ATEÍSMO E RELATIVISMO

Comentários à uma Entrevista a um Filósofo

Janeiro de 2012

aproximadamente 11.255 caracteres

Conheço escritos de Paolo Flores D'Arcais do livro DEUS EXISTE?, de co autoria de Joseph Ratzinger, na época em que ainda era Cardeal. É um livro muito interessante, onde os dois debatedores colocam bons argumentos e a discussão flui bem equilibrada, com a vantagem oscilando de um lado a outro.

Não importa sua posição ideológica, acho uma ótima leitura.

Nesta Recente Entrevista, porém, lamento as colocações do Filósofo, que a mim, escorregam em diversos aspectos.

Intitulada Explicações da ciência descartam a 'hipótese Deus', as colocações de Paolo Flores D'Arcais cometem uma série de inconsistências, das quais cito algumas, e que de certo são compartilhadas por muitos militantes ateístas.

Como essa entrevista me inspirou a dizer algumas coisas que há muito pretendia, aproveito para comentá-lo.

Os aspectos problemáticos.

1 - Ateísmo e Naturalismo

1.1 - Atrela o ateísmo ao conhecimento científico, algo que jamais foi necessário, ecoando assim Richard Dawkins ao dizer que "somente após Darwin um ateu pode se dar por intelectualmente satisfeito". Mas basta o puro e simples ceticismo filosófico, que atinge seu ápice em Hume, para deitar por terra a pretensão de verdade do teísmo. Haja visto seu clássico Diálogos Sobre a Religião Natural, que um século antes de Darwin, neutraliza por completo qualquer pretensão teística baseada em observação natural, em especial de ordem cosmológica, e que examinei detalhadamente em minha monografia KOSMOS E TELOS.

1.2 - É certo que a posição humeana, e cética em geral, leva antes ao Agnosticismo, mas deste para um Ateísmo de tipo Negativo, que nega a validade das evidências de Deus, o salto é mais de ordem estética que racional. Não há derivação necessária alguma da suficiência da ciência em explicar o universo para o ateísmo, porque a idéia de Divindade embora tenha se relacionado historicamente com a explicação naturalista, pode facilmente prescindir desta, uma vez que nem mesmo o exame exaustivo e completo da natureza poderia eliminar a possibilidade de uma realidade transcendente. Assim como a confirmação de uma realidade transcendente, se fosse possível, por si só também jamais provaria Deus! Só a abordagem filosófica pode dizer algo a respeito.

1.3 - Ademais, já faz séculos que ninguém mais adere a uma religião em busca de explicações naturalistas. Se é que alguém já o fez. Só mesmo filósofos da antiguidade levantavam deuses como hipóteses explicativas para a natureza. Tente se imaginar dizendo a um crente, especialmente um que entrou numa igreja num momento de crise e superou problemas pessoais, que "Deus não existe porque as explicações da ciência o descartam"! Só não é tão ridículo quanto achar que um Criacionista tem como real preocupação o progresso da Ciência!

1.4 - Até mesmo entre os teólogos mais sofisticados a defesa da existência divina está mais relacionada a questões existenciais, éticas, psicológicas ou qualquer outra, deixando seguramente a questão naturalista em último lugar em qualquer lista de 'motivos para se crer em deus' que se possa conceber.

2 - Cérebro e Transcendência

2.1 - Algo que sempre cobrarei dos materialistas é "Como é possível sequer conceber que a destruição do cérebro prove a inexistência de uma dimensão transcendente da consciência?!" Como sempre, uma constatação dessa só pode nos levar ao ceticismo, e a uma rejeição da hipótese por falta de evidência. Jamais a uma afirmação positiva da inexistência de tal transcendência.

2.2 - Mas Paolo, ao afirmar que o fato bruto da dissolução do cérebro atesta que não pode existir alguma vida pessoal após a morte, 'nenhum lado de lá", transforma uma Hipótese Indutiva numa Certeza Metafísica! Sim, pois testemunhamos por indução que todos os cérebros morrem, e daí extraímos a hipótese, dada a ausência de atividade consciente no corpo, de que a existência mental cessou em definitivo, e que não há forma alguma de Meta-Continuidade da Mente, o que confronta a hipótese contrária, da possibilidade de alguma forma de existência consciente transcendente. Não se trata de afirmar qual é mais provável ou plausível, mas apenas de desqualificar a certeza por uma.

2.3 - E qual a relação direta disto com a existência de Deus? Considerando que Paolo de certo fala para uma cultura predominantemente cristã, parece desconhecer por completo que a Teologia Bíblica está plenamente de acordo com essa assertiva da dissolução da consciência após a morte do cérebro, tanto que atesta a existência pós morte por meio da ressurreição do corpo! Sem o qual, não há qualquer existência pessoal!

