“Não sei o que possa parecer aos olhos do mundo, mas aos meus pareço apenas ter sido como um menino brincando à beira-mar, divertindo-me com o fato de encontrar de vez em quando um seixo mais liso ou uma concha mais bonita que o normal, enquanto o grande oceano da verdade permanece completamente por descobrir à minha frente”. Isaac Newton

Apresentação

PARTE - II

1 – O EXPERIMENTO.

Transcorria o ano de 2087. Numa altitude de 60.000 kms acima da superfície da Terra, num ponto fixo sobre Houston, uma estrutura composta por duas hastes cruzadas parecia minúscula diante da vasta massa planetária azulada abaixo. Em cada ponta das hastes, inclinadas num delicado ângulo de quinze graus, fixava-se um prato concâvo semelhante a uma antena parabólica. No centro, onde os feixes se entrelaçavam, assentava-se um enorme cilindro contendo um dos primeiros geradores de antimatéria. Em torno dele, um pequeno anel servia de apoio a outras hastes que se vergavam para frente até se encontrarem num outro anel mais à frente. Na ponta deste posicionava-se uma nave. Pequena para os padrões da estrutura onde estava encaixada, mas poderosa o suficiente para suportar as condições extremas do primeiro buraco-de-minhoca criado pelo homem. E este poder repousava nos seus próprios quatro pratos pulsores, que acompanhavam em escala menor o mesmo desenho da estrutura circundante. Quem atentasse para a disposição das hastes, logo perceberia que o conjunto todo aparentava a quase forma de um triângulo isóscele.

À frente da nave, obstruindo por precaução a passagem do anel dianteiro, estavam dispostas espessas chapas no formato de um triângulo equilátero cada uma, que se abririam como pétalas de uma gigantesca flor, quando as condições ideais de lançamento fossem alcançadas. Para controlar as tremendas forças que poderiam desestabilizar o complexo e até modificar sua órbita, os engenheiros haviam instalado não só os potentes retromotores como também alguns menores ao longo da estrutura para contrabalançar os quatro grandes pratos pulsores fixados nas hastes.

Aquela construção pouco elegante parecia insignificante comparada à silhueta da Terra, salpicada por miríades de faixas brancas, borrões cinzentos de tempestades e da imagem familiar de um novo furacão que se aproximava da península da Flórida. Mas essa impressão era ilusória em vista do que a pequena nave, presa entre as hastes, poderia fazer. E aquela sensação da peculiar doca espacial acompanhar o movimento da cidade de Houston, como se um fio invisível ligasse os dois pontos devia-se na verdade ao fato dos dois referenciais deslocaram-se à mesma velocidade de rotação do planeta. Nesta órbita geoestacionária, seu albedo ora aumentava, ora diminuia, conforme sua superfície exposta ao Sol oscilava devido aos pequenos puxões gravitacionais decorrentes da massa terrestre.

Apesar do farto material divulgado pela mídia, muita coisa fora escondida do público. Poucos tinham uma noção da real natureza do estranho objeto flutuando acima de suas cabeças e os que sabiam, ainda não tinham uma ideia exata da força que tal estrutura poderia desencadear. Estes poucos priveligiados, no entanto, tinham conhecimento de que estavam sendo testemunhas de uma nova forma de locomoção que há cem anos, não passaria de pura ficção-científica. Seus idealizadores, limitados pelas simulações de laboratórios em terra, agora experimentariam na prática, esta nova forma de transporte. Ele não mais cruzaria o espaço de um ponto a outro, mas sim, através de uma fenda que os interligaria em questão de segundos. Muitas dúvidas ainda assaltavam os engenheiros, o que os levara por cautela, a construí-las no limite máximo das órbitas dos satélites geo sincrônicos. E afastada também dos grandes espelhos em construção, a única obra de engenharia espacial internacional que amenizaria os efeitos do aquecimento global.

Quarenta anos tinham sido necessários para implementar aquele projeto, que custara muito dinheiro à Força Aérea e por tabela aos contribuintes. O governo decidira colocar a NASA à frente, como administradora de uma experiência científica, evitando com isso críticas de várias potências como a China e a India, muito sensíveis ao uso do espaço para fins militares, mas que apoiavam hipocritamente a construção dos grandes espelhos refletores, sem deles participarem materialmente. Se não tinham feito condenações públicas enfáticas, secretamente os resultados lhe interessavam em proveito de seus próprios interesses, como era comum no convívio ambiguo entre os Estados.

A necessidade de novas formas de locomoção que um dia permitissem as viagens interestelares era resultado direto dos conflitos provocados pela situação global, onde os recursos da Terra tornavam-se a cada dia mais escassos. Se um novo mundo fosse descoberto, que mitigasse tais efeitos o problema poderia ser empurrado para o futuro, como havia ocorrido até então com todos os governos. Sob a bandeira de uma expedição científica, isenta da rapina destas mesmas potências, abria-se uma nesga de esperança para os idealistas que pretendiam salvar um planeta tão combalido.

O tratado espacial de 2049 proibira o uso do espaço para fins bélicos. Somente empreendimentos “científicos” poderiam ser realizados naquele grande oceano que se estendia das camadas mais altas da atmosfera até às bordas do próprio tempo. Mas sempre havia um jeito de se “burlar” as leis, camuflando-se o real propósito dos experimentos, quando se fazia necessário. Assim se comportavam as agências russas, chinesas, japonesas e européias, quando lhes interessava. Apesar de uma única Terra, a humanidade mesmo avançando pelo espaço ainda não rompera o cordão umbilical que a ligava ao passado dos Estados dominadores de vastas extensões de sua circunferência.

O protótipo que participaria do experimento, não era muito grande, não pelos padrões daquela época. Mesmo assim, pelas óbvias razões de custo, fora dotado do essencial, eliminando por completo quaisquer instalações para seres humanos, que não comandariam a nave diretamente. Três unidades, denominadas V.I.N.C.I., Verber Interactive for Navigation Cosmonautic Individual, cumpririam este papel, avaliando e registrando com seus sensores sofisticados, toda a informação que pudessem captar. Era algo novo a ser tentado em termos de navegação espacial que minimizaria os riscos de perdas de vida, devido aos perigos potenciais que ainda rondavam o projeto.

Tais unidades de sensoriamento remoto constituíam em 2067, o ápice da robótica. Utilizados cada vez mais desde 2040, eram a resposta adequada para lidar com novas tecnologias e um grande número de informações, provenientes de componentes cada vez mais sofisticados, difíceis de serem avaliados com rapidez suficientes pelos sentidos humanos.

As unidades VINCI posicionadas no interior da nave comportavam-se como uma tradicional tripulação, mas tal conceito limitava-se somente ao nome. Não necessitavam de ar para respirar e nem precisavam de alimentos. Mas por razões ainda não totalmente compreendidas, eram dotadas de uma aparência externa humana, com todas as particularidades que reforçavam este aspecto.

Possuidoras de autoconsciência, tratavam-se entre si como iguais, respeitando as particularidades das quais haviam sido dotadas, como as patentes militares, ou experiências acumuladas em diversas funções desde que haviam sido ativadas no complexo das fábricas VERBER ROBOT SISTEMS, sediadas no território americano. Desta forma, incorporados às fileiras da força área americana, VINCI 134 e VINCI 238, estavam subordinados a VINCI 087, tecnicamente o comandante da missão.

A “missão” em si consistia em testar um novo “pulsor” composto por quatro pratos que “colapsaria” o espaço à frente da nave através de um bombardeio contínuo de “wimps”. Uma vez aberta a fenda, o protótipo penetraria no túnel onde as condições, num primeiro momento, seriam impróprias para o corpo humano. Tais dificuldades só poderiam ser sobrepujadas após o acúmulo das experiências “práticas” que se iniciariam a partir deste primeiro lançamento.

Em termos prosáicos o efeito desejado da experiência, seria o de “encurtar” a rota entre dois pontos espaciais propostos. Esta inovação exigira uma nova matemática e geometria para poder penetrar-singrar-e-deixar uma dimensão onde os conceitos tradicionais de rota adaptada aos sentidos humanos não mais existiam.

Para que tal “navegação” pudesse ocorrer, dois equipamentos aperfeiçoados em laboratório seriam pela primeira vez empregados no espaço. O primeiro utilizaria particulas exóticas denominadas wimps (Weakly Interacting Massive Particles) que seriam projetadas a partir de um fluxo contínuo dos quatro grandes pulsores, “afundando” o espaço num primeiro momento. Depois, os dois pulsores laterais da nave dariam prosseguimento ao processo, impedindo-o de “fechar-se” tanto em torno como à frente da nave. O segundo equipamento, e mais sensível, constituía-se nos primeiros geradores de antimatéria a serem levados para o espaço. Um deles instalado no cilindro, onde as hastes se cruzavam, supriria a energia necessária para que os equipamentos, constituídos pelos quatro pratos, produzissem os feixes de partículas exóticas que abririam o túnel espacial projetado. O outro, instalado na nave protótipo, supriria todas as necessidades dos propulsores traseiros e da produção de wimps, que seriam arremessados numa onde de choque constante para manter o túnel aberto, assim que os pulsores principais perdessem o raio de ação.

O objetivo inicial de teste era o de atingir o planeta Marte utilizando esta rota alternativa, ao invés da tradicional, elíptica, que acompanhava o movimento de translação dos dois planetas numa demora de mais de seis meses. Satélites em órbita de Marte, apesar do tempo gasto no envio de imagens para a Terra de vinte e dois minutos, registrariam todas as informações do “momentum” do reaparecimento da nave. Esperava-se em teoria que houvesse quase uma simultaniedade do percurso entre os dois planetas.

Tanto os pulsores de wimps como os propulsores de antimatéria eram frutos dos fantásticos avanços obtidos no entendimento da matéria, realizados no século XXI no Grande Colisor de Hádrons do CERN. Essas partículas fugidias, descoberta em 2029 por Gerard Stone, possuiam pouca massa, interagindo sutilmente em termos gravitacionais com outras particulas, constituindo a enigmática matéria escura proposta pela teoria padrão do século anterior. Seu tamanho próximo à dos quarks impediram-na de ser dedectadas por muito tempo. Somente após exaustivos experimentos no CERN e o aprimoramento de instrumentos para identificá-la no espaço, o grande físico havia conseguido finalmente encontrá-la confirmando que permeava todo o espaço como uma grande estrutura básica sobre a qual se assentava a matéria comum. Seu tamanho minúsculo era compensado pela quantidade fantástica pela qual se distribuia pelo cosmo.

Por sua vez, a antimatéria que mal passara de uma abstração matemática nos seus primórdios, tornara-se uma realidade. Podia agora ser obtida em quantidade suficiente para, em contato com o seu oposto, produzir energia numa escala maior do que o primitivo sistema de fusão.

Assim, estes dois marcos da ciência do século XXI tinham sido utilizados para propósitos menos humanísticos. Em menos de uma década, os engenheiros trabalhando em várias agências governamentais, haviam posto em andamento um projeto que poderia atender a logística de uma operação militar em outro planeta do sistema solar. Ou até de uma outra estrela.

Por causa dos tratados, a NASA foi então encarregada de assumir publicamente o projeto, mascarando seus objetivos iniciais com tons mais ao gosto do público. E também com o objetivo de dissimulá-lo perante as agências estrangeiras rivais.

Vendendo a ideia de que, pela primeira vez, o projeto permitiria ao homem concretizar o velho sonho de singrar os vastos mares interestelares burlando a imensidão espacial, podia levá-lo adiante sem se constrangir diante das outras nações, também sedentas de recursos.

2 – LANÇAMENTO PREMATURO.

A Dra. Katlyn Sommers era jovem demais para os padrões da agência, pelo menos no cargo que sempre fora ocupado por homens. Aos trinta e nove anos, tornara-se a primeira mulher a desempenhar o papel de Diretor de Lançamento, após haver prestado uma série de serviços em outros setores da Agência. Depois de dedicados 15 anos se sentia gratificada por ter vencido a barreira que praticamente excluía as mulheres daquele posto. Não por não estarem à altura do que ele exigia, mas sim por mero preconceito. Mas havia também uma outra razão para a sua escolha, esta, bem mais sutil. O Diretor anterior não quisera se sujeitar à pressão dos militares por tanto segredo e acabara renunciando ao cargo. Cientes dos efeitos que um eventual fracasso da missão poderia provocar em suas carreiras, os demais pretendentes gentilmente haviam dispensado o convite para assumirem, deixando a NASA numa situação bastante delicada. A única que aceitara o cargo fora Katlyn, que mesmo sabendo dos riscos, agarrara sem hesitação a chance de exercer um cargo tão importante para a sua própria carreira. Para o Diretor da NASA a escolha atendia a dois interesses. Primeiro que seria uma forma egoísta de se desvencilhar de futuras acusações caso algum fracasso ocorresse. E segundo, que atendia a pressão dos militares para manter a missão como uma mera experiência científica. Uma mulher à frente de tal missão não despertaria, pelo menos no público, a suspeita da NASA estar à frente de um projeto militar. De uma forma ou de outra, em meio a tantos conflitos, Katlyn se sentia satisfeita e segura e sua preocupação agora, ali, no Centro de Controle de Houston, se voltava apenas para que tudo corresse bem nos últimos preparativos para o lançamento da ARES.

O seu assento estava disposto como um trono de um rei ou no caso dela como de uma rainha, de onde derivava tal apelido para todos que ali se sentassem. Ele se destacava dos demais por estar ancorado numa pequena plataforma acima do grande círculo de poltronas que se situavam mais abaixo. Tal posição obedecia mais a questões práticas do que a de uma hierarquia. Não que não pudesse exercer algum poder dentro dos parâmetros de responsabilidade que lhe cabia. A posição na verdade era estratégica e permitia-lhe apenas uma visão geral e mais clara de todos os encarregados dos mais de vinte controles que monitoravam o lançamento.

Telas translúcidas de cada controle projetavam-se ao seu redor, dando-lhe todas as informações necessárias de que precisasse. Coroando estas séries de projeções, acima até mesmo do assento de Katlyn, pairava a imagem holográfica da nave. Por ela era possível se ver de todos os ângulos possíveis, quaisquer detalhes de seus componentes internos ou externos que se fizessem necessários.

Monitorada por uma infinidade de sensores que a circundavam no espaço, os ângulos das imagens se alteravam constantemente. À medida que um diagnóstico se fazia necessário, por parte de um dos controladores, seções eram retiradas e ampliadas, como se um enorme bisturi pudesse fatiar a nave holográfica e revirar cada pedacinho em busca de detalhes. Desta forma tais imagens menores se misturavam e se sobrepunham à imagem principal da nave, inúmeras vezes. Na verdade todo aquele aparato era redundante como era hábito da agência. Há uma década a NASA utilizava um sistema integrado de informações, conhecido pela sigla ATENA, que remetia à célebre e sábia deusa grega, patrona da cidade do mesmo nome. Os engenheiros, objetivando uma maior interação entre máquina e homem, tinham lhe dotado de uma voz feminina suave que se expressava de forma serena e confiante. Sua fala calma tornava o estressante processo de lançamento mais agradável aos ouvidos dos operadores. Ouvir seu monólogo das etapas que iam se sucedendo no cronograma de lançamento era apenas uma concessão dos seus construtores. Sua verdadeira face se concentrava num ritmo mais eficiente e silencioso de execução de milhares de operações por segundo, oriundas de centenas de sensores instalados em todos os dispositivos de terra e de espaço que compreendiam o complexo de lançamento. Algo impossível de ser acompanhado e absorvido rapidamente pelo cérebro humano.

Como outra concessão aos homens, ATENA então desacelerava a enxurrada de informações que percorriam seus processadores à velocidade da luz, numa corrente mais lenta de dados. Estes fluíam para dezena de telas translúcidas a fim de serem captados por olhos e cérebros orgânicos.

Apesar de sua composição etérea, tais telas compunham-se de pequenos campos elétricos que à medida que sofriam a pressão de dedos humanos, ávidos por informações, pulsavam em quadriculados multicoloridos, refletindo-se nas faces de homens e mulheres dispostos à frente de cada um.

Diante daqueles rostos banhados por essa miscelânea de cores, num fluxo sempre mais lento para padrões humanos, a contagem regressiva na parte superior de cada tela indicava T-4. Um código que indicava o estágio avançado do processo de lançamento.

A NASA sempre utilizara um sistema duplo de controle, pois caso houvesse alguma falha na cadeia de dispositivos, cada setor poderia mutuamente se auxiliar, impedindo que ele se rompesse. Para olhos destreinados aquele fluxo de informações que ia e voltava ao tronco principal, procedendo dos mais variados dispositivos terrestres e espaciais de checagens constantes de dezenas de operadores, se apresentava como um verdadeiro caos.

