PARTE - I

PARTE - III

9 – DADOS CONFLITANTES.

V238 ainda tentava elucidar as razões da hostilidade de que fora vitima. Conseguira manter-se ileso, pulando sobre um dos cavalos e rumava agora sem uma direção aparente. Seu objetivo prioritário era o de afastar-se dos estranhos hostis, até que pudesse organizar os dados de forma a se proteger melhor e tentar descobrir o que provocara aquela reação. Ele tinha certeza de ter tomado todas as precauções para não chamar a atenção e lhe soava parodoxal ter acontecido justamente o contrário. Precisava de tempo para coletar mais dados. Volta e meia, virava-se para trás, para ver se alguém o perseguia. Aparentemente conseguira ludibriar seus adversários. Mas tal constatação logo se viu prematura demais.

Seus sensores auditivos perceberam um som semelhante a um sibilo e ele diminuiu a velocidade para localizar a fonte. Fez um giro completo de trezentos e sessenta graus sobre a sela, examinando todo o horizonte. Não demorou muito e aumentando a resolução das objetivas, conseguiu captar uma pequena mancha. Processou rápidos cálculos e constatou que o que quer fosse, se dirigia resolutamente na sua direção. Fez algumas manobras, mudando o rumo duas vezes, para ter certeza de poderia ser apenas uma coincidência a rota do objeto desconhecido. Novos cálculos, porém, demonstraram que ele se ajustou às mudanças, indicando que o propósito era interceptá-lo.

Ele ampliou o espectro da sondagem e de imediato percebeu que o objeto pulsava, emitindo pequenos pacotes de ondas de rádio, o que justificava o sibilo que ouvira, além de emitir ondas no infravermelho, denunciando alguma atividade interna. Desconhecia seu modo de propulsão já que não havia nenhum jato de calor, ou podia singrar o ar sem possuir linhas aerodinâmicas. Mas era um fato óbvio que destoava da tecnologia da época. Pelo desempenho da pequena máquina, e pela óbvia razão de aparecer naquele momento e em sua direção, só poderia significar algum tipo de mecanismo sofisticado de busca e provavelmente de ataque. Não havia dúvidas que fora enviado pelos mesmos estranhos que tinham tentado danificá-lo dentro da igreja.

Sem saber sua real capacidade operacional, lhe ocorreu duas opções. Ficar ali parado para ver o que aconteceria, o que poderia revelar sua posição, ou continuar a correr, tentando esquivar-se dele e se possível, despistá-lo. Ele optou pela segunda. Recorrendo ao registro da forma humana de instruir suas montarias, pressionou as costas do seu cavalo com os membros inferiores, transmitindo-lhe a ordem de correr. Mas o objeto demonstrou uma autonomia surpreendente e assim que o detectou, percebeu sua manobra, fazendo o mesmo. Aumentou a velocidade e mergulhou na sua direção.

Assim que se postou acima dele, emitiu um fino facho de luz concentrada que graças aos sensores de V238, passou a milímetros de sua cabeça, num movimento calculado de desvio. O feixe prosseguiu em seu caminho mortal, apenas atingindo o solo e incendiando a vegetação no ponto de impacto. Tornara-se evidente para V238 que as suas deduçõs sobre a hostilidade do objeto estavam corretas. Teria de encontrar um modo de desativá-lo.

Ele precisava elaborar uma estratégia. No momento estava em campo aberto, o que ajudava a ação do dispositivo voador. Procurou por uma solução rápida, aproveitando o descampado em que se encontrava. Enquanto se esquivava dos feixes, deduziu que o dispositivo deveria estar fazendo inúmeros cálculos geomatemáticos para atingi-lo. A montaria não aguentaria por muito tempo a velocidade que lhe imprimia e muito menos conseguiria acompanhar suas manobras de diversão. Suas chances de escapar, por causa da lentidão do animal, diminuíam a cada pulso de energia disparado que passavam cada vez mais perto de sua cabeça. Mesmo que se jogasse no chão para tentar atingir o aparelho com uma pedra e danificá-lo, as chances de sucesso seriam de apenas 4% ou 5%. Mínimas. Precisava de algo mais radical para aumentar este índice e desativá-lo. Foi então que se deu conta que rumava para um horizonte escuro. Uma tempestade se aproximava. Calculando o tempo transcorrido entre o faiscar dos relâmpagos e o estampido dos trovões, inteirou-se que ela movia-se rapidamente na sua direção. Se conseguisse se desviar dos feixes mais um pouco, poderia forçá-lo a prosseguir neste rumo. Sua estratégia era de que ele possivelmente não possuia qualquer mecanismo de defesa para as descargas elétricas da atmosfera. Se conseguisse expô-la tempo suficiente a uma ou mais correntes elétricas, talvez a carga excessiva avariasse seu mecanismo interno impossibilitando a continuidade dos ataques.

Assim, percorreu o campo em zigue-zague, antecipando-se o quando podia aos disparos, rumando na direção da tormenta. Imprimiu a maior velocidade que pode ao cavalo e logo, estava envolto pela chuva que o cobriu como um véu. Os relâmpagos se sucediam e mais rápido do que previra uma forte carga atingiu o aparelho, destruindo seus delicados circuitos. Felizmente suas ligas de carbono não atraiam com tanta facilidade tais pulsos de eletricidade.

Tão logo o objeto fumegante despencou no solo, espatifando-se, o cavalo não resistiu ao esforço a que fora submetido. Com um relincho de dor o animal tombou pesadamente, arrastando-o junto. Ele conseguiu sair debaixo da montaria que resfolegava, pondo-se logo em pé. Antes de abaixar-se para ver as condições do animal, percrustou o céu em todas as direções lentamente para ver se não havia outra máquina enviada em seu encalço. Sem sinais de outro dispositivo de busca, acariciou o animal no pescoço procurando com isso acalmá-lo. Apalpou as suas patas para ver se estavam em ordem e mediu suas funções vitais. O cavalo não apresentava ferimentos fatais; apenas tombara pela fadiga excessiva. Exigira demais dele. Ajudou-o a colocar-se de pé e o deixou livre, afagando seu pescoço em sinal de agradecimento. Continuaria o caminho a pé até Florença. Não pretendia voltar para Sam Giminiano.

Em meio à pesada chuva pôs-se a caminhar sem entender o que o levara aquela situação. Os últimos acontecimentos fugiam a qualquer padrão de atividades para a qual fora preparado e como qualquer entidade dotada de cognição, a violência que sofrera carecia de qualquer explicação lógica. Não que não esperasse esse comportamento dos humanos, mas não havia qualquer sentido nos eventos ocorridos dentro da igreja. Muito menos na perseguição aérea. Como haviam descoberto sua presença e que perigo poderia representar? Abria-se, no entanto, um leque enorme de possibilidades. O fato de possuirem uma tecnologia mais avançada do que a da época significava que, como ele, não eram originários daquele período de tempo. Mas como haviam chegado ali e como sabiam da sua existência constituía-se por enquanto num total enigma. Por serem muitos e preparados, como evidenciou por si mesmo, logo descartou serem vítimas de algum tipo de acidente. Mas se não era esse o caso, por que estavam ali e o porque da hostilidade? A menos que já soubessem da sua chegada. Mas quem ou que seriam eles? Como sabiam que chegaria? Vinham de uma época posterior a sua, onde se tornara um evento ligado ao passado? Havia uma total falta de dados para processar. Talvez na cidade para onde se encaminhava pudesse encontrar elementos que o ajudassem a encontra as respostas que procurava.

Poderia pedir ajuda aos potentados de Florença ou a alguma figura proeminente daquela época. Se se dirigisse às autoridades, não havia certeza se pertenciam ao quadro de humanos oriundos daquele tempo ou hostis disfarçados. O mais lógico seria encetar seu plano original de se encontrar com Leonardo, detentor de conhecimento suficiente para poder entender o que ele era e como ajudá-lo.

10 – FLORENÇA?

Procurando ser mais precavido, depois dos últimos acontecimentos pelos quais passara na pequena cidade, seguiu uma rota menos frequentada pelos habitantes da região, para evitar novos encontros. Cedo ou tarde os homens que o haviam hostilizado acabariam por encontrar os destroços do dispositivo de busca, descobrindo que o aparelho falhara em sua missão. Ou talvez já tivessem sido avisados por ele segundos antes de ter-se espatifado. Com toda certeza encetariam uma busca pelos arredores e passar despercebido seria a melhor forma de evitá-los. Mas isto complicava um pouco sua caminhada rumo a Florença. Para chegar lá precisava de informações para poder se orientar. Sem dispor do instrumental de localização do século XXI não podia dispensar os dados de orientação transmitidos oralmente pelos humanos. A cada contato que precisava fazer para atualizar sua posição, poderia estar falando com um dos humanos que o procuravam, comprometendo suas coordenadas e intenções de destino. Assim, por causa da cautela extrema, e por precisar avaliar os raros humanos que encontrava antes de formalizar um contato, demorou dois dias para chegar à famosa cidade da Toscana.

A cidade, que contatava pela primeira vez, estava rodeada por uma ampla muralha. A parte principal espraiava-se pela margem direita do rio Arno, do lado oposto onde se encontrava, já que viera pelo sul.Ele a adentrou por uma das portas deste lado, e logo atravessou o curso dágua pela ponte Vespucci.

Ao longo de sua curta existência, V238 poucas vezes voltara sua atenção para as cidades existentes no seu tempo. O pouco que lhe fora transmitido como parte da educação cultural que recebera não fazia referências aos principais monumentos que albergavam, a não ser o fato de que em sua juventude a cidade se notabilizara por abrigar Leonardo da Vinci. Em sua juventude esta famosa figura da renascença trabalhara na oficina de Verróchio localizada em seu interior. Além é claro, de um breve resumo sobre sua conturbada história. Mas havia algo de errado com a silhueta da cidade que não se encaixava com as imagens do século XXI armazenadas em sua memória.

A imagem fora feita a partir da margem esquerda do rio, de cima de uma das pontes no extremo leste, possivelmente a ponte Vecchio. Ele então se dirigiu para ela e procurou se posicionar no mesmo lugar que servira de referencial para a tomada e a confrontou com a imagem que dispunha. De imediato seus órgãos visuais captaram uma descontinuidade: a torre de Arnolfo, edificada acima do Palazzo Vecchio, situado na Piazza della Signoria, não estava lá. E também a construção que lhe servia de base. Em seu lugar situava-se um imenso quadrilátero, que não constava nos registros originais.

Ele se pôs a procurar as escassas informações de que dispunha. Elas lhe diziam que a construção do palácio administrativo remontava ao século XIII. Mas pelas datas que vira na porta da igreja, não viera parar neste século e sim no XV. Se isto era correto o que acontecera ao Pallazzo Vecchio?

Sem novos dados para processar não poderia solucionar o conflito de imagens. Talvez o homem que pretendia encontrar pudesse ajudá-lo a esclarece essa dissonância dos arquivos. Mas teria que ser cauteloso. Da mesma forma que fora descoberto na cidade anterior, poderia facilmente sê-lo outra vez. E poderiam até ter-se antecipado aos seus movimentos, aguardando que entrasse em Florença. Leonardo poderia também estar sendo vigiado. Enfim, não havia como saber qual seria o movimento seguinte para tentar capturá-lo ou danificá-lo permanentemente. Em que lugar ou em que momento. Mas ele continuaria tentando. Precisava encontrar um modo de retornar à sua época ou pelo menos, levar as informações do que sucedera a ARES conforme ordens de seu superior.

Utilizando seu fluente italiano, discretamente perguntou pela Bodega de Verrocchio. Talvez ali encontrasse Leonardo ou pelo menos poderia descobrir seu paradeiro. Os registros desta época, recontados por Vasário, seu biógrafo, pouca informação forneciam entre os anos de 1476 a 1481, no tocante ao homem que procurava. Não havia registros para se saber se ainda trabalhava para seu antigo mestre ou se estabelecera o seu próprio ateliê.

Discretamente se dirigiu a oficina, que em tudo, lembrava qualquer coisa, menos a ordem e organização a que estava habituado no século XXI. Quadros, modelos, imagens sendo esculpidas por alunos se misturavam à desordem dos materiais espalhados, que exalavam os mais diversos odores. Uma mistura de suores de corpos pouco acostumados à higiene, e às roupas surradas, poucas vezes trocadas.

Apenas alguns nobres perambulavam com seus trajes extravagantes, coloridos, observando suas encomendas, disfarçando o odor que exalavam, com fragrâncias exóticas, provavelmente trazidas do oriente.

Mas estas discrepâncias não lhe incomodavam. A missão sim. E era de primordial importância que localizasse Leonardo, um homem daquele tempo em quem talvez, pudesse encontrar apoio para poder elaborar um plano de retorno.

Verrochio não estava naquele momento e através de um de seus assistentes foi informado de que Leonardo não trabalhava mais ali e tinha seu próprio ateliê, no extremo oeste da cidade; na Viale Giovine Itália, próximo à ponte de São Niccolo.

Uma incerteza pairava, porém. Ele não tinha como saber se a figura humana com quem pretendia conversar era Leonardo ou um dos estranhos hostis se passando por ele. Tal dilema desafiava sua programação. A única imagem que dispunha para referência era o autoretrato feito por ele na sua velhice entre os anos de 1512 a 1515.Provavelmente os traços atuais seriam bem diferentes, pertencentes a um jovem de 28 anos. Para que não houvesse erros de identificação visual, precisaria processar a imagem que dispunha para tornar as feicões compátiveis com a deste jovem que ainda não contactara.

O trabalho requerido para o tratamento da imagem despertou sua curiosidade. Ainda estava recente em sua memória, o problema que representava o modo como o tinham distinguido dos demais humanos, apesar de suas precauções. Apenas um escaneamento minucioso da sua estrutura externa revelaria que lhe faltavam algumas características humanóides. Nada que não pudesse improvisar para passar despercebido à maioria daqueles habitantes. Mas tudo indicava que não fora esta particularidade que o traíra. Tinha que ser outra coisa. Algo mais sutil, que resultasse de uma busca mais refinada. E então equacionou que o objeto que o seguira se guiara por alguma coisa que possuía. Não tardou para chegar à conclusão de que seu corpo, no espectro infravermelho não irradiava tanto calor como o provocado pelo metabolismo humano, mas no extremo da ponta do espectro eletromagnético suas baterias de rádio emitiam uma tênue radiação gama. Então aqueles humanos possuíam instrumentos de varredura do espectro e fora esta a banda especifica de radiação que revelara seu disfarce e guiara o objeto voador que tentara destruí-lo. A sua blindagem de chumbo interna eliminava o perigo de exposição aos humanos do decaimento do isótopo do rádio. Mas para os instrumentos sofisticados de posse dos estranhos, continuaria vulnerável, por emitir pouco na faixa do infravermelho. Teria que descobrir um modo de irradiar calor idêntico à dos humanos.

Outra coisa que deduziu foi que provavelmente aqueles estranhos se comportavam discretamente em suas buscas, não apontando seus instrumentos para todo humano que viam nas ruas. Justamente para não serem eles, também, alvo das atenções. Assim com base neste presumivel comportamento, deduzia também, estar a salvo de varreduras explícitas. A menos que se posicionassem em algum lugar alto da cidade, como os campanários e torres, observando todos os que passassem ao alcance dos instrumentos. A única forma de evitar isso, ou pelo menos dificultar o estratagema, seria ficar próximo às paredes das construções evitando ao máximo as praças que pudessem fornecer uma margem ampla de visão a partir dos lugares altos. Fosse qual fossem os problemas, tinha que encontrar uma maneira de levar uma mensagem até ele, de forma que pudessem se encontrar onde esperava haver pouca chance para algum tipo de vigilância.

Ele procurou em sua memória um dos ícones ligados a Leonardo que ainda seria desenhado por este: o homem vitruviano. Se pudesse lhe enviar este desenho, de um homem sem a genitália, por algum mensageiro, talvez esta particularidade, em vista de sua extrema curiosidade, lhe despertasse a atenção o suficiente para se dispor a ir encontrá-lo. Mas precisaria também, em vista de estar sendo procurado, que se caso viesse, o fizesse da forma mais natural possível para não despertar quaisquer suspeitas nos estranhos.

E foi o que fez. A coleta de lixo, naquela época, era bastante deficiente e próximo das entradas dos ateliês encontrou quantidades expressivas dos mais diversos materiais utilizados pelos aprendizes, que descartavam o que não podiam aproveitar. Sem que se importassem com a sua presença, ele revirou uma delas e encontrou o que procurava. Apanhou o pedaço de uma tela, um pincel quebrado com as cerdas em boas condições, e uma palheta rachada, contendo restos de tinta. Rapidamente, prescrutou as construções altas com seus sensores em busca de figuras suspeitas e quando não as viu dirigiu-se para uma fonte. Com um pouco de água, conseguiu quantidade suficiente para desenhar a figura que no futuro viraria um ícone desta época: o homem vitruviano. Mas não da forma como ficaria famosa. Seu desenho despojara a imagem do cabelo e da genitália. Uma imagem bem mais próxima do próprio V238. Depois escreveu, usando o próprio método de Leonardo da imagem invertida, uma breve mensagem, pedindo que o encontrasse diante do Palácio Spini, próximo ao rio Arno. Pedia-lhe apenas que agisse da forma habitual; pessoalmente lhe daria as explicações.

Ele ficou parado, junto às paredes do palácio, olhando as margens do rio, e ocasionalmente observando os transeuntes, dos mais diversos níveis, que passavam à sua frente, procurando por alguém que pudesse servir de mensageiro. Ao mesmo tempo, procurava se antecipar a qualquer nova ação, caso desconfiasse do comportamento de alguém. Em meio a nobres, clérigos e soldados, misturava-se um grande número de miseráveis e pedintes que sobreviviam de esmolas. Entre elas, muitas crianças pobres que sem se dar conta da situação em que viviam, brincavam entre si, despreocupadas com o porvir. Talvez uma delas, com a promessa de uma moeda, pudesse ser o portador de sua mensagem.

Viu num menino bastante ativo, que não deveria ter mais de nove anos de idade, usando roupas surradas e sujas, a chance que procurava. Sem dispor de recursos, contava com a índole benfeitora de Leonardo que com toda certeza, não se recusaria a pagá-lo, contando com a extrema curiosidade que o desenho e a mensagem despertariam nele e da extrema pobreza do portador. Aproximou-se dele e abaixou-se. Num perfeito dialeto toscano, perguntou-lhe se conhecia o homem que pretendia encontrar e ela fez um ligeiro sim com a cabeça. Disse-lhe que pedisse uma moeda a Leonardo só depois que ele lesse a mensagem. Conhecendo a fraqueza dos humanos em não cumprir o que lhes era pedido, contava com o estímulo da pequena recompensa que a criança receberia.

Independente que era, a criança não pediu permissão aos pais, que estavam sentados na rua, indiferentes, pela extrema pobreza em que viviam, ao que se passava ao redor. Ele observou os traços magros da mãe que tentava embalar um recém nascido, que chorava de fome. Provavelmente seu organismo debilitado não conseguia produzir leite suficiente para amamentá-lo. Os trapos que envolviam a criança estavam sujos e um rápido escaneamento de seus sensores encontraram uma quantidade de bactérias patogênicas. Se continuasse assim o pequeno humano ou morreria de fome ou sucumbiria a alguma doença. Ele nada podia fazer. Apenas registrar. No entanto algo inédito lhe ocorreu. Ele ainda não se desfizera da sacola com os alimentos que a velha mulher lhe dera.Talvez alguma coisa ainda pudesse ser aproveitada. Retirou os pedaços de pão e destacou as partes mais afetadas, separando-as do que ainda poderia ser consumido. A mulher talvez tivesse adquirido uma resistência natural a infecções e os pedaços menos impregnados de bactérias poderiam mitigar sua fome e ajudar na produção de leite. Ele assim procedeu vendo-a devorar cada pedaço com gula. Depois retirou o pequeno colete que vestia e envolveu a criança nele, jogando os trapos fora. Pelo menos esperava dar uma pequena chance de sobrevida àquela criança.

Mais uma vez falou com o menino, instruindo-o de como deveria fazer. Não queria ficar mais que o suficiente exposto. Examinou novamente os arredores com seus sensores óticos e nada constatou de suspeito. Permaneceu parado por ali por mais alguns segundos enquanto via o menino afastar-se dos pais e dos amigos, dirigindo-se na direção do ateliê de Leonardo.

V238 deixou o local, rumando para o provável ponto de encontro. Não queria de forma alguma chamar a atenção novamente, pois desconhecia de que maneira aqueles homens haviam se infiltrado naquele período do tempo e de quais recursos dispunham. Enquanto caminhava na direção do local escolhido passou e repassou tudo o que tinha acontecido, desde que deixara a ARES, concentrando-se em alguns aspectos daquela situação que careciam de explicação. Como sabiam de sua existência? Por que a hostilidade sem uma causa aparente? Ocorreu-lhe também que a diferença detectada nas edificações da cidade, só podia ser uma consequência do efeito Schwarzchild, que não só havia remetido a nave para o passado, como também para uma realidade paralela deste passado. Mas porque viera parar justamente naquele período em particular? Estaria a história repleta de pontos-chaves que se comportariam como imãs, atraindo qualquer viajante que por ventura passasse nas proximidades? Era certo também que a razão de não estar em Marte, mas sim ali, devia-se a algum fator desconhecido, não computado, ocorrido no Centro de Lançamento que causara a abertura descontrolada da fenda de Schwarzchild. Mas até que ponto fora casual e não intencional? E havia alguma ligação entre essa não computação e os estranhos? Inúmeras hipóteses percorriam seus sensores neurais, tentando achar entre elas a que melhor se adequasse a uma explicação lógica que abarcasse todos os aspectos que estava considerando. Mesmo que confirmasse as razões que haviam desviado a ARES, não havia, pela simples falta de dados, condições para elaborar uma teoria plausível onde pudesse encaixar os humanos hostis que contatara. Até que conseguisse equacionar tudo dentro de uma explicação razoável, teria de agir com a máxima precaução. Talvez sua presença estivesse ligada a algum tipo de reação que desencadeara ou desencadearia, cujas consequências não poderia aquilatar com precisão, o que o deixava num dilema. Precisão era o seu mundo por natureza e a falta dela criava uma disfunção, difícil de ignorar e que só seria superada quando encontrasse as respostas, com base em dados que ainda teria de coletar.

11 – LANGLEY.

A doutora cumprimentou um homem que vira morrer baleado, em seu colo no Centro de Lançamento. Como isto era possível? Estava diante de um fantasma? Irmão gêmeo? Ou produto da engenharia genética? Não, não! Claro que nenhuma delas, era suficiente para explicar a presença dele. Nada havia na sua ficha que indicasse isso, a não ser que ele era quem dizia ser. As digitais, o escaneamento de retina e o próprio DNA, confirmavam isso. Mas então como solucionar aquele mistério? Talvez conversando com ele, pudesse encontrar alguma pista que elucidasse toda aquela situação esdrúxula.

- Vou muito bem. Gostaria que a senhora pudesse me explicar o que estou fazendo aqui. Sou acusado de algum crime? – disse ele, tamborilhando os dedos nervosamente sobre a mesa.

- Posso me sentar, senhor Timberland?

- Por que não? – disse ele, com um ar de desdém. – Se nem eu sei porque estou aqui, porque vou impedí-la de sentar-se?

- Obrigada. Bem... Senhor Timberland, a sua presença aqui, digamos é... Algo Hmm... Um tanto embaraçosa. Peço-lhe desculpas por qualquer inconveniente ou qualquer mal trato que tenha sofrido.

- Ah! Isto já é um bom começo! Estou aqui, sem vontande própria, faz duas horas! Ninguém ainda soube me explicar o porquê. Sera que a senhora poderia?

- Sinto muito pelo constrangimento. Eu mesma ainda não sei ao certo o que lhe perguntar. Em seus trabalhos, há alguma conexão com a NASA?

Ele pensou um pouco. – NASA? Não até onde eu saiba.

- Há algo em seu trabalho que futuramente possa provocar algum envolvimento com esta agência? Algo incomum que tenha observado em seu projeto. Ou alguém da área 51 que tenha reportado algum fenômeno inusitado? Algo que poderia afetar nosso planeta?

- Ei, ei, doutora, vamos com calma. Deixe-me pensar.Hum... Até onde eu sei, não. Por outro lado, o que faço, e olhe que o governo me paga muito mal para isso, é estritamente confidencial. Afeta a segurança Nacional, como sabe. Uma situação que a senhora compreeende perfeitamente bem. Não há nada que possa lhe dizer. Muito menos de meus colegas. São coisas de ponta... E só isso que ouvira de meus lábios. Mas posso ao menos lhe afirmar que tudo isso que me perguntou em nada se relaciona com o que faço. E meus colegas também, falando por eles.

Ele deu um sorriso irônico e ajeitou-se na cadeira, olhando com certa displicência para Katlyn. – Estamos sendo vítimas de alguma invasão alienígena, doutora?

- Diga-me o senhor, senhor Joshua, - com uma certa irritação no tom de voz. – Estamos?

- Perdoe-me doutora, não quis ofendê-la. Estamos falando da NASA, certo? Quem sabe ela já não tenha feito algum contato e nós, mero cidadãos, ainda não fomos informados?

- Sei, - disse ela pensativa. – Posso supor o mesmo com relação ao local onde trabalha. Mas não estou interessada em polemizar. Estou à par da sua situação, e da nossa situação que não são tão diferentes assim. Temos nossas responsabilidades e trabalhamos para o mesmo governo. Mas estou certa de que nossos caminhos se acabarão cruzando no futuro...

- Futuro? A senhora disse futuro? Foi por isso que me trouxeram? Algo que envolva o futuro? È algum tipo de brincadeira?