3 - Relativismo

3.1 - É difícil até lidar com a afirmação estranhíssima "O relativismo dos valores é uma consequência lógica do ateísmo. Mas, continuaria inevitável também sem o ateísmo." Se uma coisa é consequência lógica de algo, deduz-se que seja necessária. Mas se é necessária também sem esse algo, então é tautológica! Ou seja, tem que ser verdadeira de um jeito ou de outro! O que esvazia por completo a relevância da afirmação. E qual a conexão inevitável entre o ateísmo e o relativismo? Já se construíram absolutismos políticos, filosóficos e ideológicos sem necessidade de deuses. Também já se construiu relativismo com base em deuses. Deus também é relativo, ao menos no que se refere aos assuntos humanos. Doutrina que em Teologia é conhecida como Dispensacionalismo.

3.2 - Daí, que o que se siga seja uma enxurrada de equívocos termina por ser espontâneo. O que ele quer dizer com "Lei Universal"? Um preceito que esteja redigido identicamente em toda parte? De certo seria absurdo num mundo com milhares de culturas diferentes, mas se bastar um preceito que encontre um equivalente em toda parte, então como ele pode negá-lo? Seria capaz o professor Paolo de apontar um único caso de cultura, mesmo uma pequena tribo, onde qualquer um possa arrebentar o crânio de qualquer outro à vontade?!

3.3 - Assassinato, roubo, violência, mentira e ofensa, pelo menos, sempre sofreram restrições em qualquer aglomerado humano. Sempre houve condições especiais e indivíduos privilegiados que podem cometer tais infrações com nenhuma ou pouca consequência, mas sendo sempre exceções. O senhor pode até poder fazer o que bem quiser com o escravo, mas não só o contrário não ocorre como sequer o escravo pode fazer o que bem quiser com outro escravo, visto ser este propriedade do senhor, e nem mesmo outro senhor pode dispor do escravo de outrem! E esse é um dos piores cenários. Sempre existiram regras fundamentais, e nesse sentido o relativismo tem limites. Um grupo humano onde qualquer proteção a garantias básicas seja removida não permaneceria por muito tempo, se autodestruindo ou se dissolvendo.

3.4 - E prefiro apostar na hipótese de que o professor Flores tenha apenas se atrapalhado, pois além dessas possibilidades, só posso conjecturar que ele tenha pretendido dizer que jamais houve um preceito, ou uma "lei", que não tenha sido violada. Se for isso, então o resultado só poderia ser a completa surrealidade. Pois sequer poder-se-ia conceber uma regra, preceito ou lei, contra algo que jamais tenha sido cometido. Sua simples existência como regra pressupõe a existência do ocorrido que se quer reprimir. Bem como é mais que evidente que sua permanência como tal só se explica pelo fato de haver violações recorrentes. As leis jamais extinguem o delito, mas podem contê-lo, restringi-lo, tornando a civilização possível.

3.5 - Para quem apela à ciência e a Evolução Biológica, surpreende que o Professor Flores não seja capaz de intuir o mais primário dos embasamentos fundamentais que podem ser erigidos para a Ética ou outras formas de pensamento, até mesmo com pretensão absoluta. Que é o puro e simples valor da sobrevivência. Uma vez que a quase totalidade dos humanos, assim como os animais, luta por sua existência, a remoção desse fundamento só poderia resultar na extinção da espécie. Se isso não for uma base segura, talvez até "absoluta", sob a qual basear um sistema de pensamento, então muito menos um deus poderia ser, visto que sempre teve como foco maximizar a existência dos que acreditam nele por meio da coesão cultural ou de preceitos que evitem o enfraquecimento direto da sociedade. E se provocam um enfraquecimento indireto, o fazem mais por ignorância.

3.6 - Ao se remover qualquer tipo de base estável, de parâmetro "universal" e se pressupor a inevitabilidade do relativismo, como então sustentar a não equivalência dos valores? A adversativa de Paolo ao tentar separar o relativismo do niilismo parece completamente gratuita e injustificada. Se resta-me apenas a escolha de valores sem nenhum pano de fundo que fornecer uma justificação que transcenda o mero capricho, então como posso condenar a moral nazista de "abjeta"? E não eles condenarem a minha como tal? A moralidade, então, não passaria de lei do mais forte, no sentido daqueles que conseguiram instituir e garantir a primazia de sua moralidade pessoal.

