SIMBOLISMO DO ABORTO

16 de Novembro de 2012

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O passional texto O Que Penso Sobre o Aborto, de 2001, adiantou uma posição que não se alterou essencialmente em Aborto Repensado - ARGUMENTO, de 2012, e embora haja uma substancial diferença na qualidade argumentativa de ambos, ao menos compartilham o enfoque em comum. Porém sua maior ingenuidade foi sequer desconfiar do que afinal está por trás da campanha abortista.

O objetivo deste texto é elucidar a Relevância Simbólica da campanha pró-escolha que tem caracterizado o feminismo de Segunda Onda. Tal tema foi praticamente ausente no movimento Feminista Clássico que obteve as conquistas de gênero que caracterizam nossa civilização. Mas desponta, com enfoque crucial, após os eventos que viabilizaram novas formas de Feminismo. Em especial após o advento da Pílula Anticoncepcional, que permitiu às mulheres um grau incomparável de auto controle reprodutivo. Assim, fica uma questão intrigante:

Por que o aborto ganhou excepcional importância justo quando sua relevância deveria ter diminuído?

Justo depois do advento maciço de métodos anticoncepcionais o tornarem menos necessário, por que este tema, desvinculado de outras questões emancipatórias, parece ganhar cada vez mais ênfase quanto mais poder, liberdade e acesso a métodos contraceptivos as mulheres possuem?

Há respostas para isso. Deixe-mo-las para o final.

DESIGUALDADE REPRODUTIVA

O Feminismo clássico conseguiu a louvável façanha de equiparar direitos de homens e mulheres na medida do possível, revertendo um quadro milenar de desigualdade. Mas ao legalizar o aborto por questões puramente subjetivas, acrescenta um novo grau de desigualdade só não mais evidente graças à irresponsabilidade masculina.

Em nossa situação brasileira atual, homens e mulheres estão mutuamente obrigados a se responsabilizar pelos possíveis resultados de sua liberdade sexual. Em caso de gravidez, nem ele nem ela podem decidir se furtar de obrigações para com tal descendente, e se alguns homens fogem disso é por deficiência do sistema, eliminável com um vasto e integrado banco de dados de DNA que rastreasse a paternidade automaticamente.

Mas se o aborto por mera volição arbitrária é permitido, instaura-se uma situação onde a mulher pode decidir ou não ter essa responsabilidade, mas o homem não, estando subordinado à vontade dela. Por isso um acadêmico lusitano chegou a sugerir que num país onde o aborto é largamente permitido, dever-se-ia permitir ao pai a isenção de responsabilidade parental, como uma forma de reverter parte dessa desigualdade. (Idéia que embora possua seu mérito, me parece que seria objeto mais de abuso que de uso devido.)

Essa assimetria prejudica justo o melhor tipo de homem, que está disposto a honrar integralmente sua responsabilidade como pai. Mas o direito feminino ao aborto por motivos subjetivos retira-lhe esse direito mesmo que ele esteja totalmente disposto a assumir sozinho a criança.

Como a maioria dos homens pouco se importa e delega à mãe a escolha, parece haver um sério equívoco na acusação de que a opinião masculina é mais contrária que favorável ao aborto, visto que pouco lhes cabe o ônus reprodutivo.

Ocorre que se a mulher é fisicamente encarregada da gravidez, somente a ordem social pode impingir ao homem obrigação correlata. Acho que a maioria dos homens, em sua irresponsabilidade, seria favorável a liberação do aborto, não estando dispostos a assumir encargos parentais, não teriam que induzir a parceira à incorrer numa conduta ilegal.

IGUALDADE NO MEIO TERMO

Disso fica claro porque a estranha diferença entre os países mais permissivos ao aborto, que se situam nos extremos do espectro de igualdade de gêneros.

O aborto é mais liberado tanto em países supostamente mais igualitários, quanto nos menos, sendo restrito nos intermediários, pois no primeiro caso a balança jurídica já pende a favor das mulheres, e no segundo ainda pende a favor dos homens. Também explica porque o aborto só passou a ser mesmo proibido em larga escala na virada dos séculos XIX e XX, para depois começar a ser liberado a partir da década de 1970.

O aborto é mais permitido quanto mais desiguais os direitos reprodutivos. Em uns, pela submissão da mulher ao controle reprodutivo do homem, nos outros, pela total remoção de qualquer direito reprodutivo masculino.