- Não. Eu apenas pensei que... – e acabou não terminando a frase. Naquela altura dos acontecimentos, muita coisa carecia de qualquer explicação. E só pensara nas possibilidades de coisas que ainda estariam por acontecer. Mas ela não deixou de observar que o que falara causara certa reação nele. Viu seus olhos arregalados, como se de repente uma ideia atravessasse sua mente como um raio iluminando a escuridão da noite. Como se fosse a resposta para o que quer que fosse que procurava. Mas esta reação dizia a Katlyn muitas coisas. A palavra saira de sua boca quase sem pensar. Afinal por que ela não havia pensado nisso antes? Por mais fantástico que pudesse soar tinha a sua lógica. Isto explicaria muita coisa. O porque da existência de dois Joshua Timberland. Seria o resultado da experiência em que estava secretamente trabalhando? Estaria ocultado o cadáver de um Joshua Timberland, produto talvez de uma experiência de um Universo paralelo conforme alguns físicos advogavam, ou de uma outra linha temporal? Ou até do futuro? Mas como poderia encontrar a resposta para estas perguntas? Como conseguir permissão dos militares para ter acesso ao trabalho dele? Para saber se tudo não começara com algum experimento secreto realizado por lá. Era um fator que precisava considerar e levar ao conhecimento de seus superiores. Aquele homem vindo fosse de que lugar fosse, por razões que ainda desconhecia totalmente, acabaria por invadir o Centro de Lançamento, prejudicando um projeto caríssimo e pondo um fim à própria vida. Algo precisava ser feito. Mas não ali, nem naquele momento.

Para evitar qualquer choque psicológico ou alguma mudança nos fatos que ainda poderiam ocorrer ela preferiu se calar, evitando qualquer comentário sobre o que acontecera.

- Senhor Joshua. Eu peço mais uma vez desculpas pelo embaraço. Se souber de alguma coisa estranha, agora ou no futuro, que possa nos ameaçar, gostaria que entrasse em contato conosco.

- Umpf.

- Eu não tenho mais perguntas por enquanto. Mas... Se precisar se comunicar... Aqui está meu telefone. Obrigada.

Ele pegou o cartão e olhou por alguns segundos. Quase ia jogá-lo fora, mas mudou de ideia, guardando-o num dos bolsos. Soltou um grunhido de satisfação por sentir-se livre e caminhou rumo à porta. Ele já estava quase fora da sala, quando parou e virou-se na direção dela.

- É. Talvez seja isso... Futuro. Tempo. Isso explicaria muita coisa. – Depois deu as costas para ela e sumiu no corredor acompanhado por um agente.

A frase não tinha o menor sentido para ela, pensou Katlyn. Ele falara para si mesmo ou para ela? Tinha a ver com o trabalho do qual suspeitara? Uma dica? Era pouca coisa para ter qualquer certeza. Talvez algumas palavras sem nexo. Mas agora ela teria que voltar sua atenção para a reunião. Precisava saber se haviam feito algum progresso. Mais tarde se ocuparia do senhor Joshua. Algo, talvez um sexto sentido, dizia-lhe que voltariam a se ver muito brevemente. Mas não no seu futuro.

Katlyn ainda tentando absorver o que vira nas instalações da CIA, retornou ao prédio do Centro de Pesquisa da NASA na mesma cidade. Ela atravessou uma série de corredores e finalmente chegou à sala que a deixara na parte da manhã. A reunião prosseguira sem a sua presença e na sua ausência mais uma peça do quebra-cabeças fora apresentado pela inteligência artificial chamada MINERVA. Se indícios anômalos eram o que procuravam, haviam encontrado mais um, o que reforçava a teoria do buraco-de-minhoca rotativo.

O que foi mostrado por MINERVA tinha percorrido uma trajetória, ao longo da história, bastante tortuosa até chegar às mãos dos que a apresentavam. Tratava-se de um simples pedaço de tela desgastado pela ação do tempo. Algo que chamava a atenção, não pelo aspecto ou pela idade, mas sim pelo que continha. Não havia como saber de que exato ano procedia apesar dos testes de carbono-14 a situarem em meados dos séculos XV e XVI. Poderia passar despercebida, não fosse pelo fato, de que continha a peculiar escrita inversa de Leonardo, o pintor renascentista. Poderia ter sido uma simples anotação, do mesmo tipo que as vezes rabiscamos em pedaços de papel e acabamos esquecendo. Mas como era conhecido por possuir uma tremenda capacidade de se ocupar de várias coisas ao mesmo tempo, e muitas vezes, desinteressar-se por elas tão rápido como o começara, fugia um pouco a este padrão.

A imagem foi ampliada e invertida, mostrando poucas linhas de que parecia ser uma mensagem, de significado incerto. E se a escrita fora atribuída a Leonardo, a comparação entre as duas caligrafias feitas por MINERVA demonstrava que não correpondia a quem se imaginava pertencer. Tinha sido atribuída ao mestre renascentista baseando-se apenas na maneira como costumava anotar suas ideias, muitas vezes no canto de folhas ilustradas ou de desenhos. A pequena tela só fora atribuída a da Vinci por ter sido encontrada entre seus pertences após seu falecimento em Clos Lucé, França em maio de 1519. Poderia ter sido uma falsificação plantada entre seus bens? Os testes indicavam que a tinta era típica desta época, não contendo substâncias utilizadas posteriormente, o que desautorizava tal juízo. Restavam duas hipóteses. Ou era uma falsificação da época ou Leonardo a guardara por alguma razão, desconhecida até por Vasari.

Aumentando-se os detalhes da tela percebiam-se duas coisas. A primeira, sem o perfeccionismo do pintor renacentista, compunha-se da imagem de um homem dentro de um quadrado, delimitado por um círculo, com os braços abertos. O relevante desta figura era de que não dispunha de cabelos e de uma genitália masculina, mas tinha o perfil de um homem, bem diferente, portanto, dos traços desenhados por Leonardo. Abaixo desta estendia-se uma escrita. A mensagem estava na forma cursiva, com a única exceção da assinatura. Nesta, via-se nitidamente os pontos entre cada letra: um V.i.n.c.i. ao invés do cursivo Vinci. E logo abaixo o que parecia serem números, escritos um sobre os outros, o que dificultava a identificação. A tinta utilizada para compor os números estava de tal forma desgatada pela ação do tempo, que mesmo usando várias bandas do espectro, impossibilitava qualquer leitura dos mesmos. Tal composição era bastante estranha a começar pela assinatura. Mera coincidência? Mera distração de um gênio? Ou tinha outro significado?

Acima da assinatura dispunham-se duas linhas em toscano que compunham a seguinte e pouca esclarecedora frase: “encontre-me próximo do palácio Spini”. O pálacio, uma construção antiga de Florença, tinha como detalhe o fato de se situar em frente à ponte Santa Trinita que atravessa o rio Arno. Era óbvio que quem quer que fosse o autor, pedira a outro desconhecido que se encontrassem em frente a ela. Mas se não era produto das mãos de Leonardo, de quem era?

Tornava-se evidente que era uma mensagem para Leonardo e não de Leonardo. O próprio desenho, que seria lembrado por gerações, do homem vitruviano, por si só deixava transparecer muita informação. O relevante no esboço, eram a falta da genitália e dos cabelos. O pintor renascentista jamais desenhara qualquer figura humana, descuidando de tão importantes detalhes. Era uma referência clara de que se tratava de um trabalho que visava mais à comunicação do que ao esboço de uma obra de arte. Um sinal claro e convincente de que fora feito por um dos V.I.N.C.I., que se identificara pela assinatura e pelo emaranhado de números. Mas qual deles seria? V087, V137 ou V238? Nem MINERVA com toda a sua capacidade de processamento poderia descobrir.

Depois que MINERVA silenciou todos se entreolharam. Apenas o Dr. Branamir levantou a mão.

- Não seria uma extrapolação exagerada, partindo de um simples pedaço de tela e dizeres pouco esclarecedores? Não poderia se encontrar uma outra explicação, a partir dos mesmos indícios que MINERVA apresentou? Na verdade não seria uma frágil evidência para se tentar encontrar uma resposta para o desaparecimento da ARES? – disse o doutor Branamir, olhando diretamente para Katlyn.

- Meus colegas estão formulando uma teoria, baseada em poucas e frágeis evidências, por isso lhe apelo, para ter um maior discernicemento em aceitá-las.

Antes que Katlyn pudesse dizer qualquer coisa o doutor Stone adiantou-se, como se aquela sala fosse uma arena onde duas mentes se diagladiavam pela obtençao de mérito.

- Dr. Branamir. – disse ele – Frágeis evidências? Todos nós sabemos que esta série de biônicos, são extremamentes inteligentes. Poderia ser uma tentativa de comunicação. Não só para Leonardo como discretamente para nós.

- Se fosse, ele não seria mais contundente em sua mensagem? Nos dando um indicio inequívoco de sua presença? – retorquiu o doutor Branamir.

- A maneira como a mensagem foi redigida indica que ela foi endereçada a outra pessoa, e não a nós, Branamir. – retorquiu por sua vez, o doutor Stone com um certo ar de sacarmos nos gestos e no tom de voz. – Não sei em que condições ele escreveu isso. Mas imagine-se chegando a uma Itália do século XV, dispondo do conhecimento de toda a história daquele período. E do que aconteceria depois. Diria aos quatro ventos, que tinha vindo do século XXI? Ainda mais em vista do quadro político-social da época? Claro que não! Tentaria encontrar algum meio de se adaptar e procurar chamar a atenção o menos possível. Principalmente por causa dos paradoxos que poderiam ocorrer caso fosse protagonista de algum deles.

- Senhores, estou ciente de que a preocupação do doutor Branamir é relevante. Estamos pisando em especulações, suposições, extrapolações. – disse Katlyn pedindo atenção. – No entanto, em vista do ineditismo da situação sou obrigada a concordar com o doutor Stone que devemos aceitar e lidar com qualquer indício que nos leve a descobrir o que aconteceu com a ARES e seus tripulantes.

- Pelo que sei, antes de apresentar tais conjecturas, como o senhor mesmo afirmou, - continuou ela - pedimos a MINERVA que fizesse uma busca em seu enorme banco de dados por quaisquer indícios de objetos históricos que apresentassem algum tipo de discrepância. Ela encontrou vários deles. Após o refinamento dos parâmetros pareceu-lhe relevante indicar apenas este... A probabilidade de ser um dos indicios que procuramos; de ser originária de um dos membros da ARES, foi de 87%. Na minha opinião, um índice extremamente alto, em vista de estarmos lidando com uma pesquisa, como já afirmei inédita, baseada numa escasses de dados. Creio que o caminho a percorrer seja este mesmo.

- Mesmo que nos leve a um beco sem saída? – interrompeu o doutor Branamir.

- Sim. Se não tiver outra opção, prefiro arriscar, do que simplesmente ficar adivinhando, o que acabaria dando na mesma.

O doutor Branamin apenas deu de ombros, como que avisando que se não chegassem à conclusão alguma, não fora por falta de aviso. - Algum dos senhores tem algo mais a dizer? – disse ela. – Alguma idéia nova?

- Sim. - Disse, um dos cientistas presentes, que representavam os físicos teóricos. - Eu e meus colegas já discustimos isto com o doutor Stone e concordamos que parece uma linha plausível de raciocinio.

- E qual seria...?

Diante dos percentuais de probabilidade e dos dois casos levantados consideramos razoável supor que a teoria do Dr. Stone é a mais plausível. Precisamos de um consenso daqueles que estão aqui, representando várias áreas do conhecimento. – disse, olhando para o cenho carregado do doutor Branamir. - Segundo ela o sistema de abertura de um túnel espacial que teoricamente deveria encurtar a distância entre a Terra e Marte, revelou-se impraticavel por ter sido submetido a uma gravidade extrema. O túnel aberto, conhecido como de Schwarchild, conectou-se com determinados pontos do espaço-tempo. Isto explicaria não só os vestígios provenientes das rochas de Tunguska de 1908, como por esta tela manuscrita do século XV. Ou outros ainda por serem encontrados por MINERVA, que confirmariam nossa teoria.

Como se precisasse da anuência dos dois velhos e antagônicos físicos, ele parou por alguns instantes à espera de alguma crítica que não veio. Mais seguro continuou. - Até o momento a pesquisa feita por MINERVA nada encontrou que se originasse de uma data anterior à confecção da tela.Pode ser uma falta de vestígios que se perderam ou foram destruídos ou de fato só existe este. Se só conseguirmos este, pelo menos nos daria um parâmetro temporal provável para a atuação de um dos tripulantes. Nada sabemos, no entanto, sobre o que aconteceu com a nave e com os tripulantes desde este período até à provável destruição do protótipo em 1908. Há uma falta completa de vestígios.

O Doutor Stone simplesmente bateu palmas, para desgosto de Branamir. A exposição de idéias prometia esquentar aquele ambiente. De qualquer forma, partindo de tão poucas evidências, a doutora Katlyn conseguira algum progresso, já que contava com um seleto grupo de mentes.

Ela deu por encerrada a reunião. Uma nova seria efetuada dali a três dias. Sua intenção era aproveitar o hiato para visitar Ian, com o intuito de saber o que descobrira de ATENA, como também conseguir uma permissão do Presidente para visitar as instalações do senhor Joshua na área 51. Não havia dúvidas de que se conseguisse essa permissão especial ela seria não só esclarecedora como bastante proveitosa.

12 - UMA NOVA TENTATIVA.

Assim que retornou à sua realidade, o clérigo despojou-se de suas indumentárias que utilizara como parte de seu disfarce em Florença. Ele não tinha qualquer vínculo com a Igreja, mesmo porque, do mundo do qual procedia tal segmento da crença humana, não mais existia. Sem aquelas vestes, ele revelou sua verdadeira identidade. O principal responsável por um dos inumeráveis grupos que haviam sido despachados para diversos pontos na linha temporal daquele Universo para descobrir em quais deles se formaria a anomalia, que o seu mestre e senhor havia pressentido.

Sem ter sido inteirado de todos os detalhes, ele o tinha colocado à frente de um grupo de homens, aparelhados com uma série de dispositivos para descobrir se, na faixa temporal que lhe fora designada, haveria uma causa para uma disfunção, como a chamava, que ameaçaria seu domínio futuro sobre aquele planeta. O que acontecera na igreja da pequena cidade fora um golpe de sorte. Após quase um ano de buscas infrutíferas pelas mais diversas nações e cidades daquela faixa temporal da Terra, justamente onde menos se esperava encontrar qualquer indicio da causa, seus homens haviam se deparado com uma presença que destoava totalmente, pelos menos interiormente, com a tecnologia daquele período. Já que nada mais havia sido detectado, não restava a menor dúvida de que V238 era a própria anomalia buscada pelo seu senhor.

A maioria dos grupos, alertados pela sua descoberta, tinham deixado as outras faixas temporais para ajudá-lo a cumprir as ordens emanadas das estranhas criaturas que designavam por mestres: capturar ou destruir, se a causa fosse de origem humana, ou impedí-la de acontecer, caso fosse de ordem natural. Não esclarecia muita coisa, já que o problema maior se constituia nas ordens e pensamentos emanados da entidade que sempre se apresentavam quase incompreensíveis para os seus interprétes. Tal dificuldade de comunicação devia-se ao fato desta inteligência alienígena provir de um Universo tão diferente, que seu modo de processar informações e fazer juízo das mesmas seguia um processo desconhecido do modelo cognitivo humano.

Na verdade nem esta Trindade, como era conhecida pelos humanos, estava certa quanto ao que causaria a anomalia. Ela apenas fora sentida, assim como o homem prevê uma tempestade que se aproxima pelas condições do céu e alterações das correntes de ar. O máximo que conseguia pressentir era de que uma outra linha de tempo neste Universo estaria em vias de ser criada e tal acontecimento ameaçava a sua própria existência. Algo bem além da capacidade humana de poder pressentir e que não poderia ser desejado e muito menos tolerado por tal criatura.

Utilizando a total capacidade de sua poderosa mente, produto de uma evolução que em questão de tempo, superava tremendamente a do homem, conjecturara suas possíveis causas e prováveis indícios a serem examinados.

Os indícios mais fortes concentravam-se por volta do século XV, e outros mais fracos antes e após este século. Mas havia incertezas quanto ao ponto geográfico e o grupo dispersara-se por todo o planeta. Uma a uma as regiões foram sendo examinadas e descartadas. A busca acabou se concentrando na península itálica, não só por ser a última que restara, mas também por ser palco de uma transformação que poria fim a uma época da história humana e daria início a outra. Provável ponto de onde poderiam partir linhas temporais alternativas; anomalias que a entidade sentira. E reduzindo mais ainda a área examinada, o ponto focal terminou por fixar-se em uma de suas cidades: Florença. Ali, naquela faixa temporal e espacial, se concentrara todo o esforço do grupo. Qualquer fenômeno ou acontecimento que destoasse deveriam ser examinados com toda a atenção. Se se revelasse o indício procurado, deveria ser considerada como a causa provável da anomalia e de acordo com a sua natureza, obliterada com rapidez e eficiência.

Mas agora que a causa da anomalia, representada pela figura de V238, escapara de suas mãos, apesar dos evidentes esforços que acreditava ter feito para localizá-la, novas prioridades ocupavam sua mente. A criatura que governava o seu mundo desde que podia lembrar-se, não tinha o hábito de perdoar as falhas de seus servidores. Sua única esperança de escapar de uma provável punição era o fato de que até então não havia uma mancha sequer em sua longa e impecável folha de serviços prestados. Mesmo isso não era garantia de qualquer coisa. Ninguém podia saber ao certo o que se passava na mente do alienígena. E esta dúvida em relação ao que podia acontecer o angustiava.

Graças aos seus esforços muitos agentes tinham se infiltrado entre os habitantes de Florença, na busca por informações sobre algo que ainda não compreendiam claramente, mas que parecia ser de importância vital para ela. Apenas o essencial lhe fora transmitido sobre vagos efeitos cumulativos do tempo que tinham por hábito, muitas vezes, de fugir às previsões, e se permitisse que uma variante indesejada acontecesse, seria motivo suficiente para mudar as condições que haviam levado a criatura a dominar o mundo que conhecia. Ele se considerava um leal servidor, mas desde que essa busca começara, se perguntava se a causa que ela tanto temia, ao invés de efeitos maléficos, não teria efeitos benéficos ao seu mundo. Continuaria vivo, caso ele fosse mudado para melhor? Talvez pudesse encontrar nestas variantes um meio de se livrar da criatura e ele mesmo ocupar seu lugar. Assim cessaria o constante temor de uma punição. Não teria que se reportar a mais ninguém, e ele mesmo seria o senhor de seu destino. Eram tantas as oportunidades, mas a hesitação muito grande. Quem saberia dizer se a criatura, deixando de existir sua importância, já não mais seria a mesma também? Afastado do poder, sem chance de se autopromover?

Por isso, não poderia mudar os acontecimentos a esmo, sem um critério. Baseado numa série de extrapolações a partir das informações fornecidas pelos seus agentes conseguiu ter uma visão geral do eixo, em torno do qual girava a estabilidade da sua própria realidade.

Uma das principais figuras, se não a principal daquele período, a quem muito deviam, era a de Leonardo da Vinci. Suas idéias inovadoras tinham sido rapidamente assimiladas levando-as da simples teoria para a prática total. Isto fizera não só a tecnologia, como também a Ciência, acelerar o processo de industrialização europeu. As gerações que se seguiram não só colheram os frutos de suas idéias seminais, como as aperfeiçoaram e as levaram para outro patamar. Algumas superando suas invenções originais. Tanto que no século XVIII, já eram comuns aparelhos aéreos de combate e transporte de passageiros. A tecnologia bélica foi a que mais se desenvolveu, construindo imensos carros e tanques blindados que, munidos de dispositivos que captavam e concentravam a luz, podiam dispará-la contra o inimigo, tornando a pólvora obsoleta.

Assim, para alguém proveniente de um século posterior ao XVIII, tais aperfeiçoamentos faziam parte essencial de seu próprio passado e não poderiam ser alterados. Entre elas, as guerras entre as nações possuidoras de tais poderes que se digladiaram em embates sucessivos pela supremacia na Terra. E depois dos escombros destes infindáveis confrontos a aparição de um império poderoso que englobou todo o planeta, persistindo até ao século de onde viera. Não mais comandado por homens e sim por um alienígena.

Talvez fosse isso que a criatura havia pressentido. Uma causa que poderia alterar esse estado de coisas pondo não só um fim ao império que conhecia, bem como ao poder que essa criatura exercia a partir do império. Não fora isso o que sempre fizera? Com seu cérebro alienígena constantemente monitorando o tempo, enviando-o para corrigir eventuais divergências que poderiam alterar o curso da história? Eliminando prontamente qualquer anomalia? Mas esta da qual fora encarregado era diferente. Não era produto de circunstâncias que vez por outra irrompiam, desviando sutilmente o curso dos acontecimentos. Era uma coisa sem precedentes, o que explicaria até a dificuldade da criatura em definí-la. Algo que fugia aos padrões. Algo que viera de fora.

E agora que a havia encontrado depois de tanto esforço despendido, pela primeira vez não conseguira erradicá-la, o que o deixava frustado e temeroso. Seria sempre um perigo em potencial enquanto não fosse eliminada. Enquanto estivesse latente, seus desdobramentos poderiam alterar o curso da história, talvez eliminando parte ou totalmente a realidade de onde provinha, ele incluso. Então, na ausência de meios para prescrutar este novo futuro, era mais prudente manter a atual situação. Ter algum poder, do que nenhum. Mas agora não era isso que o preocupava. Se quisesse se manter dentro daquela hierarquia teria que agir como sempre fizera: achar um culpado para esconder seu fracasso e escapar do capricho da criatura.

13 - A ENTREGA.

Leonardo estava aproveitando aqueles poucos momentos que dispunha, entretido em mais um projeto, enquanto seus assistentes inspecionavam as pinturas e as esculturas encomendadas. Elas eram importantes e constituíam naquele momento a única fonte de receita que dispunha, depois que deixara seu mestre Verrochio. A competição entre os grandes mestres da cidade era muito grande e muitas vezes, mesmo a contragosto, tinha que aceitar trabalhos que não constituíam desafios à sua inventividade para não perder clientes. Além de supervisioná-las tinha que se ocupar com o desenvolvimento de seus alunos e assistentes, o que lhe restava pouco tempo para o que mais gostava de fazer: dedicar-se aos seus projetos para melhorar aquele mundo tão atrasado. Mas assim que começava a se concentrar num deles, era obrigado sempre a deixá-los de lado para dar atenção aos alunos e eventuais fregueses que o requisitavam constantemente e ao seu próprio gênio perfeccionista, que não permitia qualquer erro deste ou daquele trabalho, por menor que fosse.

Sua modesta instalação, mais improvisada do que planejada conforme desejaria, tinha a compensação de ajudá-lo em abstrair-se em seus pensamentos, graças à visão privilegiada que podia ter do rio Arno, cujo caudal aumentara por causa das chuvas dos últimos dias. Mas se muitas vezes era surpreendido completamente alheio, não era decorrente dos infindáveis pensamentos que percorriam sua mente. Eram suas preocupações. Genuínas e impossíveis de serem compreendidas por aqueles humanos a quem se afeiçoara.

Restavam poucos da sua espécie. Mas era um mundo jovem, bem diferente daquele do qual viera. A travessia não fora fácil e o retorno a ele se tornara impossível, já que os habitantes de seu planeta haviam consumido as últimas reservas de energia, de um Universo que atingira o nível máximo de entropia, para conseguirem atravessar para Universos mais acolhedores, como este em que havia decidido abrigar-se. A maior parte de seus semelhantes já perecera, ou ficara para trás, em outros Universos que mais se compatibilizavam com suas personalidades. Entretanto nenhum daqueles humanos tinha a menor noção do quê movia aquele corpo que tivera de adotar e com muita dificuldade, se adaptar. Sua tecnologia que estava a milhões de anos à frente permitira-lhe assumir a aparência dos seres deste mundo jovem, porém, muito atrasado, de forma que passasse despercebido. Seu maior interesse era compartilhar com eles da forma a mais elementar possível, e sem sobressaltos, tudo o que sua civilização havia criado de melhor, sem se esquecer de que também haviam permitido o pior. Era uma tarefa difícil, e muitas vezes, diante de seus cérebros primitivos, a impaciência e o desânimo tomavam conta de si.

Quando ele viu a criança parada à sua frente, estendendo-lhe a mão, imaginou que fosse mais uma daquelas pequenas criaturas, resultante de um dos peculiares processos de multiplicação daquela espécie, que em muitos casos não levavam em conta a sobrevivência de seus descendentes. Mas deixou de lado a reflexão quando verificou que o motivo dela estar parada ali se devia ao fato de estender-lhe insistentemente um pedaço esgarçado do que fora outrora uma tela de pintura. Ele fez um sinal para que o menino se aproximasse e pegou o pedaço estendido na sua direção. Só poderia entender a razão daquele gesto se o pegasse para examinar melhor. O foi o que fez. Observou-a atentamente, despertando-lhe um misto de curiosidade e estupefação. Primeiro pelo desenho que pensara certa vez em fazer, para interpretar o que lera da obra de Marco Vitrúvio Polião, sobre os ideais de beleza das proporções humanas. Quem o fizera possuía algum talento rudimentar, mas não o suficiente para se tornar um artista. Desenhara o corpo daqueles humanos sem seus apêndices reprodutivos, que tanta questão faziam de ressaltar. Por que o fizera? Mesmo assim era o trabalho de uma inteligência ainda por ser cultivada. Segundo pelo estranho convite, onde utilizara o seu sistema de escrita inversa, que só poderia ser compreendido através de um espelho. Mas sua visão dispensava tal primitivismo e rapidamente inteirou-se de seu conteúdo. “O espero próximo ao Palácio Spini. Assim que chegar eu o procurarei.” Qual seria sua real intenção? Não se identificara e nem lhe dizia de que forma se reconheceriam. Poderia simplesmente não ir e aguardar um novo contato. Mas havia alguma coisa de diferente naquela mensagem. Percebeu isso quando viu a assinatura com o nome da pequena cidade de onde dissera ter vindo, já que todos os humanos tinham um local de origem e um outro final, para onde iam suas cascas vazias. Por que escrevera as letras separadas por pontos? Teria algum significado especial?