A temperatura de 20 graus centígrados mantida no interior do Centro de Lançamento para obter o maior desempenho possível de todo o equipamento era uma benção. Os efeitos do aquecimento global, apesar de já estar sendo combatido, ainda perdurariam por muitos anos. Via-se a consequência disso no rosto de cada um que retornava ao Centro de Lançamento, suado e desconfortável por causa de um ambiente externo que, mesmo utilizando vestimentas apropriadas para aquela estação do ano, não amenizava a sensação de calor. Aquele ar refrigerado permitia a fuga momentânea desta situação. Mesmo assim, conforme o rigor da lei em vigor, este luxo não poderia perdurar além do necessário. Isto para evitar o fato óbvio de que o calor expulsado daquela sala aumentaria um pouco mais, a já desagradável temperatura externa.

O contato com a nave era incessante e ouvia-se frequentemente a troca de informações e pedidos de instruções entre os tripulantes e os encarregados das dezenas de controles. Tais conversas eram acompanhadas pelas imagens holográficas deste ou daquele controle, conforme determinado detalhe da nave era solicitado. E à medida que o momento crucial se aproximava, o tráfego de imagens se multiplicava de tal modo que era difícil para um leigo entender o que aquelas centenas de imagens embaralhadas significavam. Nada que ATENA não pudesse coordenar de forma a torná-las compreensíveis para os operadores que as haviam solicitado.

- Houston. Aqui é a ARES X-1. V087 solicitando permissão para seguir próxima etapa do lançamento.

- Houston para ARES. Aqui ATENA. Iniciando contagem para acionamento dos pulsores primários. Cinco... Quatro... Três... Dois... Um... Zero...

- Sequenciamento iniciado. Contagem agora em T-3. – Confirmou a inteligência artificial que processava o fluxo constante de informações que recebia das míriades de sensores espalhados por todo o complexo de lançamento.

Àquela altura todos os parâmetros estabelecidos tinham sido examinados e reexaminados para evitar alguma falha. A passagem de T-4 para T-3 indicava que uma das etapas fora vencida e se passava para a seguinte, após a realização das pequenas correções sempre necessárias. Mas em se tratando de obras idealizadas pela mente humana, sempre havia o temor de um fator não levado em conta, e que muitas vezes, poderia representar a diferença entre o sucesso e o fracasso de um empreendimento daquele porte. Aquele detalhe, perdido em meio a tantos outros que não fora lembrado, ou até, esquecido. E assim, acreditando que todos os parâmetros até àquela altura haviam sido atingidos a Dra. Katlyn deu a última palavra confirmando o prosseguimento das operações.

A fase T-3 assim que começou, logo despertou a fascinação de todos os presentes no Centro de Lançamento. As imagens na medida que chegavam, permitiam a visão de fenômenos até então vistos apenas por poucos olhos nos testes de laboratório. Pela primeira vez na história, um grupo seleto de homens e mulheres podia testemunhar um feito gigantesco. Como mariposas atraídas pela luz de uma noite de verão, os olhares estavam presos àquele brilho iridescente que se originava dos pulsores. Em milésimos de segundos aquela plasma amorfo transformou-se em quatro feixes luminosos que se projetaram à frente de toda a estrutura triangular, confundindo-se num único ponto focal. A princípio nada aconteceu. Mas isto não durou muito tempo. Apesar de no espaço não haver a propagação do som, todos se espantaram ao receberam um fraco sinal de áudio semelhante ao de uma locomotiva se aproximando de uma estação. Mas isto foi apenas o prelúdio para o que viria depois. O espaço onde os feixes se focavam começou a girar e o tecido rodopiante começou a se afunilar revelando uma passagem. Os sensores tanto em terra como no interior da nave repentinamente foram inundados por uma avalanche de dados, alguns desconhecidos, provenientes do primeiro buraco artificial no espaço criado pelo homem.

- ARES. Aqui Houston. – disse ATENA, ela mesma sendo exigida ao máximo para absorver a miríade de dados que os sensores despejavam em seus processadores. Cumprindo sua função de monitorá-lo tão rápido quanto podia, seus cálculos eram vertidos numa forma mais prosaica para seus criadores entenderem o que ocorria. - Fenda espacial estabilizindo-se. Preparar-se para ativação dos pulsores laterais em cinco segundos.

- Houston. Aqui ARES. Aguardando final da contagem regressiva para acionar pulsores secundários. - Cumprindo por sua vez a programação inserida em seus neuroprocessadores, as unidades VERBERs dentro da nave prosseguiram com a operação acionando os pulsores laterais da ARES que manteriam a fenda estável à medida que progredissem por ela. - Em cinco... Quatro... Três... Dois... Um... Pulsores ativados.

Finos feixes de partículas energizadas partiram dos pulsores laterais da nave. Como planejado, o fluxo de wimps provenientes da ARES auxiliou na abertura do túnel. Assim que a penetração se efetivasse os pulsores primários seriam desativados e os pulsores secundários continuariam sua tarefa de mantê-lo estável, evitando que as forças gravitacionais de suas paredes esmagassem a nave.

- ARES. – Disse ATENA. – Preparar-se para mudança de fase para T-2, ao sinal da Diretora de Lançamento. Ativando retrofoguetes estruturais para manutenção das coordenadas previamente estabelecidas.

Ao ouvirem a I.A. todos estavam cientes de que o lançamento tinha atigindo um ponto crítico. O rompimento do tecido espacial começaria a exercer sua força gravitacional e todo o esforço dos retrofoguetes instalados com esse propósito, seria necessário para manter a grande jaula espacial na posição correta.

- Sinal de liberação concedido, - completou ATENA. - Ativar motores de empuxo e retrofoguetes de compensação. Seguir contagem regressiva. Cinco... Quatro... Dois... Um... Ativar.

A ARES disparou seus quatros foguetes que lhe forneceriam um impulso constante à medida que atravessasse a fenda. Ao mesmo tempo seis retrofoguetes compensariam o impuxo, até que as travas fossem liberadas e ela deixasse a jaula.

- Houston. Motores retro e de impulso equalizados. – Respondeu V087, que comandava a tripulação de VERBERs. - Recebendo sinais de que as travas dianteiras de segurança continuam ativadas.

As travas na ponta da enorme estrutura triangular onde estava inserido o nariz da nave eram a única barreira que a impedia de ser impulsionada para o interior da fenda que se formara e que se mantinha aberta pelos múltiplos feixes de partículas.

Enquanto a atenção de todos se voltavam para o momento em que a ARES completaria a última fase de lançamento, livrando-se da barreira que a segurava, ouviu-se o pipocar de tiros e gritos. Com as faces transfiguradas, imediatamente os controladores deixaram de se concentrar em seus painéis para localizar o ponto de onde partira o tumulto. A maioria se horrorizou quando viu um dos guardas de segurança sendo empurrado para frente, seguro por um dos braços, por uma figura aparentemente desconhecida que segurava a ponta de uma arma no meio de suas costas. Como aquele estranho conseguira passar pelas portas lacradas e pelos seguranças? As chances de isto acontecer eram quase nulas. Seria um terrorista ou parte de um ataque maior?

A Dra. Katlyn também fora pega de surpresa pelo inesperado acontecimento. Estava de espírito preparado para eventuais falhas no lançamento. Mas não daquele tipo que presenciava. Naquele instante veio-lhe à mente a situação global onde a escassez crescente de recursos originara uma série de movimentos políticos. Alguns deles radicais. Ela sabia que nem todos representavam perigo, mas em meio a uma sociedade segmentada, repleta das mais diversas convicções, alguns extremistas não titubeariam em sacrificar seus membros para atingir seus objetivos nem sempre tão claros. Mas como tinham tido conhecimento do lançamento? A NASA evitara a todo custo uma cobertura ampla da mídia. Para o público era apenas um experimento secundário a ser realizado no espaço.

Logo outros guardas acorreram na direção dos dois com as armas apontadas para o captor.

– Larguem as armas. – disse ele resoluto. - Se atirarem, mato este primeiro. Larguem as armas. – E continuou virando o rosto para todos os lados, enquanto empurrava o refém. – Preciso falar com a Dra. Katlyn. Dra. Katlyn Sommers. Está me ouvindo doutora? Mostre-se.

Era evidente que a situação estava num impasse e que as coisas logo se complicariam. A Dra. Katlyn viu que a melhor maneira de salvar a vida do guarda seria ganhar tempo, até que descobrissem um jeito de desarmar o homem armado. Pensando deste modo, ela fez um gesto para os seguranças para que não tentassem nada até que ele dissesse o que tinha para dizer. Assim, pelo menos, ganharia sua atenção e talvez pudesse libertar o refém. Era um passo arriscado e de certa forma muito corajoso. Naquela situação tensa, por não saber exatamente quais eram suas intenções, qualquer deslize poderia acarretar um fim imprevisto. O homem poderia ser simplesmente um suicida que só poria cabo à vida, após completar o que viera fazer.

Ela fez mais um sinal para que os demais guardas se afastassem, o que o deixou mais confiante sem, no entanto, deixar de usar o refém como escudo.

- Eu sou a Dra. Sommers. Qual a razão desta violência?

O homem virou-se na direção dela, segurando com força o guarda que tentava se esquivar de seu abraço. – Dra. Katlyn? Ah! Como vai? Ainda bem que apareceu.

Ela calmamente levantou os braços e sem muita pressa caminhou na sua direção. – Sim. Já nos conhecemos? O que quer?

- Sei que não vai acreditar em mim, doutora, mas sim, nos conhecemos. Mas este detalhe é irrelevante. É preciso que me escute atentamente. Você tem que lançar a ARES agora. A partida dela tem que se dar numa janela bem pequena. Para que nada passe do outro lado. Nosso mundo corre perigo se o túnel ficar muito tempo aberto.

Todos os que conseguiam ouvi-lo estavam com a respiração suspensa, enquanto acompanhavam o tenso diálogo, sem entender muito bem a quê ele se referia. Qualquer movimento brusco poderia fazer com que os guardas disparassem, matando não só o companheiro, como também a doutora.

- Desculpe-me? – disse ela, calmamente. – Não entendi? O que virá do outro lado? Pode me dar maiores detalhes?

- Doutora, a senhora tem que acelerar este lançamento. Eu fui... Eu, eu tomei a decisão de vir... De um lugar... Quero dizer isto aqui ainda não aconteceu... Eu...

- Sim?

- Se não fizer o lançamento logo, o mundo como o conhece, corre o perigo de deixar de existir.

- Mas como posso fazer isso, sem que me dê alguma prova do que está falando?

- Não. Não. Eu tenho pouco tempo... É o que virá do outro lado. Precisa impedir isso?

- Do outro extremo do túnel? Ali só há o planeta Marte. Mais nada!

- Não é tão simples assim. Existem coisas que não conhecemos. Formas de vida que vão se aproveitar do túnel. Acredite no que estou dizendo. Por favor, lance a ARES. A energia necessária está sendo canalizada através do tempo. Aproveite antes que ela cesse. Tem tudo que precisa para lançá-la sem que nada aconteça.

- Olhe? Está tudo bem. Deixe a arma e liberte o guarda. Prometo que não farei nada até ouvir o que tem para me dizer. Mas primeiro solte o guarda.

- Não posso doutora. É a minha única garantia de que me ouvirá.

- Ok então. Façamos um acordo. Eu vou até ai e troco de lugar com ele. Aceita?

- Não doutora. A senhora não está entendendo. Não sou um terrorista. Não quero matar ninguém. Só lhe peço que lance a ARES agora! Agora! – O homem parecia desesperado pela ineficiência de seu ato. Berrou e disparou para o alto várias vêzes, causando pânico geral. – Eu disse agora!

Katlyn começou a imaginar se tinha tomado a decisão correta. Por instinto se abaixara durante os disparos. Assim que os estampidos cessaram, ela procurou se recompor do susto e engoliu seco. - Não posso fazer isso sem seguir o cronograma. Os feixes precisam se equalizar. E os motores precisam atingir o grau certo de aceleração. Se não fizermos isso, o lançamento poder ser compremetido.

- Sinto muito, doutora. Vejo que a senhora não tem a menor ideia do que acontecerá. Terei que fazer isso sozinho.

- Seja o que for, não faça nenhuma bobagem.

Mas o homem estava decidido a fazer o que viera a fazer e não se deixou levar pela estratégia da doutora. Assim, gritou mais uma vez.

- Sei que abriram uma fenda no espaço. Mostre-me o controle que faz isso!

Katlyn sabia que estava pisando em terreno perigoso. – Eu... Eu não sei do que está falando. Se me disser o que pretende, talvez possa ajudá-lo sem que ninguém saia ferido.

Ele esboçou um sorriso e depois gritou para ela. – Não insulte minha inteligência. Você não faz ideia de metade do que sei. Mostre-me logo este controle. - E apertou ainda mais a garganta do refém.

Katlyn fez outro sinal de consentimento. Ela precisava ganhar tempo e descobrir um jeito de desarmar o homem.

Um dos técnicos apontou a direção para onde o captor queria ir. Ele começou febrilmente a passar pela fileira de telas e a cada uma apontava a arma para o operador que se afastava com as mãos para cima.

- E este. Parece ser este. – disse para si mesmo.

Assim que se viu diante do que procurava apontou a arma para a cabeça do técnico.

- Saia! Rápido.

Ainda segurando o guarda, olhou para a tela translúcida que monitoravam todo o processo da produção de partículas, fluxo de antimatéria e toda particularidade que envolvia o delicado manuseio dos quatro pratos primários. Joshua não era um leigo e bastou uma rápida olhada para entender o que aqueles símbolos significavam.

- Creio que seja mesmo este que controla a abertura do túnel. Se meus cálculos estão corretos vou alimentar a tela com uma pequena carga concentrada de luz, obrigando a seguir meu comando... – disse a si mesmo.

Katlyn aproveitou aquele instante em que o invasor se concentrava mais no que pretendia fazer, para ordenar à segurança que agarrasse o homem assim que ele se distraísse mais um pouco.

Mas antes que os seguranças pudessem se aproximar ele retirou da cintura o laser portátil. Para poder apontá-lo na tela ele arremessou o guarda cativo o mais longe que podia, imaginando que poucos segundos seriam suficientes para obter o que desejava do controle. Foi a deixa para os guardas. E foi também quando as coisas começaram a se atropelar.

Quando ele os viu correndo na sua direção, chegou a esboçar uma reação elevando o braço que segurava a arma. Talvez fosse só uma ameaça. Mas um dos seguranças precipitou-se e atirou, seguido pelos demais. Antes não o tivessem feito. Ao receber as balas, os impactos fizeram o corpo de Joshua inclinar-se para um dos lados. A torsão refletiu-se na mão que segurava o laser portátil disparando-o na direção da tela translúcida dos pulsores primários. Horrorizados os técnicos nada puderam fazer, enquanto a tela translúcida desaparecia numa míriade de pequenos pontos. Mesmo o sistema duplo sob a tutela de ATENA não poderia em tão pouco tempo recuperar o controle sobre os feixes, que necessitavam de uma calibragem constante. Mesmo que ela assumisse a avaria poderia se expandir exponencialmente a partir daqueles poucos segundos sem controle algum.

E o que aconteceu em seguida não poderia ser de outra maneira. Um sinal intermitente de alerta, grave, se fez ouvir acompanhado pelas palavras de ATENA. – Alerta! Alerta! Pulsores primários sem controle de pulso. Repito. Sem controle de pulso.

- Status da situação ATENA. Pode desligá-los? – perguntou uma serena Katlyn.

Mas a serenidade deu lugar à surpresa e depois a angustia quando recebeu uma resposta que não pretendia ouvir.

- Negativo. Estação de recepção e transmissão do gerador de antimatéria inutilizado por pulso eletromagnético. Sensores secundários ainda sob comando. Estou tentando uma rota alternativa de sinais para desativá-lo, mas a estação não responde.

- Continue tentando ATENA. Faça o que for necessário para restabelecer o controle.

Depois da ordem, a Dra. Katlyn completou o restante do caminho que o separava do homem caído. Agachou-se ao lado dele sem se preocupar muito com sua própria segurança e lamentando a ordem que dera. Procurou apoiá-lo em seu cólo, sem se pertubar com a poça de sangue que se formara abaixo dele. Os guardas, mais cautelosos, se aproximaram com as armas em punho e só depois de constatar sua imobilidade, chutaram o seu revólver para longe.

– Chamem uma ambulância. – ela gritou.

O estranho estava bastante ferido e respirava com dificuldade. Ela encostou seu ouvido em seus lábios tremulantes para ouvi-lo melhor – Por que fez isto? Qual a razão de tudo isto? Você está sozinho ou representa algum movimento?

Com sangue saindo pelo canto dos lábios ele balbuciou suas últimas palavras. – O túnel... O túnel... Já... Já fechou? A nave... Conseguiu pa-passar?

Ela apenas o olhou sem entender o real significado das frases balbuciantes.

- Sim... Mas não sei se foi do jeito como queria...

Ele puxou o suéter de Sommers, como um apoio para aproximar-se mais dela. - Espero... Espero ter impedido...

- Impedido o quê?

- Não o lançamento. Ele... Ele tinha que acontecer. Duas coisas... Muito complicado para explicar. A coisa... Espero ter impedido... Foi a... A única saída... Que imaginei. Devia ter prestado... Mais atenção ao que falou... Quando nos encontramos...

