sequestrado por poderes privados, é que cabe uma rebelião ostensiva, cuja finalidade só poderá ser estabelecer um novo Estado.
O sonho de uma sociedade anárquica pode até ser sedutor. Mas ao menos até onde alcance nossa perspectiva de futuro, está por completo além de qualquer possibilidade de realização. Nem mesmo grupos pequenos subsistem sem algum tipo de controle.
De plausível, só mesmo um Estado cujos postos administrativos e de poder sejam acessíveis a qualquer cidadão que se disponha a preenchê-los, e não fechados a grupos econômicos, étnicos ou ideológicos. É mais nesse sentido que deve ser vista a Democracia contemporânea. Nem é tanto a idéia do voto universal, visto que não o pode ser plenamente. Tem que haver uma idade mínima, e em vários contextos analfabetos ou presidiários estão excluídos do processo eleitoral. Mas o fato de que tal poder de voto tem que ser acessível, bem como os cargos estatais.
Outra característica do Estado Democrático é a liberdade de expressão, para que seja possível a todos reavaliar o papel estatal e da sociedade e sugerir reformas para que sejam avaliadas. Liberdade de expressão essa que também tem que ser garantida estatalmente, e mesmo quando é exercida contra a própria idéia de liberdade, democracia e estatismo, deve ser tolerada, sendo contida em geral por discursos no sentido contrário.
No Brasil, ocorre o fato de que o Estado precede a nação. A Independência foi proclamada à revelia da população e a máquina administrativa já estava por completo montada muito antes da maioria das pessoas ter os mais básicos direitos. Por isso mesmo, com a parcial exceção de São Paulo e alguns nichos do Sul, o povo brasileiro é tradicionalmente estatista, exigindo a presença do estado em quase todos os âmbitos da vida.
Diferente do típico liberal norte-americano, o brasileiro não reivindica o direito a proteger a si próprio, mas sim exige a presença da polícia nas ruas, e que ela o atenda o mais rápido e eficientemente possível. Brasileiros não tomam a iniciativa de consertar os buracos nas ruas ou de adotar crianças abandonadas porque já pagam altos impostos para terem o direito de exigir isso do poder público. Não se vê largas iniciativas de fundar escolas e hospitais privados (exceto grandes corporações) porque isso cabe à administração que é delegada pelo povo ao seus representantes. E menos nos interessam incentivos à iniciativa privada e mais interessam emprego estável, seguridade social e subsídios governamentais.
Num país assim, achar que discursos anti-estatistas sejam bem recebidos, e mesmo quando aparentemente aceitos, sejam sequer compreendidos, é uma completa ignorância das condições históricas e culturais que nos definem.
Embora nada haja de errado em disposições mais liberais e na cultura de livre iniciativa, tentar impor numa mentalidade como a nossa noções que fazem milhões de jovens se aventurar por conta própria confiantes nas maravilhas do mercado para depois se arrependerem de não terem usado sua juventude para garantir um futuro estável, chega a parecer uma perversidade.
Entre outras coisas, isso explica porque abusos como o Neoliberalismo só podem mesmo ser impostos por esforços colossais de órgãos internacionais cooptando elites midiáticas e empresariais que mesmo em 8 anos de governo subserviente ao Consenso de Washington, e totalmente apoiado pela mídia de massa, ainda assim não conseguiram convencer o povo de que entregar suas estatais para o poder de bilionários privados foi uma boa idéia.
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