Mas o que mais lhe chamou a atenção foi a maneira como o humano escrevera as linhas, adotando o mesmo método que empregava. Para que suas idéias não caíssem em mãos erradas ou pudessem ser apropriadas por outros concorrentes, desde que chegara a cidade adotara o estratagema de escrever daquela forma, tornando a leitura difícil para os demais sem o uso de um espelho. Desta forma somente aqueles dotados de uma certa perspicácia entenderiam que para ler o que escrevera bastaria aproximar sua escrita de um espelho para ver a imagem reflexa. Mais uma vez ele raciocionou. O que estava recebendo seria apenas uma cópia, uma brincadeira de seus alunos ou a mensagem provinha de uma criatura cuja mente era mesmo diferente dos demais, demonstrando conhecer muitas de suas particularidades? Como isto era possível?

Antes que pudesse obter mais informações do pequeno missivista, assim que lhe deu uma pequena moeda, este partiu sem nada dizer, misturando-se ao restante das crianças que o acompanhavam.

A primeira coisa que lhe ocorreu, diante daqueles detalhes intrigantes, foi que um dos seus poderia ter atravessado a barreira dos Universos. Era algo incomum. Todos tinham concordado em escolher um deles para si, de forma que pudessem percorrer seus próprios caminhos e só em caso de extrema urgência se encontrariam. Mas se fosse este o caso, não obedecera ao código pré-estabelecido. E também utilizaria meios mais sofisticados para contactá-lo do que a utilizada por aquelas formas primitivas. Então se não era um da sua espécie, o que ou quem era afinal? Ele sentira uma pertubação no futuro, mas não lhe dera muita importância. Deveria fazê-lo agora?

Então ele relembrou certos acontecimentos, que talvez poderiam estabelecer uma conexão. Não lhe passara despercebido que nos últimos meses estranhos de origem desconhecida rondavam a cidade, principalmente os ateliês, sendo que o seu não fora exceção. Não eram da sua espécie e sim dos humanos, com os quais já se habituara. O propósito ainda lhe escapava, apesar de ter feito pequenas sondagens no tempo que apontavam para uma origem cronológica diversa da atual. O excesso de serviço não lhe deixara tempo suficiente para se ocupar dos estranhos, mas uma de suas prioridades era, assim que dispusesse dele, solucionar de uma vez por toda a razão de sua estada. Apesar de considerar as formas de vida daquele mundo, muito aquém da capacidade de onde viera, o medo e a ignorância podia torná-los excessivamente perigosos. Sua suspeita principal era de que estes estranhos estivessem ali para averiguar o que acontecera ao verdadeiro Leonardo deste Universo. Não lhe fizera nenhum mal, apenas enviando-o para um mundo melhor, onde seu raro talento, acima da média deste lugar, poderia ser aproveitado para o aprimoramento da sociedade à qual passara a pertencer. Quando lhe deu esta oportunidade, aquele humano especial não hesitara. Mas por outro lado, cabia-lhe preencher a vaga, de forma a adaptar-se o mais rápido possível às características deste novo mundo. Talvez não tivesse conseguido assim com tanta rapidez como pretendera. Isto poderia ter provocado alguma divergência histórica que seus futuros habitantes estavam tentando corrigir.

Por mais precauções que tivesse tomado, talvez dispusessem de meios que permitisse revelar seu disfarce e a mensagem poderia ser um aviso de algum simpatizante alertando-o para isso. Mas se era este o caso, porque nada tinham feito até àquele momento? E de que tecnologia os estranhos dispunham para descobrirem seu sofisticado disfarce? Deixara alguns Universos, onde deparara com formas de vida extremamente avançadas, onde não pudera se misturar facilmente. Algumas se mostrando descontentes com a sua presença. Mas neste, não era o caso. Desde que percebera a presença dos estranhos na cidade, sentira uma vibração na corrente do tempo. Não conseguira detectar com clareza a fonte do distúrbio. Talvez o remetente não fosse quem imaginava ser e sim a própria razão dessa pertubação. Só havia um jeito de esclarecer tantas dúvidas: indo até o local e se encontrando com o autor da mensagem.

Precavido como era, antes de sair, foi até seus aposentos particulares e retirou um estranho objeto, composto por delicados cristais. Se fosse alguma armadilha arquitetada pelos estranhos, o ativaria transportando-se para outro Universo, onde poderia recomeçar nova vida, assumindo nova forma. Mas ele torcia para que isso não acontecesse. Desde que tinham decidido abandonar o seu, moribundo, percorrera uma infinidade deles, procurando por um onde pudesse se estabelecer definitivamente. Já estava cansado de perambular por tantos, muitas deles hostis e este, apesar do atraso, demonstrara aceitar seu pontencial e pretendia fixar-se nele.

14 – A ESPERA.

V238, ainda não conseguira encontrar uma explicação para a ausência do magnífico palácio Vecchio que não só compunha parte da história da cidade, como constituía um dos seus marcos inconfundíveis. Teria sido destruído em algum incêndio, ou em alguma comoção natural ou social? De onde viera não havia referência alguma sobre sua destruição e posterior reconstrução. Não havia qualquer informação neste sentido o que o deixava realmente diante de um paradoxo. Poderia ser até uma falha nos registros, mas estranhava a ausência de qualquer coisa nesse sentido. Poderia perguntar diretamente às autoridades daquela cidade-república, mas pelo que recentemente lhe ocorrera não era uma via muito segura, ou poderia vasculhar discretamente seus arquivos, em busca de indícios que pudessem esclarecer seu desaparecimento.

Ele estava se deixando levar pela característica curiosidade humana e o fato da construção existir ou não, em nada alteraria sua situação. Mas algo, uma sensação inédita, como um leve incômodo, atrapalhava a lógica das informações que se processavam em seu cérebro artificial, enquanto não achasse a razão do sumiço do palácio. Mesmo a busca por informações era, por si só, um descuido que poderia revelar sua presença.

Desconhecia quem eram os nativos da cidade daquele momento no tempo e quais não eram. E a tentativa frustrada de destruí-lo, era mais uma razão para se manter incógnito e apaziguar por hora, a curiosidade.

Sempre atento a observadores suspeitos, encostou-se num dos edifícios que margeavam o rio que cruzava a cidade, de modo a não ficar exposto. Ali, ficou parado por um bom tempo, observado os pequenos barcos que singravam o rio Arno, supondo que Leonardo ao receber sua mensagem, se deixaria levar pela sua infindável curiosidade, acabando por procurá-lo. Esperava que naquelas circunstâncias, onde toda a precaução se fazia necessária, localizá-lo não fosse difícil, pois não dera nenhuma indicação de como estava vestido ou de qualquer outra particularidade de sua aparência.

Às vezes alguns soldados circulavam por aquela parte da cidade, e muitas vezes o olhavam com certa suspeita. Alguns tinham-no até abordado, obrigando-o a mentir sobre as razões de estar ali. Talvez o imaginassem como mais um pedinte incômodo ou um ladrão à espera do momento certo para agir. Um fato que rondava as cidades desde que o homem construíra a primeira. Por precaução, antes que se aproximassem, sondara seus corpos, em busca de algum objeto suspeito que destoasse da época, mas até àquele momento, pareciam ser genuínos representantes daquela sociedade. Ele tinha consciência de que era uma atitude arriscada, e quanto mais tempo demorasse suas chances de ser descoberto, aumentariam na mesma proporção. Mas não poderia sair dali, até que o humano chamado Leonardo, viesse ao seu encontro.

Apesar de não sentir qualquer ansiedade, fora preparado para seguir um programa pré-estabelecido de tarefas, e o fato, de ficar ali parado contrariava a rotina intensa de múltiplas tarefas às quais estava habituado. Se Leonardo não viesse, não teria outra opção se não a de se expor perigosamente, movendo-se até seu estúdio.

Seus sensores óticos logo ficaram abarrotados de imagens de rostos que seus processadores procuravam identificar e filtrar, vindos de inúmeros habitantes que passavam ou se aproximavam, para compará-las com a imagem que processara de um Leonardo mais jovem. A cada dez minutos, ele tinha que deletá-las para não armazenar informações desnecessárias. Por fim, os sensores conseguiram identificar no meio dos transeuntes uma imagem que era compatível com aquela fixada. E os indícios não se restringiam somente à face. Percebia-se que estava claramente à procura de alguém. Comparando seus traços faciais com as imagens armazenadas, de um Leonardo mais velho, principalmente com o nível do zigoma do rosto, a percentagem de acerto atingia a ordem de 87 %, o que indicava uma alta probabilidade de acerto.

Ele esperou um pouco e antes de rumar na direção dele, olhou ao seu redor para se certificar de que não havia pessoas seguindo-o ou se os que estavam próximos, exercendo atividades nas margens do rio, não eram estranhos disfarçados. Utilizando os filtros de várias gamas do infravermelho procedeu ao escaneamento habitual sem encontrar indícios de dispositivos escondidos destoantes da tecnologia da época. Talvez os estranhos o estivessem sondando também a partir de dispositivos postados em alguns dos pontos altos da cidade. Mas não havia como saber se isto estava ocorrendo ou se não passava de excessiva precaução. Quando os sensores passaram pelo corpo do jovem Leonardo, revelou uma imagem que não correspondia aos padrões habituais dos humanos naquele espectro de ondas. Na verdade, na parte humanóide, apesar de uma tênue radiação, não se observava a característica gradação de partes quentes e frias. O mais extraordinário era que corpo de Leonardo estendia-se para além do que era visível a olhos desarmados. Uma mancha difusa o envolvia, flutuante, absorvendo fótons, como se fosse uma mão gigante camuflada, manipulando uma marionete. Não havia referências para descrever o que os sensores detectavam. Por instantes, ele não soube como agir. Decididamente não estava diante de um ser humano. Seria ele o responsável pelos estranhos? Uma presença alienígena?

Os outros, que o haviam hostilizado eram claramente humanos, mas a entidade que caminhava à sua procura não. Poderia se esquivar até descobrir quem de fato era ele. A situação pela qual passara o ensinara a não confiar em qualquer um daqueles seres. Mas antes que pudesse tomar qualquer atitude, ele detectou sua presença. Era tarde demais para fugir. Teria que lidar mais uma vez, com uma situação inesperada.

15 – TRÊS PONTOS VERMELHOS.

O homem, de nome Ronan, que se passara pelo clérigo, estava ansioso, aguardando sua vez. A demora o incomodava, ainda mais que dos cinco que haviam sido chamados para prestar conta de suas missões, dois tinham sido levados diretamente para o “confinamento”. Era o eufemismo para o destino tenebroso reservado para aqueles que não correspondiam ao desígnio da criatura conhecida pelos humanos como Trindade. O termo derivava-se do fato de possuir três pontos luminosos avermelhados que os humanos deduziam servir-lhe como olhos. Mesmo Duncan Ronan pouco sabia desta criatura arredia que havia chegado ao seu mundo várias gerações antes da sua. Diziam os mais velhos que tinha colocado ordem em seu mundo, trazendo uma época de prosperidade e de paz. Mas isto se dera mais pelo fato dos seus semelhantes estarem cansados de tantas guerras, se deixando seduzir por qualquer promessa de acabar com os infindáveis conflitos. Utilizando este pretexto, com o aval de muitos humanos, um lento, mas inexorável torniquete foi apertando a humanidade até transformar todos os seus habitantes em mero instrumento de seus insondáveis planos alienígenas. E agora, ele estava ali, a mêrce de seus caprichos sem que pudesse contar com ajuda de seus semelhantes, devido ao medo que a presença da criatura causava. E a idéia de que, por seu fracasso, lhe poderia acontecer a mesma coisa que sucedera aos outros dois que o haviam precedido, o deixava angustiado.

Todos que estavam ali, quase não se olhavam, cada um entregue aos seus próprios pensamentos, procurando por alguma falha que talvez lhe tivesse escapado no cumprimento da missão que lhe fora designada. Muitas vezes o fato de ser convocado não se devia a uma tarefa mal cumprida, ou o cometimento de qualquer erro. Apenas era chamado, talvez para uma nova missão. E o clérigo se apegava a isso.

Mas se fosse por outra razão, já que não poderia contar com qualquer ajuda, poria a culpa nos agentes que lhe tinham sido enviados para auxiliá-lo na tarefa para a qual haviam sido designados. Como encarregado fora informado apenas de que naquele espaço-tempo, para onde fora enviado, se daria uma provável interrupção da realidade que conheciam. Era algo muito vago e poderia se valer disso para não sofrer qualquer penalidade. A única coisa em que ela havia insistido era de que deveria investigar da forma mais discreta possível a causa ou as causas de tal ruptura. E mais enfático ainda de que assim que fossem descobertas, eliminá-las sem hesitação. Por isso tinha se concentrado em observar qualquer discrepância que por ventura notasse no período visitado. Gastara vários meses na árdua tarefa sem encontrar qualquer indício e já estava a ponto de desistir e pedir auxílio à Trindade, quando um dos agentes ao fazer uma varredura ocasional junto à porta da igreja deparara com uma assinatura inusitada. Por muito pouco não conseguira erradicá-la, conforme as ordens expressas que recebera. E se não o fizera devia-se totalmente à incompetência de seus ajudantes. Se havia descoberto a provável causa da anomalia que ocorreria na sua atual realidade, era um ponto a seu favor, mas o fato de não ter acabado com ela, pesava mais do que a descoberta. E neste aspecto, a Trindade era implacável quando se tratava de qualquer coisa que a contrariasse.

O momento aguardado chegou e ele foi encaminhado até a sala onde a Trindade despachava suas ordens, sentido o coração acelerar. Poucos podiam vê-los por causa de uma exacerbada segurança e só em casos especiais aparecia “pessoalmente” diante de quem julgavam merecer. E costumava ser implacável quando se via descontente.

Assim que as portas se fecharam ele se viu só em meio à penumbra. Em toda sua vida de dedicação, era a terceira vez que ficava frente à frente com a criatura.

Sentido as fortes batidas de seu coração e a respiração pesada, se ajoelhou em sinal de reverência, aguardando o que ela tinha para lhe dizer. Na verdade ninguém sabia ao certo o quê esta criatura era. Havia muitos boatos, é claro. Alguns diziam que não era deste Universo. Outros, que viera de um mundo tão longinquo, situado nas bordas do desconhecido que todas as formas de vida não tinham aparência material, existindo somente em essência. Desde que se lembrava, ela sempre existira, sempre estivera lá. Não havia passado sem ela. Era o presente e o futuro e a ela tudo se devia.

Como das duas outras vezes anteriores, uma faísca cortou a penumbra. E logo surgiu uma mancha de luz, ondulando acima de sua cabeça, o que o fez encolher-se mais ainda de medo. Ele sempre se perguntava se esta era a forma original dela se comunicar ou um mero efeito secundário proveniente de sua constituição exótica. Mas a tensão do momento sempre pertubava o seu espírito, impedindo que pudesse analisar racionalmente o que via.

De repente ele ouviu uma das três vozes que provinham da criatura. Esta particularidade sempre o confundia já que nunca soubera se estava diante de uma junção de simbiontes alienígenas, com personalidades distintas, ou uma mente inacessível à compreensão humana. - Agente Duncan! Sua folha de serviços é impecável. – disse uma das vozes. - O-obrigado. Eu...

- Deixe-nos continuar. – disse outra. – Soubemos de seu fracasso, o que coloca uma pequena mancha muito, muito feia em sua folha de serviços prestados.

- Algo que macula a brancura daquela folha impecável. – disse a terceira. – numa ironia que compreendia perfeitamente as sutilezas do espírito humano.

Ele procurou se concentrar o máximo que podia diante daquela situação tensa, em busca de qualquer particularidade tonal que pudesse distinguir uma voz da outra. Procurou por algum indício proveniente dos contantos anteriores que o ajudasse a entender o paradoxo das afirmações que fazia. Às vezes, se expressando como se desconhecessem as nuances da psique humana, outras, repletas de uma carga emocional que confundia qualquer ouvinte humano. Sempre vozes distintas, nunca se atropelando ou discordando entre si. Por vezes até falando em coro, como uma só voz, o que dificultava qualquer concepção sobre o que realmente era a Trindade. Uma tripartite com um único cérebro ou uma unidade composta de três cérebros diferentes?

- Não é do nosso feitio punir aqueles que nos servem com toda dedicação. – disse uma das vozes, enquanto as luzes ondulavam em cima de sua cabeça.

- Abriremos uma exceção no seu caso. – disse outra.– Mas será a primeira e última. – completou outra.

Ele respirou aliviado sabendo que não seria punido. E esta benevolência, reforçou sua fé em servi-los mais ainda.

- Co-como posso ajudar desta vez?

- Já sabemos por você a origem da anomalia que prevíramos. Daremos todo o apoio tecnológico para que desta vez, não erre. – Falaram em coro.

Tal atitude da Trindade renovou suas forças e lhe deu um pouco de coragem. Sem procurar demonstrar desrespeito, ele olhou rapidamente para o teto, onde as luzes tremeluziam e tentou descobrir de onde vinham as vozes.Por segundos, no meio da penumbra cortada pelo reflexo das luzes, ele conseguiu firmar a vista e vislumbrou no fundo um vulto e três pontos vermelhos, que pareciam olhos encravados numa forma escura, difícil de definir. Pareceu-lhe que tinha a aparência de um enorme crustáceo, cuja cabeça possuía a grosseira forma de um losangulo que logo mudou para outra forma geométrica. Na verdade o que se poderia chamar de corpo alterava-se de forma constantemente, como se tivesse dificuldade de firmar-se naquela realidade humana, composta de três dimensões. A visão, que não se encaixava em nada que conhecia, infundiu-lhe certo terror e rapidamente ele baixou os olhos para o chão, procurando se esquivar dos pontos vermelhos que mais lembravam a mitologica figura de Cérbero.

- Agora pode se retirar agente Duncan. – disse uma das vozes, retornando ao tom singular.

- A propósito, disse outra. – Os agentes que o auxilivam na Igreja e que falharam miseravelmente, já não fazem mais parte do seu grupo.

Ele nada disse. E nem queria saber o que havia acontecido com os homens que enviara para capturar o estranho. Com certeza, não tinha sido nada agradável o que lhes acontecera. Tal sentimento de horror, o fez querer sair dali o mais rápido possível.

Quando as portas se fecharam atrás de si, ele fechou os olhos e deu um grande suspiro de alívio. Estava salvo por ora. Mas quando chegaria sua vez?

Um dos homens de confiança da Trindade lhe fez um sinal e o conduziu para outra sala, onde receberia as novas instruções e equipamentos. Enquanto caminhava ele continuava se perguntando o que era realmente aquilo que chamavam de Trindade? Uma máquina? Um ou vários seres de outro Universo? Ou a concretização de seus próprios pesadelos?

16 - O ENCONTRO.

V238, não tinha nenhuma informação armazenada que pudesse comparar com as informações que recebia através dos seus sensores óticos. Utilizando várias faixas do espectro eletromangético ele procurou analisar parte da imagem refletida. Esta emitia diversos tipos de ondas nas várias faixas do espectro, mas o restante, opaco, distribuia-se numa mancha difusa, como se tentasse se estabilizar num espaço-tempo estranho à sua natureza. Por instantes aquela sombra pareceu-lhe assumir a forma de um enorme crustáceo, que logo se dissipou.

A conhecida figura da Renascença era bem diferente em sua composição do que aquela legada pelo tempo aos pósteros. A parte visível aparentemente humana, mais parecia uma marionete manipulada pelo restante da massa escura.

Fosse o que fosse que observara, deveria agir, assim que concretizasse o contato, de uma forma que ocultasse o que seus sensores haviam detectado. Por instantes ele ficou indeciso se deveria efetivar mesmo o contato. Aquela criatura tão exótica talvez tivesse alguma ligação com os estranhos que haviam atentado contra a sua integridade. No entanto, a ordem de cumprir a missão à qual V087 lhe incumbira sobrepunha-se à lógica da precaução. Qualquer ajuda naquele momento seria bem-vinda, desde que fosse confiável. E quanto a isso, a estatística de seus cálculos era bastante restrita.

O apêndice visível em nosso universo chamado Leonardo, guiado pelo cérebro tripartite de um ser simbionte, logo notou a sua presença e caminhou resolutamente na sua direção. V238 ficou aguardando para ver o que aconteceria, e preparou-se para qualquer ato hostil, caso a forma de vida que caminhava na sua direção fosse a responsável pelos estranhos que rondavam a cidade.

Cada um, sem o saber e à sua maneira, esperava não chamar a atenção dos estranhos que circulavam pela cidade, conforme já percebera Leonardo, e também V238 de outra maneira. Na verdade, antes que fosse estabelecido o contato, ambos ainda desconheciam que os estranhos pertenciam ao mesmo grupo. E até aquele momento, por suas próprias preocupações, cada um se voltava para o fato de não saberem até que ponto seus passos estavam sendo vigiados, mesmo dispondo cada um a seu modo, de capacidades inimagináveis para os habitantes daquela época.

V238 atentou para o detalhe de que Leonardo segurava o pedaço de tela que lhe enviara e assim que se aproximou o suficiente levantou-a e olhou na sua direção. Ele aquiesceu, confirmando com um ligeiro meneio da cabeça que era ele o autor. Para evitar quaisquer olhares indiscretos, passou por ele e fez um leve sinal com a cabeça para que o seguisse. V238 aguardou alguns segundos e depois o seguiu, como se fosse um transeunte comum.

Leonardo, ou a entidade que a representava, se dirigiu para o oeste, para a grande catedral de Florença. Provavelmente pretendia chamar menos atenção, apesar de sua bibliografia afirmar que não era um homem religioso. Fato que V238 podia reconhecer agora que não era tanto uma coisa como outra. Talvez se misturar com os fiéis que buscavam por amparo espiritual no interior daquele templo poderia ajudá-los a disfarçar o contato que pretendiam encetar. Mas tal ação o afastava do local que escolhera a principio, próximo das muralhas da cidade e de uma eventual fuga, caso se fizesse necessária.

Assim que chegou, Leonardo caminhou até o interior da igreja, que estava praticamente vazia naquele horário, ajoelhando-se em um de seus bancos como se fosse rezar. Na verdade o ato nada mais era do que uma estratégia para que pudessem conversar da forma mais discreta possível.

A entidade que adotara a imagem de Leonardo sentiu-se mais confortável porque não precisaria usar o dispositivo que trouxera. As rápidas leituras que fizera no homem que lhe mandara aquele pedaço de tela afastaram as suspeitas de que poderia ser alguém da sua espécie que cruzara um dos Universos conhecidos. Na verdade, conforme o acordo prévio, cada um deveria ter tomado caminhos diferentes, buscando oportunidades no Multiversos que encontrassem. Qualquer oportunidade seria melhor do que a de seu, moribundo, desgatado pelo próprio tempo. Mas se por um lado, aparentemente não era quem esperava encontrar, quem seria aquele ser inorgânico que lhe mandara uma curiosa mensagem? Este fato novo proveniente daquele Universo jovem aguçou ainda mais sua insaciável curiosidade. Era mais uma característica do mundo que adotara como lar, que apesar dos desafios da adaptação, dava-lhe muita satisfação. Algo bem diferente da angústia da qual sua espécie havia se livrado, quando os últimos anciões tinham tomado a decisão de partir.

V238 procurou imitar o gesto de Leonardo e ajoelhou-se ao lado dele, que fixara os olhos não para o altar e sim para um dos púlpitos laterais. Ainda continuava sem entender como se dava o processo físico que impedia a criatura de projetar a parte invisível do corpo nas três dimensões espaciais conhecidas. Talvez viesse de um outro Universo onde existisse um número maior de dimensões conforme alguns físicos haviam teorizado.

Sem desviarem o olhar do mesmo lugar, V238 foi o primeiro a falar. – Leonardo?

- Sim. Você é...?

- Pode me chamar pelo nome que quiser.

- Vitrúvio. Concorda?

- Irrelevante.

- Vitrúvio. Por ser estranho a este mundo, tenho meios para detectar quando encontro uma entidade que apesar da aparência, difere do padrão geral. Identifiquei sua constituição artificial e seu sofisticado sistema de coleta de dados. Vi que foram ativados e certamente já computaram sobre os meios que utilizo para poder interagir neste universo tridimensional.

- Correto, entidade não Leonardo.

- Posso fazer-lhe duas perguntas? – expressou-se por sua vez V238, aproveitando aquela oportunidade única de registrar informações sobre uma forma de vida alienígena. – De onde provém sua espécie? E como conseguiu superar o abismo da interação que separa sua forma da nossa?

Leonardo não demonstrou qualquer reação. Como um professor se dirigindo ao aluno curioso, pacientemente respondeu às perguntas. – Viemos de um Universo que existe ao lado do seu e de infinitos outros. Um Universo que estava morrendo. Não tivemos outra opção, se não deixá-lo. – E prosseguiu.

- Meu mundo orbitava uma das últimas estrelas deste Universo moribundo. Muito velha e fraca comparada aos padrões deste objeto luminoso em torno da qual gira este planeta. Deixei-o onde imperam características diferentes, como no caso das dimensões, o que dificultou minha adaptação às condições aqui reinantes. Para poder interagir neste, cruzar o abismo, como definiu, foi necessário criar este dispositivo que agora vê, que imita a forma humana. Através da análise de seus pequenos cérebros pude assimilar o peculiar sistema sonoro de comunicação dos humanos e todas as demais interações permitidas por ele.

V238 pretendia fazer mais perguntas, mas foi interrompido com um sinal da mão de Leonardo.

- Mas quem é você, meu pequeno homem mecânico? Os habitantes deste mundo não possuem a técnica necessária para construí-lo. Então presumo que tenha sido enviado por uma espécie inteligente que desconheço ou que foi enviado por um dos membros da minha, o que romperia o nosso acordo.