- Já nos conhecemos mesmo? Quando...?

- É... É complicado. Para você... Ainda não aconteceu... Eu... Ah...

Ela inclinou-se, colocando o ouvido próximo de seus lábios, numa desesperada tentativa de ouvir mais alguma coisa. Ele se esforçou, mas não conseguiu emitir mais qualquer som a não ser exalar o último suspiro. O homem, como uma máquina que subitamente se vê privada de energia estancou, com os olhos fixos em algum ponto. Ela os fechou e gentilmente abaixou sua cabeça. Depois se levantou devagar, com o semblante perplexo com o que ouvira. Tudo o que ele dissera não fazia o menor sentido.

- O que foi que ele disse? – perguntou um dos guardas.

- Nada. Nada que eu pudesse entender. – respondeu. Mas ela tinha agora outros problemas mais urgentes. Não poderia fazer mais nada pelo homem estendido no chão. Teria que abortar o lançamento ou fazer o possível para que se concretizasse. Havia muita coisa em jogo. Mas as palavras que dissera, não paravam de martelar sua mente. Quem era afinal este homem que nunca conhecera e que dizia ter vindo por ela?

- ATENA, qual a situação? Encontrou um meio de enviar sinais para interromper o fluxo de partículas dos pulsores primários?

Numa voz modulada sem sinal de qualquer emoção, a inteligência respondeu.

- Negativo doutora. A estação está desabilitada. O fluxo de wimps está em progressão exponecial de newtons. O campo de Higgs está em fase de transição... A estrutura começa a sofrer ação gravitacional. Recomendo a ARES desligar os pulsores secundários e acionar retrofoguetes para compensar...

- Implemente ATENA. – disse a doutora, pensando numa forma de abortar o lançamento. – Como estão as travas?

- Pretendente liberá-las, doutora? – Perguntou ATENA.

- Não. Ainda não. Só ser for em último caso. Como elas estão?

- Estão estáveis. Mas está começando a sofrer efeitos do campo gravitacional da fenda.

A doutora sabia exatamente o que isso significava. Quando as telas foram destruídas, o fluxo fugira ao cuidadoso planejamento de liberá-lo de forma contínua e gradativa. Sem poder desligar os pratos, até que os sistemas automáticos de segurança fossem ativados, o excesso de partículas dobrava mais e mais o espaço a cada instante, e a única coisa que ainda segurava a nave eram as travas de segurança. E até quando poderia contar com elas? Por precaução, e isto talvez fosse até uma falha, elas só poderiam ser desativadas do Centro de Lançamento. Era o seu último trunfo para impedir qualquer dano a ARES.

- Doutora. Meus cálculos indicam que havera uma sobrecarga dos motores da nave, antes dos dispositivos de segurança serem acionados.

- Pode estimar um prazo, ATENA?

Katlyn estava com mais um problema. No caso do funil espacial continuar atraindo todo o complexo da doca, se as travas não fossem ejetadas poderia ocorrer uma sobrecarga do gerador de antimatéria da nave. Era quase certo que o campo de contenção eletromagnético não aguentaria por muito tempo esta exigência inesperada. Não fora projetado para isso. E se o campo caísse...

- Sim doutora. O campo de contenção da ARES entrará em colapso em exatos dois minutos e vinte e três segundos e dois décimos de segundo.

- Computar quanto tempo para o sistema de segurança dos pulsores primários entrar em ação automática.

- Quatro minutos, doze segundos e quinze décimos de segundos. Tempo insuficiente para impedir o colapso do gerador da ARES.

Katlyn deixou-se cair no assento, mortificada pelas informações de ATENA. Uma catástrofe começava a tomar forma. Ela tinha que tomar uma decisão rapidamente. Lentamente olhou para todo o Centro e para o corpo do homem morto que estava sendo retirado, sentindo-se totalmente impotente. Anos de planejamento não podiam terminar daquela forma. O estrago que aquele homem causara. Como conseguira passar por toda a segurança? Como sabia do projeto?

Enquanto os técnicos ainda tentavam encontrar um meio de desativar os quatros grandes pratos através das estações secundárias espalhadas pela própria estrutura e mesmo por satélites próximos, Paul Trestky que monitorava o comportamento da fenda espacial, foi o primeiro a perceber algo novo, surgindo em sua tela translúcida. Primeiro com uma débil ondulação do espaço. Depois como se ele se rompesse, deixando atravessar fótons energizados.

– Doutora. Está se formando uma irrupção de energia dentro do túnel.

Todos se viraram para as imagens suspensas observando estupefatos um ponto de luz tornar-se cada vez mais intenso dentro do túnel.

- Trestky, defina a estrutura. – disse a doutora Katlyn para seu auxiliar. – De onde está vindo? É um efeito colateral de excesso de partículas?

- Não estou bem certo, doutora. – disse ele. – Pode ser um efeito colateral. O excesso de partículas pode estar vazando do outro extremo do túnel. Criando uma segunda abertura não computada. Seja o que for, parece ter existência própria.

- ATENA. O que é isso? Pode descrever?

- Fonte primária de energia. Ruptura espaço-temporal. Origem desconhecida, doutora.

Não havia mais o que esperar. Talvez o estranho estivesse certo. – ATENA, mande uma mensagem para a ARES para os VERBERs ativarem as cápsulas de fuga e se aprontarem para sair. Se não conseguirmos interromper o fluxo agora, pelas vias secundárias o motor deles explodira, antes que o sistema principal de segurança entre em ação.

- ARES, aqui ATENA. Abortar fase T-1. Deixar motores em retropolpusão máxima no automático. Informar Status do ATM. Desligar pulsores secundários. Dirigir-se para cápsulas de fuga.

- Houston. Aqui é VINCI 138, no controle do ATM. Campo de contenção começando a sobrecarregar. Peço confirmar saída.

- ARES, condição vermelha para pulsores secundários. Repito. Condição vermelha. Deixar no automático motores em retrocarga máxima. Abandonar nave. – disse a Doutora Katlyn atropelando ATENA.

Todas as naves que patrulhavam próximas dos limites estabelecidos sob o pretexto de uma zona de segurança, para evitar um possível desastre, que agora corria o risco de acontecer, foram autorizadas a afastar qualquer veículo estranho num raio maior do que havia sido originalmente planejado. Apesar de procurar manter o lançamento como um experimento científico confidencial, a Agência não pudera evitar as naves espiãs. Era hábito entre as nações da Terra a prática da espionagem de cada experimento que cada uma fazia, tanto em terra como no espaço, por meio de aparelhagem de longo alcance. Para evitar isso, as naves não só da NASA, como das outras agências procuravam, cada qual, bloquear com campos eletromagnéticos quaisquer sondagens invasoras, mas as aparelhagens cada vez mais sofisticadas que dispunha permitiam ultrapassar tais barreiras. Desta forma, mesmo fora da zona de restrição, conseguiam captar boa parte das informações sigilosas. Mesmo sabendo disso a NASA naquele momento não tinha alternativa a não ser a de ampliar o perímetro para evitar incidentes internacionais, caso uma das naves espiãs fosse atingida.

Há tempos as agências espaciais competiam para terem a primazia deste novo sistema de propulsão de antimatéria que revolucionaria as viagens espaciais. E por mais que se procurasse manter os projetos em segredos um dos outros, o mundo era pequeno demais para que um lado não acompanhasse o sucesso e os eventuais fracassos do outro. E naquele dia não seria diferente.

Os três tripulantes artificiais a bordo estavam cientes, pela sua programação sofisticada de que tinham papel de peso na empreitada inusitada. Seus cérebros, um misto de componentes biológicos e nanosensores eletrônicos conseguiam apreender as sensações externas, com a mesma sutileza das mentes de seus criadores. Não agiam como meras peças mecânicas, mas como seres pensantes, dotados de raciocínio suficiente para tomarem decisões por si próprios. Tais entidades possuíam uma capacidade tão grande de inteligência que muitos alegavam possuirem algo vagamente parecido ao que o homem classificaria como alma. Por isso eram instrumentos valiosos que não podiam ser desperdiçados.

ATENA diante do quadro cada vez mais grave e dotada de uma capacidade de processamento fenomenal, antecipou-se ao quadro de desastre que começava a delinear-se. Tomando para si a iniciativa, e passando pelos controladores em terra, contatou o protótipo.

- ARES, aqui é ATENA. Os monitores indicam sobrecarga crescente do gerador da nave. Atração gravitacional aumentando. Travas ainda intactas. Simulações indicam que o colapso do campo ocorrerá em um minuto e vinte e três segundos. Deixar nave imediatamente. Repito: deixar nave imediatamente.

ATENA, objetivando encontrar uma solução que salvasse a nave antes do colapso do campo de contenção deu menos atenção à comunicação verbal e passou a se concentrar à sua maneira calculando sem parar todas as variáveis possíveis. Sem se preocupar com isso os técnicos só podiam ver o desempenho da I.A. através das equações infindáveis que chegavam às suas telas, impossíveis de serem assimiladas rapidamente pelo cérebro humano.

- ATENA. – perguntou a doutora Sommers. – Consegue receber mais informações do interior do túnel quanto à anomalia?

- Dados insuficientes para uma clara identificação doutora. Há muita interferência provocada pela irradiação. A fonte de irrupção parece estar sofrendo flutuações.

A Dra. Katlyn tinha agora muitos problemas para enfrentar e precisava tomar uma decisão crucial. Pensara em abortar o lançamento. Se o fizesse, corria o risco de ser acusada de ter assumido um cargo que não estava à altura de sua experiência. Mas nem isso a preocupava mais. Teria que se decidir pelo oposto já que em pouco tempo não haveria uma nave para lançar. Além dos pratos côncavos que regurgitavam descontrolademente sua carga de wimps, dobrando cada vez mais o espaço à frente da ARES, o protótipo corria o risco de explodir destruindo os preciosos VERBERs a bordo. Juntava-se a isso uma anomalia que se materializara dentro da fenda aberta. Era sobre isso que o estranho viera alertá-la? A tal coisa?

Em condições normais de lançamento o feixe seria mantido com carga suficiente para estabilizar a abertura do túnel. Na verdade não era exatamente o impulso dos motores de antimatéria que empurrariam a nave para dentro da fenda, mesmo que atingisse 100 % de capacidade, mas sim a própria relatividade do espaço. Vista de outra perspectiva a ARES estava pendurada sobre um enorme buraco, segura apenas pelas travas. O perigo residia no fato de que o gerador de antimatéria estaria trabalhando numa capacidade além da projetada para manter-se longe dele. Isto acabaria levando a uma ruptura do campo de contenção eletromagnético. A energia gerada destinava-se principalmente a manter os pulsores laterais denominados secundários, trabalhando continuamente para não permitir o “entupimento” da fenda, bem como suprir os motores para eventuais acelerações e manobras ocasionais, como ocorria agora.

A ARES era a solução para uma série de problemas que aflingiam a logística dos militares para suas “bases de experimentos científicos” em Marte e na Lua. Diferentemente das partidas efetuadas em terra, onde se precisava de uma velocidade de 11.201 m/s, a força de impulso para escapar da gravidade terrestre no espaço era menor. Assim ao longo dos anos fora criado um serviço que levava homens e mulheres até uma faixa de 100.000 km da superfície terrestre. Neste ponto efetuava-se o desembarque numa estação espacial trocando o transporte, que ainda à moda antiga, utilizava propelentes químicos. Na etapa seguinte do percurso utilizava-se engenhos dotados de motores atômicos, substituindo o espaço dos tanques pelo de carga para o envio de materiais tanto para a Lua como para Marte. Mesmo assim, para este último corpo, a viagem, demorava em média seis meses.

O emprego de um novo motor de antimatéria, superior aos atômicos, que deslizasse por um túnel espacial, reduziria ainda mais o tempo, mas tinha o inconveniente, caso falhasse o campo de contenção, de gerar uma explosão de grandes proporções, o que justificara o isolamento preventivo em torno da área de lançamento. Mesmo os iônicos, apesar de seguros, perdiam em aceleração e demoravam em atingir eficiência máxima em curto tempo. Por ser um motor experimental, seu custo não fora baixo, mas se revelasse viável, baratearia ainda mais as viagens até estes dois corpos celestes, permitindo pela primeira vez, ao homem, entrelinhas, os militares, viajar não só pelo sistema solar com extrema rapidez como também para outras estrelas.

- Vinte e cinco segundos para queda do campo. – Continuou ATENA, informando a todos os operadores do Centro que o desastre era eminente.

À medida que os segundos finais que antecediam a explosão se sucediam, todos os VERBERs da série V.I.N.C.I. começaram a se acomodar nas cápsulas. Seus sistemas de propulsão independente lhes dariam impulso suficiente para afastaram-se da atração gravitacional da fenda e da explosão que se desenhava.

A cada segundo as garras da fenda espacial faziam a nave vibrar na sua guerra contra os retropulsores, mas era uma batalha perdida. Só as travas, na verdade impediam-na de ser sugada pelo buraco aberto.

- Quinze segundos para colapso do campo. – Todos ouviram atônitos a voz impessoal de ATENA, lembrando-os de que uma tragédia estava a caminho, sem que pudessem fazer muita coisa para impedí-la.

A Dr. Katlyn se precavera contra tudo, menos com a destruição de um dos principais controles, causada por um homem ensandecido. Em poucos segundos o planejamento e os recursos de anos se acabariam por completo numa explosão colossal. O campo de contenção de antimatéria atingiria o ponto crítico e nada mais poderia ser feito. Para evitar isso a única coisa sensata a fazer seria liberar as travas. Katlyn lembrou-se das palavras do homem que morrera. Apesar de ATENA não ter conseguido identificar o que havia dentro do túnel, o homem dera sua vida para alertá-la. Talvez fosse essa a melhor solução. Lançar a ARES e fechar o túnel o quanto antes. E não teve dúvidas. Assumiria o risco.

– ATENA. Liberar travas. – disse ela, com um nó na gargante. Esperava ter tomado desta vez a decisão certa. Em segundos pequenos triângulos foram ejetados para longe do anel que bloqueava a parte dianteira da nave.

Os VINCI que se preparavam para escapulir foram pegos de surpresa pela inesperada manobra. Eles sentiram o movimento da nave sem saber que fora provocado pela ejeção súbita das travas. Por disporem de iniciativa estavam cientes de que seria arriscado agora efetuar qualquer manobra de ejeção de suas cápsulas de fuga.

V087 conseguiu ver da pequena janela da cápsula em que se acomodara, a razão do movimento. Alguns dos triângulos que compunham as travas passaram girando rentes à sua janela. Isto só podia significar que a passagem estava livre para a ARES. A razão da mudança de planos lhe escapava totalmente. Mas dotado de mais experiência que seus comandados deduziu com lógica irrefutável que seria a única decisão correta a ser tomada para impedir a sobrecarga do gerador de antimatéria.

Ele sentiu que a nave continuava a trepidar indicando que o perigo ainda não havia sido afastado. Tal efeito era provocado pela ação dos motores de antimatéria em retropulsão. Se continuasse assim, a liberação da nave não faria a menor diferença. V087 sabia que tinha que ser rápido para evitar o desastre. Deixou a cápsula e correu para a ponte de comando. Graças à agilidade de que eram dotados desligou os retromotores. O efeito foi imediato. Sem mais nada que a segurasse, a nave foi sendo submetida a uma aceleração crescente de vários newtons. Neste ritmo seu corpo logo seria afundando no assento, dificultando os movimentos. Antes que ficasse totalmente imobilizado, juntou o restante de suas forças para reativar os pulsores secundários. Se isto não fosse feito a nave corria o risco de ser esmagada pelo estreitamento das paredes do túnel, à medida que se afastava da emissão de partículas wimps dos pulsores primários.

As suas ações feitas com extrema eficiência e rapidez puseram um fim à sobrecarga que o gerador estava sendo submetido. V087 viu satisfeito o monitor do gerador passar da condição vermelha para parâmetros mais seguros de cor. Ele conseguira evitar o colapso do campo quando faltavam apenas três segundos para completar-se o prazo estipulado por ATENA.

O comandante da nave, sem poder se comunicar com o Centro de Lançamento e pouco antes de ser desativado pela forte aceleração, ainda conseguiu registrar visualmente algo que talvez nunca chegasse a reportar a seus criadores. A ARES passou ao lado de uma gigantesca formação energética que começava a se dissipar perto da abertura. Talvez a intensa gravidade do interior do tunel já começasse a produzir seus efeitos relativísticos levando-o a deduzir que fora dela os sistemas de segurança já há muito tinham obliterando a fenda. Para ele, no entanto, o túnel continuava aberto. A curiosidade o fez utilizar as últimas energias que dispunha na focalização da formação energética com um dispositivo de leitura de amplo espectro. Mesmo processando informações com toda lógica, ficou surpreso ao visualizar no interior daquela enorme massa, uma forma que fugia completamente a qualquer parâmetro terrestre, deixando a fenda.