Países como a China e Índia, a despeito do desenvolvimento em outros aspectos, ainda são extremamente desiguais em condições de gênero. Na Índia, ou locais de extrema miséria, a cultura do infanticídio seletivo retira de crianças o direito à vida pelo simples fato de serem meninas. Na China, a política estatal do filho único acentuou ainda mais a preferência por meninos. Em ambos os países o acesso ao aborto sem restrições é amplo.

No extremo oposto, na Suécia, ocorre o fato chocante de que, sendo também o aborto até certa fase de gestação um direito incondicional da mulher, também ocorrer de forma seletiva, frequentemente em desfavor das meninas.

Num extremo, temos a pressão da superpopulação, noutro, temos como consequência a subpopulação. Mas os extremos se tocam por que apesar do abismo social entre eles, ambos tem a similaridade de serem extremamente desiguais em direitos reprodutivos.

RAZÃO E SENSIBILIDADE

A razão é a escrava das paixões, a espada à serviço do coração que a empunha. Será usada tanto por favoráveis quanto contrários ao aborto incondicional, e os argumentos podem ser bons, ou ruins, tanto de um lado quanto de outro.

A diferença essencial está na sensibilidade íntima. Nos motivos subjetivos que levam alguém a se posicionar. Quem é contrário à medida tende a ficar numa posição mais confortável em termos de sensibilidade, visto que pode defender racionalmente algo que a emoção tende a abraçar entusiasticamente, a vida humana, sendo assim consistente com praticamente tudo o que fundamenta a ética, moral e bons costumes.

Já o defensor do aborto tem que dar um salto mais ousado, adormecer a sensibilidade natural pela desumanização do feto e enfocar a autonomia da mãe, como se os dois valores fossem mutuamente exclusivos. Mas já vimos que para a aceitação do aborto não é necessário sequer invocar a autonomia feminina, pois o mesmo pode ser imposto contra sua vontade pela supremacia masculina. Além disso, a repressão à liberdade feminina, e também masculina, no que se refere sexualidade, é independente do tema. Em muitos contextos temos repressão altíssima sem criminalização do aborto, sem contar que a repressão normalmente é prévia. Por isso, acusar a criminalização do aborto de repressão a liberdade sexual quando o mesmo só ocorre após uma série de eventos perfeitamente evitáveis parece querer nublar propositalmente a questão.

Há 3 níveis de controle reprodutivo: Abstinência Sexual, Métodos Contraceptivos, e Aborto. Sem querer exigir o primeiro, estimular e aperfeiçoar o segundo deveria diminuir a necessidade de recorrer ao terceiro. O Patriarcado criou a obrigação paternal. A liberação sexual aproxima o comportamento humano de um comportamento pré regulação patriarcal da sexualidade, só que com a vantagem de, graças à tecnologia, poder evitar a gravidez compulsória.

Mesmo assim, movimentos querem a liberação não apenas do direito ao aborto legal, mas até mesmo a obrigação do estado de arcar com seus custos, financiados por uma população que, no Brasil, é majoritariamente contrária à medida! E enquanto isso, acusam de sexualmente repressora uma das mais liberais sociedades do mundo.

Ademais, mesmo sendo ilegal, no Brasil praticamente inexistem reais penas legais contra a prática do aborto. Há décadas mulher alguma jamais foi sequer multada por ter recorrido a práticas clandestinas. Mas como algumas pessoas já perceberam, " ...não podemos desconsiderar a força simbólica dessa interdição penal sobre o imaginário social e subjetivo de quem o pratica...". Deveríamos então desconsiderar da força simbólica da remoção dessa interdição?

Ao longo da história a humanidade conviveu com os mais variados tipos de horrores. Tortura, humilhação e mutilação em praça pública, acessível para todas as pessoas de todas as idades. Escravidão, trabalho infantil, genocídios e toda sorte de coisas que hoje nos aterrorizam eram aceitas como normais. Ainda temos hábitos que poderão assombrar as gerações futuras, como consumo de carne, criação de animais em cativeiro, regimes de trabalho que afetam a qualidade de vida e outros que hoje podem parecer irrelevantes, como os mesmos horrores antigos pareciam para as sociedades do passado.

E o aborto, bem como o infanticídio, não é novidade alguma. Só não era mais praticado por pura impossibilidade técnica, mas como já vimos, é imediatamente posto a serviço dos modelos sociais mais opressores e reacionários.

O argumento para sua aceitabilidade é o mesmíssimo utilizado para aceitar todos os outros terrores do passado, a negação da humanidade da vítima.