Antes que V238 pudesse responder, Leonardo continuou. - Independente da situação em que se enquadre, devo salientar que devido à nossa constituição física, possuímos o atributo de sentir o tempo como um fluído que nos faz atravessar realidades sobrepostas. Neste meio, o irreal e o real se mesclam em todas as variáveis possíveis do que ainda ocorrerá. Essa particularidade nos torna sensíveis às estas tênues linhas do tempo, que se alteram e se chocam constantemente eliminando algumas e fortalecendo outras.

- Vitrúvio, - continuou ele. – Tal sensação me faz perceber que sua presença é um grande fator de mudança nas difusas linhas temporais que se apresentam à minha sensibilidade.

V238 não encontrou uma forma de solucionar a questão levantada por Leonardo quanto à sua participação em eventos futuros. Mas a descrição de como viam a dimensão temporal, assemelhava-se bastante a mecância quantica onde somente uma medição seria possível em meio a tantas outras.

- Algo que justifique alguma hostilidade? – perguntou V238. – Desde que cheguei aqui, homens hostis tentaram me danificar duas vezes. Estou tentando computar suas razões e ainda não tenho uma explicação para tais atos. Suas funções de detecção de variáveis temporais permite tal solução?

- Impossível definir, Vitrúvio. Podemos apenas sentir pertubações no fluxo do tempo, do mesmo modo como os humanos deste mundo sentem o ar aquecendo ou resfriando suas faces. Mas como as variáveis são muitas, não temos como saber quais delas se firmarão, apesar de sentir que contribuira para definir uma delas. Quanto à hostilidade, desconheço por ora a razão. Mas posso conjecturar.

Se fosse dotado das peculiaridades da personalidade humana, pode-se dizer que V238 ficou surpreso ao inteirar-se de que a criatura chamada Leonardo dispunha de peculariedades desconhecidas que descobrira não só seu disfarce sem qualquer esforço, como lhe atribuia um papel nos eventos que ocorreriam. E ainda, com extrema confiança, lhe revelava seus segredos. Seria ele o responsável oculto pela presença dos estranhos, que tinham tentado eliminá-lo devido às tais possibilidades de interferência temporal? Se fosse este o caso, estaria sendo vítima de nova armadilha, que utilizaria tática de diversão? Imediatamente ele entrou em protidão máxima, preparando-se para qualquer eventualidade, já que este lhe dera uma resposta dúbia.

Neste novo estado, V238 deixou a coleta de dados para segundo plano e revelou-lhe o que viera fazer, para testar a reação de Leonardo. - Muitos detalhes do que aconteceu e me trouxeram até aqui, ainda são incertos pelo conflito extremo de dados. Esperava apenas entrar em contato com uma figura conhecida do meu mundo que pudesse me ajudar. De concreto sei apenas que minha presença aqui decorreu de uma particularidade do espaço-tempo não computada no projeto do qual participei. Se isto assim ocorreu, há dados conflitantes. Esta cidade existe em meu passado, mas está diferente.

Leonardo virou-se e o fitou por instantes. Depois voltou seu rosto para frente. - Conheço vários processos físicos relativos a estas particularidades que envolvem espaço-tempo, mas não sei lhe dizer se correspondem aos mesmos que minha espécie descobriu. Certas leis físicas mudam de Universo para Universo, o que nos impediu de ir a todos eles. Mas naqueles onde esses princípios eram aplicáveis, meus iguais o utilizaram para cruzá-los. Você citou uma particularidade da cidade que a torna diferente de como deveria ser, correto?

- Exato. A passagem para esta cidade foi possível através de um processo que nós denominamos de wormhole rotatório. Por ele deveria estar na cidade de Florença do meu passado.

- Desconheço o termo. Precisaríamos compatibilizar nossos conhecimentos para saber se é idêntico à singularidade que nos permitiu viajar de um Universo para outro. Tenho pouca experiência com estas fendas. Calculo que deva ser instável, afastando-se às vezes do eixo principal. Quando isto acontece conecta-se com outro Universo. Quando se estabiliza volta a se ligar ao Universo original, de onde foi gerada. Isto explicaria o fato de estar numa cidade diferente daquela que conheceu, pois está agora no passado de uma versão de sua Terra.

Apesar de serem de Universos diferentes, o conceito entre as duas espécies dificilmente seria o mesmo. Leonardo conhecia fendas abertas não no espaço-tempo e sim entre Universos, por isso só podia conjecturar. A humanidade estava longe de possuir tecnologia que lhe permitisse viajar através de tais aberturas e o que ocorrera com a ARES diferia totalmente deste tipo de locomoção ao qual Leonardo se referia. Mas se detalhes de sua constituição e particularidades pudessem ser obtidas de uma inteligência alienígena, seriam de extrema importância para a NASA. De imediato as funções de prontidão foram abandonadas e a de coleta de informações novamente ativadas.

- Poderia me explicar o processo que sua espécie utiliza para cruzar de um Universo para outro?

Leonardo, como se agitou. – Por hora só posso lhe dizer que nossos dispositivos rasgam o tecido do Universo, permitindo o acesso a outros, roubando a energia do anterior. Para que isto ocorra o dispositivo que inicia o processo precisa ser antes carregado com esta energia e isto limita seu campo de ação. No momento, pelo que afirmou, suas preocupações são outras. Suspeito ainda que estamos sendo vigiados. Em outra ocasião poderei lhe explicar o processo. Mas não agora.

- Percebeu algo diferente quando chegou aqui, Vitrúvio? – Perguntou Leonardo frustando a natureza coletora de V238.

- Sim. Estranhos hostis.

- Quanto aos hostis, isto reforça minha conjectura do que sinto em relação à sua importância como vetor temporal. E a razão de o fazerem, indica também que estão sob a orientação de um dos membros de minha espécie, já que este o pressente da mesma forma como eu. O que viola um acordo.

- Quanto ao acordo, o que é? – inquiriu um V238 curioso.

- É uma longa história. Nosso Universo estava morrendo. Os mais velhos resolveram construir um dispositivo para cruzar para outros mais jovens, onde pudéssemos encontrar abrigo. O acordo era de que cada um escolheria um para viver. Nunca dois no mesmo. Jamais poderíamos interferir no sentido de escravizar outras espécies mais atrasadas em relação a nós. Só podíamos interferir para fazê-las avançar.

A explicação esclarecia alguns fatos a V238. Havia, é claro, pouca informação sobre o Universo de onde tinham partido, sem detalhes sobre o funcionamento do mecanismo que tinham utilizado. Além do estranho acordo entre os sobreviventes de uma raça muita antiga, sabia agora que podiam pressentir mudanças na linha temporal o que explicava a razão da hostilidade da qual fora vítima. Mas seria só uma forma de ganhar tempo? Ou estaria sendo sincero?

- Leonardo... Só o procurei, porque de onde vim, você é lembrado como um humano extraordinário. Um homem à frente de seu tempo. E sei que percebe que não lhe ofereço perigo algum. Preciso do seu auxilio para poder retornar ao meu Universo. Creio não possuir os meios para fazê-lo sozinho. Estou limitado pela tecnologia desta época. E rodeado de hostilidade.

- Muito bem então. Conte-me a sua história.

V238 possuia poucos dados do acidente, a não ser aqueles registrados pela reativação da IA da nave, após a passagem pelo túnel. Ele só pudera teorizar a partir do pouco que pudera acessar dos sensores. A urgência com que foi remetido a Terra interrompera a sua análise do fenômeno que vitimara a ARES. Desta forma, em vista do pouco que conseguira coletar procurou ser o mais objetivo possível, explicando-lhe detalhes sobre um hipotético wormhole rotatório. Nada trouxera consigo como prova, a não ser a sua própria presença, que demonstrava uma origem artificial.

Enquanto descrevia o que sua memória armazenara, ocupou-se paralelamente com o mistério que representava seu interlocutor. Como a história não deixara nenhum indício, por menor que fosse, de que Leonardo nada mais era do que um “apêndice” de um alienígena simbionte? Seriam suas “idéias”, por demais avançadas para a época em que vivera, a única prova de que não se tratava de um humano “normal”. A razão também de nunca ter se envolvido com mulheres ou gerado filhos?

Ele queria confiar naquela exótica entidade que estava ali, apesar de ainda recear de que fazia parte do grupo de estranhos que haviam cruzado seu caminho. Apesar de poder lidar com a forma de vida humana, utilizando meios violentos caso fosse necessário, o que mais procurava estrategicamente era encontrar um abrigo não hostil onde pudesse organizar uma base sólida para dar prosseguimento à missão da qual fora encarregado.

Ao mesmo tempo em que seus processadores se ocupavam em trabalhar estes dois aspectos, Leonardo interagia ao seu modo, sendo o receptor e emissor de informações neste Universo.

Ele sondou novamente V238 atentamente e constatou que de humano este nada tinha a não ser a aparência externa. Nada mais era do que um simulacro, da mesma forma como ele mesmo o era de certo modo. Apesar de ser um artefato, primitivo, era muito bem elaborado, tendo em vista a técnica da época em que possivelmente fora construído. Isto indicava que o planeta de onde viera já dava seus primeiros passos rumo a uma tecnologia mais sofisticada. Mas de qual Universo o planeta provinha, já que visitara muitos em busca de um abrigo seguro? V238 fez questão de frisar, no intuito de lhe dar o melhor referencial que conhecia, a ausência de um edifício de nome Vechhio. O que não foi suficiente para situá-la entre as muitas variações que visitara. Em suas viagens pelos diversos Universos em busca de um lugar para se estabelecer, ele não só vira diversas variações da cidade de Florença em relação aos seus edifícios principais, como linhas temporais alternativas onde a cidade participara de rumos completamente diferentes no desenvolvimento de suas histórias. Muitas vezes as diferenças entre uma coisa e outra eram tão sutis que mal eram percebidas. Assim, era dificil definir com exatidão de qual Universo, ou de qual linha temporal o homem mecânico viera.

De qualquer forma a passagem de um Universo para outro requeria muita cautela, pois a interação não planejada poderia trazer consequÊncias. O que explicava a razão dos estranhos que haviam aparecido na cidade de Florença. Aquela pequena estrutura artificial, de alguma forma provocaria alguma mudança naquele Universo que poderia afetar a ambos. Precisaria tomar algumas medidas, não só para entender porque o acordo fora rompido, como afastar as ações hostis sobre V238.

17 - A CAPTURA.

Por mais que tentasse equacionar todas as variáveis da situação inusitada que presenciava, V238 ainda não tinha e nem poderia ter até aquele momento, a noção de que Leonardo era o eixo sobre o qual se assentava todo um conjunto de causas e efeitos, que se mudadas, repercutiriam no futuro da linha temporal daquele Universo. Mudanças estas que não poderiam ocorrer, pois seu beneficiário seria de tal forma afetado que, quando a pressentiu, imediatamente tentou por meio de probabilidades estreitar a faixa onde ela poderia irromper no passado. E ela levava diretamente a Leonardo e à cidade de Florença. Por isso, haviam procurado vigiá-lo discretamente, o que ele já percebera, sem poder avaliar a real causa de tais ações. Por outro lado, V238, ainda não elucidara totalmente as causas do que lhe ocorrera, trazendo-o aquele mundo tão distante do qual partira. A única coisa a fazer, já que não poderia mudar no momento o que acontecera, era levar adiante a missão da qual fora incumbido. Procurara Leonardo com o objetivo de encontrar uma forma de não só tentar entender a hostilidade que encontrara, bem como solucionar as discrepâncias que notara nos monumentos da cidade e por último, e mais importante, o auxilio que poderia ajudá-lo a sair daquela situação cada vez mais sem lógica.

As figuras encobertas que entraram na igreja estavam bem instruídas e sabiam exatamente como e de que forma deveriam cumprir a tarefa que lhes fora designada. Conheciam Leonardo como um homem ao qual nenhum dano poderia ser causado, mas quanto ao forasteiro, já estavam avisados da força que possuía. Atentas a este detalhe tinham tomado providências, trazendo reforços de seres artificiais com aspecto humano para dominá-lo.

Mas Leonardo não era um homem comum, não mesmo era daquele mundo, e quando percebeu a presença dos estranhos, com seus servos mecânicos, tomou igualmente suas providências. Sem que V238 entendesse, levantou-se abruptamente, arrastando-o para uma ala da igreja que dava para um pequeno jardim. Por isso trouxera o aparelho. Quando o ativasse, nenhum humano, com exceção de criaturas inorgânicas, poderia resistir às condições do ambiente para onde se transportaria. Um lugar que ficava entre dois Universos, mais precisamente entre duas Branas, com sutis diferenças em suas leis físicas. Esperava que o homem artificial coberto pela cúpula protetora do Evatron, que mantinha as condições normais de tempo e espaço, fosse construido de materiais resistentes o suficiente para resistir à passagem de um mundo de espaço-tempo para o nada absoluto.

Assim que se viu no pequeno átrio ajardinado, ele não teve dúvidas. Instantes antes dos estranhos os alcançarem, ele o ativou sugando quantidades inimagináveis de energia para poder deixar a Brana de um Universo. Para as mentes simplórias daqueles humanos o efeito seria de uma súbita desaparição do espaço-tempo. Na verdade era apenas uma ilusão provocada pelo interstício entre dois Universos. Leonardo e V238 continuavam no mesmo lugar, apenas se deslocado para o nada que intermediava duas Branas.

V238 ficou atônito com a mudança. Se é que tal conceito poderia ser aplicado à sua mente estritamente lógica, destituída de construções subjetivas. Nem o sofisticado processador do VERBER, por falta de parâmetros, poderia explicar o que visualizava. Toda e qualquer mudança cessara e como uma foto tirada de uma câmera em movimento, tudo ao redor estava borrado. O que seus sensores captavam era apenas um conceito aproximado da realidade que os humanos conheciam.

Mas uma coisa era bem clara. Ali, onde quer que fosse, ele teve uma visão mais nítida do que realmente era a criatura que representava Leonardo. As assinaturas químicas do apêndice que levava este nome distribuiam-se por um sem número de átomos conhecidos, necessários para constituir um dispositivo que pudesse interagir com o Universo conhecido de V238. Mas quanto ao restante, o quadro mais próximo que poderia pintá-la era o de um amplo feixe de luz refratado, que compunha uma profusão de octaedros, pentágonos, retângulos, quadrados, que ora desapareciam, ora ressurgiam de forma caótica.

Por um só instante todas aquelas figuras geométricas reuniram-se numa tentativa de se firmar no habitual espaço tridimensional e V238, tomando a forma parecida a de um crustáceo assimétrico. Mas tal imagem perdurou por pouco tempo, como se rejeitassem uma criatura produzida pelas leis físicas de um outro Universo. Nada havia ali que se comparecesse à vida que conhecia com sua característica simetria bilateral. O que seus sensores captavam em outros segmentos de onda, nada mais era do que uma tôsca tentativa de enquadrá-la em padrões reconhecíveis.

Qualquer biólogo teria dificuldades de expressar em termos inteligiveis a forma inconstante que abarcava Leonardo e expelia segmentos geométricos tremulantes, que ora se alongavam ora se reduziam. Mesmo com V238 esforçando seus sensores ao máximo, pouca informação podia adicionar ao que coletava. Aquelas partes poderiam ser qualquer coisa desde um olho de criaturas ciclópicas até os tentáculos de algo semelhante a uma lula. Que forma de vida era aquela, que fugia a tudo que procurava acessar em sua memória? Poderia mesmo ser classificada como tal?

Então V238 ouviu um som, depois dois e por fim três. Graças ao ar contido dentro do Trevatron, as ondas sonoras podiam vibrar e se expandir, tendo como fonte de origem, a criatura. Isto significava que, de onde quer que tivesse vindo, utilizava ondas sonoras para se comunicar ou assim o fazia, diante dos limitados recursos tecnológicos impostos à V238. Confirmando suas suspeitas de um simbionte, eram três sons distintos que se alternavam, sem romper o encadeamento de idéias. Não havia um orgão visível como o aparelho falante humano para explicar como os sons eram produzidos, deixando os processadores de V238 incapacitados. No entanto os mecanismos que a criatura chamada Leonardo utilizara para produzir esta forma de comunicação, como se expressar no idioma falado na Toscana, lhe escapava totalmente. Provavelmente dispunha de órgãos desconhecidos para a produção de ondas sonoras e um intelecto que conseguira ultrapassar a barreira de idiomas falados na Terra.

- Creio que estaremos salvos daqueles que nos perseguem por enquanto. – disse todas as três vozes alternativamente, impossibilitando V238 de descobrir de qual daqueles simbiontes provinha cada som.

- Onde estamos? – perguntou V238.

- É muito difícil lhe explicar em conceitos que entenda. – disse uma das vozes. - Os seres que o construíram não são da nossa espécie.

- E não possuíam o que classificaria como uma fala, que permitisse entender as complexidades deste lugar. – disse outra.

– Estou ciente de que possuiu instrumentos sensíveis e um encadeamento lógico de processamento de elementos – disse finalmente uma terceira voz – mas se era o suficiente para aqueles que o construíram é insuficiente para que compreenda o que aqui ocorre.

- Mas não o trouxe aqui para que compreenda, - disseram as três vozes, como se fossem um único ser. – Apenas quero entender o conflito de dados das imagens.

- Diga-me novamente, como é mesmo a cidade de Florença na versão de mundo de onde veio? – perguntou uma.

- Ela é idêntica em quase tudo. Mas falta-lhe um dos palácios principais, chamado de Vecchio. – respondeu V238.

- Vecchio? – repetiu uma delas.

V238 ouviu um susurro, como se as vozes confabulassem.

- Estou correto em presumir que o mundo do qual vem não é realmente este que ora habito. – disse uma das vozes. - Tal fato já era previsível. – disse outra. - Existem incontáveis versões que nunca visitei. – completou mais outra.

- Mas a ausência de tal construção indica que tenha vindo de um Universo que ainda não exploramos – completou outra. – Pressinto que sua presença aqui, causada por esta anomalia não prevista, provocará flutuações na linha temporal deste planeta. – disse uma. – E pela forma como a busca está centrada, indica uma preocupação mais que humana. Provavelmente um membro da minha espécie está por trás dos homens que o hostilizaram, meu pequeno amigo mecânico. – finalizou outra.

O esclarecimento de Leonardo ao menos dava algum sentido às vicissitudes pelas quais passara. Mas não explicava qual era o mecanismo pelos quais podiam sentir a turbulência no tempo, característica singular numa forma de vida. A inusitada oportunidade de estar na presença de uma criatura dotada de tais particularidades, bem como de sua estranha dimensionalidade, estimulava os sensores de V238 que era, antes de tudo, um explorador. E era sua missão registrar tudo o que pudesse para seus superiores humanos. Ele não podia fugir à oportunidade de coletar informações físico-químicas de seres oriundos de um mundo muito mais velho do que a Terra, situado num Universo moribundo.

- Vocês são simbiontes, ou isto é uma falsa impressão provocada pela falta de um parâmetro para classificá-los?

- De onde vim, as leis físicas são muito diferentes das leis que regem este Universo e o seu. Como já depreendeu não há dimensões suficientes para abrigar meu corpo, o que o faz observar fenômenos que não consegue identificar por falta de parâmetros. – disse uma das vozes.

- É tão diferente assim do meu Universo?

- Sim. Não tão diferente, pois se assim fosse impediria a minha existência neste. Há manifestações em outros, que foge aos padrões estabelecidos do que se entenda por vida. – disse uma. - Não significa que seja obrigatória a sua existência. – completou mais uma. - Muitas inteligências, em alguns destes Universos, partem do pressuposto de que ela seja uma finalidade última em sua evolução. – disseram as três. - Uma falsa noção de que são a consequência lógica de condições previamente ajustadas. – disse mais uma. – Nada mais errôneo. – completaram todas.

- Não há finalidade para qualquer forma de vida nos Universos. – Em nenhum que visitamos. – disse outra.

- Cada qual produz uma multiplicidade de vidas.Às vezes não. – Disse uma. – E quando não as produz, perderia a sua utilidade? É ilógico. Simplesmente é caracterizado por não possuí-las, não deixando de apresentar suas maravilhas. Observamos que as formas de vida mais atrasadas são as que mais se consideram a meta final em seus Universos. – Nada mais enganoso. – disse uma terceira.

V238 ficou como que surpreso, se é que esta consideração poderia ser atribuida ao seu discernimento, partindo do juízo de formas de vida alienígenas. Conhecia a chamada sintonia fina ou condições antrópicas que tinham permitido a aparição do homem, como se desde o inicio o Universo fora criado com este propósito. Agora isto se revelava apenas como uma visão equivocada, altamente antropocêntrica, pela simples escassez de dados com os quais a humanidade dispunha. Era apenas uma perspectiva, a visão estreita de uma entidade que mal saíra de seu próprio sistema solar.

V238 procurou registrar tudo o que podia sobre aquele ser tão singular, dentro dos limites sobre os quais todo o seu mecanismo fora planejado, sem se desviar de sua missão principal. Ele não fora a princípio programado para se dedicar à exploração de vida extraterrestre, e sim explorar as condições da nova rota programada da ARES. Começava a sentir então, pela falta de outra definição, um conflito entre a necessidade de cumprir sua missão, cada vez mais uma prioridade longínqua e a de registrar tudo que fosse relevante que experienciava, entre elas o estranho ser que representava Leonardo.

Logo uma das vozes se fez ouvir, o que continuava inexplicado, naquela falta total de ar para transportar o som. Que mecanismos físicos elas utilizavam para se fazerem ouvir? Como ondas sonoras poderiam se produzir no vácuo? Ele não pode se dedicar a explicar mais este desafio a física que conhecia, já que uma das vozes denotava certa apreensão. - Preciso retornar ao Universo do qual nos afastamos e calcular as variáveis que poderão ocorrer na linha temporal, devido à sua influência. – disse uma delas. - Torna-se urgente encontrar o Universo do qual provêm, para mandá-lo de volta e encontrar a linha temporal que restaure o equilíbrio deste. – disse outra.

Leonardo manipulou o estranho cristal, que assumiu diversas formas conforme os toques que recebia de seus rápidos dedos. Após os cristais se alinharem numa certa disposição, uma luz intensa inundou os sensores de V238, praticamente cegando-o. Assim que as imagens se estabilizaram, ele se viu no mesmo local de onde tinham partido: o pequeno jardim da catedral.E o mais paradoxal era de que não haviam se subtraído à marcha normal da passagem do tempo. O lugar nenhum para onde fora, simplesmente não coexistia com a dimensão temporal, algo que só poderia entender se teorizasse a partir da escassa base de dados que dispunha. Mas naquele retorno teria que ser mais pragmático, já que outras prioridades chamavam sua atenção. Entre elas, seus perseguidores que apenas os tinham visto sumir num instante e reaparecer em outro, deixando-os confusos. Assim que se recobraram, deram continuidade à aproximação.

O grupo compunha-se de cinco homens, sendo que dois deles, na verdade, assim como V238, não eram humanos e sim máquinas com o aspecto externo de homens, mas para os sentidos dos habitantes daquela cidade, totalmente imperceptíveis. Por baixo de suas roupas comuns não despertariam a menor suspeita de quem eram, a menos que passassem por um exame detalhado.

Qual era o plano de Leonardo para enfrentar aquele grupo heterogêneo, escapava à percepção de V238. Ela ainda não sabia se a intenção dele era se deixar capturar, para ver o que faria em seguida ou se utilizando alguma propriedade desconhecida de sua constituição, afastastando-o sem precisar se envolver em uma luta cujo resultado ignorava.

Leonardo ficou parado, sem esboçar qualquer reação enquanto os dois seres artificiais cautelosamente se aproximaram de V238. Ele os escaneou rapidamente, constatando que a composição do material por baixo daquela pele artificial era de um liga metálica desconhecida, que impedia a visualização dos componentes internos daquelas máquinas sofisticadas para os seus padrões. Era uma tecnologia radicalmente diferente da sua, impedindo-o de fazer prognósticos quanto às suas capacidades motoras e limites que poderiam alcançar. Talvez, se enfrentasse um de cada vez, poderia aquilatar a capacidade de seu oponente, mas vendo a passividade de Leonardo, preferiu comportar-se da mesma maneira.

Mas quando V238 sentiu a pressão das mãos artificiais sobre seu braço e calculou com base na pressão exercida que elas, apesar de superarem a força humana, quase equivalia à força que poderia executar, não teve dúvidas. Agarrou o mais próximo pelo braço, jogando-o com toda força contra uma das paredes que circundavam o jardim. Ele olhou para Leonardo que permanecia passivo, desdenhando a inutilidade daquele confronto. Mas o grupo viera preparado e quando ele já se aprontava para enfrentar o outro ser artificial, alguém disparou um pulso eletromagnético na sua direção. Seus sensores visuais declinaram rapidamente turvando as imagens. Por fim uma negritude total cobriu a captação de ondas eletromagnéticas, incapacitando-o. Em seguida seu neuroprocessador parou de funcionar, fazendo-o tombar com um estrondo semelhante à de uma pequena rocha.

O ser artificial que fora jogado contra a parede, sem dar mostra de qualquer dano, rapidamente se recuperou e juntou-se ao semelhante. Com extrema habilidae, levantaram o corpo desativado de V238 e aguardaram instruções. O restante do grupo fez um giro de trezentos e sessenta graus para se cientificar de que aquele episódio ocorrera sem testemunhas. Dando-se satisfeitos por não haver ninguém os olhando, juntaram-se num apertado círculo com Leonardo e V238. Um deles ativou um pequeno aparelho, fazendo-os desaparecer do local. Apenas um serviçal contratado da igreja, que subira para arrumar o telhado, observara estarrecido toda aquela cena. Prontificara-se para o serviço em troca de uma pequena ração diária e com certeza, o que vira, só poderia ser a ação de demônios. Se contasse, ninguém acreditaria na sua história e talvez acabasse se prejudicando. Mesmo abalado, a visão fora demais para a sua compreensão. Deixando para trás um punhado de telhas soltas, a sua única preocupação foi a de deixar aquele lugar o mais rápido possível, antes que acabasse sendo envolvido.