Para um ser humano, a submissão a uma força gravitacional tão brutal teria destruído seus órgãos vitais, mas para aqueles seres construidos com materiais resistentes não foi fatal. Porém, foi o suficiente para pô-los fora de ação. V087 foi repentinamente desativado, cessando todo e qualquer registro. Em segundos a nave deixou o espaço próximo a Terra rumo ao que deveria ser o seu destino: o planeta vermelho.

Fora do túnel, no horário padrão da Terra, o sistema de segurança dos pulsores entraram em ação no tempo previsto por ATENA, desligando-os. Por alguns instantes a fenda revolteou e abruptamente fechou-se. O perigo havia sido afastado.

Atônitos, com as informações que chegavam, os operadores não podiam precisar o que estava acontecendo. Mas o pior fora evitado. A ARES lançara-se sobre a fenda, evitando a sobrecarga do gerador de antimatéria.

Como que recuperada da impotência, Katlyn procurou pessoalmente contatar a nave para saber se sua decisão a salvara do desastre iminente.

- Houston, para ARES. Aqui Katlyn. Informar condições da nave e destino estabelecido.

Por alguns instantes ouviu-se apenas estática, o que já era esperado. Mas o silêncio prolongou-se além do que deveria.

- Houston, para ARES. Responda. Responda ARES.

Sobre Marte, as várias sondas que a rodeavam, foram acionadas para acompanhar o reaparecimento do protótipo. Mas assim que a primeira não acusou o seu reaparecimento o controle em Terra começou a se dar conta de que alguma coisa saíra errada. Não havia vítimas a lamentar. Nenhuma morte, mas os equipamentos eram caros e não estavam cobertos por qualquer tipo de seguro. E os militares ficariam furiosos.

Era visivel a preocupação de todos, que se voltavam na direção da Dra. Katlyn em busca de respostas, que lhes devolvia com a mesma expressão de indagação. Depois baixaram seus olhares, buscando em suas telas tranlúcidas, qualquer informação que pudesse esclarecer para onde fora a nave ou o que poderia estar acontecendo no buraco-de-minhoca.

A Dra. Katlyn apenas suspirou. Era cedo demais para se admitir qualquer coisa.

- ATENA?

- A suave voz feminina, porém impessoal respondeu de forma habitual a qualquer informação que lhe fosse requisitada.

- Você sabe o que aconteceu? Tem alguma informação do que foi avistado dentro do túnel? Consegue detectar a ARES?

Fêz-se um silêncio, mais do que o habitual em se tratando de uma I.A. como ATENA.

- Dados insuficientes.

Nem a doutora Sommers acreditou no que ouviu. – Dados insuficientes? Não pode me dar parâmetros sobre a ARES?

- Lançamento efetuado.

- Como os dados são insuficientes? E onde, diabos, está a ARES?

Novamente a demora. A doutora gostaria de maldizer aquele “insuficiente” despido de qualquer emoção, mais sabia que isto não ajudaria em nada. Teria que adotar uma abordagem mais lógica.

- ATENA. Ah... Por favor... Procure o registro dos últimos momentos antes da queda de força. Veja se algum dos sensores conseguiu registrar alguma imagem do interior do túnel. Quero também uma análise da irrupção de energia no extremo oposto dos pulsores.

- Perfeitamente, doutora Sommers.

-Em milésimos de segundo, uma projeção holográfica surgiu acima de todos, na sala de controle, mostrando a nave de diversos ângulos próximos às hastes. Abaixo, a passagem do tempo, até que com a queda de energia, as imagens de cada sensor tremeluziram e desapareceram.

- ATENA, volte e congele em T-1.8. Depois avance e retroceda quadro a quadro cada imagem.

- Perfeitamente.

A imagem fraca, devido à perda de energia, ainda era visível em alguns detalhes. Mas logo, numa das imagens desfocadas, via-se um borrão inexplicável no interior da fenda.

- ATENA, consegue ampliar imagem?

- Perfeitamente, doutora.

A imagem que surgiu acima dela compunha-se de uma série de pixels. Tanto diminuindo a resolução como a ampliando, do jeito como estava agora, impossibilitava qualquer identificação. Eram apenas borrões. Talvez fosse apenas um efeito ainda desconhecido que se produzira dentro do túnel ou algo mais que no momento não havia como classificar. Nem havia certeza se era sólido ou apenas uma composição de gases.

- Mude para os pulsores wimps primários. Quero detalhes do seu comportamento.

- Perfeitamente, doutora.

Ele viu o brilho súbito surgir sobre os pratos. Uma forte irrupção de energia causada pela destruição do controle.

- Pode me passar o espectro dos pulsores?

Novamente a demora. – ATENA?

- Qual o problema ATENA?

- Dados insuficientes.

Ela arrumou o cabelo sobre as orelhas, procurando prendê-los. E repetiu o gesto seguidamente. Era a maneira que encontrava de responder a uma inquietude que por vezes invadia seu espírito. Acrescentava-se agora a essa cadeia de eventos inesperados o procedimento titubeante de uma inteligência artificial sofisticada como a de ATENA. Estariam as duas coisas conectadas? Teria ela sido afetada indiretamente pela destruição da tela de controle? Desligá-la e fazer um diagnóstico em sua programação para descobrir onde ocorrera o dano, equivalia a matar alguém lentamente e depois lhe devolver a vida. Esse era o problema com as I.A. criadas pelo homem. O nível cada vez maior de complexidade que atingiam tornava-as tão humanas que se tornava dificil diferenciar uma da outra. Mas se ela continuasse a proceder desta forma, não haveria outro jeito de repará-la. Era um procedimento que considerava invasivo e grosseiro demais, mas não havia outra opção. E o único em que podia confiar para encontrar o defeito e repará-lo era Ian. Possivelmente um dia, este auxiliar em quem depositava grande confiança e que possuia grande capacidade, estaria sentado no mesmo lugar onde ela estava agora.

Sem hesitar pediu-lhe que encontrasse uma forma de entrar no sofisticado programa de ATENA do modo mais discreto possível, sem afetar sua capacidade cognitiva. Ela tinha pressa em descobrir o que acontecera com a ARES e principalmente onde fora parar. Só um mecanismo bastante poderoso como o processador da I.A. poderia ajuntar milhares de informações disponíveis num quadro coerente que fizesse sentido.

Mas suas preocupações não se restrigiam ao destino da ARES. Precisava abrir uma investigação sobre a pessoa que entrara atirando no Centro de Lançamento. A ambulância, apesar da presteza dos para-médicos, nada pudera fazer, pois encontrara um cadáver. Quantas às causas, como conseguira entrar, apesar da segurança, poderia ser entregue à investigação da polícia local. No entanto, como toda a operação estava envolta em segredo, o melhor seria entregar o caso ao FBI, que estaria mais bem aparelhado para o caso. Sem contar a pressão dos militares por respostas.

As palavras do homem que morrera continuavam a martelar sua mente. Katlyn sempre se guiara pela lógica e estava disposta a procurar um sentido naquelas frases aparentemente desconexas. Ainda mais que ele insistira que já a conhecia. De que forma, se nunca haviam sido apresentados? Poderia ter sido por referências ou uma investigação particular de alguma organização? Talvez a invasão do Centro, o estranho comportamento de ATENA, tudo fizesse parte de uma coisa só. Mas como faria para montar aquele quebra-cabeça que se apresentava?

***

Após duas horas de trabalho extenuante, quebrando uma série de protocolos, Ian lhe trouxe os resultados. Ele e sua pequena equipe nada tinham encontrado de errado nos sistemas de processamento. Sua conclusão era de que os sensores incapacitados pelo flash que irrompera sobre os wimps, após o dano causado à tela de controle, tinham enviado informações contraditorias a ATENA, bloqueando todo o encadeamento lógico de processamento. Mas se quisessem penetrar mais ainda no âmago daquela poderosa inteligência, para tentar descobrir alguma informação nova, teriam de desligá-la, o que não seria fácil. Por enquanto era correto presumir que a destruição do painel, o flash de energia nos pratos e o desaparecimento da nave, nada mais eram do que uma cadeia normal de eventos desastrosos.

***

Katlyn naquele meio tempo, já se reportara ao Presidente que por sua vez, informara ao Secretário da Defesa, o fracasso da experiência. Por pressão dos militares, que não podiam publicamente manifestar-se devido aos tratados internacionais, estabeleceu-se a formação de uma comissão que elaboraria um relatório pormenorizado das falhas e de responsabilidades. E foi entregue ao FBI o trabalho investigativo referente ao homem que invadira o Centro de Lançamento.

Em menos de doze horas, para surpresa da própria Katlyn, ela foi indicada para presidir a comissão encarregada do relatório. O fato de ter evitado uma explosão e de também ter acompanhado todo os estágios finais da construção da ARES, havia lhe dado a qualificação necessária para apurar as causas do desaparecimento da nave. E a maneira como se comportara impedindo uma tragédia que complicaria a imagem do país e as relaçóes internacionais reforçara essa decisão. Apesar de nos bastidores os militares estarem insastifeitos com o resultado inexpressivo de um projeto, onde depositavam muitas esperanças, foram persuadidos por políticos experientes a aceitá-la, para manter a aparência de um projeto civil.

A Doutora Sommers começou então a reunir um grupo de cientistas e especialistas para apurar as causas do desaparecimento da nave, sem se afastar da sua intuição que lhe dizia que existiam fatores que transcediam a pura casualidade. Ciente de suas responsabilidades, só os compartilharia se conseguisse levantar fatos que os corroborassem.

Antes de começar a presidir uma série de reuniões, chamou Ian ao seu escritório para lhe pedir um favor especial. Ele era a pessoa em quem mais confiava para obter certas informações da I.A. chamada ATENA.

Quando um grupo de pessoas deixou o escritório de Katlyn livre por alguns minutos ele entrou e postou-se à frente de sua mesa.

- Desculpe-me por não lhe dar toda a atenção que merece, mas sei que é inteligente o suficiente para entender que disponho de pouco tempo.

Ian apenas esboçou um ligeiro sorriso, agradecendo por não estar no lugar dela. Não por razões egoístas, mas por conhecê-la também o suficiente para saber que o que ocorrera não era culpa daquela mulher fabulosa. E o que pudesse fazer para ajudá-la e aliviar sua pesada carga, ele faria.

Procurando falar o mais baixo possível, como se estivesse sendo vigiada, resumiu o que desejava dele. - Assim que desativar ATENA, você tem condições de saber se a escassez de dados do lançamento foi derivado de falhas casuais ou se trata de alguma interferência deliberada?

- Hum... É cedo para dizer. – disse ele, apoiando-se em sua mesa. - Precisarei no mínimo de vinte e quatro horas para desligá-la e fazer um diagnóstico completo. Precisarei também de uma permissão especial para isso, como sabe.

- Vou conseguir a permissão Ian. Quero explorar todas as possibilidades.

- Assim que conseguir me avise. Mais alguma coisa?

- Não. Sei que não será uma tarefa fácil. Em duas horas lhe concedo a permissão.

Ela o viu se afastar, entregando-se às próprias reflexões. Era assim que a gostava de agir, resolvendo uma série de problemas por vez. Com perseverança todos os fatos desconhecidos seriam deslindados e a partir daí tomaria uma decisão do que constaria no relatório. Quanto ao estranho que morrera no Centro de Lançamento, ela esperava que o FBI pudesse esclarecer quem era ele e os motivos daquele ato que contrariava o bom senso. Por cautela, omitira o que ele dissera a seu próprio respeito e a vaga referência sobre alguma coisa dentro do túnel. Mas pretendia descobrir o que significavam. Poderia ser apenas simples intuição feminina, mas algo lhe dizia que havia muito mais envolvendo a nave desaparecida. Mais do que aparentava.

3 – PRÓXIMOS DA TERRA?

A paisagem que se descortinava pelas amplas janelas da nave protótipo era familiar a qualquer ser humano, desde que o homem começara a fotografá-la a bordo de suas primitivas sondas e cápsulas do século XX. Via-se a costumeira atmosfera da Terra banhada por aquele azul leitoso que contrastava com a depressiva negritude do espaço. A imagem do planeta, porém, não se apresentava fixa e rodopiava incessantemente. Na verdade era apenas um movimento relativo. Quem na verdade girava descontroladamente era a ARES, em torno do seu centro de gravidade. A saída do buraco-de-minhoca ocorrerá rápido demais e levaria algum tempo para as inteligências que a comandavam estabilizá-la.

Em seu interior, reinava o caos. Restos retorcidos dos equipamentos misturavam-se a miríades de conexões espalhadas desordenadamente. VINCI 087 foi o primeiro a reativar-se após o tremendo solavanco que quase rompera o casco da nave.

O ambiente estava saturado com diversos gases tóxicos que emanavam das conexões rompidas e painéis arrebentados. A névoa misturava-se ao xenônio pré-existente que fora introduzido na nave a uma determinada pressão com o intuito de maximizar os delicados equipamentos da nave. Entre eles, os próprios VERBER da série VINCI, já que o uso deste elemento em presença daqueles seres, atendia as recomendações da indústria de mesmo nome. O uso deste maquinário reforçado fora providencial, pois pilotos humanos não teriam resistido à tremenda aceleração e a brusca frenagem que a jogara naquele movimento rodopiante.

VINCI 087 apenas se cientificou de toda aquela confusão, processando informações rapidamente com o objetivo de por ordem naquele caos. Sua primeira ação foi o de estabilizar a nave, com o auxílio de pequenos retrofoguetes auxiliares. Antes de entrar em contato com o comando em Terra para receber novas ordens, ele consultou todos os painéis para obter alguma leitura que fizesse sentido. Assim a primeira coisa que deveria descobrir era de que forma haviam retornado, sem terem parado em Marte. Mesmo que tivessem feito o percurso de ida e volta pelo buraco-de-minhoca e por precaução, inativados, não havia nenhuma informação registrada de que o salto ocorrera e muito menos do regresso. E se ocorrera sem registros, tinham retornado para uma órbita não planejada. Não havia sinais dos pulsores ou de quaisquer construções feitas pelo homem no espaço.

Quando os exaustores expulsaram o restante dos gases tóxicos do ambiente, constatou que os danos eram maiores do que considerara. VINCI 134 estava seriamente danificado, com metade do corpo preso à poltrona por uma barra que se soltara do teto, atravessando-o por inteiro. Nenhum deles sentia dores, mas a integridade da estrutura humanóide estava comprometida.

Seus sensores óticos se cruzaram com o dele, e percebeu a perplexidade do companheiro que, por mais que se esforçasse, não podia controlar os movimentos dos braços. O delicado tecido biológico-eletrônico, que compunha o feixe principal por onde transitavam as informações para o processador neurônico, fora rompido violentamente, o que explicava o aparente descontrole. Os membros inferiores estavam intactos, mas isto por si só não ajudava muito em vista dos danos. Se por algum motivo não pudessem retornar a Terra imediatamente para reparos, o melhor a fazer seria desligá-lo, economizando energia e preservando eventuais informações.

Ele aproximou-se do companheiro, que apesar do descontrole dos membros, mantinha-se “sereno”, ciente dos danos que sofrera, aguardando a ajuda dos demais. Dotados de força superior à humana, num esforço conjunto, arrancaram a barra. Mas o estrago na delicada estrutura já estava feito e V134, apesar de cessar o movimento aleatório dos membros superiores, entrou em contínuos espasmos. Sem dispor das instalações adequadas, a solução mais lógica seria desativá-lo.

- V134!

- Senhor?

- Não tenho outra opção. Terei de desligá-lo. Para o bem da missão, registre todas as informações possíveis obtidas até agora. Quando retornarmos, serão requisitadas. Até lá, você estará fora de operação aguardando reparos.

- Sim senhor!

Não era o procedimento ao qual estavam acostumados devido a uma série de fatores, que transcedia o puro campo físico para adentrar no campo metafísico e filosófico. Sempre que uma das unidades precisava ser desligada, “a sensação” segundo o testemunho de muitas das unidades que haviam passado pelo processo era o mais pròximo do que os humanos poderiam classificar como “morte”. Mesmo que assim fosse, morrer e renascer era uma possibilidade ainda negada aos seus criadores. E discutia-se muito se era lícito fazê-los “morrer” e “renascer”. Por mais testes que fossem feitos, não havia ainda uma certeza se diante da perspectiva de serem desligados, aquela mescla de células orgânicas e nano-circuitos que constituíam seus processadores, poderia “sentir” algo parecido ao horror que dominava a mente dos homens diante da morte. VINCI 087 poderia filosofar indefinidamente sobre o que era afinal a vida e se eles, os VINCI, poderiam ser classificadas como seres viventes. A precária situação de V134 exigia uma decisão que a filosofia não lhe concedia naquele momento. E não hesitou em tomá-la.

Ele procurou atrás da cabeça de VINCI 134, próximo à nuca, uma pequena saliência, onde se localizava uma fina placa de cristal que continha toda a instrução necessária para por em atividade aqueles seres biônicos, bem como todo o registro de tudo que fizera desde que se tornara operacional. A pressionou com delicadeza, e um pequeno tubo, levantou-se. Abriu-o e retirou de seu interior a delicada peça. VINCI 134 simplesmente parou de funcionar e seus olhos permaneceram abertos, fixando o nada. Sua “alma” fora removida.