Por isso, a crítica ao abortismo, embora possa envolver uma dose de reacionarismo contra a emancipação feminina, e embora possa envolver parte de conservadorismo religioso, facilmente pode se desvencilhar de tudo isso, e ser visto como uma defesa da sensibilidade humana, sem a qual pouco temos do que nos orgulhar.

Por isso a questão simbólica é tão importante, por encarnar uma reação contra posturas que podem nublar o que temos de mais delicado, pondo em xeque até mesmo nossa defesa incondicional da infância. A própria negação da humanidade do feto pelos pró-escolha é uma admissão indireta de que não podemos correr o risco de abrir uma porta para o questionamento da humanidade, e por conseguinte do direito à vida, do recém-nascido, como aliás, Já Está Sendo Feito!

RESPOSTAS?

Assim, voltando a pergunta original: Por que a exigência ao direito de abortar se tornou subitamente uma questão tão grave justo quando a tecnologia deveria tê-lo tornado mais raro?

1 - Talvez, porque graças aos anticoncepcionais sua necessidade tenha diminuído, e o que antes geraria uma corrida infindável à clínicas de aborto, por ser o único método viável além da abstinência, agora, geraria apenas uma recorrência minimizada;

2 - Bem como o advento da pílula pode ter incrementado a liberação sexual, que mesmo tendo acesso a anticoncepcionais que reduzem proporcionalmente a incidência de abortos, não evita o aumento absoluto da gravidez indesejada;

3 - Ou porque o simples fato do poder das mulheres na sociedade ter aumentado, lhes permite enfim fazer essa requisição de modo ostensivo, o que antes seria mais amplamente reprimido;

4 - Poderiam estar parcialmente certos os conservadores e acusadores de uma conspiração global para promover políticas de contenção populacional à revelia das volições nacionais, o que incluiria o aborto como último nível de controle de natalidade;

5 - Quem sabe, uma subversão rebelde contra a desigualdade biológica que encarrega as mulheres de mais de 99% do ônus reprodutivo, promovendo a mais radical ruptura estrutural com um estado natural culturalmente cooptado;

Mais provavelmente, um pouco disso tudo, mas ainda mais importante.

Os movimentos pelo aborto, travam uma luta, sobretudo SIMBÓLICA!

E que ninguém seja tolo em menosprezar a força de símbolos, pois eles movem forças psíquicas extremas e tem poder para moldar de mitos a civilizações.

A questão é vista com tanta seriedade, porque representa nada menos que uma demonstração de poder sem paralelo de um movimento ideológico específico sobre a civilização na qual se originou.

O direito irrestrito ao aborto, é a expressão máxima de que a mulheres se emanciparam a tal ponto que podem atropelar até mesmo o direito à vida!

É um recado à civilização patriarcal de que, apesar de milênios de submissão, a ruptura é tão grande que permite às mulheres negar não apenas a autoridade masculina, não apenas as instituições jurídicas e religiosas, não apenas até mesmo o mais primordial e universal dos valores éticos!

Mas sobretudo, esmagar até mesmo a sensibilidade daqueles que não conseguem deixar de sentir um horror ante a simples idéia de um ser humano em estado de completa dependência ser trucidado impiedosamente por nada menos que um capricho que não deve satisfações a quem quer que seja.

Permite até mesmo que uma gravidez plenamente voluntária e consciente, seja depois rejeitada por qualquer motivo obscuro. Ela pode mudar de idéia simplesmente porque mudou de emprego, porque brigou com o pai, porque o sexo do bebê não é o que ela queria, porque entrou em depressão, ou mesmo por uma flutuação passional inexplicável. Em todos os casos, o resultado é o mesmo.

Não quero mais, mate!

Por mais alarmista que possa parecer, a negação da humanidade do feto, que impõe uma descontinuidade arbitrária, não tem como evitar que cedo ou tarde alguém questione a humanidade, e consequentemente o direito a vida dos bebês até certa idade. O não o fará por pura malícia ou desconsideração, mas pelo fato de ter levado a sério as consequências lógicas de tal negação.

Diante de tamanha reversão de todos os fundamentos éticos da civilização, que os países mais permissivos nesse sentido estejam marchando para extinção vegetativa é tão inevitável quanto apropriado simbolicamente. E os abortistas mais radicais não precisam se preocupar nem mesmo com o fato de que os espólios desta civilização serão herdados pelo Islã.

Pois o mesmo é em geral ainda mais permissivo do que a Suécia, aceitando-o frequentemente até a suposta entrada da alma no corpo, o quarto mês.

Com a diferença. Claro! De que no caso é uma prerrogativa do pai.

Marcus Valerio XR

16 de Novembro de 2012

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