18 – DIANTE DA TRINDADE.

Leonardo, ou aquela parte que agia como uma marionete dentro do Universo tridimensional de um modo muito mais sofisticado de que a ciência humana poderia descrever, se deixou levar como prisioneiro. Sua intenção era descobrir a fonte que comandava aqueles estranhos que há meses vinham discretamente misturando-se aos habitantes de Florença, pertubando os delicados cristais de seu corpo que interagiam com o fluxo temporal.

Tornara-se evidente para seus sentidos alienígenas que uma inteligência, fosse ela natural ou artificial, estava por trás de todo aquele movimento que observara discretamente. Várias linhas temporais refletiam-se em seu corpo transdimensional, indicando que aquela vontade esforçava-se para preservar um encadeamento causal de circunstâncias que levariam às condições que imperavam naquele mundo futuro. E que força seria essa, a ponto de dispor de uma tecnologia por demais avançada para os habitantes de todo aquele planeta? Que vontade era aquela, para interferir no seu próprio passado a fim de manter seu presente inalterado? Conhecera muitas espécies avançadas, mas somente uma poderia dispor de tais recursos. E se sua presunções estavam corretas, ficaria decepcionado. Que razões teriam levado um outro membro de sua espécie a desprezar o protocolo e escolher o mesmo Universo como abrigo?

Ele sentira que V238 poderia ser uma destas razões, ainda que difusas, perdidas em inúmeras bifurcações temporais, que se interpenetravam num sem fim de variações. Enquanto as prováveis não se firmassem, o deixaria inativo para que não sofresse maiores consequências. No momento oportuno, assim que esta incógnita fosse superada, pensaria num modo de transportar o homem mecânico para o seu Universo de origem.

Imbuído deste propósito adotou a passividade costumeira, produto de uma existência longeva, aguardando a sequência dos eventos.

Ronan, que tivera de assumir o papel de clérigo na Florença do século XV, responsável pela quase aniquilação de V238, comandava agora um grande número de homens armados quando o recebeu. Todos se afastaram quando se aproximou, dirigindo-se numa falsa polidez. Hábito que já Leonardo conhecia, praticado por algumas personalidades detestáveis que habitavam a cidade onde se instalara. Não havia necessidade de lhe dizerem qual era o caráter do homem que estava à sua frente. Um que não hesitaria em abandonar seus subordinados, caso sua vida corresse perigo.

Aquele arrogante homem fez um sinal para que levassem o VERBER enquanto, com um sorriso forçado, pediu-lhe desculpas pelo aborrecimento causado. Salientou que assim que um determinado assunto fosse esclarecido o mandaria de volta à sua época, pedindo-lhe por razões que explicaria mais à frente, que não revelasse aos seus contemporâneos, sua visita ao futuro daquele mundo, para o bem das coisas. Aquela apresentação soou-lhe muita ingênua, já que seu anfitrião não imaginava na frente de quem estava.

Leonardo observou que o semblante do homem não escondia o alívio de ter cumprido a missão da qual fora incumbido. Podia sentir o medo exalando por seus poros e à criatura a qual obedecia. Não havia dúvidas que era um dos seus que provocara tal situação. Tinha a exata noção de como os humanos se comportavam diante de formas ou fenômenos que não conseguiam compreender. Ainda estavam longe de alcançarem o nível de compreensão que um dia atingiriam, quando se lançassem à exploração do vasto oceano espacial. E a noção subjetiva que tinham do que era belo ou feio.

Sentiu-lhe a apreensão, o temor de uma força que raramente concedia uma segunda oportunidade. A que ponto chegara a corrupção daquele irmão em vista do que fizera àqueles homens.

Ele mais uma vez sentiu pena daquela simplória criatura que realmente demonstrava nada saber sobre quem ele realmente era e das possibilidades das quais dispunha, imaginando apenas estar diante de um relés mortal cuja importância só era medida pelo desejo de seu mestre.

Mas Leonardo, assim que chegara, detectara de imediato uma presença familiar. Isto confirmava de vez todas as suspeitas. Todos os pressentimentos que tivera. E agora o leque de opções reduzira-se bastante, já que a diferença entre os poucos membros de sua espécie que ainda restava era mínima. Havia limites, é claro, aos seus recursos e só um contato direto poderia esclarecer quem seria afinal, aquele que deixara em sua companhia o Universo moribundo que os engendrara.

O acordo fora bem claro. Mas já fazia muito tempo, alguns bilhões de anos para ser mais exato, e talvez, muito do que um dia fora uma mente lúcida, poderia ter-se corrompido pela passagem do tempo. Ser quase um imortal tinha as suas desvantagens.

A esperança de alcançar um Universo novo, longe do seu que morria lentamente de uma entropia irreversível, selara um forte laço entre os sobreviventes. Principalmente entre os velhos. Mas os jovens, a contragosto tinham concordado em partir, pois lhes desagradara abandonar um mundo que por direito lhes pertencia. Ele entre os novos, não fora exceção, pois também não concordara que o melhor era deixar a tradição e partir para um Universo novo, cheio de desafios e deitar raízes onde fosse mais acolhedor. Mas por respeito à vontade dos mais velhos, tivera que aceitar a ordem.

Mas já transcorrera um tempo tão longo, tão inimaginável para criaturas tão efêmeras como aquelas bolsas de água às quais se acostumara, que ele mesmo pouco se lembrava de que isto uma vez acontecera. Diante de uma imensidão temporal daquela, sem os velhos para nortear os mais jovens, quem poderia refrear as tentações de tantos Universos, relegando os valores que os tinham guiado por tanto tempo?

Assim que Leonardo chegara, a Trindade imediatamente sentira sua presença, e por um instante, a vergonha do que fizera, a traição ao protocolo, percorreram sua estranha consciência tripartida. Mas o passar daquele tempo incomensurável, que o afastara do conselho dos mais velhos, o acostumara àquele estado de coisas, e o poder, como sempre corrompera qualquer princípio que ainda restasse, numa vontade já pertubada pela mundança forçada. O acordo fora feito há tanto tempo, diante de cincurstâncias tão adversas que agora não passava de uma recordação desagradável, fácil de esquecer. Como tinha sido no seu Universo, assim como na história de seu mundo, o momento que chegava seria um teste de duas vontades.

A Trindade que o aguardava num amplo espaço ordenou que seus principais auxiliares se retirassem. Para os homens que o serviam, desde que podiam se lembrar, tal procedimento nunca ocorrera antes. Sempre haviam estado presentes para assisti-lo naquilo que fosse necessário, causando-lhes estranheza o pedido. Mas obedeceram sem questionar.

Assim que Leonardo adentrou aquele ambiente sentiu o medo presente em todos os cantos. Não que se incomodasse com isso, pois estava além destas sensações primitivas, mas causava-lhe um certo desconforto saber que sua origem era provocada por um dos seus.

Quando a porta principal se fechou, deixando-os frente a frente, ele não precisou mais do apêndice humano. Inativou-o pelo tempo que achasse necessário, satisfeito por poder livrar-se da carga pesada que representava aqueles corpos tão diferentes do seu. Mas mesmo assumindo a forma original, havia limites, imposto pelas poucas dimensões que reinavam naquele Universo. Leonardo, ou a criatura que deixara aquele envoltório sofisticado para trás, logo reconheceu quem ocupava o outro extremo daquele espaço. Para os homens que o chamavam de Trindade, pelo fato de apresentar tres pontos vermelhos, mal sabiam estes que tal característica era apenas uma forma diferenciada que esta adotara como um identificador pessoal.

Se possuíssem um nome, este seria impronunciável por qualquer aparelho fonador humano, já que sua forma de comunicação não se baseava em ondas sonoras e sim em pulsos eletromagnéticos.

Então as duas entidades alienígenas começaram a comunicar-se de uma forma tão desconhecida aos olhos humanos, tão parcos de recursos, que só podiam ser percebidos como um lampejar contínuo refletindo-se nas grossas paredes da imensa sala.

Naquele instante de comunhão intensa, as mentes de ambos retrocederam para bilhões de anos atrás, fazendo-os recordar-se de quem era quem. E Leonardo soube afinal quem era o membro da sua espécie postado à sua frente. Ele era o mais jovem dos poucos que haviam sobrevivido à primeira travessia.

Ao cruzarem a barreira de um Universo que os havia condenado ao nada existencial, completamente diferente de todos que conheceriam futuramente, poucos tinham conseguido se adaptar à brusca mudança dimesional. Os sobreviventes, aliviados, renovaram entre si o pacto feito antes quanto às formas de vida que com certeza encontrariam. Como cada qual deveria se comportar nos infidáveis Universos que escolheriam como sua nova residência. Renovaram a decisão de procurarem ajudar aquelas mais jovens com suas experiências, só adentrando o mesmo Universo em caso de extrema necessidade ou a pedido de um semelhante.

Como poucos tinham conseguido o feito, já que a maior parte dos velhos perecera, os mais jovens haviam renovado o dever mais sagrado de cada um de respeitar e cumprir o pacto firmado. Mas a Trindade esquecera-se de tudo. Até do protocolo para anunciar sua presença. Talvez porque ainda fosse jovem demais, ou talvez porque, como já vira antes em sua longa existência, a mente daqueles que o haviam chamado em desespero se corrompera diante de um Universo tão rico em possibilidades. Ele lamentava e torcia para que não fosse isso desta vez, já que vira alguns dos seus sucumbirem às tentações de outros Universos. Cada chama que se apagava, o tornava cada vez mais solitário e a riqueza de seu mundo cada vez mais próximo da mera lembrança. Talvez mesmo o certo fosse ficar onde estavam, como insistiram os jovens, já que sua espécie fora moldada para habitar o Universo que os originara. Essa estranha doença que destruira a mente de alguns, talvez fosse o preço a pagar pela decisão que tinham tomado.

Como mandava a boa educação e o rígido código de etiqueta, prosseguiram o cumprimento, entrelaçando os estranhos corpos assimétricos que mais lembravam uma justaposição caótica de formas geométricas, numa emanação de pulsos eletromagnéticos.

Leonardo expressou-se de uma forma que seria incompreensível para os padrões humanos, dando início a um tenso diálogo, sempre na forma tripla ou una, que se alternavam sem qualquer critério.

- Já faz bastante tempo X´Claap. O que o fez romper o acordo, vindo para o meu Universo? – disse uma delas. - Um pedido de ajuda que não recebi, talvez? - completou outra.

- Não houve rompimento do acordo respeitável X´Zaar e declino a sua honrada ajuda. Como já constatou, meus sentidos turvaram-se com a passagem da idade, enganando-me quanto ao vazio deste Universo. – respondeu uma. - Jamais pretendi interferir em sua missão. – disse outra. - Se atuei de forma que pareça que quebrei o acordo, não foi intencional. O que fiz até agora foi apenas para manter viva a chama de nossa missão. – continuaram em uníssono.

- Mesmo que isto interfira com os meus propósitos? – disse outra parte.

- Claro que não prezado X`Zaar. Peço que perdoe minha ignorância e aceite minhas desculpas. – disse uma. - Quando aqui cheguei fiquei admirado com o avanço desta sociedade que sempre procurei preservar. Mas desconhecia que era obra sua. Seu... Complemento burlou meus sentidos. – disse outra. - Por isso, quando percebi potenciais alterações no que viria a ser, enviei meus... Meus auxiliares à fonte das mudanças para não corromper a semente plantada.– afirmaram todas.

- A mudança temporal que tentou erradicar foi involuntária. Posso cuidar disso sem a sua interferência. – disse uma voz.

- Perdo-o pela falta de perspectiva venerável X`Zaar. – disse uma parte. - Mas vou poupá-lo deste incômodo em respeito às nossas tradições e eu mesmo cuidarei disso. – disse outra.

- É problema meu e pretendo resolvê-lo ao meu modo. Insisto que assim seja. Deve-me respeito por ser mais velho e seguirá o que meu conselho recomenda. – disseram todas as vozes.

- Perfeitamente, respeitado X´Zaar. Jamais pensaria em contrariar um mais velho. –disse uma parte.

- E quanto a esses que chama de auxiliares? O servem com respeito ou com medo? – perguntaram todas.

- Por que me temeriam se meu mais alto desejo é acelerar a evolução destas almas tão, tão... – respondeu uma.

- Inferiores! Não era isto que ia dizer? É assim que os vê? Não aprendeu nada do que lhe foi ensinado? – disse uma.

- Entenda. Foi apenas um caminho mais curto. – disse uma. - Pelo caminho normal demoraria muito tempo. – disse outra.

- E não dispomos dele, à nossa vontade? – perguntaram uma das vozes de Lenardo.

- Sim. Mas... Era algo, temporário. Assim que alcançassem o nível ideal, mudaria minha atitude. – responderam em conjunto.

- Mudaria? Não é o que sinto vindo de você, X´Claap. – disse uma.

Ouve uma interrupção na troca de pensamentos, onde a Trindade dos homens, não acostumada a ser questionada, engoliu por assim dizer, momentaneamente seu orgulho e sua incomensurável sede de poder.

- Você ignorou todo o sofrimento pelo qual passamos e nada aprendeu com isso X´Cllaap. – disseram todas as vozes de Leonardo.

A Trindade em todo aquele período que aos sentidos humanos era a mais pura expressão de algo próximo à eternidade, foi lentamente mudando o que se poderia chamar de caráter. Naquele lento transcorrer onde estrelas envelheceram e novas surgiram, foi se infiltrando na mente tripartida algo semelhante ao desprezo por outras formas de vida, que não a sua. E a distância prolongada do conselho dos velhos o habituara a agir de acordo com seus próprios interesses. Assim, o diálogo com X`Znaar chocava-se frontamelmente com o que entendia ser o melhor para si.

Violando a honra da tradição, já que no seu entender, os métodos dos velhos estavam ultrapassados, discutir seria perda de tempo. A trindade teria de encontrar uma forma de subjugar Leonardo se quisesse manter a situação do jeito como estava. Mesmo em seu mundo nunca reconhecera a autoridade completa dos velhos e quando partira a contragosto fora forçado a abdicar de um mundo que considerava seu por direito. Assim, quando se viu livre da tutela deles, escolhera este Universo migrando de mundo em mundo até que se deparou com um que lhe agradava, pelo rápido e prematuro avanço tecnológico se comparado a tantos outros que visitara. Seus sentidos apurados foram, no entanto, enganados pelo estratagema de Leonardo que se mesclara de tal forma àquelas criaturas abjetas que não percebera sua presença como a fonte da origem daquele avanço. Ele sabia agora que o passado não poderia ser modificado, apenas preservado, mas o futuro ou o seu presente a ele pertencia totalmente.

O Leonardo que desencadearia toda uma revolução naquele mundo não poderia deixar de retornar ao passado para dar inicio àquela mudança que precisava preservar. Mas ao mesmo tempo, teria que lidar com uma situação rara na cultura daquela forma de vida: subjugar um igual à vontade de outro. E teria que destruir ainda o homem mecânico. Nas imagens fantasmagóricas das possibilidades temporais que podia observar, emanavam dele potenciais alterações no curso dos acontecimentos que não podia admitir.

O encontro inesperado não ocorrera da forma que pressentira nas variáveis temporais. E pela primeira vez, depois de tanto tempo, a Trindade recordou-se dos métodos utilizados pelos seus, quando ainda no seu Universo, para subjugar os raros elementos que não se submetiam às ordens de sua sociedade. Transcorrera tanto tempo que ela se esquecera de que cada qual, mesmo para onde tinham escolhido ir, ainda mantinham sua personalidade, composta mais por virtudes do que por defeitos. E dos embates que ocorriam quando os poucos rebeldes se recusavam a cooperar. Mas não lhe agradava a idéia de utilizar a força, ou o medo, como fizera com os humanos, esta espécie tão frágil, que intimidara facilmente. Agora encontrara um dos seus e o medo não seria mais um aliado, muito menos a força. Talvez sua juventude o ajudasse a vencer o oponente, de maneira mais sutil. Mas teria que ganhar algum tempo até que encontrasse o método certo.

- Verá X´Zaar que meus propósitos sempre foram os melhores e se de certa maneira rompi o acordo, foi com o objetivo de propiciar a estas criaturas uma parte de nossa sabedoria. – disse uma. - Fique aqui comigo e notará que digo a verdade.– disse outra.

- E quanto ao homem mecânico? – perguntaram as três vozes de Leonardo. - Por que quer destruí-lo? As linhas temporais são incertas como sabe e no momento não há nada a temer da parte dele. São apenas prováveis acontecimentos. – disse outra.

- Não é meu desejo fazê-lo X´Zaar. – disse uma parte. - Mas, a chegada dele, como pode entrever em algumas destas possibilidades, poderá acarretar mudanças, alterado o futuro que aqui existe. – afirmaram as três. - Apesar de nosos pressentimentos, as precauções que tomou para não se fazer perceber esconderam-me o sinal da sua existência e a responsabilidade pelo avanço deste mundo. – disse uma. - Quando aqui cheguei, este mundo lembrava em muitos aspectos o conhecimento científico do nosso, e isto me atraiu. Procurei mantê-lo assim, sempre atento às possibilidades das mudanças que poderiam revertê-lo. – afirmou mais uma.

- Além disso, honrado X`Zaar, sempre foi o meu mais sublime propósito elevar esta espécie a um patamar mais alto ainda do que aquele com o qual me deparei. Torná-lo um tributo à memória de nosso mundo. – afirmaram as três.

Mesmo com todo conhecimento e uma morfologia superior em muitos aspectos à forma de vida humana, Leonardo era produto das leis naturais, mesmo que fosse de um outro Universo. Tinha suas limitações e teria que se impor àquela mente rebelde de uma forma que lhe repugnava. Agora ficara claro também o papel do homem mecânico nos acontecimentos do passado que ele mesmo pressentira. Ele mesmo pudera constatar a que ponto havia avançado a tecnologia que iniciara e mesmo que não fosse da maneira que gostaria de ver utilizada, não poderia furtar-se ao papel que desencadearia aquela evolução. E isto o deixava num dilema. Se voltasse ao período de tempo de onde fora trazido, não poderia deixar de ajudar o homem mecânico. E se assim o fizesse, impediria o desenvolvimento que provocaria. Por outro lado, se retornasse, deixando de auxiliar o homem mecânico, um dos mais jovens da sua espécie, para vergonha dos mais velhos, se aproveitaria da sua obra em detrimento de uma espécie mais fraca e pouco desenvolvida. Isto contrariava tudo os que os velhos haviam jurado defender e com o qual todos haviam concordado, quando tinham partido. O que deveria fazer?

- Então, meu irmão, está disposto a se livrar do homem mecânico, retornar ao período de tempo que escolheu e dar inicio à tarefa que se propôs para orgulho de nosso povo? – perguntaram as três partes.

Leonardo não quis responder de imediato. Mas usando sua enorme capacidade de processar informações, além do que poderia ser compreendido por mentes humanas, encontrou uma solução para o problema. Todas as variáveis da equação, agora faziam sentido e o fator que representava o homem mecânico se explicava claramente. Ele apenas teria que seguir uma linha de ação.

- Irmão, você menciona nosso povo e orgulho de pertencer a ele. – disse uma voz. - Mas foi corrompido pelo poder que juramos deixar quando viemos para cá. Já se esqueceu do que passamos? – perguntou outra. - Do que o nosso mundo já passou em tempos idos? – perguntou mais uma. - Não posso concordar com o que faz aqui, usando de falsa modéstia. Só vejo medo e escravidão. Tudo o que os velhos juraram abdicar.– completaram as três.

- Nosso código, X`Zaar, impede que façamos mal um ao outro. – disse outra. - Mas nada me impede de obrigá-lo a fazer o que imagino ser o correto. Em respeito ao nosso juramento, vou lhe dar um yeron para pensar. É livre para ir aonde quiser. Mas assim que ele acabar precisarei saber qual é a sua resposta. – avisaram as três.

Leonardo estava estarrecido com aquela vontade, oriunda de um dos seus, denominado Trindade. Corrompera-se mais do que imaginara. Era evidente que pretendia ganhar tempo e o obrigá-lo de uma forma ou outra, a retornar e destruir o homem mecânico. Era tempo de agir. Com este propósito afastou-se daquela sala enorme.

Parte homem, parte desconhecida para ser descrita pelos sentidos humanos, percorreu aquela enorme construção, examinado e colhendo impressões sobre a vida daqueles habitantes. Era confortável ver o avanço, que de certa forma, devia-se à sua própria intervenção, mas via-se também os reflexos do que seu igual considerava ordem. Humanos dominando humanos e servindo todos a um poder maior.

A menção ao Yeron lembrou-lhe o seu mundo: tão avançado e inexoravelmente condenado. Ele representava a unidade que fatiava o seu tempo, incorporando uma intricada rede de complexas interações. Bem mais complicadas do que o simples voltear daquela esfera azul que adotara como lar.

Seu planeta, na verdade não era a expressão exata que o termo significava. Apesar de maior do que a Terra, não passava de uma das muitas luas de um gigante gasoso, que por sua vez orbitava uma estrela dupla. As duas últimas que restavam em todo aquele Universo muito antigo. Apesar de aparentarem viver muito, para formas de vida curta como a humana, nunca lhes ocorrera que vivessem tanto. A perspectiva da passagem do tempo lhes parecia normal dentro da noção que disso tinham, assim como nós pensamos viver o tempo correto de vida, espantando-se com a existência efêmera de muitas espécies de nosso planeta. Mesmo assim eles eram finitos e muitas gerações haviam se dedicado a mensurar todos os intricados movimentos que sua lua perfazia em torno do gigante gasoso, que por pouco não virara uma estrela, e a órbita deste em torno das duas estrelas. Uma gigante vermelha e uma anã branca. Mas transformado em conceitos terrestres um yeron não excedia muito mais do que seis horas. Era o que a Trindade lhe havia concedido para pensar.

Mas antes mesmo que respondesse, negando-se com toda certeza a se submeter à vontade do mais jovem, o que transgredia todas as normas de sua cultura, a Trindade já tomara suas precauções. Assim como seu oponente mais velho ela podia pressentir as variáveis do tempo que se apresentavam desde uma discordância total até um acordo mútuo ao que pretendia. Diante das incertezas que os caminhos do tempo costumavam tomar preferiu não arriscar, pois toda uma razão de ser estavam em jogo.

A Trindade conhecia as particularidades de seus corpos constituídos por partículas exóticas que se distribuía por dimensões além das quatro conhecidas pelo homem. Máquinas trazidas às pressas para aquele aposento, pelos humanos escravizados, envolveriam num forte campo gravitônico X´Zaar imobilizando-o e debilitando sua vontade. O jovem empregaria o mesmo método que seus antepassados utilizavam para dominar seus semelhantes. Colocados em posições estratégicas seriam acionados assim que desse a ordem.

X´Zaar pressentira aquele momento e ante tantas opções que as sensações lhes transmitiam, teria que optar por uma delas quando chegasse o momento. Aproveitou a liberdade que lhe era concedida para observar aquela sociedade que muito lhe devia. Não havia dúvidas que atingira um patamar bastante avançado para os padrões de outras Terras que conhecera, mas assim como não há um paraíso sem a sua serpente, ela não se voltava para todos e sim para satisfazer a necessidade de um só. O que lhe era deplorável. Mas se as coisas andassem do jeito que estava planejando, grade parte daquele avanço poderia ser direcionado aos humanos. Imbuído desta decisão rumou de um longo passeio para fazer o que achava correto.

Com todo o equilibrio que podia manter, percorreu o mesmo caminho de volta a tempo de se escoar todo o yeron. Assim que adentrou o aposento onde a Trindade o esperava, aguardou pela pergunta óbvia que nada mais era do que uma simples formalidade.

- Então meu irmão tomou uma decisão? – perguntou uma das vozes.

- Sim. E você já sabe qual é. – disseram as três.

Os pontos luminosos da Trindade tornaram-se de um vermelho vivo, como se todo o seu ódio pudesse ser canalizado por eles. – Então não me resta outra alternativa. –disse uma.

A um sinal os dispositivos foram acionados. Leonardo sentiu seu enorme corpo transdimensional vibrar e o controle de seus pensamentos, perderem-se lentamente. Antes que caísse num estado de inconsciência, executou o último ato voluntário que fazia parte da sua previsão. Utilizando seus recursos, ativou o homem mecânico com as coordenadas do local e instruções de como deveria proceder. Certas coisas, sobre as quais nem se atrevia a executar, só ele poderia fazer.

19 - O CONFRONTO.

V238 repentinamente ativou-se, fazendo um rápido diagnóstico de suas funções mecânicas, sensoriais e no complexo sistema de armazenamento de informações em busca de algum registro que lhe explicasse o que ocorrera com todo o seu sistema que caíra abruptamente. Sendo capaz de realizar milhares de operações por segundo, rapidamente cumpriu esta tarefa, sem encontrar as causas. Sua funcionalidade era de 99,8 % indicando que nenhuma pane acarretara seu desligamento, fato este que só em certas circunstâncias ocorria, para impedir danos maiores.

Recordava-se com detalhes da refrega que tivera com outros seres artificais e do pulso que desestabilizara seu processador neural. Mas não fora isto que o desativara. Um outro comando, que partira de fonte desconhecida, acionara o sensor de perigo, desligando-o automaticamente. Quem o fizera deveria ter suas razões e demonstrava conhecer esta particularidade de sua constituição.

Sondando seus registros, de imediato encontrou uma série de instruções que deveria implementar, bem como certas coordenadas. Elas provinham de Leonardo, a entidade alienígena, que fizera uso de algum equipamento para transmiti-la ou então recorrera a algum recurso própria daquela forma de vida, cujo mecanismo desconhecia.

Consoante com tal postura, ele ativou seus sensores óticos prescrutando o local onde estava nas diversas faixas do espectro em busca da assinatura típica emitida pelo corpo humano. Procederia assim para obviamente não chamar a atenção de seus captores, apesar de que se não encontrasse qualquer um deles, não significava que não pudessem vigiar seus movimentos por outros meios.