Neste meio tempo, VINCI 238 voltara à atividade. Fora jogado para longe do assento, mas não sofrera nenhum dano sério. Seu exoesqueleto, escondido por uma pele artificial, conseguira suportar o choque provocado pela saída descontrolada do buraco-de-minhoca onde, com certeza, um ser humano não conseguiria resistir.

Assim como seu comandante, rapidamente avaliou a situação a bordo, dando-se conta do terrível estrago que o rodeava. Imediatamente dirigiu-se ao seu superior, aguardando as ordens que deveria seguir para ajudá-lo não só a retomar o controle da nave, como para dar prosseguimento à missão da qual haviam sido incumbidos. A par das funções que deveria desempenhar, seus componentes neuro-processadores não deixaram de se ocupar, da forma mais lógica possível, na busca por respostas que explicassem o que ocorrera naquele hiato de tempo, em que seus sensores tinham deixado de funcionar. Na verdade algo muito raro de ocorrer. Um VINCI jamais dormia.

- Senhor?

- V238, monitore o motor de antimatéria e verifique se o campo de contenção continua em ordem. Nossa primeira preocupação é saber se ele está estável. Embora sejamos mais resistentes que os humanos, não podemos deixar o motor vazar. Se isto acontecer, tudo, num raio de milhares de quilômetros será varrido do espaço pela onda energética que se sucederá. Ela poderá atingir alguma nave desavisada. Precisamos continuar operacionais para evitar isto e, entender o que aconteceu. Procure também restabelecer comunicação com a Terra, para que possamos avaliar o nível dos estragos. Nesse meio tempo efetuarei um rápido diagnóstico do que ainda funciona dos sensores.

- Sim, senhor!

A lógica de V087 era impecável. Se uma fração que fosse de antimatéria, vazasse do bolsão de contenção, a destruição seria rápida, sem que pudessem avisar o controle em terra e evitar mortes desnecessárias. A própria sobrevivência dos dois era imperativa, e primordial a estabilidade do campo eletromagnético.

A tela tridimensional que informava as condições do motor de antimatéria fora desconectada pelo choque dos sensores que remetiam as informações de sua funcionabilidade. Ele procurou pelas finas conexões que integravam o sistema. Não sentia medo ou angústia pelo fato de saber que a qualquer instante o campo poderia colapsar causando uma aniquilação que poria um fim à sua existência. Tal constatação não lhe causava qualquer inconveniência e nem atrapalhava a lógica de suas ações. Apenas constatou que os finos feixes de fibra ótica tinham sido rompidos em vários pontos e precisaria improvisar para receber dados que indicassem o estado do campo eletromagnético.

Sem hesitar, procurou por outro feixe que estivesse ligado a um sensor secundário e com um hábil manuseio, a tela ativou-se, lançando uma torrente de parâmetros.

Um cérebro humano teria dificuldade em lidar com tanta informação acumulada, mas seu processador neurônico absorveu rapidamente os dados que surgiam e um quadro ameaçador começou a delinear-se. Não que isto lhe causasse algum sentimento de medo. Apenas uma probabilidade estatística de não poder cumprir a missão designada.

As bobinas emissoras do campo eletromagnético estavam em ordem, com exceção de uma, que fora danificada pela brusca desaceleração. No momento, sua capacidade era de 87 % de eficiência, mas os dados indicavam que rapidamente declinaria, levando ao colapso do campo. Se conseguissem estabilizá-la, poderia prolongar por mais algum tempo a contenção dando-lhes as condições de não só se inteirar do que acontecera como também levar a nave para um local afastado da Terra, antes que fosse destruída. Com esse intuito ele improvisou outras conexões para obter uma precária estabilização. Em vista dos estragos era o melhor que podia conseguir. Colocou V087 a par da situação e rumou para o console de comunicações.

Para sua surpresa, este sofrera poucos danos à primeira vista e lhe parecia estar funcionando. Mas alguma coisa estava errada. O silêncio no sistema continuava inexplicável. Apesar de utilizarem uma frequência própria, podiam receber os sinais de milhares de canais de televisão e emissoras de rádio da Terra em dezenas de idiomas. Mas por mais que se esforçassem para sintonizar qualquer emissão eletromagnética, apenas ouvia-se estática, som este proveniente dos mais diversos fenômenos físicos que percorriam o Universo. Mas nada de origem humana.

Ele fez um breve diagnóstico do sistema de comunicação sem encontrar qualquer defeito.

- Senhor!

- Sim V238?

- A comunicação está operacional. Estamos emitindo na frequência habitual, mas não há resposta.

V087 aproximou-se e acionou o painel de comunicação. – Houston, aqui é a ARES. Responda, por favor. – A formalidade embutida na linguagem daquelas máquinas com aspecto humano era apenas mais uma concessão de seus idealizadores, que procurara “suavizar” sua criação com variados traços antropormóficos.

- V238, verifique as imagens da antena. Talvez ela tenha sido avariada, o que explicaria a falta de recepção.

A um comando manual, as câmeras externas foram ativadas, transmitindo imagens que mostravam muitos estragos do casco externo, com exceção da antena que resistira ao súbito reaparecimento no espaço newtoniano.

O processador neurônico de V087 ocupou-se com uma série de situações que iam desde as inúmeras avarias na nave à total falta de comunicação com o Centro de Controle. Apesar de estar habituado ao trafego de ordens fluindo pela cadeia de comando cedo ou tarde ele deveria se decidir sobre qual ação deveria tomar, se não recebesse alguma instrução. Devido a algumas exceções que poderiam ocorrer, os humanos previdentemente tinham dotado suas criações humanóides de iniciativa. Como as viagens cada vez mais distantes provocavam a lentidão das comunicações por causa do crescente espaço a ser percorrido pelas ondas, desde o século XXI, a NASA dotara suas sondas de “princípios de iniciativa”. Se algo inesperado acontecesse que colocasse a sonda em perigo esta poderia tomar suas próprias decisões, até que as comunicações fossem restabelecidas.

Procedendo desta forma o passo seguinte do comandante foi o de ordenar uma varredura profunda com os sensores ainda operacionais para descobrir se havia outras naves por perto para pedir auxílio. Como nos mares da Terra em tempo de paz, apesar da diferenças, as nações se auxiliavam mutuamente em caso de algum desastre.

Por várias vezes os sensores fizeram as varreduras em extensos círculos sem detectar qualquer nave, o que os deixou confusos. Se os instrumentos não estavam danificados por que não havia qualquer movimento, tanto próximo como longe? E não havia também sinais de nenhum satélite ou estação espacial.

O tráfego espacial aumentara muito no século XXI por causa das várias estações espaciais construidas e a ausência de qualquer veículo se movimentado entre elas e o planeta abaixo era completamente inusitado. Na verdade a conclusão estarrecedora e lógica a que se chegava era de que a ARES era o único objeto a flutuar no espaço próximo da Terra.

- Senhor!

- Sim 238?

- Decidi fazer uma varredura para confirmar uma hipótese e parece-me que os dados combinam com ela.

- Vá em frente.

- Não há movimento espacial algum. Nenhum sinal de qualquer satélite ou estação espacial. Nenhuma emissão de ondas em qualquer tipo de frequência.

- Guerra, 238? Ou o resultado de uma ação provocada pelo reflexo do que os sensores detectaram no interior do túnel?

- Dados insuficienrtes senhor. Mesmo que fosse uma guerra, restariam muitos satélites e estações não destruídas, além do aumento na quantidade de destroços. Não percebo quaisquer sinais deste tipo e menos ainda de radiotavidade, a não ser os de origem natural. Se observar a parte escura, não se percebe clarões provocados por incêndios, ou grandes massas de cinzas na parte iluminada.

- Alguma ejeção de massa coronal? Talvez isto explique o silêncio dos satélites, das bases e das naves e também a falta de qualquer atividade eletromagnética lá embaixo. Explicaria também porque fomos avariados. Alguma alteração do campo magnético terrestre?

Antes que V238 se manifestasse, V087, fez outra observação.

- Consegue extrair alguma informação do que foi detectado no momento em que penetramos na fenda? Ainda presumo que ela seja a causa.

- Pelo registro dos instrumentos senhor, apenas se consegue ver uma mancha. A varredura foi de curta duração. A principio parece algo solido, mas de natureza incerta. Quanto aos níveis de partículas carregadas estão no patamar normal. A menos que seja algum tipo de fenômeno solar desconhecido, senhor. O que explicaria porque os sensores próximos ao Sol não nos informaram a tempo.

- Então qual é sua hipótese V238?

- Quanto ao objeto, informações insuficientes para apontá-lo como causa do que estamos presenciando. Quanto à Terra que está lá embaixo parece não ser a mesma que existia antes do lançamento, senhor.

V087 nada disse. Nenhuma emoção percorreu seus delicados circuitos. Apenas processou as informações, chegando à conclusão que havia uma possibilidade de VINCE 238 estar 25 por cento correto. Poderiam tentar a partir dos escassos dados encontrar outras explicações. Mas o que acontecera com a Terra? O objeto ou o fenômeno detectado na fenda teria alguma implicação com o silêncio das comunicações? Seus neurônios bioeletrõnicos podiam fazer cálculos complexos rapidamente, mas necessitavam de uma fonte constante de alimentação para chegar a algum resultado lógico. Com grande parte dos sensores da nave danificados, e sem contato com o planeta sobre o qual pairavam, deveria tomar uma decisão baseada na programação que recebera para aquela situação. Diante do eminente colapso do campo de contenção do propulsor de antimatéria, não lhe restava muito tempo para se decidir.

Não havia outro jeito, a não ser seguir a lógica dos procedimentos. Os protocolos eram bem claros quanto a uma situação de emergência. Caso fosse possível um dos tripulantes deveria ficar para trás se, por alguma razão, a nave não pudesse retornar. E o percentual de que a ARES não sobrevivesse por muito tempo já alcançava o índice de probabilidade de 87,88 por cento.

Ele foi até o grande painel transparente que lhe permitia uma ampla visão da Terra e a observou por instantes. Seria a última vez que aquele quadro tão familiar aos seus sensores poderia ser captado. Não era sentimentalismo. Mas havia algo em seus processadores que se recusava a aceitar a decisão que deveria tomar. A lógica, porém, prevaleceu e ele não hesitaria mais. Virou-se para a sua última unidade ainda funcional em busca de mais alguma informação que ele lhe pudesse conceder, antes de lhe ditar a sua decisão.

4 – A REUNIÃO.

No dia seguinte ao desaparecimento da nave protótipo ARES, a doutora Katlyn viajou para o Centro de Pesquisa Langley, na Virgínia. Neste local, ela conseguiu reunir às pressas uma equipe de engenheiros e especialistas em várias disciplinas, para investigarem o que acontecera com a nave mais cara e não menos secreta, até então construída pela humanidade. Sua prioridade era fazer um relatório detalhado não só para o setor militar que provera de fundos o experimento, como também para o presidente dos Estados Unidos, que como parte do governo civil, tinha ligações diretas com a NASA. Como parte também da elaboração deste relatório, teria que participar de outra reunião velada com o FBI para descobrir o máximo possível sobre o homem que invadira o Centro. Suas frases desconexas sobre um perigo desconhecido que tentara evitar e a afirmação de que já a conhecia, ainda soavam em sua mente. Apesar do descontrole aparente, suas palavras não lhe pareciam ter sido proferidas por alguém completamente ensandecido.

O momento a deixava numa situação delicada, já que a agência espacial estava sofrendo pressão não só dos militares como também de alguns senadores ligados ao complexo industrial-militar, que disfarçavam tais interesses em nome de um esclarecimento público. Era uma aparente contradição com respeito a um projeto altamente secreto. Além de trabalhar nestas condiçõs, tinha que lidar sozinha com o fardo de não poder compartilhar com todos o que ouvira do moribundo. Suas palavras de que viera por causa dela, a deixaram confusa. Além de demonstrar que já a conhecia, rumara diretamente para o painel de controle dos pulsores, o que indicava que dispunha de informações sigilosas do projeto. Um espião? Talvez. E o perigo sobre o qual dera vagas referências? O que realmente significava para a Terra? Esperava que o FBI pudesse ao menos elucidar parte deste quebra-cabeça. Dar-lhe informações sobre a identidade do morto. Se fora apenas uma ação individual, motivada por razões pessoais ou se tivera ajuda de alguma organização ou mesmo de alguma potência estrangeira. Quando pedira ajuda ao serviço de inteligência torcera para que a segunda hipótese se revelasse falsa. Mas neste caso, agindo sozinho, como conseguira entrar sem passar pelos seguranças? E enquanto não conseguia obter tais informações, a angústia roía pouco a pouco sua serenidade. Somava-se ainda a estes fatores, o risco que representava para sua carreira, a demora em encontrar explicações e a consequente perda de um posto repleto de prestígio que fora até então só ocupado por homens. Mas agora começava a ter ciência do porquê haviam escolhido uma mulher sem muitas reticências.

***

O grupo heterogêneo de especialistas continuavam estudando as últimas imagens dos décimos de segundo do lançamento. A discussão entre eles era intensa, postulando várias causas e efeitos, tanto estáticos como dinâmicos para o não surgimento da ARES do outro lado do túnel aberto do buraco-de-minhoca. O brilho forte ou o flash que viam nada mais era do que os pulsores primários recebendo um grande fluxo descontrolado de energia, adensando o campo de Higgs. Tal efeito numa área exígua sem tempo de se expandir e resfriar-se, fizera a temperatura subir para quase cinco mil graus centigrados, por pouco não derretendo a liga superesistente do qual os pulsores primários eram constituidos.

Como os emissores de wimps não haviam sido instruídos a receber o pico súbito de força, automaticamente haviam expulsado o excedente, aumentando a densidade espacial para além do que havia sido planejado. Mais por sorte do que por antecipação, alguma subrotina do complexo sistema conseguira executar tal procedimento. E por conta da presumivel habilidade dos VINCI o campo eletromagnético que continha a antimatéria não fora forçado ao máximo, o que teria causado seu colapso e a destruição de todo o complexo onde a nave estava acoplada. Mas tal irrupção de energia teria sido provocada pela destruição dos controles em Terra? Ou alguém ou alguma força utilizara-se do momento para irradiá-la como se fosse apenas mais um fator aleatóiro do descontrole?

Na área cibernética, até prova em contrário, todos tinham sido unânimes em afirmar que o flash do campo de Higgs fora tão poderoso que cegara os sensores, ocasionando um evento em cadeia que desestabilizara o núcleo central de processamento de ATENA. Isto jusficara seu “comportamento confuso”.

Katlyn não sabia dizer se era apenas uma intuição feminina ou se os anos de experiência no cargo tinham lhe dado uma visão mais ampla de conjunto que teimava em não aceitar explicações simples demais. Ela sabia que seguir tal posicionamento poderia não ser o ideal, mas segundo seu ponto de vista, uma resposta simples não satisfazia o desenrolar dos acontecimentos. O que encetava um grande mistério. Se não fosse por mecanismos explicáveis, como ocorrera a irrupção de energia? E mais. Por que justamente neste momento o “flash” interrompera o processamento normal de ATENA? Desde que “ela” viera “à vida” jamais falhara em qualquer teste.

Ian ainda fizera pouco progresso para “escavar fundo” e descobrir o que provocara a confusão da I.A. Não era fácil “matar” ATENA e “ressucitá-la”. Os dois tinham optado por este caminho, em razão de uma série de possibilidades. Essa investigação meticulosa poderia revelar sem contestação se era uma falha casual nos equipamentos ou uma interferência de um ou mais agentes trabalhando para algum governo estrangeiro. Poderia ser até um grupo interno sem patrocínio. Radicais de toda espécie não faltavam. Sempre haveria aqueles que bradariam contra novas tecnologias. Sempre levantando o velho chavão de que o homem um dia seria punido por querer “brincar de Deus”. A objeção à criação de formas pensantes que quase igualavam a humana sempre sofrera resistência de alguns segmentos mais conservadores da sociedade.

O grupo de físicos, por sua vez, só podia teorizar em vista da escassez de dados. As propriedades do hiperespaço dentro de um buraco-de-minhoca ainda eram mal conhecidas e a ARES seria a primeira a obter informações diretas por meio de seus sensores. Mas eles haviam se perdido. As simulações computadorizadas não espelhavam cem por cento as condições desta estranha forma do espaço, residindo muito de suas características estritamente no campo hipotético. O mesmo acontecera com a matéria escura. No início de sua postulação, não passara de uma mera abstração matemática, mas sondagens com equipamentos mais sofisticados tinham revelado sua existência tornando-a tão real quanto a matéria comum. Até os grávitons, partículas tão fugidias tinham finalmente sido detectados nas primeiras décadas do século XXI, graças aos grandes colisores.

Mas cada físico dava seu parecer e não havia um consenso. Alguns postulavam que, na verdade, a ARES penetrara numa dobra do espaço-tempo tão densa como aquela teorizada por Einstein denominada apropriadamente de ponte de Einstein-Rosen. Tal fenômeno poderia ter jogado a nave, caso tivesse passado incólume, para uma outra dimensão temporal.