3.7 - Não questiono a noção de "escolha" dos valores, que me parece corretíssima, mas não convém sustentar que tal escolha é completamente arbitrária e injustificável, como ele tenta impedir inutilmente que derive de modo inescapável de seu discurso. Só que é uma escolha pela existência, tanto a nível quantitativo quanto qualitativo. A única superioridade objetiva plausível.

Democracia X Religiões

4.1 - Mas há "flores" no discurso de Paolo D'Arcais. Em seus momentos finais, o autor faz algumas boas colocações. De fato é uma conquista notável a noção de Autonomia humana, que tem sim relação com o destronamento da visão religiosa, na qual o humano deve se submeter ao divino. Mas essa autonomia também não é totalmente livre, e sim subordinada à escolha consciente pela existência, como dito em 3.7. Podemos até escolher o nada, mas será por pouco tempo. Essa escolha pela maior tolerância e solidariedade tem a superioridade de estabilidade existencial, enquanto escolhas contrárias inevitavelmente levam à imediata destruição do outro e cedo ou tarde, pela sua inevitável retaliação, a destruição do opressor, ou , no mínimo, sua perpétua sub existência pautada na manutenção da violência, medo e estresse.

4.2 - Existe sim nítida relação entre esse estado, que se reflete em nossos ideais democráticos, e o afastamento de noções dogmáticas de ordem religiosa, que jamais foram capazes de produzir tal estado. A afirmação do entrevistador de que esse ideal deve tributo ao cristianismo, estranhamente não rebatida pelo entrevistado, não passa de um apelo à parte que se exibe orgulhosamente ao mesmo tempo que se omite a parte constrangedora. Pelo pensamento cristão, a igualdade só existe enquanto submissão ao divino, o que recusa tal submissão estará condenado na melhor hipótese à inexistência, na pior, ao sofrimento perpétuo no inferno, a depender da interpretação. Sustentar como "igualitária" uma doutrina que cria uma cisão irreversível entre os salvos e os condenados bem que mereceria o nome de insanidade.

4.3 - Somente na contemporaneidade, com o advento dessa conquista tributária sim ao iluminismo, que se tornou possível uma civilização onde o cristão de fato pode tratar o não cristão com um mínimo de dignidade, algo jamais ocorrido antes nas civilizações de mentalidade teocêntrica. Não obstante, como as conquistas democráticas, da tolerância e solidariedade jamais foram completas, e estão sempre ameaçadas, sempre estamos sob o risco de retrocesso civilizatório. Paolo Flores D'Arcais está totalmente correto ao afirmar que a "revanche de deus", o renascimento crescente da religiosidade no ocidente, deriva sim dos fracassos em expandir essas conquistas, e jamais de uma fictícia reação contra os abusos dos estados totalitários não religiosos. Em tais estados, as religiões nada mais fizeram do que se alinhar ao poder político ou serem destruídas.

4.4 - Por fim, acerta também, ainda que por vias um pouco confusas, que entre os grandes motivos da incompletude de tais conquistas e ameaças de retrocesso, está a manutenção da concentração de renda e o abismo econômico colossal entre segmentos da sociedade, baluartes inexpugnáveis do poder abusivo e herdeiros das pretensões absolutistas, com indivíduos capazes de comprar países inteiros e praticamente acima de qualquer alcance legal. E não falo dos 10% mais ricos, mas sim dos 0,01% que mantém destes 10% uma distância maior do que estes mantém dos demais 90%, capazes de dobrar todo o congresso do país mais destacado do mundo para obrigar o povo a pagar o prejuízo que sua completa irresponsabilidade e incompetência causou à economia mundial. Pagar para eles! Não para os verdadeiros prejudicados! Escapando completamente ilesos de qualquer punição, inatingíveis até mesmo pelos holofotes da mídia, e ainda suficientemente poderosos para manobrar poderes públicos e privados para ainda insistir na perfídia de um modelo econômico que só mantém seus benefícios.

4.5 - Nesse sentido sim, há cristãos e ateus no mesmo barco. Pena que percam tanto de seu tempo brigando entre si, uns pensando que reabilitar morais fossilizadas e crenças estapafúrdias seja a solução, solução está que jamais solucionou qualquer coisa além da própria autonomia, outros pensando que a solução é simples questão de se livrar dessas deficiências hereditárias, o que por si só, também jamais nos levou muito longe.

Marcus Valerio XR

19-21 de Janeiro de 2012

Em Defesa do Agnosticismo
22.200

EstÉTICA DOURADA
420.000
ENSAIOS

MONOGRAFIAS
Vôos, e Quedas, Ideológicos
3.770

Um Voto de Fé
30.700