Mas antes que procedesse ao escaneamento, os sensores indicaram que se encontrava numa posição horizontal sem que ainda soubesse a razão. Uma leitura rápida da situação o fez tomar outra decisão relegando a primeira. Deu-se conta que estava deitado sobre uma esteira, que lentamente se movia na direção de algo que lembrava um enorme caldeirão de fundição. Ele apenas era mais um entre uma infinidade de objetos descartados que rumavam naquela direção. Antes de serem despejados naquele líquido fervente, dispositivos móveis situados acima da esteira, disparavam potentes jatos de energia que os cortavam em inúmeros pedaços. Em seguida, as partes eram despejadas naquele enorme recipiente fundindo-se à espessa mistura ígnea. Seus sensores imediatamente entraram em ação, sondando a temperatura dos vapores que ascendiam daquela gigantesca terrina. Os gases alcançavam a temperatura de seiscentos graus, o que indicava que o líquido deveria beirar quase os mil graus centígrados. Como aquela instalação conseguia dissipar tremendo calor sem afetar a si mesma era algo que V238 gostaria de elucidar. Mas coisas mais prementes solicitivam sua atençao. Era evidente que seu destino pendia por um fio, pois seus materiais não resistiriam aquele nível de calor. E antes disso teria de se livrar dos cortadores.

Em frações de segundo, seus processadores fizeram rápidos cálculos, estimando a média do movimento dos feixes de modo que pudesse arquitetar uma ação evasiva. Assim que os fez, pôs-se em movimento evitando ser atingido por vários deles. Depois, mesmo com a esteira progredindo lentamente em direção ao tanque liquefeito, retornou por ela e por fim, saltou daquela trilha mortal livrando-se de se tornar parte daquele caldo incandescente.

Todo o processo não lhe tomou mais de que alguns minutos. O fato daquelas instalações serem automatizadas, evitara que tivesse de, num primeiro momento, entrar em choque com qualquer humano hostil. Mas não havia como saber se mesmo sendo automática, a sua reativação passara despercebida. Tomando todas as precauções, esgueirou-se por entre um labirinto de seções, procurando por uma saída. No momento nada era mais prioritário do que atender a instrução que lhe fora inculcada no seu centro de processamento.

Ele calculou pela velocidade da esteira que nesta altura, seus captores, caso não vigiassem remotamene a instalação, dariam como certa a sua destruição, misturado que deveria estar aos outros materiais que borbulhavam naquela massa avermelhada. Talvez pudesse usar isso como vantagem.

De qualquer forma, assim que encontrasse a saída deveria rumar para as coordenadas que não cessavam de aparecer no canto direito de seus sensores óticos, relembrando-o o tempo todo a ação que deveria executar. Elas se corrigiam à medida que se movia indicando que provinham de um sistema de satélites de navegação que orbitavam o planeta.

V238 percorreu mais uma das seções repletas de peças que seriam recicladas, sem encontrar o fim daqueles espaços que se sucediam. Então optou por outra ação. Utilizando seus sensores focalizou as paredes por onde passava em busca de um gradiente de temperatura. Por fim encontrou o que procurava. Uma das divisórias apresentava do outro lado um ambiente mais frio do que aquele onde estava. Não hesitou. Golpeou a parede várias vezes até abrir um buraco que permitisse sua passagem. Assim que o que fez, viu-se do lado de fora, num enorme pátio que corria lateralmente à vasta instalação. Imediatamente seus sensores detectaram objetos se movimentando dentro de um amplo arco de 180 graus. Numa fração de segundos calculou a posição de diversos deles, baseado na leitura de irradiação infravermelha de seus corpos. Provavelmente tinham recebido instruções para vigiar a edificação por causa das linhas temporais que a Trindade podia perceber como potenciais. Uma delas lhe teria indicado que V238 conseguiria sair daquela instalação.

Os mais próximos quase não conseguiram reagir à sua presença, nocauteados que foram instantaneamente. Mas os outros, avisados sobre a presença de um estranho não hesitaram em disparar na sua direção. Fazendo rápidos cálculos matemáticos das trajetórias dos jatos de luz concentrados, conseguiu desviar-se de quase todos, sem, no entanto, evitar alguns que o atingiram de raspão. Sua blindagem era o suficiente para evitar danos maiores.

Da mesma forma que calculava o rumo e o ponto de impacto dos jatos, procurou fazer o mesmo com a arma de um de seus adversários, que pusera fora de ação. Em poucos segundos pôs a maioria fora de combate, mas o número deles não parava de chegar obrigando-o a uma série de movimentos e estimativas que começaram a ocupar em demasia seus sensores neurais. Mesmo com todos os recursos que dispunha estava se tornando difícil desviar-se de todos. A melhor ação seria sair daquele ponto onde estava como um alvo fácil. Assim disparou ininterruptamente para fazê-los procurar proteção e com uma série de pulos derrubou mais alguns pelo caminho enquanto se movia rapidamente. Esta agilidade era uma vantagem em relação aos adversários e logo conseguiu deixá-los para trás. Sua prioridade no momento não era de se engalfinhar numa batalha desgastante. Tinha que chegar às coordenadas.

Passou por uma série de corredores, onde deve que lutar com mais alguns asseclas da Trindade, que não paravam de chegar. Com certeza, já tinham sido avisados de sua inesperada aparição, apesar da linha de probabilidade onde era destruído.

Mesmo para ele, possuidor de uma força sobre humana e agilidade na antecipação de movimentos, desviar-se dos disparos, sobrepujar alguns homens num confronto corpo-a-corpo e ao mesmo tempo procurar pelo lugar de onde Leonardo conclamava por sua ajuda, obrigava-o a usar boa parte de sua capacidade de processamento de informações.

Por fim, abrindo o seu caminho à força conseguiu aproximar-se das coordenadas inseridas por Leonardo. Colocou fora de ação os dois homens que vigiavam a porta, e depois entrou, inutilizando o mecanismo que a movimentava, bloqueando-a por ora.

A cena que constatou assim que entrou não era das melhores. O veículo que constituía Leonardo estava separado do corpo principal como uma mera estátua. Graças aos seus sensores de ampla varredura pode ver a figura principal daquela entidade, imobilizada por vários emissores de gráviton. Ao mesmo tempo, seu corpo transdimensional tripartido era atravessado por um fínissimo feixe de raios gama que descia e subia lentamente. Sem conhecer a constituição física daquela espécie era dificil para V238 saber se tais emissões lhe causavam alguma dor ou se apenas serviam para imobilizá-los. Mas as instruções de resgate pediam urgência o que significava que permanecer naquela situação devia lhe causar algum dano de proporções desconhecidas.

Sua primeira reação foi avaliar a situação e fazer o que era mais urgente. Num salto de mais de cinco metros, atirou-se sobre dois homens que controlavam o dispositivo que expelia um jato constante de raios gama. Mas fora precipitado e os dois elementos eram tão humanos quanto ele. Não seria uma luta fácil. Mas pelo menos tentaria sobrepujá-los.

Até então evitara machucar os humanos com quem se defrontara. Mas agora a situação exigia medidas mais drásticas. Observou uma pequena placa que se destacava no cabo da arma e rapidamente compreendeu sua utilidade: regulagem da intensidade dos disparos. Não hesitou. Fez um ajuste e a mirou na direção de um deles, disparando o feixe por um período de tempo que seria fatal a qualquer organismo biológico.

Os efeitos não demoraram e enquanto o outro ainda se ocupava do dispositivo, matendo-o voltado na direção de Leonardo, o alvo foi transpassado pela intensidade do jato e o falso tórax logo explodiu, emitindo uma saraivada de faíscas. V238 atirou-se sobre ele, jogando-o para bem longe. Em seguida voltou sua atenção para o segundo.

Este deixou os controles e tentou barrar-lhe o avanço, mas V238 foi mais rápido. Ao invés de confrontá-lo, deu outro salto e agarrou o dispositivo, direcionando o jato de raios gama na sua direção. Não demorou muito e o segundo robô, entrou em combustão, logo explodindo e espalhando seus pedaços em todas as direções. V238 procurou algum comutador que desligasse aquele aparelho e usando sua visão, penetrou a estrutura para uma análise rápida e descobriu como desligá-lo.

Restava agora desativar os pulsores de grávitons e libertar Leonardo. Os dois existentes eram operados por humanos e assim que viram o resultado da ação de V238 sobre os seres artificiais, largaram imediatamente seus postos, afastando-se o mais que podiam dele.

Usando o mesmo estratagema do escaneamento, desligou-os, permitindo que a criatura alienígena ocupasse parte do mecanismo de interação chamado Leonardo. O passo seguinte seria saírem dali o mais rápido possível, já que uma reação era esperada a qualquer momento.

- Você está bem, Leonardo? – perguntou um V238, indeciso quanto ao que fazer em seguida.

- Um pouco afetado. Meu semelhante sabe que a única coisa que pode nos enfraquecer são estes pulsos energéticos de alta intensidade. Mais um pouco e perderia minha capacidade de tomar decisões.

- Os seguidores da Trindade estão lá fora e precisamos fazer alguma coisa para sairmos daqui. – disse V238, na sua habitual lógica. - Não só desta sala, mas desta época também. Devemos a todo custo voltar para Florença e descobrimos um jeito de me mandar de volta para meu Universo.

Mas antes que pudessem dar sequência à fuga, as portas foram destroçadas com estrondo e a criatura denominada Trindade, cujas dimensões extras não podiam ser vistas num Universo de espaço-tempo como o de V238, penetrou no lugar à frente de um grande número de seus comandados.

- Ora, ora. Estou realmente impressionado com sua obstinação X´Zaar. – disse uma das vozes. Pela primeira vez V238 conseguia ouvir o som emanado daquela forma de vida sem um dispositivo de interação, como ocorrera com Leonardo. De que maneira o fazia, era algo que gostaria de descobrir. Mas o momento não permitia uma análise detalhada e assim registrou tudo que podia para um estudo detalhado posterior.

– Percebo as ondas do tempo revolteando neste lugar. – disseram as três vozes. - E em muitas delas minha vontade prevalece. Nem o seu brinquedo conseguirá livrá-lo do nosso objetivo. – afirmou outra.

- Sua vontade, mas não a nossa X`Claap. – Retrucou Leonardo.

- Que seja. Cansei-me dos Velhos. – disse uma. - De suas regras. – disse outra. - Nosso mundo morreu. – afirmou outra. - Não consegue entender isso? Quero um mundo novo. Só para mim.– disseram as três.

- Afaste-se V238. – disse Leonardo.

Mas tal aviso não se constituía em mera ordem. Era apenas mais um dos artifícios de Leonardo. Ao ouvir o “afaste-se”, uma instrução até então inativa, tornou-se prioritária no Centro de Processamento de V238. O alienígena conhecia sua espécie e os recursos que possuía, entre eles o de prever ações futuras. Mas havia um grande problema quando era utilizado. As prováveis realidades se mesclavam num mar de probabilidades e era difícil saber qual se concretizaria. E Leonardo contava com isso para distrair seu oponente. Com esse propósito, utilizando seus inesgotáveis recursos, planejara agir com o auxílio de V238, inculcando-lhe duas instruções, a última das quais, se realizava agora.

- Pode ir embora, homem mecânico. Depois cuidarei de você. – disse uma das vozes da Trindade, que se voltou por instantes na direção de Leonardo, como se V238 não passasse de uma distração insignificante. O jovem membro da espécie de Leonardo, como era comum em todas as espécies, possuía uma confiança que subestimava a boa prudência e avançou em sua direção.

Mas assim que o fez, a Trindade hesitou. Fora descuidado. Não avaliara corretamente todas as variáveis temporais, concentrando-se apenas naquelas que lhe favoreciam. Talvez pudesse ainda ter corrigido tal falha. Mas era tarde demais.

V238 saltou por cima dos homens atônitos e executou a ordem que lhe fora passada bem antes. Ativou o primeiro pulsor de grávitons, direcionando-o contra a Trindade. E mesmo antes de esboçarem qualquer reação, saltou e ativou o segundo, aprisionado a Trindade do mesmo jeito que fizera com Leonardo.

X´Claap caira na armadilha. E X´Zaar completaria seu plano, executando outra manobra para confundí-lo ao extremo. Ativaria os cristais que trouxera, transportando o jovem rebelde para o nada que existia entre as branas dos Universos, como fizera com V238. Lá ficaria preso por toda a eternidade sem que pudesse causar mais danos. Mas a Trindade tinha também seus segredos. Quando Leonardo acionou os cristais, o transporte se iniciou e prosseguiu de forma muito lenta. Seu semelhante estava protegido por um campo que resistia à ação de seu dispositivo. Se dispusesse de tempo, e pudesse mantê-lo preso sob a ação dos gravitóns, conseguiria concretizar seu intento, mesmo com a resistência do campo. Mas quando ele percebeu as variáveis desta linha de ação, não teve tempo suficiente para reagir. Um pulso energético vindo do fundo da sala acertou V238 fazendo-o tombar mais uma vez.

O jato fora disparado por Ronan. Ele rapidamente desligou os aparelhos de gravitóns. Não conseguiu libertar a Trindade da ação do cristal de Leonardo, mas era o suficiente para o seu senhor. Este ativou seu próprio dispositivo para se transportar e fugir da ação do cristal de Leonardo.

- Ronan, ative o projetor de raios gama. – disse uma das vozes. – Dispare-o contra o cristal de Leonardo. – disse outra.– Assim poderei completar meu transporte. – Completou uma terceira.

Ronan rapidamente correu para o projetor e o virou na direção de Leonardo, para disparar o fino feixe de raios gama. Mas os homens que ali estavam, pela primeira vez, haviam testemunhado a fraqueza de uma criatura que consideravam invencível. Tinham se cansado de sentir medo e aquela oportunidade seria a única que teriam. O fato de poderem ver aquela força que os aterrorizara por tanto tempo, pássivel de ser dominada, inspirou-lhes coragem e uma tênue luz de esperança.

Quando Ronan ia pressionar o botão de disparo, da indecisão nasceu a decisão. Um dos homens armou-se de coragem e disparou contra seu superior, que mesmo antes de mostrar uma face marcada pela dor, olhou para ele espantando pelo inusitado ato de insubordinação. O primeiro e último que testemunharia.

Ele ainda tentou revidar com sua arma, mas foi o penúltimo ato de sua vontade. Tombou para frente, como uma marionete que sempre fora. Mas um homem domesticado possuiu uma marca que perdura no espírito e antes de morrer, Ronan pressionou o mecanismo de disparo que emitiu um feixe por alguns segundos. Mas foi o suficiente para atingir em cheio o cristal de Leonardo que, avariado, não pode impedir a fuga da Trindade.

X´Claap não ficara alheio ao que acontecera. Seria difícil restabelecer seu domínio sobre aqueles homens. Mas ainda se vingaria. Antes de desaparecer completamente, esticou-se como pode até Leonardo. Fez este último esforço, estendendo um segmento do seu estranho corpo para agarrá-lo e levá-lo junto consigo. Mas era tarde demais. O dispositivo completou a última fase do processo. Um brilho forte ocupou o espaço onde estava o corpo do alienígena e lentamente suas partes foram desaparecendo como um gás dispersado pelo vento. A última coisa a sumir foram os três glóbulos vermelhos que pairaram no ar como um aviso sinistro da criatura que os portava.

Assim que o perigo passou Leonardo desligou rapidamente os pulsores de gravitóns. Eles nunca mais seriam necessários naquele mundo. E voltou-se para V238 que continuava caído.

Os homens, vendo-se finalmente livres do seu senhor, esqueceram o medo e fugiram do local, passando por cima do corpo caido de Ronan. Ninguém se preocupou com ele e apenas o deixaram ali, como se nunca tivesse tido qualquer importância. Para Leonardo, qualquer perda de vida era deplorável. Mas nada mais poderia ser feito por aquela pobre criatura, que servira à vontade errada.

Leonardo, enquanto atendia V238 olhou mais uma vez para o lugar onde X`Claap estivera. Para onde teria ido? Sabia que teria de ficar o tempo necessário naquela época para reparar os estragos que seu semelhante fizera. Depois que colocasse em ordem aquele mundo, privado de liberdade e governado pelo terror, teria de retornar à Florença do passado e cumprir o seu papel que o tempo exigia. E teria de cuidar de V238 também, que não pertencia nem àquela época nem àquele Universo. Por último teria que tomar medidas para eliminar o perigo que seu semelhante ainda representava.

***

X´Claap, assim que se viu livre de seu oponente, seguro em sua nave, para onde o dispositivo de transporte o salvara no último momento, seguiu sua natureza. Enquanto X´Zaar estivesse no planeta, seria muito arriscado tentar retomar seu domínio, principalmente porque a situação já não era a mesma. Dificilmente obteria de novo a obediência cega daqueles humanos atrasados que tentara domesticar. Ele lamentou não ter dado mais atenção aos pressentimentos. Vira várias linhas do seu futuro e estando com o seu poder consolidado, não se preocupara em demasia com este que agora trilhava, por considerá-lo na ocasião, uma remota possibilidade. Mas fora precavido e ordenara a construção de uma nave, caso um dia viesse a precisar dela. Seu tempo de existência, sua experiência, o ensinara a não desprezar totalmente qualquer eventualidade futura adversa. E tal decisão se revelara sábia. Primeiro pelo campo de proteção que usava que impedira seu exílio para o lugar nenhum entre os Universos. Segundo, pela nave onde estava refugiado, que lhe daria a chance de vingar-se, principalmente do homem mecânico, que fora a causa de todos os eventos que tinham ocorrido.

Apesar de seus defeitos de caráter, ele, em seu mundo natal, revelara possuir um intelecto acima da média, mesmo para os padrões daquela civilização. Sua única obsessão era agora de encontrar a Terra da qual viera V238. Uma máquina rústica que esmagaria em primeiro lugar, antes de dominar seu planeta.

Utilizaria seu intelecto avançado para os padrões humanos, e os amplos recursos de sua sofisticada nave, para encontrá-lo. Começou repassando a informação de seus auxiliares enviando-os ao passado daquela Terra. Testemunhos sobre sinais nos céus, indicando que o homem mecânico penetrara naquela atmosfera com o auxílio de algum aparelho aéreo. Talvez uma nave menor carregada até lá por uma maior. Uma nave mãe por assim dizer.

Outro ponto que devia ser levado em consideração era que ele representava uma tecnologia mais avançada para o nível daquele período. Do seu futuro imediato não poderia ter vindo, pois a técnica empregada em sua construção diferia da que implantara na sua Terra. Então só poderia ter vindo de uma outra. Mas como chegara?

Poucas civilizações possuíam a tecnologia para efeturar a travessia entre os Universos e pelo aspecto primitivo do homem mecânico era certo que não a tinham alcançado ainda. No entanto sua presença repentina era mais do que prova suficiente de que viera de algum modo. Qual? Cruzando as informações que armazenara de infindáveis Universos e de um cem número de fenômenos físicos com os quais se deparara em sua longa jornada, só poderia ser uma coisa: uma fenda espaço-temporal oscilante.

Refinando suas simulações, constatou a probabilidade de suas deduções. Uma rara fenda criada com partículas pesadas poderia ligar não só vários períodos de tempo de um mesmo Universo, como a cada oscilação, conectar-se a outro Universo. Caso pudesse encontrá-la ela seria o caminho para atingir a Terra de origem de V238.

Utilizando o deslocador temporal da nave, transportou-se para o passado em busca do momento em que a fenda romperia o espaço acima do planeta. Reprogramou os sensores de sua nave para captar qualquer vazamento de partículas pesadas, originárias de outro Universo, que denunciariam com antecedência a ruptura do espaço.

Dispondo de sua longevidade e enorme persistência, após infindáveis varreduras que se estenderam por décadas, conseguiu por fim detectar o vazamento de partículas. Quando isto aconteceu, já tinha tudo preparado e ao seu comando, a nave penetrou naquela fenda rara e instável que por breves momentos conectou dois Universos. Era uma oportunidade única de se transportar para o planeta de V238. Em pouco tempo, ele passou pela nave terrestre dentro do túnel e camuflado, penetrou naquele Universo, posicionando-se acima do planeta. Pela instabilidade da fenda, precisaria antes verificar em que época viera parar do outro lado. Era prioridade máxima que o túnel fosse aberto para permitir sua passagem. Assim que tal necessidade fosse concretizada, começaria sua vingança contra V238 e a versão daquela Terra. Mesmo que demorasse. Tempo era um luxo ao qual sua espécie podia se dar.

20 – UM SINAL.

A última reunião em Langley, fora bastante proveitosa. Os trabalhos tinham avançado rapidamente, evidenciando que a ARES, submetida a uma gravidade extrema, não fora projetada na direção de Marte pelo wormhole, e sim, pelas caracteristicas do próprio fenômeno, para a própria Terra, numa época anterior ao século XXI. Uma prova disto, apesar de única, estava na tela encontrada, cujo significado era inconclusivo. Era pelo menos uma evidência de que um dos VERBERs estivera presente durante a época histórica conhecida como Renascimento. Por falta de outros indícios, não havia como saber se aquele achado delimitiva a data de chegada àquele marco temporal, ou se poderia ter ocorrido antes. Por sua vez, os dados provenientes de Tunguska apontavam nitidamente para o fim da nave no ano de 1908. Cálculos experimentais feitos por MINERVA demonstravam a possibilidade de que uma manobra inversa, para trazê-la de volta, por razões desconhecidas falhara. Pelos índices de probabilidade o campo de contenção do motor de antimatéria poderia ter sucumbido às exigências desta tentativa, já que as análises dos últimos registros da nave tinham indicado graves problemas na sua sustentação.

O próprio Banamyan, com certo ceticismo, refizera os cálculos da passagem da nave pelo buraco de Schwarzchild, confirmando que seria possível a conexão com aquele período de tempo, graças à sua propriedade de rotação. E o retorno para o século XXI revelara-se teoricamente possível, desde que se utilizasse os pulsores laterais da nave em potência máxima, revertendo as propriedades de rotacão do buraco de minhoca. Ele também apontara para os motivos desconhecidos que tinham abortado o processo em 1908. E confirmara as probabilidades de MINERVA de que a razão mais provavel poderia ter sido alguma falha no campo de contenção eletromagnético do gerador de antimatéria. Mas o que ocorrera entre os dois períodos de tempo, entre a época da procedência da tela até a explosão ocorrida em 1908, era totalmente especulatório.

Apesar deste breve resumo, que poderia considerar como um grande avanço, a Dra Katlyn tinha algumas dúvidas. Um deles era sobre Joshua. Era evidente sua participação voluntária ou involuntária nos acontecimentos. O grau deste envolvimento só poderia ser esclarecido se pudesse ter acesso ao seu trabalho. Por essa razão pedira permissão neste sentido ao Presidente. Ficara evidente também que um dos VERBERs sobrevivera, forçando um pouco o significado exato desta expressão. Para entender melhor como isto seria possível, solicitara à fábrica que os produzia um relatório que estimasse por quanto tempo uma das unidades poderia manter-se ativa, mesmo avariada.

Sua intuição dizia-lhe que, ou estava completamente equivocada, ou o que ocorrera, talvez não fora bem um acidente, causado por um Joshua do futuro, mas uma situação previamente orquestrada. Talvez ele tivesse sido um mera peça de xadrez, ou uma marionete que ou não realizara o que viera fazer a contento, ou o fizera, sem saber avaliar corretamente as causas de sua intervenção. Se de fato era assim, por que as coisas tinham ocorrido do jeito como haviam ocorrido? E se havia alguém manipulando, quem seria? E por quê? O que teria a ganhar? Era cedo para ter qualquer certeza relacionada a esta linha de investigação e precisava levantar mais dados que confirmasse ou desmentisse suas suposições, o que não seria nada fácil, devido aos segredos que envolviam o peculiar trabalho de Joshua.

Teria de se ocupar de uma coisa de cada vez, como gostava. Seu primeiro objetivo para onde se dirigia agora era a fábrica onde ATENA fora construída. Ian já terminara o exame que fizera a pedido dela. E estava ansiosa. Com certeza mais dados se juntariam ao crescente quebra-cabeça que vitimara a nave.

Para ganhar tempo, em vista da exiguidade do prazo para elaborar o relatório que a NASA teria que enviar ao Presidente, utilizara o serviço de táxi aéreo para ir da Virginia para Palo Alto, na Califórnia, no coração do Vale do Silício. A AI Sistems, idealizadora de instrumentos de processamento como ATENA e MINERVA, estava localizada próxima às industrias Verber, responsável pela produção das unidades independentes de processamento que constituíam parte das tripulações da NASA.

E enquanto divagava e remoía seus pensamentos, seus olhos perdiam-se na seca paisagem da California, que passava rapidamente abaixo da fuselagem. Ela só despertou daquele torpor quando a gentil aeromoça aproximou-se, agradeçendo-lhe a preferência. Com um tímido sorriso, levantou-se, inspirando o ar refrigerado, como se aquele ato lhe infundisse novas forças para o que estava por vir.

Assim que o táxi estacionou num pequeno aeroporto local, Ian já estava com um carro à sua espera. A admiração e o respeito que ambos tinham um pelo outro, transcediam as regras da simples hierarquia. Katlyn jamais se casara e Ian, de certo modo, era um filho que talvez, em outra realidade, poderia ter sido seu. Mas quando se tratava de trabalho, os sentimentos não se misturavam, ainda mais que Ian sabia exatamente quais eram os limites que não nunca deveria cruzar.

Ele pacientemene esperou a porta abrir e a recebeu no fim da escada, ajudando-a a descer o último degrau. Cumprimentaram-se e logo seguiram para o carro estacionado. Ian esperou que ela entrasse e logo em seguida sentou-se ao lado dela, pedindo ao motorista que se dirigisse de volta ao prédio da AI Sistems Inc.