Outros argumentavam que poderia ter sido impelida não só através do tempo, como para um outro Universo. E complementando esta última e recorrendo à mecânica quântica, postulavam que a nave teria se comportado como uma onda que sofrera um colapso, materializando-se em qualquer Universo possível.

Simulações poderiam ser feitas, mas à medida que se afastavam de bases empíricas, penetravam no mundo da pura hipótese. Quase metafísica. A doutora poderia optar por aquela que achasse mais conveniente.

Um dos especialistas, o Doutor Gerald Stone, PhD em física pela Universidade de Cambridge do Reino Unido, já em sua avançada idade de setenta anos, não se pronunciara até àquele momento. Conhecido como o pai da matéria escura por ter sido o primeiro homem a detectar suas partículas que compunham vinte e três por cento do universo, se abstivera de tomar parte nas discussões dos companheiros mais novos. Com uma calvície pronunciada e uma farta barba branca, mais se parecia à imagem idealizada de um profeta do antigo testamento do que a de um homem voltado para o estudo da Física de partículas. Sua vida dedicada a esta busca, se caracterizara por intuições, muitas vezes fugindo ao tradicional método científico. Se alguns de seus colegas torciam o nariz para a forma como dirigia suas experências, quando realizou sua descoberta, alguns tiveram que se retratar e reconhecer que suas excentricidades tinham um toque de genialidade.

Quando ele se levantou e pediu a palavra, os mais jovens sabiam estar diante de alguém que se impunha apenas pela presença e que se tornara um mito em vida como acontecera com Einstein. Pouco a pouco o burburio da discussão foi amainando até que se fez um silêncio absoluto, só interrompido pelos terminais translúcidos que emitiam um leve zumbido. A própria doutora não pode deixar de prestar atenção ao que ia dizer.

- Colegas. A discussão e a apresentação de tantas hipóteses é até aceitável. Mas elas não passam disto: hipóteses. Precisamos abordar o problema de um outro ângulo. Indícios que dêem embasamento a uma delas. Se, e isto é somente um grande e hipotético se, ela foi parar em outro tempo do nosso velho Universo, presumo que certas leis a obriguem manifestar-se próxima da Terra. Creio que deveríamos procurar por pistas de algo inconsistente com o nosso próprio passado para tornar uma delas, em parte, plausível.

- Quais inconsistências seriam estas, doutor Stone? – perguntou Katlyn ansiosa.

- Se refinarmos nossa pergunta a ATENA, talvez ela possa nos indicar algum objeto ou acontecimento destoante inserido no nosso passado. Qualquer um deles poderia ser um bom ponto de partida.

As palavras do doutor não deixaram de provocar reações no grupo mais jovem. De imediato concordaram. Mas o grupo mais velho reagiu com certo ceticismo à proposta.

Sempre procurando causar impacto, ele aumentou o tom de voz. - Eu iria mais fundo nesta questão. – continuou ele. - Apelaria para os historiadores e arqueólogos em busca de evidências de que a ARES se materializara no nosso passado. Se não encontramos nada, isto pelo menos seria um indicio de que ela foi impelidada ou para o passado de outro Universo ou até mesmo para um possível futuro, não necessariamente do nosso. No caso de ser o nosso as provas só apareceriam aos poucos. Se não, talvez nunca venhamos a saber do seu paradeiro.

- E voltaríamos à estaca zero, doutor Stone. – disse o doutor Bhanamir um dos físicos mais velhos de origem hindu, antigo rival na corrida pela descoberta da matéria escura. - Mesmo que encontrássemos “algum indício inconsistente” com o desenvolvimento esperado de nossos antepassados, seria difícil ligar o “achado” ao protótipo.

- E você tem uma proposta melhor do que ficar apenas divagando, Bhanamir? Quantas vezes me acusou de estar caminhando na direção errada?

Antes que a discussão se tornasse um fórum para debate de assuntos pessoais, a doutora Katlyn interveio. - Acredito que a abordagem do doutor Stone tem o seu mérito. Se a ARES, passou por um... Por um buraco de minhoca e foi para o nosso futuro, nada podemos fazer por enquanto. Nada ainda sabemos desse provável futuro. Pode ser o que ocorrerá daqui a um ano como daqui a um milhão de anos. Mas se foi para o passado. Para o passado de nosso Universo, talvez a ideia da inconsistência se revele produtiva.

- E o que faremos quando encontramos tal... Tal “indício”? – perguntou Bhanamir, olhando ironicamente para o doutor Stone, que ignorou a sutileza.

- Quando a encontramos, se é que isto ocorrerá, analizaremos cada achado para ver se há algo nele que nos leve a ARES. – Interveio novamente a doutora.

Como era natural na troca de ideias entre mentes tão díspares e brilhantes, alguns resmungaram contra a perda de tempo na busca por inconsistências e outros, mais abertos a novas propostas, debruçaram-se sobre o problema.

ATENA, naquele momento estava desativada para diagnóstico e não poderia ser utilizada nesta busca que abarcaria milhões de operações. Mas poderiam fazer uso de MINERVA que estava na fase de testes e tal tarefa poderia ajudar os operadores a avaliar seu desempenho. Ela foi rapidamente conectada a uma série de centros de pesquisas, bibliotecas e museus à procura de algum achado arqueológico ou acontecimentos históricos inusitados.

Após algumas horas, graças à formidável presteza de MINERVA no processamento de informações e aos parâmetros refinados pela equipe de Ian para focalizar a busca, certos acontecimentos se sobressaíram. E um deles apontava para uma data: 1908.

Era o ponto de partida tanto esperado pela doutora Katlyn. Algo em que se poderia trabalhar. E também um indício de que a ARES não deixara o nosso Universo. E as coisas começaram a ficarem melhores ainda quando neste momento de alento ela recebeu de um portador um pequeno envelope endereçado por Ian. Discretamente o abriu e retirou um pequeno pedaço de papel. Nele, estavam algumas considerações dele escritas na sua habitual letra caprichada, acompanhado por um pequeno disco. Ele lhe pedia discrição e que visse seu conteúdo confidencialmente. Com um leve sorriso no rosto novamente leu o que estava escrito no começo do bilhete: sucesso! Se o que pedira a Ian se confirmava, fizera bem em solicitar a ajuda do FBI.

Mal guardou o bilhete, um auxiliar da agência pediu com urgência que comparesse a outra sala. Ela mal pode acreditar quando a informação lhe foi passada. O atirador fora identificado. Testes de impressões digitais e de DNA não deixavam dúvidas. Tratava-se de Joshua Timberland. Trabalhava no Lincon Laboratory do MIT, num setor que desenvolvia projetos secretos para a Defesa. Há dois anos por causa da importância do projeto em que estava trabalhando fora transferido para a Área 51. E um detalhe: estava vivo!

5 – OUTRA TERRA?

Assim que V087 afastou-se do painel transparente e aproximou-se de V238, houve uma rápida troca de olhares. Podia-se dizer que era uma reação quase humana, onde cada qual, esperava do outro um provável resultado do encadeamento lógico dos escassos dados disponíveis.

V238 foi o primeiro a falar. – Em vista do que pude apurar pelos sensores, não há qualquer emissão de ondas do espectro eletromagnético da superfície, dentro das frequências esperadas. Entretanto as lentes das câmeras de longo alcance captaram formações não naturais, senhor.

- Mostre-me na tela, V238.

Com um rápido movimento dos dedos, as telas se superpuseram à frente dos dois, mostrando apenas ampliações de uma pequena parte do continente Europeu e grandes porções das América Central e do Sul. Viajando a mais de 23.000 km/s a nave continuaria sua órbita, permitindo uma melhor visualização da Europa à medida que se deslocava em torno da Terra.Naquele instante, porém, as sondas só podiam acompanhar o que se passava abaixo. Não havia grandes cidades ou vestígios de estradas, mas apenas cúspides de construções piramidais na América Central. Na parte mais ocidental do outro lado do Atlântico não se conseguia delinear a existência de qualquer cidade, pelo fato de ainda estar na penumbra noturna. Mesmo estendendo ao máximo a potência dos sensores não se observava manchas luminosas. Na verdade não se via na parte escura qualquer emanação artificial de luz.

V087 esternou suas conclusões. – Isto muda tudo. E explica o silêncio nas comunicações. Não resta mais dúvidas de que estamos diante de uma Terra diferente. Continua habitada por humanos, mas não sei para que período de sua existência fomos catapultados. Pelas medições da distância dos continentes, não nos afastamos muito do tempo que conhecemos. Os dados, aliás, são conflitantes. Como o Atlântico afasta-se alguns centrímetros por ano dos dois lados, os cálculos indicam que estamos observando uma situação anterior ao do nosso século. Pode ser apenas parâmetros estabelecidos por sensores defeituosos.

V238 o olhou fixamente, apenas absorvendo as considerações.- É evidente senhor que sofremos uma disfunção temporal provocada pela fenda, o que combinaria com a sua afirmativa da ausência de sinais de uma civilização mais avançada tecnologicamente. E estou de acordo também de que sem os grandes processadores da NASA, não há como saber em que período do seu desenvolvimento está-se observando. Apenas poderia especular, senhor.

- Correto V238. Sem mais dados para análise e utilizando nossa partida como um referencial, podemos chegar a resultados conflitantes, como já ressaltei. Poderíamos considerar que estamos no passado, em razão da falta de luzes, quando na verdade, poderíamos ter avançado no tempo. A impressão de atraso seria circunstancial. Por razões desconhecidas, a humanidade poderia ter regredido em termos tecnológicos.

- Ou de fato estamos mesmos no período que antecedeu este avanço, senhor. Supondo-se que seja a mesma Terra. – retorquiu V238. - Mas não sei precisar qual. Pelos vestígios das construções ameríndias, algumas cidades parecem ativas, principalmente em torno de algumas pirâmides da América Central. Poderíamos estar orbitando a Terra ou no auge do Império Inca ou do Asteca. Isto nos situaria por volta dos séculos XIV ou XV, com alguma margem de erro de mais ou menos cinquenta anos.

V087 ia tecer seus comentários sobre as deduções de seu tripulante, quando um sinal agudo, intermitente, invadiu o interior da nave, indicando que algo de grave estava acontecendo com o gerador de antimatéria. Calculara errado o índice de probabilidade do colapso do campo?

Mesmo sem oxigênio, havia certa dose de xenônio pressurizado, para o rendimento adequado dos instrumentos, entre eles o dos próprios tripulantes, o que permitia a propagação do som e sua captação pelos sensores auditivos. Imediatamente os dois se dirigiram para o sensor que monitorava o campo de contenção da antimatéria. A eficiência do campo declinara perigosamente e pelos parâmetros das telas, seu colapso ocorreria aproximadamente em seis horas, pelo tempo de bordo.

Duas questões se apresentavam a V087 como comandante. Poderiam continuar existindo, deixando a nave ou em caso de risco para os humanos, se sacrificarem, afastado a nave das proximidades da órbita terrestre. Sua programação básica tinha como prioridade a manutenção da existência para que as informações não fossem perdidas. Só em casos excepcionais em que a integridade de humanos pudesse ser ameçada, poderiam ignorar tal lei, fazendo o possível para salvar as informações antes de desaparecerem. Ele optou então por deixar V238 para trás e afastar a nave.

Para seguir este tipo de protocolo de salvaguarda de informações, a nave fora dotada de capsulas de fuga, que permitiriam o reingresso na atmosfera, podendo pousar em terra firme ou no mar conforme o caso. Havia um último recurso, caso a tripulação ficasse inoperante. Um pequeno dispositivo poderia ser disparado automaticamente da nave, passando incólume pelo atrito atmósferico, contendo partes do registro da missão. Assim que fosse lançada acionaria um código específico que informaria às instalações amigas em terra sua posição para resgate. Apesar de não poder repassar todos os dados que um VINCI poderia fornecer, os técnicos poderiam, ao menos, rastrear os momentos finais da nave.

A situação pela qual passavam era vista mais como um labirinto de opções, do que a luta pela sobrevivência, caso fosse vivenciada por uma tripulação humana. Não sentiam medo, ou ansiedade como seria natural por formas orgãnicas, mas a não existência, a interrupção dos processamentos era algo que não tinham experimentado ainda, e uma vaga sensação de não poderem ponderar sobre o que se seguiria caso houvesse a destruição total, embaralhava as funções lógicas. Era o mais próximo do sentimento humano de perplexidade diante da morte que poderiam alcançar.

As cápsulas haviam se tornado equipamento obrigatório, em vista dos eventuais acidentes que aconteciam e que poderiam acontecer não só na fase de testes, como também a partir do momento em que tripulações humanas substituissem permanentemente os VINCI. Mas o dispositivo não permitia a sobrevivência por longos períodos no espaço e só podia ser usado nas proximidades da Terra.

Aproximaram-se deles e verificaram que dos quatros só um não fora danificado. Mesmo o que aparentava estar intacto, tinha alguma de suas partes danificadas, o que tornava a fuga de qualquer membro da tripulação algo incerta. O espaço era exíguo e permitia somente que fosse ocupado por um só individuo.

A escolha lógica seria deixar V238, para que V.I.N.C.I. 087 pudesse manobrar a nave e encontrar condições para evitar sua destruição. Já que teria de ficar, uma das opções que considerou, baseada em estimativas, era a de utilizar o restante da propulsão que dispunha para manobrar para o interior de sucessivos buracos-de-minhoca rotacionais. Os cálculos informavam que se pudessem criar condições para as fendas rotacionarem em sentido reverso, havia uma razoável margem de probalidade de se retornar ao ponto inicial da jornada. Mas se caso não conseguisse concretizar este intento, pelo menos um dos seus iguais ficaria para trás para cumprir a missão de reportar as informações.

Não houve despedidas ou sentimentos de heroísmo ou de perda, mas tão somente a pura lógica da missão a ser completada. Um deles teria que sobreviver para relatar o destino da ARES.

Cumprindo as ordens, V238 rumou para a cápsula e parou para avaliar seu grau de comprometimento. O precário estado do dispositivo apenas permitia que fosse desconectado da nave e lançado para o planeta abaixo, sem permitir escolher as condições de pouso. A única informação que obteve das telas de comando era de que a nave se aproximava do contintente europeu e o ponto de reentrada deveria ocorrer em algum lugar do Mediterrâneo próximo a ilha da Sardenha. V087 ordenou que aproveitasse aquele momento em que ainda era operacional antes que, por algun defeito, a capsual fosse desviada para algum ponto perdido do Atlântico ou do vasto Pacífico daquela Terra desconhecida.

Seguindo as ordens V238 acomodou-se em seu interior, enquanto V087 lhe passava o tubo com todos os registros de V134 para que as informações dele pudessem ser recuperadas também. Aceitou o fato de que talvez não pudesse cumprir sua prioridade de salvar as suas próprias informações caso a nave fosse destruída.

Em seguida a um comando seu, a cápsula foi isolada da ARES. O restante do procedimento ocorreu de forma automatica, ejetando-a no espaço. Por alguns segundos, aquela visão de um veículo tão frágil e pequeno, tentando sobreviver à escuridão e silêncio do espaço, provocou-lhe nos neurônios artificiais uma sensação quase parecida com a de um ser humano: a insignificância diante da vastidão do espaço. Era algo inexplicável, ilógico. Mas ele não podia negar que era o mais próximo do que seus construtores sentiam quando se viam às margens daquele oceano negro, cujas praias do outro lado, se é que havia alguma, poucas criaturas poderiam atingir.

Como se estivesse fascinado por aquele momento jamais vivenciado em sua curta existência, V087 nada fez até vê-la confundir-se com o negrume, afastando-se cada vez mais rápido rumo à turbulenta atmosfera do planeta. Enquanto fazia isso seus processadores não se entregaram a nenhuma forma de trabalho, apenas se deixaram levar pela constatação de que estava sozinho, totalmente sozinho. Mas ele não fora construído para divagações filosóficas. Como retornando de uma não vida, retomou à sua atividade cognitiva, calculando as chances númericas de seu companheiro não se incendiar na reentrada, perdendo a vital informação. Assim eram os VINCI. Todo o propósito de suas existências resumia-se na manutenção dos dados. Afinal, pensou, não eram assim tão diferentes dos humanos ou da vida como um todo, que sempre lutava pela preservação das informações, perpetuando-se infinitamente.

Mas por menores que fossem as chances de V238, pelo menos havia algumas, melhores do que as suas no interior de uma nave que estava para explodir. E não se limitava a seu único subordinado operacional que restara, mas também a V134, cuja estrutura inerte continuava ali parada, fitando-o com os seus olhos vazios de qualquer informação.