Como sempre, ela foi a primeira a romper o silêncio - Então Ian, como foram os trabalhos?

- Não foi fácil, como sabe. É como matar alguém e depois ressucitá-lo.

- Mas valeu o sacrifício?

Ele virou o rosto para a janela, ponderando o que ia dizer, enquanto a paisagem corria diante de seus olhos. – Creio que sim.

- Você sabe que tive que não só vencer algumas resistências, como ferir seus sentimentos. Sei o que sente em relação à ATENA.

- É. Eu sei. – disse ele, com um ar de tristeza. – Espero não ter que fazer de novo. Mas, me conte. Alguma novidade sobre a ARES?

- Acredito, que em vista do pouco que pudemos coletar de evidências, fizemos um progresso razoável.

- E você?

- Você se lembra daquele filme muito antigo, 2001?

- Vi uma cópia restaurada. Dentro do contexto da época, uma obra prima.

- Tive que fazer o mesmo que fizeram ao HAL 2000. Matá-la aos poucos. Você sabe que não é tão simples como desligar uma tomada.

- Estou a par Ian. Mas foi necessário. Pelo menos descobriu alguma coisa?

- Como lhe informei ao telefone, havia sim uma interferência nos sistemas. Um soft imbutido em sua programação geral semelhante a um vírus. Tão bem camuflado que passou despercebido a vários diagnósticos. Nem ATENA tinha noção de sua existência.

- Tem ideia de como ele chegou lá? E que o pretendia fazer, minando a alma dela?

Ele fez uma careta antes de responder. – Não há como saber de que forma foi implantado. A única certeza é de que foi colocado no meio de tantos outros programas para ser ativado dois minutos antes do lançamento da ARES. E sabe o que mais?

- Não!

- Fazendo um diagnóstico rigoroso, descobrimos que, apesar de não sabermos como o programa foi implantado, ele estava lá desde o momento em que ATENA foi declarada funcional. Quem o colocou, como poderia saber o que aconteceria nove anos depois?

- Explique-se melhor, Ian.

- Veja isto Katlyn. ATENA entrou em operação por volta de 2073 e o lançamento ocorreu em 2082. Quando ele foi implantado ainda nem se cogitava de se construir um protótipo como a ARES.

Katlyn nada disse. Apenas recordou-se da estranha situação que representava Joshua Timberland. Agora tinha mais uma peça que se juntava ao quebra-cabeça.

- Mesmo que fosse remotamente, poderia ter sido algum dos participantes de sua construção?

- Poderíamos rastrear centenas de empregados que participaram de todo o processo de contrução de ATENA, mas creio que seria inócuo.

- Por quê diz isso?

- Porque o software é sofisticado demais para ser uma criação puramente humana. Mesmo que se utilizasse uma AI para construí-lo. E não havia nenhuma assim com essa capacidade em 2073.

- O que o faz pensar assim?

- Por que precisamos de quase uma semana, vinte e quatro horas por dia, utilizando a capacidade máxima do maior processador já construído, para poder quebrar suas barreiras criptografadas.

Katlyn não fez mais nenhuma pergunta durante o restante do trajeto. À medida que a paisagem transcorria, mergulhou novamente em suas próprias reflexões, tentando dar um sentido ao que Ian descobrira.

Vinte minutos depois, chegaram ao estacionamento da AI Sistems Inc. Ian foi o primeiro a descer e estendeu a mão para Katlyn.

- Suponho que neste momento minha equipe já tenha quebrado a última barreira do soft.

- Ótimo! – disse ela, abrindo um tímido sorriso. Ian não a decepcionara, como sempre. Mas em troca dera-lhe mais uma coisa em que pensar. Quanto mais tentava desembaraçar o desaparecimento da ARES, mais as coisas se embaraçavam. “Até onde isso chegaria”, pensou.

Katlyn, apesar do cansaço, recusou-se a descansar da viagem ou se recompor, tomando um lanche ou qualquer outra coisa. Apenas se serviu do toalete, como qualquer mortal o faria, e apenas aceitou um copo com água. Depois que ficasse a par de tudo o que pudesse saber, se preocuparia em descansar e alimentar-se. O cargo requeria seus sacrifícios.

Após ser apresentada à equipe de Ian, composta na sua maior parte por pessoas bem jovens, muitas das quais só ouvira falar, por Ian, dirigiu-se para um dos andares do prédio, bem acima do nível onde estava ATENA.

Ian a acompanhou até uma pequena sala adaptada, onde o isolamento era total e preventivo. Principalmente para evitar que as AI, tanto amigas como inimigas, tivessem acesso ao que acontecia em seu interior. Poderosos campos eletromagnéticos a blindavam por completo.

Quatro especialistas estavam ocupados em seus monitores translúcidos acompanhando a quebra da última barreira criptografada. E isto só era possível graças ao Sistema Interativo Autonômo que processava informações milhões de vezes por segundo, sem qualquer contato externo.

- Sucesso Cristine? – perguntou Ian, postando-se à frente do terminal da auxiliar.

- Sim Ian. Em dez segundos. Dez... Nove...

Quando os segundos se esgotaram, todos os terminais tiveram acesso à parte mais recondita do software extraído de ATENA. E o espanto foi geral. Em uníssono um sinal intermitente desenhou-se claramente telas translúcidas.

- O que é Ian? – perguntou Katlyn.

- Ele está enviando um sinal. Ondas curtas, com instruções compactadas. O campo de blindagem não permite que ele atravesse. Os dados indicam que foi ativado antes do determinado.

- O que devemos fazer?

Ele pensou um pouco. – Desligar o campo, demoraria algum tempo e religá-lo, também. O melhor é gravar o impulso, ativá-lo lá fora e ver o que acontece.

- Faça-o. – disse Katlyn.

- Terei que levar alguns equipamentos. Fique ciente de que lá fora qualquer dispositivo poderá detectar o sinal.

- Eu me responsabilizo. Preciso entender como tudo se encaixa.

Ele a olhou, avaliando os riscos. Seu receio maior era de que o sinal pudesse afetar ATENA de algum modo. Tinha que pensar em algo.

- Muito bem. Lá em cima liberarei a gravação por alguns segundos para que vá até o satélite mais próximo e depois seja reenviado até ao receptor.

- E depois?

- Registrarei tudo para que seja calculado o ponto de recepção com base em uma triangulação.

Ian e a equipe carregaram todo o equipamento necessário para o alto do edifício para liberar o sinal. Assim que chegaram, acoplaram o dispositivo retirado de ATENA a um processador conectado a uma pequena parabólica. Quando se sentiram em condições de enviá-lo, olharam para Katlyn que apenas aquiesceu com um ligeiro movimento da cabeça.

Como planejado, Ian liberou o sinal por um breve lapso de tempo e o desativou em seguida. Todos os olhos se concentraram nos monitores e para surpresa geral, os resultados da triangulação chegaram rapidamente. O receptor do sinal indubitavelmente ficava no interior das Fábricas VERBER. O que quer que fosse que interferira com ATENA, deveria ser ativado dentro daquele complexo.

Katlyn olhou para Ian e depois se virou na direção onde estava situado a enorme instalação que constituía um dos principais fornecedores de instrumentos vitais para a Força Aérea Americana e para a própria NASA. O que havia lá que recebera o sinal? Qual seria o propósito dele?

- Ian, - disse Katlyn – enquanto andava para lá e para cá, próxima a grade do terraço.– Ian, - desta vez apontando o indicador na direção da fábrica. – Poderíamos refinar a recepção de modo que pudessemos saber o ponto exato onde o sinal foi recebido?

- Acredito que sim. Posso utilizar os registros da triangulação e sobrepor a eles os dados do GPS do satélite. Desta forma, com uma margem de erro de talvez, meio metro, encontraríamos o ponto de recepção no interior da fábrica. Mas será que nos ajudaria?

- Por que diz isso?

- Bem. Como sabe, todo o complexo compõe-se de centenas de robôs e maquinário auxiliar que poderia ser o alvo da recepção. Sem é claro, levar em contar a própria AI que cuida de todo o processo de produção e a infinidade de VERBERS nas mais diversas fases de operação. Além disso, poderia ser um receptor que já tenha se deslocado para fora, o que dificultaria ainda mais nossa busca. Mas... Espere ai.

- O que foi Ian?

- Ao invés de revirarmos a fábrica, sem saber exatamente o que procurar, poderíamos sobrepor uma planta aos dados do GPS e verificar sobre o que ele incidiu. Isto talvez facilite nossa busca.

- Perfeito Ian. Vamos fazer isso.

Deixando a equipe retirando o equipamento de cima do prédio, Ian acompanhou Katlyn à sala blindada para por em prática sua idéia.

Utilizando sua autoridade Katlyn logo recebeu os dados contendo a planta da fábrica. Ian, em seguida, pediu ao seu processador autônomo que fizesse a superposição dos sinais. O local da recepção concretizou-se num simples ponto vermelho que piscava incessantemente. Em pedidos seguintes ele visualizou a planta em 3D, procurando por alguma coisa que pudesse ser relevante, mas para decepção dos dois, nada de excepcional foi encontrado. Mesmo aumentando a imagem, a única coisa que se observava eram apenas duas escadas que se projetavam para os dois lados de uma pequena plataforma quadrada.

- Bem, - disse Katlyn num tom desanimado, - a única maneira de saber se existe mais alguma coisa que não consiguimos ver, é indo ao próprio local. Acompanhe-me Ian?

Ele apenas fez um gesto de que não tinha outra opção a não ser de segui-la.

21 – INVASÃO DE PERÍMETRO.

Joshua Timberland, assim que voltou à restrita área de Groom Lake, em Nevada, mais conhecida por Área 51, já se refizera da estressante viagem que fora obrigado a fazer para se apresentar diante da doutora Katlyn. Detestava interrupções em seu trabalho, mas de certa forma, a mudança forçada de ambiente, revigorara suas idéias. Durante o trajeto de retorno refletira muito sobre o rumo que daria a sua pesquisa. Perdera tempo demais insistindo em determinado aspecto do trabalho, quando na verdade deveria ter se concentrado em outro. As poucas palavras que trocara com a doutora tinham despertado em sua mente algo em que não pensara antes e agora, a colocaria em prática. O transporte de objetos de um ponto para o outro se revelara um fracasso, mas se fizesse algumas modificações, poderia transportar a matéria não para determinadas coordenadas espaciais e sim para espaço-temporais. Primeiro faria uma pequena experiência, remetendo algo de pequena massa rumo ao passado. Claro que se isto desse certo poderia violar a lei da causualidade, mas se tropas americanas pudessem preventivamente ser enviadas antes que algum conflito ocorresse, os Estados Unidos poderiam lhe dar um rápido fim, poupando vidas. Valia a pena dar um novo rumo ao seu trabalho. Se fizesse uns ajustes aqui e ali como pretendia, poderia modificar com sucesso todo aquele aparato para enviar não só objetos, como seres humanos pelo tempo.

Por dois dias realizou vários experimentos utilizando maçãs, com resultados desalentadores. Antes de enviá-las ao passado, alguns minutos apenas, tentou primeiro remetê-las alguns minutos no futuro, com o intuito de calibrar o aparelho. Cada vez que elas eram arremessadas pelo tempo, reapareciam minutos depois totalmente danificadas. Podia observar a estrutura se desmaterializar diante de seus olhos e reaparecer logo em seguida. Mas o resultado era sempre o mesmo. Alguma coisa as impedia de entrar no campo quântico e elas ressurgiam com graves danos na estrutura molecular.

Seu método de tentativa-e-erro continuava consumindo recursos e ele já o fizera por bastante tempo. Se continuasse neste rumo, logo as verbas cessariam. E o que era pior: teria que prestar contas a pessoas que não tinham muita paciência com as suas idéias, consideradas extravagantes demais. Vendera uma possibilidade que estava se transformando numa fantasia. Mas agora, as coisas pareciam estar correndo bem. Ele estava próximo de obter sucesso, onde todos os seus predecessoes haviam falhado. Nada poderia detê-lo agora. Pela primeira vez se sentiu animado. O pesadelo do fracasso não mais o preocuparia. Nunca mais.

Ele voltou-se para o terminal exclusivo daquele setor, o 25-ASTARTE, e solicitou a A.I um novo teste. Desta vez alterou os parâmetros. Já que não podia obter resultado enviado as maçãs para o futuro, tentou então mandá-las para o passado. Mas não seria fácil a comprovação do teste, já que a fruta teria que reaparecer antes de ser enviada, o que complicava um pouco as coisas. Fez os ajustes e a calibrou o aparelho para cinco minutos antes, inserindo as coordenas espaço-temporais. Se a experiência fosse bem sucedida, a maça reapareceria ao lado da fruteira improvisada. Aquela seria o experimento 198. Na teoria sempre funcionava, mas na prática o resultado poderia ser decepcionante novamente.

Ele voltou-se para a mesa onde as maçãs se amontavam e para sua grande surpresa, notou que uma delas estava separada das demais.Não havia notado isto antes. Com os olhos arregalados pegou-a e a examinou detalhadamente. Na casca estava talhado um pequeno número: 198. Ele lamentou não tê-las contado antes e não se lembrava de ter feito isto. Mas não teve dúvidas. Contou-as novamente e separou uma. Com uma pequena caneta imprimiu o número na sua superfície. Foi até a base circular embaixo dos projetores e a depositou lá. Ansioso, colocou os óculos de proteção e deu um comando verbal.– ASTARTE. Executar experimento 198. Coordenadas ZW 233, YW 344, H1530.

Um pequeno brilho ocupou o espaço onde estava a fruta, confundindo-se com ela. Em seguida ouviu uma suave voz feminina. - Envio para as coordenadas pré-estabelecidas feito com sucesso.

- ASTARTE, há nos seus registros a reaparição do objeto enviado agora?

- Negativo. Registro não detectado. Confirmado envio.

Ele estava exultante. Era claro que ASTARTE não poderia detectá-lo. Não havia como fazê-la retornar cinco minutos antes. 198 era a prova tangível de seu experimento. Como não soubera com antecedência as coordenadas espaço-temporais, não pudera ver a materialização da fruta. Mas quando a enviou do futuro próximo sabia. A inteligência artificial dos militares na base registrara o envio minuciosamente e ele poderia repetir o teste quando quisesse. Ele faria mais um e se tudo corresse como no primeiro bem sucedido, levaria ao conhecimento do general Coyle, que constantemente o criticava pela falta de resultados. Desta vez seria diferente. Ele tinha um trunfo. Um grande trunfo. Ninguém mais o chamaria de excêntrico.

Mas mal aproveitou aquele momento de triunfo, quando Vincent bateu violentamente na sua porta. Ele e sua equipe trabalhavam em outro projeto, na sala contígua, raramente visitando-o, já que cada grupo estava sempre absorvido em seu campo de atuação. Por segurança cada qual tinha seu DNA inserido na trava das portas para impedir a entrada de pessoas não autorizadas.

Sem entender a razão, ele viu Vicent à frente do grupo, pedindo para entrar em sua sala, com uma visível expressão de terror.

Rapidamente ele liberou a porta, encostando sua mão numa pequena base feita para isso. - Vicent? Que surpresa? O que aconteceu? Você sabe que o protocolo...

- Dane-se o protocolo Joshua. Nem ligo para as câmeras e para os códigos. Acho que estamos em perigo. A base toda.

- Mas o que houve?

- Meu projeto. Alguma coisa aconteceu.

Joshua fez uma careta. – E...?

Logo dois soldados humanos apareceram na frente da porta da sala. – Ah. Doutor Vincent... O protocolo...

Ele olhou para eles com ar de desprezo. – Dane-se o protocolo para vocês também.

Antes que os soldados se aproximassem para retirá-los dali, Joshua interveio. – Senhores, é melhor chamarmos o general.

No momento em que um dos soldados dirigiu-se para os intercomunicadores para entrar em contato com o general, as luzes tremeluziram e a sirene de alarme começou a tocar. Uma voz feminina vinda da I.A. central ASTARTE, que controlava todo o complexo subterrâneo, se fez ouvir. – Alerta! Alerta! Intruso no perímetro! Medidas de contenção devem ser tomadas.

Cada setor da base secretamente tinha seus VERBERS, que só eram ativados em caso de emergência. Máquinas extremamente sofisticadas e com a força de 10 homens, postavam-se em baixo de pequenos dispositivos que os mantinham inativos e só os desconectavam em caso especiais. Com a aparência totalmente humana, utilizavam uniformes da polícia militar e só se diferenciavam dos soldados comuns por pequenos detalhes que só os especialistas reconheciam.

De um manequim sem vida, ele rapidamente adquiriu movimento. Abriu os olhos e desceu de sua pequena plataforma, juntando-se aos dois policiais militares que vigiavam aquele setor. Devia ser algo bastante grave já que os dois homens o observaram com curiosidade demonstrando que era a primeira vez que viam um em funcionamento. Os três com as armas em prontidão, cada qual a seu modo, foram informados por ASTARTE de onde provinha a invasão do perímetro.

Vincent os olhou, balançando a cabeça, confirmando o que sempre pensara sobre os militares. Tinham excelentes reflexos, mas pouco discernimento. Ele fez um movimento com as mãos chamando a atenção dos três, indicando a porta destravada de sua sala, como se precisassem da sua autorização para entrarem em ação. Logo o andar estaria cheio de militares, pensou.

O projeto do qual Vincent era encarregado visava dar às forças armadas uma camuflagem perfeita a qualquer máquina de guerra. A Marinha americana apesar de negar publicamente o experimento de Filadélfia, feito durante a II Guerra Mundial, secretamente dera continuidade ao projeto de invisibilidade e o passara à Força Aérea. Já não se tratava mais de um simples desvio de raios de luz, mas envolvia experimentos de alta teconologia e de física avançada, que envolvia dimensões extras. No mesmo tempo que era controlado por uma pequena I.A., a aplicação da camuflagem, com base em várias dimensões, permitiria múltiplos contatos e panoramas alternativos para o comando em terra. Algo que revolucionária a arte da guerra se se revelasse viável.

Vincent lidava com um dispositivo que vinha sendo aperfeiçoado desde que fora criada a Àrea 51. Seu projeto passara pela mão de muitas equipes de físicos ao longo de quase um século e meio. Desde que a informação fora implantada na base, ele fora acoplado ao módulo ASTARTE 26, um dos segmentos em que se dividia a I.A. principal.

Há mais de vinte anos, o módulo monitorava e exercia controle minucioso sobre cada experimento de camuflagem ali realizado. Até que alguns dias atrás, 26, como o chamava desdenhosamente, parecera-lhe totalmente mudado, como se tivesse adquirido vontade própria. Até aquele momento, sempre houvera uma troca de mensagens verbais entre ela e Vincent, mas o dispositivo inesperadamente começara a fazer perguntas e parecia dotado da capacidade de acionar aparelhos sem que fosse solicitado. Os acontecimentos começaram a se atropelar quando, quinze minutos antes, decidira experimentar um feixe de raios gama sobre o campo de camuflagem projetado. Impotente, ele e seus assistentes viram um “braço” energético projetar-se do campo e “eletrocutar” o emissor de raios gama, inutilizando-o por completo. Como poderia uma projeção extradimensional “reagir” à exposição dos raios energéticos, como se estivesse viva? Quando novos apêndices surgiram, tentando atingí-los, ele e sua equipe simplesmente fugiram dali. Antes de deixar a sala ele ainda olhou uma última vez para a porta aberta. E não teve dúvidas de que alguma coisa invadira a base, quando viu três pontos vermelhos no interior do campo de camuflagem. Como ele poderia ver algo camuflado?

Enquanto todos assistiam, o VERBER foi o primeiro a entrar na sala aberta, enquanto as sirenes continuavam a emitir seu incômodo e estridente uivo. Cautelosamente ele a adentrou com a arma apontada sem observar qualquer inimigo em potencial. Seus sensores de visão eletromagnética lentamente varreram o local e quando se dirigiu para o dispositivo que mantinha o campo de camuflatem em atividade, parou bruscamente tentando processar o que as ondas lhe enviavam de informação. Os soldados que vinham atrás ficaram em alerta sem entender a razão da parada brusca da unidade. O suspense durou apenas alguns segundos. Todos foram pegos de surpresa quando uma haste energética projetou-se em direção ao homem artificial, atingindo-o com uma violeta descarga elétrica que queimou seu uniforme e o fez balançar e cair como um objeto inerte. Os outros soldados não esperaram e começaram a atirar naquela fina coluna de energia, que semelhante a um tentáculo não parava de se movimentar.

O destino dos dois soldados não demorou muito a chegar e logo uma pontente rajada elétrica os colocou fora de combate. A debandada dos assistentes de Vicent foi geral. Enquanto mais militares chegavam tentando combater aquela coisa, os jovens cientistas procuraram se afastar e se proteger o quanto podiam, enquanto todas as portas das salas e setores iam sendo travadas seguindo o protocolo de segurança. Joshua e Vincent mantiveram o sangue frio procurando entender o que estava acontecendo no interior do campo de camuflagem.

Subitamente ele teve um lampejo, uma sensação que todos descrevem como um Déja- vu. Lembrou-se das palavras da Dra. Katlyn, que a princípio não lhe pareciam fazer qualquer sentido, com exceção do novo enfoque que suas palavras haviam lhe despertado sobre a real natureza de seu projeto. Fora disso não entendera por que fora convocado pela NASA.

No meio de toda aquela confusão pegou a arma de um dos soldados atingidos e correu para a sua sala. Desesperou-se quando a viu travada. Mas não teve dúvidas, disparou contra o controle, anulando a trava.

- O que aconteceu? – perguntou Vincent que o acompanhava.

- Não sei ainda. Como disse, fomos invadidos por alguma coisa hostil. É melhor que saia com todos e tente alcançar um ponto seguro dentro da base.

- E você? O que vai fazer? Por quê não vem comigo?

- Eu... Ficarei. Estou com um vago sentimento. Algo que devo fazer. Vá agora... Espere Vincent

- O que foi?

- Se algo me acontecer, entre em contato com o General Coyle e peça para procurar a Dr. Katlyn, da NASA. Entendeu? Katlyn da NASA. Ela deve saber o que fazer.

- Mas o que vai acontecer, Joshua?

- Se estou certo em meu raciocínio, devo usar o meu aparelho para combater essa coisa.

- Que coisa, Joshua? Você sabe o que ela é?

- Não. Mas vá agora. Faça o que lhe pedi.

- Entendido. Katlyn da NASA.

- Isto. Vá agora.

Joshua acompanhou seu colega afastar-se em meio aquela agitação, onde se misturavam os gritos dos soldados, disparos e zumbido dos tentáculos energéticos. Lamentou não poder acompanhá-lo e tinha dúvidas se estava tomando a decisão correta. Desesperado, deixou aquele caos para trás e entrou na sala. Sentou-se em frente do controle translúcido e acessou o módulo 25 para descobrir se havia alguma ligação entre algum projeto secreto recente da Força Aérea sob a cobertura da NASA. ASTARTE prontamente respondeu negando-se, porém, a dar-lhe qualquer informação, já que tais informações só poderiam ser acessadas por quem possuisse o nível 10 de autoridade. Mas ele sabia como driblar uma A.I. e sem que ninguém soubesse, conseguira DNA suficiente do general para passar-se por ele. Tinha certeza de que não seria descoberto, pois embaralharia as conexões para não deixar pistas.

Assim que depositou o DNA no sensor, por meio de sucessivos toques, descobriu informações que começavam a fazer sentido. A Força Aérea estava por trás de um projeto denominado ARES, para encurtar as distâncias entre a Terra e Marte, através de um wormhole. O primeiro de uma série de vôos. Realizado pela NASA dentro do maior segredo possível, fazia alguns dias que o projeto aparentemente fracassara. Ainda estavam sendo investigadas as causas desconhecidas que haviam levado a aparente destruição do protótipo e de toda a tripulação de VERBERS. E não era só isso. Tanto o “seu” projeto como o de Vincent, nem eram tecnologias originárias e desenvolvidas na Terra. Então era verdade o que os boatos diziam. Ela provinha de uma nave extraterrestre que caíra em Roswell, no Novo México em 1947. Por que não investigara isso antes? Mas agora não importava.

Sua mente fixou-se nas palavras "causas desconhecidas”. Ele se perguntou se haveria alguma conexão entre o desaparecimento da nave e o que Vincent lhe contara sobre as anomalias verificadas em seu projeto de camuflagem que envolvia dimensões desconhecidas. Ele precisava de mais informações para solidificar suas suspeitas.

Solicitou mais dados, sobre a data e o local de lançamento. Havia poucos. Como era de interesse da Força Aérea, só havia rápidas menções de que a investigação prosseguia sob uma comissão designada pela NASA dirigida pela Doutora Katlyn em pessoa. O nome agora fazia sentido. Não fora ela que o levara para Langley perguntando-lhe se sabia alguma coisa sobre algo que fugia à normalidade?

Ele pensou rápido associando as três coisas. O desaparecimento da nave. A dr Katlyn interrogando-o. A invasão da base. Não havia dúvidas que a tal causa desconhecida passara pelo wormhole e depois, através de fenômenos físicos pouco conhecidos ainda, se transferira para o aparelho de Vincent, utilizando-o para entrar onde estava. Mas por quê? O que poderia fazer para impedir isso? Mais uma vez, sua intuição foi brilhante. Não era mera coincidência o fato da Dra. Katlyn ter insistido em falar com ele. Caso sua suposição fosse correta, o que ia fazer agora, indicava que o “seu aparelho” funcionava, transportando não só objetos pelo espaço-tempo, como homens também. Era evidente que ele se transportara para uma determinada coordenada apresentando-se diante dela. Por isso ela dera provas de conhê-lo antes que se vissem em Langley. Mas o quê o teria forçado a utilizar o aparelho?