Sem hesitação voltou para o assento do comandante e com uma nave semidestruída para comandar, tentou obter o máximo possível de dados dos sensores que o rodeavam para colocá-la em movimento. À medida que estes lhe eram transmitidos, o leque de opção se tornava mais claro e por fim se deu por satisfeito quando atingiu a marca dos 50 % dentro das estimativas que pretendia implementar. Seguindo esta linha de ação, que diminuía a chance de se concretizar com o passar dos segundos, acionou os motores da ARES para obter a máxima aceleração possível, enquanto os pulsores traseiros criavam um outro buraco de minhoca à frente, com tamanho suficiente para poder passar.

Antes de ver aquela esfera desaparecer, V087 observou pela última vez, pela janela da nave, aquele mundo desconhecido para a qual mandara V238. Seu último pensamento antes de deixá-la foi de que seu subordinado fosse mais bem sucedido do que ele na missão para a qual seus construtores os haviam criado.

Quando a fenda atingiu o tamanho exigido, ele inverteu os pulsores criando uma breve rotação que, esperava, seria repassada ao buraco-de-minhoca como um todo, permitindo a passagem para um outro espaço-tempo. Como sugada por uma força descomunal a ARES a penetrou, desaparecendo rapidamente daquele ponto no espaço enquanto a capsúla, última prova de sua existência rumava quase que cegamente para a superfície.

6 – A ALDEIA.

V238 estava em queda livre, e por pouco a capsula não foi incinerada pela densa atmosfera. O equipamento de resgate se revelara resistente e no último instante os retrofoquetes haviam alinhado automaticamente o ângulo de reentrada. Tal manobra diminuíra a velocidade, afastando não só a possibilidade de que fosse consumida pelo atrito, como evitando que fosse catapultada de volta para o espaço, orbitando eternamente o planeta. Apesar dos para-quedas terem se rompido na troposfera, por causa dos fortes ventos, o choque foi atenuado pelas águas do mar onde se precipitara. Um ser humano, talvez não sobrevivesse à brusca desaceleração ou ao choque da queda. Felizmente não era o seu caso, já que não dispunha de órgão biológicos aquosos, mas mesmo assim se o impacto tivesse ocorrido em solo firme, a probabilidade que estimou de sair ileso era de menos 2 %, o que quase equivalia a um dano total.

O líquido que amortecera o impacto da cápsula não tinha sido suficiente para impedir alguns danos em seu interior, ocasionando a soltura de alguns equipamentos e prejudicando o funcionamento de alguns sensores. Por sorte as luzes de emergência que banhavam aquele pequeno espaço com suas cores avermelhadas tinham sido acionadas automaticamente, o que lhe permitia um mínimo de visão. Lá fora, quente pela fricção, uma névoa esbranquiçada de vapor emanava do casco rubro, lambido pela chuva incessante e pelo bater das ondas revoltas que se perdiam na escuridão da noite.

Para olhos normais, a grossa nuvem de vapor não permitia uma clara visão do exterior, toldando a transparência da escotilha. Mas os VINCI possuíam sensores sofisticados. Ativando-os, conseguiu registrar as faixas de calor na baixa atmosfera, provocadas pelas súbitas descargas elétricas. Uma impressão bem diferente dos olhos humanos que apenas enxergariam nuvens como que dotadas de lâmpadas que piscavam em seu interior.

Boiando aleatoriamente, a cápsula não parava de jogar V238 de um lado para outro à medida que seu eixo era constantemente alterado. Desta forma viu-se impotente para controlar aquele caos. Se continuasse dentro daquele verdadeiro liquidificador sua integridade estaria ameaçada. Precisava sair dali o quanto antes, mas o ambiente externo também não era acolhedor.

O artefato de fuga além de possuir um sinalizador acoplado, continha um sofisticado escaner de mapas geodésicos que ao menos poderia lhe indicar em que ponto caira da superficie e onde havia terra firme. Mas sem um sistema de satélites, estava desabilitado. Restava-lhe apenas um meio de fuga precário composto por um pequeno bote inflável e um par de remos. Mas para se aventurar naquela massa de água agitada precisaria executar ações táteis para premir os controles e abrir a porta. Seus sensores tentavam compesar a falta de equilíbrio e não com pouco esforço, conseguiu ativar as travas de segurança da porta, explodindo-as. A partir dali ele perdeu o controle sobre os acontecimentos.

O vento uivante e o som dos trovões quebraram o silêncio da cápsula, trazendo consigo a chuva e a forte humidade do ar. Sem a porta para barrá-la, a água do mar começou a penetrar no pequeno espaço rapidamente e se V238 não saísse logo, corria o risco de naufragar junto com ela. Ele quebrou a caixa que continha o bote que inflou rapidamente ali mesmo. Retirou os remos, estendendo suas hastes telescópicas e acomodou-se dentro do inflável para impulsioná-lo para fora na primeira oportunidade que julgasse viável. Não havia tempo para mais nada.

Quando ele procurou proteger o tubo memórico de V134 dentro do traje, a cápsula adernou inesperadamente antes do movimento calculado que executaria. Um enorme volume de água, agindo como uma mão gigante, puxou-o com bote e tudo para fora da cápsula, tirando-lhe o equilibrio e fazendo-o largar o precioso objeto que logo foi coberto pelas ondas revoltas.

Por um instante aquela perda paralisou todo o seu sistema de processamento em vista da contradição de cumprir a ordem de salvar a memória de V134 e manter-se ao mesmo tempo operacional. Mas não havia mais nada a fazer. A prioridade era seguir as ordens de V087 o quanto fosse possível.

Era difícil aprumar-se naquele caos líquido e uma onda atrás da outra acabou por afásta-lo da cápsula, o único vínculo que ainda o mantinha conectado ao mundo do qual viera. Mas ele não pode executar qualquer outra ação para fugir daquela situação. Uma outra parede de água precipitou-se sobre ele e o bote. Numa autopreservação programada seus delicados processadores cerebrais se desligaram mais uma vez, registrado em sua memória a última imagem que poder ver: as últimas partes da cápsula afundando e expulsando o último bolsão de xenônio que ainda persistia em seu interior.

***

Quando o seu sistema visual foi religado, várias manchas borradas oscilavam à sua frente. Assim que os depuradores visuais puseram-se a trabalhar, as manchas se transformaram em pontos desconexos e por fim, em imagens de homens, mulheres e crianças que formavam um círculo perfeito acima de seus visores. Os sensores continuaram em sua função de processar informações, indicando-lhe que isto acontecia porque seu corpo estava posicionado sobre a areia, rodeado por um grupo de humanos. O que acontecera ou como viera parar ali era uma incógnita. Como o sistema se desligara por precaução, a última imagem preservada em seus centros de memória era da cápsula afundando em meio à tempestade, à qual se seguia a visão turva de silhuetas humanas na praia. Não havia nenhum registro do que ocorrera neste intervalo de tempo para que pudesse entender como viera parar ali.

Seu primeiro movimento foi o de aprumar o torso, apoiando-se no sedimento macio, para que pudesse observar de um ângulo melhor as pessoas que estavam à sua volta. Quando fez isso, todos se afastaram assustados, demonstrando em seus rostos o espanto de se verem frente a um estranho que trajava roupas desconhecidas e um cabelo diferente do que estavam habituados a ver.

Sem dar muita atenção a este detalhe ele prescrutou os arredores dando-se conta de que estava numa pequena enseada. Provavelmente seu corpo feito de uma liga leve de metais, apesar de ser mais resistente que o aço, não excedendo o peso de um adulto médio, ajudara-o a flutuar até a praia ou fora arrastado da água até aquele ponto. O líquido em constantes refluxos que banhava seus membros inferiores poderia pertencer ao Adriático ou ao Tirreno, mas sem pontos de referência e um GPS de terceira geração, não poderia saber sua localização exata.

Olhou rapidamente para o Sol e conseguiu com certa aproximação calcular a hora do dia. Seus processadores precisavam de mais dados. Talvez, observando as constelações à noite, pudesse calcular a longitude e latitude com algum grau de precisão melhor para confrontá-lo com o mapa mundi que possuía em sua memória, dando-lhe informações do ponto em que estava na superfície do planeta. A própria disposição das costelações poderia informá-lo em que mês estava. Mas mesmo que conseguisse medir com precisão o arco formado entre o eixo da Terra e a estrela Polaris, não poderia precisar o ano sem um referencial inicial.

Fora estes dados que conseguira coletar e como não havia registros do que havia acontecido, deduziu que chegara à praia carregado pelas ondas, já que nenhum barco se aventuraria a enfrentar aquele mar bravio para resgatá-lo.

Às poucas pessoas, logo se juntaram mais adultos e um bando de crianças, todos curiosos com sua presença. Eram com certeza pescadores, mas pela visão que teve dos barcos, estavam desprovidos de qualquer tecnologia conhecida do século XXI. Ou a humanidade retrocedera culturamente, vitimada por algum colapso ambiental, o que logo descartou, ou outras causas precisariam ser investigadas para explicar aquele atraso. Caso pudesse confirmar sua dedução de que vira do espaço uma Terra do século XIV ou XV, explicaria muito do que estava constatando. Inclusive com relação ao fator de poluição do ar e ao índice de temperatura que, observados dos sensores da nave, tinham se revelados bem diferentes dos do século XXI.

Mais adiante notou uma pequena aldeia, cujas últimas casas estendiam-se até as colinas que ladeavam a enseada. Assim como os barcos pareciam ser construções bem rudes. Seus sensores não perceberam a existência de estradas ou qualquer movimento de veículos de superfície ou aéreos.

Mas não eram esses os detalhes que o intrigavam. Precisava saber com exatidão o “quando” e o “onde”. Só as deduções cronológicas que fizera a partir das imagens superficiais das Américas eram insuficientes. Necessitava de novas fontes para aprimorá-las. Com esse intuito levantou-se e deu as costas para a massa de água, observando o interior à procura de algum referencial que pudesse ajudá-lo nesse aspecto.

A visão logo foi obliterada pela colina próxima da aldeia. Talvez, após subi-la, ela lhe permitisse uma visão mais ampla da região. Quem sabe viera parar numa aldeia remota que desprezava as comodidades do século XXI, demonstrando que suas deduções haviam sido prematuras e inexatas. Foi outro parecer que logo descartou também. Primeiro pela reação dos habitantes à tecnologia que representava. Segundo porque seus sensores continuavam não dectando qualquer sinal de comunicação para além da região. O ar estava estranhamente silencioso. Vazio de quaisquer tipos de ondas utilizadas pelo homem, com exceção das de origem natural, com as quais se habituara desde que “viera” ao mundo.

Mesmo admitindo falhas no cômputo de datas pela escassez de parâmetros, o ambiente não demonstrava qualquer dano. Isto era um forte sinal de que não aportara numa era longínqua do século XXI. Tudo era normal demais. A vegetação no cume da colina aparentemente não fora afetada, muito menos a composição química do ar. Olhou para o céu e logo avistou um bando de aves percorrendo suas rotas anuais de migração, o que indicava que tudo estava em ordem, principalmente pelo fato óbvio de estar rodeado por humanos em boas condições de saúde.

Mas as roupas dos dois humanos eram diferentes das vestimentas com as quais estava acostumado. Seus circuitos de memória teriam que iniciar uma busca no banco de dados para descobrir quaisquer informações sobre vestimentas de séculos anteriores. Apesar dos aldeões não estarem usando vestimentas mais sofisticadas típicas de segmentos mais ricos da sociedade, o que lhe poderia dar uma data mais precisa, assim mesmo estas diferiam dos habitantes do século XXI.

Céleres, sem que os humanos se dessem conta, centenas de trajes se sobrepuseram diante dos olhos de V238, comparando-as com as imagens congeladas das vestimentas dos dois humanos à sua frente. A busca intensiva revelou-se satisfatória. Uma imagem virtual de um corpo humano formou-se rapidamente trajando calças justas curtas, sobrepostas no final com meias. Sobre o torso, desde o pescoço até aos quadris, estendia-se uma peça única. Na altura destes um prolongamento, terminava no formato de uma saia. Por cima da peça única uma jaqueta. Os sapatos provavelmente de couro, não possuíam nenhum acabamento sofisticado prestando-se somente a pratica de proteger os pés. Um pequeno chapéu colorido completava aquele quadro. Os dados visuais cruzados com os dados memóricos indicaram a probabilidade de 87% de serem vestimentas européias utilizadas entre os séculos XII e o XV. Tal indício afastava a hipótese de ter entrado em contato com humanos de uma época posterior à sua. Mas a qual destes séculos tais trajes pertenciam?

Necessitando de mais informações ele começou a se locomover, sob os olhares espantados de todos os presentes. Logo começaram a lhe fazer perguntas num dialeto que seus processadores não tiveram dificuldade de reconhecer. Possuia claramente uma raiz latina. Sua programação que incluía fluência nas principais línguas do mundo, não tardou em definir que era o idioma falado pelos habitantes da península itálica. Refinando as entonações que ouvia e comparando-as com os dados filológicos armazenados, concluiu que as expressões dos locais indicavam um forte sotaque toscano. Esta era a primeira informação geográfica segura que conseguia obter a partir da extrapolação de dados baseados na linguística.

Se o linguajar e os costumes reforçavam a hipótese de estar na mesma Terra, mas numa época anterior àquela que partira, começou a compartilhar a presunção de V087 de que a experiência pela fenda fugira completamente ao propósito inicial. O projeto original pressupora a abertura de um buraco no espaço-tempo, para que a ARES atravessase um túnel conhecido como buraco de verme intra-universo ou tubo de Kraniskov, conectando a Terra à Marte. O contexto temporal que estava testemunhando indicava um outro fenômeno, conhecido como buraco de verme rotatório de Schwarzchild. Ele não conectara a Terra à Marte e sim o planeta a uma outra versão da Terra, num espaço-tempo diferente.

Eram apenas conjecturas baseadas em indicios contextuais. Seu cérebro artificial não dispunha naquele momento de capacidade suficiente para realizar os cálculos necessários para saber se esta última hipótese estava correta. Muito menos também, pela total falta de informações, saber que vetores poderiam ser aplicados para explicar as falhas do experimento. Mesmo na ausência dos cálculos necessários, os dados visuais forçavam-no a concluir que o buraco de Schwarzchild era a hipótese que mais condizia com os fatos observados. E isso esclarecia muitas coisas. Entre elas de que não fora alguma hecatombe ou colapso ambiental que vitimara a Terra. Simplesmente confirmava o que a teoria predizia: uma passagem para outra dimensão espaço-temporal. Pela falta de dados não havia como saber se a passagem se dera para o mesmo Universo ou até mesmo para outro, numa Terra paralela. Então a conclusão lógica, com acerto de 67,8% era de que o buraco não sincronizara os períodos de tempo entre as duas extremidades. E de 53,4% de que poderia estar em outro Universo.

Ele liberou os processadores que se ocupavam com este problema e voltou sua atenção para o que acontecia ao seu redor. Os homens e as crianças que o rodeavam continuavam a lhe fazer perguntas sobre seu estado físico e suas estranhas roupas, sem se darem conta de sua real natureza. Podia entender a confusão em suas mentes simplórias. Exteriormente sua aparência era quase idêntica a de um ser humano. Possuía todas as características como cabelos, sobrancelhas e até dentes, no meio dos quais se movia uma língua artificial.Seus sacos bioeletrônicos internos, que retiravam da atmosfera um gás nobre, o xenônio, para auxiliar no processo de produção de energia não eram diferentes do movimento da respiração humana. Mas se a concentração fosse baixa, poderia compensar extraindo argônio ou criptônio do ar, como fazia agora. Sua temperatura externa, morna devido ao ricochete na blindagem das partículas alfa, beta e gama emitidas pelo elemento rádio instalado em seu reator, poderia assemelhar-se à humana caso fosse tocado. Blindagem que por sua vez estava recoberta por um simulacro de pele, abaixo da qual se estendiam servomotores e uma infinidade de dispositivos que lhe permitiam a movimentação. Mas a sofisticação de seus criadores não se limitara ao funcional.Por questões que atendiam a maior interavidade entre humanos e máquinas, os especialistas tinham chegando ao extremo de dotá-las de uma rede de pequenos tubos para que se parecem com veias, apesar de não possuírem um coração. E de pêlos artificiais para que a sua aparência fosse o mais fiel possível à humana, apesar de não serem mamíferos. A Humanidade tinha necessidade de se identificar com suas realizações. Porém havia coisas que V238 não padecia. Não envelhecia. E nem podia se reproduzir. Conhecia todo o elenco das motivações humanas sem, no entanto, poder vivenciá-las.

Na verdade a única coisa que o diferenciava dos demais sem um exame mais acurado era a roupa que vestia. E nem se tratava de uma vestimenta habitual do século XXI. Tratava-se de um uniforme utilizado pelos astronautas da NASA. Aqueles que todos usavam em missões no espaço, inclusive os da série VINCI.

Enquanto não pudesse esclarecer melhor sua situação e a comoção que provocaria se descobrissem sua origem artificial, procurou comportar-se da forma humana mais natural possível. Gentilmente, utilizando o processador de linguagem, respondeu no dialeto local, agradecendo a ajuda que lhe tinham prestado, dizendo-se em boas condições para poder partir.