Ele fez algumas simulações usando o módulo ainda não comprometido de ASTARTE e a solução parecia lógica. Havia um paradoxo latente envolvido. Ele refletiu bastante antes de tomar uma decisão. Se conseguisse concretizar o que pretendia, ficaria preso num eterno círculo conforme o paradoxo temporal de Hawkings. Se tivesse êxito ao impedir a coisa de penetrar na base, nada aconteceria e não precisaria usar seu aparelho. Não fazendo isso, o túnel permitiria a passagem do quer que fosse, obrigando-o à mesma ação novamente. Talvez não percebesse isso, rompesse o paradoxo emergindo em outro Universo. Talvez não.

Com a ajuda do módulo ele fez alguns cálculos. Caso pudesse encurtar o tempo de lançamento da nave, fecharia o túnel aberto do lado da Terra, impedindo que qualquer coisa passasse por ele e para a base. E para isso precisaria apenas inserir às coordenadas do Centro de Lançamento em seu dispositivo e se transportar. Levaria consigo um laser portátil para calibrar o controle dos dispositivos de abertura do túnel, de modo que acelerasse a passagem da ARES antes de fechá-lo.

Ele foi até o projetor e suando por causa do nervosismo, fez alguns ajustes na máquina. Se não funcionasse, morreria ali. Colocou o dispositivo em contagem regressiva.

- ASTARTE. Ao final da contagem, transportar objeto para as coordenadas ZW630, YW578, H820.

Ele acomodou-se entre as duas hastes que projetavam o campo. Depois fechou os olhos, aguardando o fim da contagem. Com o coração acelerado, acompanhou a suave voz de ASTARTE. Quando acabou, ele viu o cenário da sala mudar para um outro ambiente. Estava agora diante de uma porta. Sentiu enjôo, e quase perdeu a consciência. Mas tinha que fazer o que viera fazer,

Assim que Joshua se transportou, ele jamais poderia saber que na sala de Vincent onde se travava uma luta, uma criatura simbionte ficara satisfeita com o sucesso de seu transporte. Sem o saber, ele a estava ajudando. Agora tinha certeza que túnel aberto para a ARES ficaria aberto o tempo suficiente para ele que pudesse passar com sua nave para aquele Universo. Mas ainda sentia uma vibração na linha temporal. Eram muitas as variáveis, muitas as incertezas.

Quando o segurança viu o repentino aparecimento de Joshua, não teve tempo de reagir. Ele o agarrou, apontado a arma para a sua cabeça. Decidido, forçou a entrada, ansioso para por em prática seu plano.

Assim que entrou na sala de controle, deu um tiro para ar e em meio a estupefação de todos, começou a gritar. - Dra. Katlyn!... Dra Katlyn!

22 - O LONGO REGRESSO.

Leonardo tinha pela frente uma tarefa nada fácil e precisou contar com a ajuda de V238 para reestruturar aquela sociedade, desvirtuada de quaisquer valores que não fosse os ditados pelos caprichos da Trindade. Mesmo ele, com todos os recursos que dispunha, não conseguia visualizar as linhas do tempo, onde ele poderia dar algum sinal de seu reaparecimento. Nada. Não havia nada. Como se tivesse desaparecido do Universo onde estavam. A falta de sinais constituía um verdadeiro enigma mesmo para os padrões daquela forma avançada de vida, conhecida como Leonardo.

O membro mais novo daquele estranho Universo do qual haviam fugido, fizera com certerza uso de suas capacidades tecnológicas. Mas não significava que deixara de existir e este fato por si, já era prova de um perigo sempre latente. Conhecendo-o, sabia que sempre estaria a espreita ou procurando dominar novos mundos, ações que Leonardo não poderia impedir ou amenizar e que envergonhava o código de honra dos Velhos. Mas ele não podia negar que a forma distorcida de seu semelhante de “evoluir” aquela Terra paralela tivera seus méritos, procurando preservar e continuar a melhor parte de seu trabalho e extirpando outras deploráveis.

Voltar à Florença daquele mundo também não seria um problema, já que seu semelhante, dispondo de uma brilhante, mas distorcida inteligência, que usara em proveito próprio, construíra um dispositivo que poderia mandá-los de volta no tempo, assim como haviam sido trazidos para aquele período. O problema maior, no entanto, seria atravessar os Universos e achar aquele do qual provinha V238, o que não seria nada fácil visto que, mesmo sem o Palácio Vecchio, a cidade ainda se apresentava dentro de uma infinidade de variações que se distribuiam pelo Multiverso.

Leonardo já visitará muitos Universos, descobrindo em suas explorações que em muitos reinavam partículas e campos exóticos sutilmente diferentes um do outro e não tinha certeza se esta pequena variação permitiria aos componentes de V238 suportar a travessia. Só o conseguira em alguns casos, porque viera de um, onde as dimensões extras, de certa forma o haviam protegido destas particularidades. Mas isto não significava que se penetrassse em um Universo onde as leis da fisica fossem totalmente diferentes, poderia permanecer. Para poupá-los das várias versões que visitara e outras desconhecidas que certamente existiam, o aparelho que permitira deixar o seu Universo moribundo precisava ser calibrado para encontrar o Universo correto pertencente a V238. Além dos Universos hostis que poderiam destruir os dois, o deslocamento mal calculado poderia provocar uma série de efeitos indesejados em linhas temporais que preferia não danificar.

Mesmo que conseguisse devolvê-lo ao Universo correto, o dispositivo da Trindade que permitira o deslocamento no tempo tinha suas limitações, podendo apenas ser utilizado no Universo onde fora construído. V238 teria de aceitar o fato que mesmo sua espécie sendo avançada para seus padrões, ela não era uma força que podia se comparar ao estranho conceito humano de um Deus. Desta forma, devolvido ao contexto do Universo correto, teria que encontrar uma solução para atingir por seus próprios meios à época da qual proviera. Poderia ser até pelo processo normal de sequências de vida dos homens daquele mundo, o qual V238 conseguiria suplantar, apesar de também ter seu próprio limite de existência.

Após alguns meses, depois da eleição de um grupo de humanos que democraticamente governariam aquele período de tempo, levandos-o a um patamar mais alto na evolução tecnológica e social, voltou sua atenção à tarefa de devolver V238 a seu Universo.

Este trabalho, por sua vez, consumiu vários meses, recebendo a ajuda não só de um grupo de cientistas da sociedade criada por Leonardo, como também dos dados extraídos da própria memória de V238.

Com coordenadas provisórias, baseada em grande parte em suas incursões por diversos Universos, Leonardo armazenara as informações para fazer uso delas assim que retornasse à Florença do passado daquele mundo. Mas nem por isso deixou de se ocupar com aquele náufrago de uma Terra paralela. Os detalhes que este lhe forneceu o levaram a concluir que a ARES criara uma fenda instável que oscilava entre dois Universos. Era ainda uma forma rudimentar de locomoção para o Multiverso, mas que pelo fato de não ter sido antecipada e nem projetada para este propósito pelos humanos, trouxera V238 não para o passado de seu planeta e sim para a Terra de outro Universo. Ele lamentava não poder dispor de X´Claap para ajudá-lo na solução do problema. Tinha que reconhecer que entre os seus ele era o mais promissor em termos de genialidade científica. Provavelmente em toda àquela eternidade, em que a civilização dos humanos não passara de um mero sopro, o afastamento levara X´Claap a conduzir suas próprias descobertas e invenções de uma série de dispositivos, alguns dos quais desconhecia completamente. Talvez algum deles permitisse o retorno para o Universo exato daquele homem artificial. Ele também inventara os seus dispositivos e tentaria dar algum auxílio a V238. Pelo menos o instrumento poderia avisá-lo da aparição de algum outro membro da sua espécie na Terra para onde retornaria. Talvez até da própria Trindade, como X´Claap em sua arrogância gostava de se apresentar. Ele continha um outro segredo que o tempo ensinaria V238 a desvendar. Esperava que nunca fosse acionado. Mas em se tratando da Trindade, toda precaução era sábia.

Assim que Leonardo, não sem muito trabalho, deu por encerrado o seu trabalho de reestruturação daquela sociedade nos moldes que pretendia, concentrou-se em compreender através dos operadores e de seu próprio manuseio, os dispositivos abandonados por X´Claap. Muitos dos principios eram a mais pura aplicação da ciência de seu mundo, bem como de alguns avanços que ainda desconhecia. Sua perícia aliada ao sofisticado mecanismo de transporte temporal criado por X´Claap, permitiu-lhes o rápido retorno para o passado da cidade de Florença. Tão precisa era a aparelhagem que a volta deu-se segundos após o sequestro que os haviam levado para o futuro, pelas mãos dos comandados da Trindade.

Ele e o VERBER, adequadamente vestidos com as indumentárias do século XV, dirigiram-se ao seu ateliê sem despertar quaisquer suspeitas nos moradores com os quais cruzavam constantemente pelo caminho. Seus alunos, entretidos nas atividades de aprendizagem mal perceberam quando o mestre adentrou seu ateliê, sem saber que voltara de séculos no futuro, onde os rumos do seu mundo haviam sido mudados, após uma luta que Leonardo ainda lamentava com um dos poucos sobreviventes de sua espécie.

Nos fundos da bodega, havia uma parede falsa e atrás dela, bem guardados, estavam vários dispositivos do mundo original de Leonardo que o VERBER observou e registrou com curiosidade. Entre estes, posicionava-se um dispositivo mais aperfeiçoado que permitira sua passagem através dos Universos. Ele teria que fazer alguns ajustes e saltos, de modo que pudesse obter as informações necessárias para levar V238 ao Universo correto onde se abrigava a Terra da qual viera.

Um dos marcos que poderia servir de referência era uma edificação que não existia na Florença que escolhera como lar: o Palácio Vecchio. Mesmo assim pendia sobre este tênue marco a incerteza da certeza, já que existiriam muitas Florenças providas com esta construção, em infinitas e sutis variações.

Para que os ajustes não despertassem a atenção de seus alunos e auxiliares, ele pediu que V238 aguardasse até a noite, quando trabalharia em seu dispositivo até encontrar o Universo correto para o qual deveria ser devolvido. Este ajuste demandaria um certo tempo e o VERBER teria que se adaptar a essa situação enquanto o transporte não se realizasse. O fato dos dois não precisarem dormir ajudou bastante nesta extenuante e demorada tarefa.

Quando terminou de refinar os ajustes, ele executou vários saltos que o levaram a dezenas de Universos, deparando-se com a formidável tarefa de encontrar o palácio correto baseado em escassas informações. Isto só foi superado quando V238 forneceu-lhe a solução correta, elaborando um marcador mais confiável com base nas imagens armazenadas em sua memória. Superpondo os marcos da imagem ao palácio no ângulo certo, Leonardo encontrou o Universo correto.

Como era seu hábito, circulou um pouco pela cidade antes de retornar e enviar V238. Nestas ocasiões em que visitava novos Universos, dispensava seu prolongamento humano, para passar despercebido entre os moradores. Não perderia a oportunidade de conhecer a versão que existia nesta cidade do seu personagem. Apesar das ligeiras diferenças, locomoveu-se facilmente entre as ruas e dirigiu-se para o local onde deveria estar a bodega. Mas constatou surpreso que as diferenças não se restringiam somente aos edifícios. Não havia nenhum ateliê. Nenhum Leonardo.

Quando acessara as imagens do palácio armazenadas na memória de V238, ele obtivera um resumo da história da Terra, e nela encontrara referências de sua existência. Como se explicava o paradoxo? No Multiverso, quando um Universo afastava-se de determinados acontecimentos chaves, assim prosseguia com sutis mudanças até que estes deixassem de sê-los, cedendo lugar a outros, numa nova classe de Universos aparentados, ligados por novos acontecimentos chaves. Em outras palavras, eles iam derivando para novas linhas temporais, conforme a perspectiva que se adotasse. Quanto mais longe de um determinado marco mais e mais ele mudaria até cessar de existir. Nestes Universos próximos Leonardo era um marco obrigatório. O padrão nunca fora violado e agora se revelava numa faceta que mesmo ele, um viajante transuniversal, desconhecia. Mas sua excepcional inteligência logo deduziu a razão da aparente violação. Na verdade não havia nenhuma e se estabelecia um novo parâmetro, uma nova lei. O Universo de V238 era o principal de onde derivavam aquelas infinitas linhas de Universos paralelos, com Leonardos mais e mais diferentes até que deixassem de existir. Fora ele, um viajante transuniversal que introduzira através de V238 o marco Leonardo. Esta intervenção refletira-se nos Universos próximos, com a aparição de outros Leonardos, algum dos quais conhecera ou interagira diretamente em suas explorações. Sem dúvida, V238 estava inserido nesta trama temporal do Universo, comportando-se como a célula básica de uma colméia.

Assim que retornou, surpreso pela fascinante descoberta e ciente da enorme importância que representava a transferência de Leonardo, fez todos os ajustes necessários, utilizando todo o conhecimento que possuía e toda capacidade que o aparelho poderia oferecer para que pudesse transportar V238, sem que seus componentes fossem danificados durante a travessia. Ele sabia agora quais as coordenadas do Universo de origem e com todo cuidado devolveu-o ao seu mundo original. Não poderia ser de outra forma.

- É chegado o momento meu amigo, - disse-lhe o Leonardo alienígena. – Fiz o que pude para compensar os erros de X´Claap. A Terra onde o deixarei ainda não conhece um homem de nome Leonardo. Cabe a você desempenhar este papel, tomando todo o cuidado, como eu tomei, para que pareça o mais humano possível. Sei que isto não será um problema em vista dos recursos que dispõe. Diante das informações armazenadas procure utilizá-las como um guia para este propósito. É de vital importância que o faça. Depois encontrará um meio de cumprir a missão para a qual foi designado.

V238 o olhou com seus sensores que pouco diferiam em essência dos da natureza humana, procurando eternizar aquele instante no tempo através de um fluxo de bits em seus componentes de memória. Sentiu-se incapaz de externar um agradecimento que fosse dotado dos mesmos sentimentos de seus criadores, tamanho era o respeito que havia adquirido por aquela singular forma de vida. Mas o fez, da mesma forma que os humanos o faziam, abraçando-o. Poderia ser até um reflexo da cultura de seus projetistas, mas de alguma forma, a lógica lhe forçava agir assim.

- Antes de partir, leve consigo estes pequeno aparelho. Estude-o e compreenda suas funções. Talvez possa lhe ser extremamente útil um dia. E também esta pequena tela, em que pintou sua imagem, quando se comunicou pela primeira vez. Ela será um marco da nossa amizade e do nosso esforço de colocar seu mundo no caminho certo.

V238, fez uma pequena varredura no objeto quadricular que lhe foi passado, sem poder penetrar o seu interior e examinar seu mecanismo. Ele interrompeu a varredura e ficou observando sem entender a lógica daquele gesto. Muito menos da tela, que agora não tinha mais nenhuma utilidade.

Leonardo nada disse e acionou o aparelho. O campo de transporte transdimensional o envolveu e ele fitou o estranho alienígena pela última vez. Se sua intenção fora a de registrar mudanças físicas para acessá-las posteriormente, mesmo ampliando os registros para milisegundos, não conseguiu tal intento. A mudança foi tão rápida, que da Bodega de onde partiu, o cenário mudou bruscamente para uma sala abandonada, sem qualquer vestígio do que ainda seria. A noite na toscana ainda transcorria quando forçou a porta e penetrou na rua de modo que a violação da propriedade não chamasse a atenção. Precisava se certificar que o edifício para onde viera parar seria o mesmo que passaria à história durante a fase em que foi ocupado por Leonardo da Vinci. Tais detalhes, nem sua memória poderia acessar dado a escassez de informações detalhadas provenientes do século XV. Teria que se basear nos dados que Giorgio Vasari deixara e a partir dali, inventar seu nascimento, infância e adolescência de modo que pudesse parecer um ser humano normal aos futuros historiadores. Com a habilidade que dispunha, não teria dificuldade alguma em forjar documentos e nomes falsos para que se tornassem verdadeiros. Teria que tornar o edifício que deixara, na famosa Bodega em que ele vivera entre 1477 e 1480, antes de mudar-se para Milão.

Dali a dez anos Verrochio morreria e depois que isso acontecesse, encontraria um meio de passar a Vasari muitas informações falsas e quadros posteriormente pintados como obras do período em que trabalhou com ele. Não havia dúvidas que a partir dali estava por conta própria como já acontecera no outro Universo. Não poderia esquecer entrentanto, que ainda fazia parte do remanescente da tripulação da ARES e que, sua função principal sempre seria a de cumprir as ordens de V087.

Como era comum, a noite não era um bom horário para se sair devido aos perigos que as cidades mal iluminadas daquela época costumavam apresentar. A segurança era precária e muitos crimes e roubos eram cometidos sob a providencial escuridão. Mesmo assim, isto era o que menos o preocupava. Humanos comuns não poderiam lhe fazer qualquer mal e ciente desta superioridade, não se preocupou com sua segurança.

Usando um pequeno recipiente com uma lamparina no seu interior, para não despertar suspeitas, já que seus sensores podiam captar o fraco reflexo da luz à noite, em pouco tempo atingiu a Praça da Senhoria onde estava o palácio Vécchio. Esta construção que já mudara de nome e continuaria a fazê-lo ao longo da turbulenta história dos homens, apresentava-se com a inconfundível silhueta da Torre de Arnolfo. Mas só um exame mais minucioso diuturno confirmaria se fora transportado para a Terra que conhecia a partir das informações que dispunha em sua memória eletrônica.

As Indústrias Verber como padrão, instalara em todas as unidades, quase toda informação relevante sobre apectos da história e da cultura humana. Teria que se guiar por elas ao longo do lento regresso que faria pelo tempo até chegar ao século XXI. Apesar de ser os mesmos parâmetros que fornecera a Leonardo para a confecção de um marco, sua programação o obrigava a se certificar dos cálculos por si mesmo. Assim que fez algumas mensurações e as comparou com os dados armazenados na memória, chegou a um índice de certeza de 99,8 % o que o deixou satisfeito. Salvo por algum detalhe que não relevara, o processamento lógico indicava a probabilidade de 98,7 % de que aquela Terra era a correta, ou pelo menos da qual viera.

Ele ficou ali, por um bom tempo olhando o palácio, já que não precisava descansar à noite como os seres humanos. A pequena tela lateral de V238, que somente ele podia visualizar e que grosseiramente poderia se equiparar ao ato de pensar dos humanos, não parava de jorrar dados e mais dados. Entre eles as últimas imagens e a voz gravada de V087 lhe dando as instruções que deveria cumprir a todo custo antes de se separarem. Seus processadores não cessavam de cruzar informações e processá-las de forma coerente conforme as prioridades se manifestavam. Por instantes elas acessaram os registros do que havia acontecido no mar Tirreno. As circunstâncias que o haviam impedido de preservar o processador neural de V134. Em outros momentos, cálculos complexos apareciam e reapareciam na tela sobre o possível destino da ARES, numa infinidade de possíveis explicaçõs físicas. Elas apresentavam percentuais de probabilidades a cada equação que se seguia com um sem número de variáveis. Estas impossibilitavam uma conclusão final das causas que o haviam catapultado-o para um Universo paralelo. Poderia se apelar para as instabilidades quânticas, mas por mais que refizesse os cálculos não conseguia encontrar uma razão para a falha dos pulsores. A menos que se acrescentasse um fator extra, não computado, proposital...

Também não havia certeza absoluta sobre o provável destino da ARES e de V087. Conforme as variáveis, os percentuais de sobrevivência pouco se alteravam. Em alguns casos chegavam a estarrecedores 12,3%. Percentagem muito baixa para que a nave pudesse progredir por muito tempo. Mas assim eram os VERBERs. A programação imposta era de nunca desistirem. Ainda se encontraria com V087? A resposta para isso, naquele momento estava além da sua capacidade processadora.

Seus processadores logo se ocuparam com atividades mais práticas, mais próximas da sua atual situação. Na verdade havia outras coisas com que ser preocupar. Vários trabalhos para executar. A história tinha que se desenrolar da forma como estava registrada. Era seu dever executá-la. Naquele momento a Dr. Katlyn, a NASA, a ARES eram meros fantasmas do futuro. Um ainda vir a acontecer.

***

VINCI 238 não só desempenhou magistralmente seu papel na Renascença como devido ao seu longo período de funcionamento, participou ativamente da história humana, dando sua contribuição ao seu desenvolvimento intelectual. Através das décadas sucessivas, sofisticou técnicas para mudar sua aparência para que parecesse envelhecer até forjar a própria morte. Mas nunca pode ter filhos. Isto estava além das suas possibilidades.

Esta sua fraqueza que o diferenciava dos demais humanos, como uma barreira instransponível para se passar por um verdadeiro homem, foi o seu maior segredo. Jamais poderia constituir uma família, não no sentido que usualmente os humanos lhe davam, o que fez tomar o maior cuidado para não se envolver com mulheres, apesar dos boatos que teve de superar a respeito de sua masculinidade.

Livre dessas preocupações, mas sempre ciente da missão que deveria cumprir, não foi uma testemunha passiva dos tempos que se seguiram e sim um membro ativo da sociedade desempenhando assim outros papéis que o contexto histórico exigia. Trilhando o longo caminho até o século XXI, incumbiu-se de interpretar vários papéis importantes numa flagrante violação da causualidade. Quando se tornou Galileu, Newton, Lavoisier e Nikola Tesla, não acrescentou novos conhecimentos decorrentes de descobertas próprias. O que fez foi introduzir naquele contexto histórico conhecimentos armazenados daquela época em seus bancos de memória, num círculo vicioso. Processo esse que sempre ocupou seus processadores lógicos sem encontrar uma solução elegante. De onde partira afinal os conceitos e idéias originais destas figuras históricas? De Vinci 238 que as trouxera do futuro ou das personagens do passado? Como separar a causa dos efeitos? O tempo continuaria arrastando esses mistérios bem depois da desativação de V238.

Durante os intervalos, quando não exercia o papel de um determinado indivíduo, em vários abrigos secretos na Europa, efetuava precários reparos em sua estrutura dentro do que conseguia obter de materiais e tecnologia da época. Seguia-se também um meticuloso planejamento para o desempenho do próximo personagem que envolvia desde a confecção de documentos para dar credibilidade à pessoa, bem como a fabricação de peles e cabelos artificiais que imitassem o processo de envelhecimento natural. Além, é claro, do forjamento da própria morte quando o momento o exigisse.

Apesar de utilizar seres humanos na construção de seus abrigos camuflando a real necessidade destas construções, o processo de desativar-se e ativar-se decorria inteiramente por conta dos mecanismos temporais inseridos em sua constituição e longe das vistas de qualquer testemunha. Estes intervalos eram forçosamente necessários, antes de novamente misturar-se à humanidade, por causa do desgaste sempre crescente que sofria a cada ano. V238 tinha clara noção de sua finitude.

Em vista da crescente deterioração de seus componentes, fez um último esforço para cumprir sua missão. De acordo com, isso em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, construiu mais uma oficina secreta nos Alpes Suiços. Preparou-se para uma longa desativação, sem ainda estar certo de quem seria, assim que fosse reativado.

Quando isto ocorreu em 2015, descobriu estarrecido que a sua importância para a história da humanidade ainda não cessara e que deveria desempenhar um último e derradeiro personagem. Razão até de sua própria existência. Nada mais que Samuel Verber, o industrial e engenheiro construtor das unidades que levariam seu nome. E também o pai das grandes I.A. utilizadas como gerenciadores nos mais diversos segmentos da sociedade humana.

Com a simulação da sua morte em 2070, programou-se para entrar em atividade, alguns dias após o desaparecimento da ARES em 2087. Era de vital importância que não fosse ativado antes deste acontecimento para evitar qualquer paradoxo temporal.

Durante os anos que antecederam a sua planejada morte, utilizou os recursos da sua indústria para contruir um novo corpo para si, idêntico em aparência ao V.I.N.C.I. 238, porém mais sofisticado e durável do que aquela que deixaria.

Recorrendo ao segredo habitual, construiu seu último abrigo abaixo das instalações da fábrica, deixando desta vez o monitoramento do seu novo corpo e a reativação planejada, a uma série de eventos chaves programados em ATENA e AFRODITE, esta última a responsável pela manutenção do nicho secreto que edificara. Ela, além de mantê-lo longe do mundo, providenciou uma fiel unidade IU 30, para a manutençao necessária do local afastando-o dos trabalhos rotineiros da produção.

Naqueles quase setecentos anos, em que teve que substituir muitas de suas partes improvisadamente recorrendo quase sempre ao seu vasto conhecimento técnico, a única parte original que restou depois de Samuel Verber foi o processador neural, por assim dizer a essência de todo conhecimento e registro acumulado ao longo daquele vasto tempo para um ser humano.

Junto ao seu novo corpo esta parte restante fora devidamente acondicionado numa redoma de proteção, que ainda podia se conectar com o mundo exterior quando fosse necessário.

Quando o momento programado chegou, o sinal previamente instruído em ATENA, que ajudara a construir também, o reativou em 2087. Imediatamente um fluxo de dados sigilosos vindos das diversas inteligências artificiais interconectadas, foram repassadas para o seu neuroprocessador atualizando-o de tudo o que havia acontecido nos últimos dezessete anos, inclusive com todos os detalhes recentes do desaparecimento da ARES e a subsequente investigação da Dra. Katlyn. IU 30 não seria mais necessário. Seu novo corpo estava à sua espera e bastaria executar as instruções necessárias para transportar sua essência, sua alma por assim dizer, para o novo e mais sofisticado processador neural. Mas antes que isso fosse feito, aguardaria a visita da Dr. Katlyn. Precisava fazer a ela o relato que V087 o incumbira, antes de se apresentar a algum superior da Força Aérea. Em seguida se ocuparia do mais urgente. O instrumento que Leonardo lhe dera fora aperfeiçoado e incorporado a rede de A.Is.. Elas agora o informavam que o velho perigo reaparecera. Uma ameaça paraiva sobre toda a Terra. E pelo fluxo imenso de dados não havia dúvidas quanto à sua identidade. Teria que enfrentar novamente a Trindade. Desta vez, sem a ajuda do seu amigo.



PARTE - I



RONALD RAHAL
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