Mas antes de tomar qualquer decisão para onde ir, não deixou de observar as expressões interrogativas dos humanos que o rodeavam que, da mesma forma como ele, que não reconhecera as vestimentas que trajavam, suas roupas, próprias de uma sociedade mais avançada tecnologicamente, chamavam por de mais a atenção, e precisaria trocá-las por algum traje desta época, de forma a inibir a curiosidade estampada no rosto de todos que queriam saber quem era ele e de onde viera.

Precisava encontrar um modo de convencê-los de que era um igual, para encontrar uma forma de prosseguir na missão que V087 o incumbira. Mas sem saber com precisão onde estava e quais eram os costumes daquele povo ou de sua sociedade, não poderia simplesmente responder qualquer coisa. Todos os VINCI possuíam em sua memória segmentos de várias disciplinas, entre elas a da história humana, e V238 precisaria utilizar tais informações para que pudesse descobrir em que século exato estava. Descobrir o ano exato em que chegara era de primordial importância. Não só para situá-lo no tempo e se adequar aos costumes como também para ajudá-lo no prosseguimento da missão.

Os aldeões, provavelmente iletrados, talvez não pudessem lhe informar a data, mas um clérigo daquela localidade, ou um membro da administração talvez, se fosse abordado da forma correta, poderia lhe informar o ano, apesar de ser com base no calendário Juliano. Isto ele poderia compensar. Mas precisaria ter cuidado como fazer a indagação. Com a data certa poderia acessar as informações que dispunha sobre a situação política da época na península. Era certo pressupor que a região estava dividida politicamente entre uma série de cidades-estado e os domínios papais. Mas o poder político destas cidades se alternava muito rapidamente. E no meio deste precario equilíbrio, um estranho fazendo muitas perguntas poderia provocar a suscetibilidade de algum potentado local. A melhor maneira de conseguir mais informações seria se passar por um dos habitantes. Para isso teria que se desfazer do uniforme e cobrir o corpo e a cabeça com as indumentárias da época. Esperava com esse simples estratagema coletar dados mais precisos, entre eles o ano, e com isso acessar a geografia política compatível da região.

Com o propósito de saber próximo de qual das cidades da região estava, apontou para o seu traje e corte de cabelo, dizendo-lhes que não estranhassem seu modo de vestir. Disse-lhes que era um viajante proveniente da cidade de Saragoça do reino de Aragão, situada no outro extremo ocidental do mar. Estava a caminho de Veneza quando fora surpreendido pela tempestade. Se pudessem lhe informar a cidade mais próxima e onde poderia obter roupas secas, que reembolsaria oportunamente, poderia continuar sua viagem de negócios por terra.

Todos os olharam surpresos. Se sua intenção era a de não levantar suspeitas, provocou o oposto. Um dos pescadores, que aparentava ser o mais velho de todos e possuidor de grande experiência marítima, disse-lhe que se estava a caminho de Veneza, o mais rápido seria ir pelo mar, ao invés de atravessar pela toscana, nos domínios de Florença. Por este percurso, teria que passar por muitos burgos sob domínio desta última cidade, algumas das quais talvez lhe criassem problemas antes de chegar ao destino.

O pouco que o velho pescador lhe disse foi o suficiente para inferir alguns parâmetros. Não restava dúvidas agora que caíra mesmo no mar Tirreno, já que o outro mar mais fácil para atingir Veneza ao qual o homem se referia só poderia ser o Adriático. E se estava na Toscana, dominada por Florença, deveria estar num período próximo do final da chamada Renascença. Isto significava um período de tempo que oscilava entre 1450 a 1550, ou seja, entre os séculos XV ou XVI. A observação que fizera dos detalhes das vestimentas combinava com os trajes que os habitantes da região usavam nesta época. Mas agora, tornara-se imprescindível obter uma para si e passar depercebido no percurso que pretendia empreender até a uma das grandes cidades daquele lado. Talvez Florença por ser maior e lhe possibilitar o acesso a mais informações. Depois que as conseguisse, se debruçaria sobre o problema seguinte de como prosseguir.

Sem dispor de moedas ou qualquer outro objeto de valor, V238 propos uma troca com os pescadores. Daria seu uniforme por um dos trajes dos pescadores. Pelas expressões, percebeu que estava penetrando em terreno perigoso. Naqueles tempos, a maioria dos habitantes vivia em condições paupérrimas e se desfazer do pouco que tinham como a roupa do corpo, por exemplo, não lhes agradava de forma alguma. A maioria se recusou, com exceção de uma velha senhora que se interessou profundamente pelo seu uniforme. Ela tateou o tecido e surpreendeu-se com a textura macia do mesmo, algo que jamais sentira em toda sua vida. Imaginando ser um material que poderia lhe render algumas moedas na troca com algum mercador da região, o conduziu até sua miserável choupana e lá dentro retirou de um gasto baú, algumas peças do falecido marido.

No seu interior V238 rapidamente procurou se esquivar dos olhares curiosos. Atrás de um simples pano que servia de divisória entre a cama e o exíguo espaço do resto da mísera casa, tirou o uniforme, tomando o cuidado de verificar se não havia alguém o observando por alguma fresta. Ativando o sensor de infravermelho, afastou esta possibilidade, pois as emanções de calor daquele grupo se concentravam na porta da frente da velha mulher.Tal cuidado era necessário porque se descobrissem que não dispunha de órgãos reprodutores, rapidamente perceberiam que não era humano. Pelo menos não do modo como entendiam isso.

V238 nada pode fazer quanto às roupas, que por não serem padronizadas, tolhiam um pouco seus movimentos. O fato era que seu tamanho obedecia à média do homem do século XXI, já que a dos habitantes desta época, era ligeiramente menor. Sem opções, ajeitou-as o melhor que pode, colocando por último os sapatos gastos e o velho chapéu. Apesar de um pouco rotas, estavam em bom estado, mas naquelas circunstâncias o que importava é que o ajudaria a não chamar mais a atenção por onde passasse. Sua prioridade era sair daquele local antes que alguém avisasse alguma autoridade da sua chegada à praia. Caso fosse levado à presença de pessoas mais instruídas, ficaria numa situação dificil de explicar quem era e de onde viera.

A velha senhora, num ato inusitado de hospitalidade ofereceu-lhe alguns peixes ressecados e pedaços de pão para que fossem consumidos durante a viagem que faria. Ele sabia que não precisaria daqueles alimentos, mas para não despertar suspeitas sobre sua real identidade, polidamente as colocou num saco, agradecendo.

Assim que saiu da rústica choupana, os curiosos fizeram um sinal de aprovação como se aquelas vestimentas o tornasse um deles. Para o olfato humano, apesar daqueles aldeões viverem próximos de uma grande massa de água, os odores que seus corpos exalavam devido à falta de banho diário, seria insuportável. No entanto, dispositivos instalados acima do nariz podiam processar as informações químicas que o ar carregava sem incomodá-lo. Tal reação humana lhe era irrelevante, já que era desprovido de certas sensações configuradas pela natureza como o olfato e o paladar. No entanto, fora dotado de aperfeiçoamentos que os seres humanos só podiam dispor artificialmente. Sensores eletrônicos por de trás de seus olhos podiam ampliar a resolução de objetos pequenos, a ponto de enxergar várias cepas de bactérias, além de conforme se fizesse necessário, processar emissões do ultravioleta e infravermelho. E não era só isso. Assim como fora dotado de uma novo e sofisticado componente que dispensava as antigas lentes de vidro, delicados sensores poderiam inverter a resolução desejada, de microscópica para macroscópica. Quando recebera as roupas, ativara o micro e notara que suas fibras haviam sofrido poucos danos, indicando que fora lavada poucas vezes. Além disso, os sensores haviam constatado uma enorme quantidade de partículas de pó e um grande número de bactérias, além do que seria considerado normal para os ambientes de onde viera. Talvez trouxesse alguma complicação a seres humanos que a vestissem. Outro detalhe que não lhe traria problemas, já que só algumas formas de vida extremófilas, poderiam causar algum dano aos seus componentes internos.

Quanto à qualidade dos alimentos oferecidos, percebeu num dos pedaços de pão, pequenos pontos verdes causados pela proliferação de fungos. Tais detalhes, decorrentes do desconhecimento dos perigos da vida microbiana, explicavam o registro que dispunha desta época da alta mortandade provocada pelos mais diversos patógenos. Isto, sem levar em conta as guerras que deveriam provocar outros tantos óbitos por falta de assepsia no tratamento dos ferimentos.

Os fluxos de dados normalmente não se voltavam a reflexões, mas sim a encadeamentos lógicos de fatos. Pela primeira vez em sua existência, que o deixou indeciso se dispensava tal informação, uma breve consideração irrelevante percorreu seus circuitos, desviando-se da corrente principal de dados. Ao fixar-se na imagem do precoce envelhecimento da viúva, que pela sua acurada avaliação mal deveria ultrapassar a casa dos quarenta anos, chamou sua atenção o fato da fêmea ter ultrapassado a expectativa média de vida daqueles habitantes. Mas comparado à média de sua época que se estendera até aos cem anos, vivera muito pouco. Era um paradoxo como seres tão frágeis haviam conseguido existir por tanto tempo sobre a face da Terra. Por enquanto, seguindo a estratégia da natureza, tais fêmeas produziam uma grande prole, o que permitia a sobrevivência de alguns descendentes para reiniciar o processo.

7 – SOBRE TUNGUSKA.

Enquanto V238 esforçava-se para adaptar-se a um ambiente para o qual não fora projetado e dar prosseguimento à missão do qual fora incumbido, V087, seu superior a bordo da ARES, conseguira penosamente realizar múltiplos saltos através de sucessivas aberturas no tecido espaço-temporal. Utilizando os parâmetros registrados pelos sensores da nave quando da primeira passagem, engenhosamente utilizara os vetores da fenda aberta para trilhar o caminho inverso. Fora obrigado a proceder desta forma já que os cálculos feitos, com o auxilio da I.A da nave, haviam limitado suas manobras a pequenos saltos. Sem os grandes pulsores em órbita terrestre não haveria a densidade suficiente de partículas para dobrar o espaço e abrir um túnel que lhe permitisse empreender o retorno de uma única vez. Desta forma o regresso de V087 ficara limitado à restrita ação dos pulsores que conseguiam apenas criar pequenos wormholes rotatórios de cada vez.

Mesmo assim os pequenos buracos tinham um custo. Necessitava de energia para imprimir densidade. E toda vez que energia era requisitada o campo eletromagnético definhava num patamar inverso. Consciente de que o colapso da contenção da antimatéria ocorreria a qualquer tempo, refinou os cálculos para atingir o século XXI em dois últimos movimentos antes que o fim sobreviesse. Se conseguisse concretizar o último, antes do colapso do campo, assim que saÍsse do wormhole lançaria a pequena bóia espacial com todo o registro possível sobre o acontecido com a missão.

Seguindo esta linha de ação, procedeu às manobras para realizar o penúltimo salto. A sirene alardeando que o campo poderia entrar em colapso devido às exigências constantes de energia, não alterou sua decisão de prosseguir. V087 fez suas próprias estimativas. Elas apareceram na constante tela esquerda do seu campo de visão, indicando que o percentual de chance de concretizar os dois últimos saltos não superava os 37 %. Era correto presumir que mesmo que não o fizesse, a nave acabaria explodindo, já que os sensores o informavam a todo instante a progressiva queda do campo de contenção. Tal situação tornava bem claro que não haveria como evitar o desastre. Pelo menos poderia utilizar uma nave condenada para tentar alcançar a Terra que deixara e cumprir parte de sua programação básica.

Assim que saiu do outro lado do wormhole, depois do penúltimo salto, ao estabilizar e preparar a nave para o derradeiro, os sensores captaram fracos sinais de rádio. Mas este dado novo não mudou a delicada situação. Mesmo que tivesse tempo para estabelecer contato, os instrumentos a bordo indicavam que a comunicação seria deficiente já que os fracos sinais indicavam transmissores incipientes. Provavelmente deveria estar nos fins do século XIX ou começos do sèculo XX. Isto era um claro sinal de que ainda não chegara aonde queria, mas já estava bem perto de seu objetivo pelas evidências do aprimoramento tecnológico que estava capatando abaixo. Ele lamentou não poder enviar qualquer sinal para a grande esfera azulada que podia divisar da janela da nave. Mesmo que utilizasse o sistema de telegrafia, sua mensagem não seria compreendida e não haveria quem pudesse recebê-las. Assim, outras prioridades permeavam seus nano-processadores, enquanto a ARES lentamente cruzava a parte norte da Sibéria, passando acima de uma grande mancha azul escura conhecida como lago Baikal.

Enquanto preparava os pulsores para o último salto, ele voltou a se ocupar com os registros do lançamento precipitado em busca de suas causas. Com base no que coletara até aquele momento, conseguiu delinear um quadro geral dos acontecimentos. Os dados apontavam para uma carga inesperada de energia que atingira os grandes pulsores. Estes, energizados, haviam intensificado o fluxo de wimps à frente da nave, atraindo-a de forma descontrolada para a fenda espaço-temporal aberta, como uma bola jogada rampa abaixo. Mas não existiam explicações para aquele súbito pico de energia, já que todo o sistema possuía mecanismos de segurança para evitá-los. Sem poder acessar os dados do Centro de Controle a questão continuaria sem uma resposta. O que ocorrera depois ele poderia teorizar.

Da mesma maneira que V238, V087 chegou às mesmas conclusões. O excesso de wimps abrira não um túnel de Krasnikov esperado e sim um túnel de Schwarzchild rotatório. Ao passo que o primeiro, sendo estável, conectaria a Terra e Marte em tempo relativo, o segundo, à medida que girava, conectava-a a espaços-tempos sem obrigatoriedade de simultaneidade.

Utilizando tais premissas, programara a nave para refazer, dentro de suas possibilidades, os túneis de Schwarzchild em rotação inversa. O que se revelara acertado. E agora, se tivesse sucesso com a última fenda, poderia completar todo o arco de retrocessos, regressando finalmente ao século XXI.

Os acontecimentos, porém, não seguiram o meticuloso planejamento de V087. Sempre havia aquele fator que não fora levado em consideração. Assim que a nave começou a trepidar, ele inferiu que se tratava de um efeito secundário do campo, tentando estabilizar o transporte de energia dos motores para os pulsores traseiros. Mas desta vez era mais do que isso. Era o colapso total do campo de conteção da antimatéria que não poderia ser revertido por mais que tentasse evitar. Antes de romper a barreira eletromagnética, o feixe de energia que provinha do reator oscilou por alguns segundos e depois cessou por completo de alimentar os motores. Sem vida, os pulsores também pararam provocando o rápido fechamento do túnel. Sem os motores para estabilizar a órbita, a nave começou a adernar rumando na direção da densa floresta boreal que circundava o lago Baikal.

Em seus últimos momentos de existência, V087 tentou tudo o que era possível para controlar a queda da nave, utilizando o restante da energia de que ainda dispunha nos pequenos foguetes laterais. À medida que penetrava na atmosfera, fez algumas manobras para aprumar a frente da nave para um pouso forçado. A cada travessia, que o fizera movimentar-se por vários wormholes rotatórios que o haviam levado de Terra em Terra, exigira demais de uma nave já avariada e agora pagava o preço pela audácia. Mas antes que a nave conseguisse antigir o solo, um segundo Sol irrompeu acima daquela região selvagem do século XIX. Quando o inevitável aconteceu, os nanoprocessadores de V087 não lhe transmitiram nenhuma sensação que pudesse se comparar ao terror provocado pela iminência da morte, o que presenciara tantas vezes. Seu dever era o de impedir danos aos seres orgânicos que o haviam criado e até aquele último instante, quando a nave explodiu sobre a Sibéria, ele continuava a lutar para impedir isso. Parodoxalmente, em milésimos de segundo, enquanto seus componentes se vaporizavam, pela primeira vez em sua existência, a idéia da não existência invadiu seus circuitos. Algo próximo ao que se poderia classificar de melancolia. A impossibilidade de não poder registrar mais nada. A desativação total.

Sem entender a razão de tal perplexidade, inédita em sua curta existência, ele ainda tentou inultimente reagir, premindo o botão que lançaria a bóia espacial, mas a onda aniquiladora viajando a uma fantástica velocidade, foi mais rápida que seu último impulso. Por um breve momento, o último que seus processadores foram capazes de sensoriar, seu centro de lógica foi inundado inexplicavelmente com as imagens de V238 e V134. Talvez fosse uma falha geral de todo o sistema ou talvez um “desejo” igual ao dos humanos de não deixar de existir sozinho. Mas era um “só talvez”. Como que lamentando a incoerência de seu principal propósito, as informações que ocorreriam em seguida que jamais poderiam ser entregues aos seus criadores. Ou talvez... Este foi seu último pensamento lógico. Depois, sobreveio apenas o nada, o silêncio, a escuridão... A inatividade. O colapso do campo que protegia o motor de antimatéria provocou uma explosão de vinte megatons de intensidade, cuja onda de pressão acima da floresta, abateu milhares de árvores da taiga siberiana. Transcorria o ano de 1908.

***

A um leve toque de seus dedos a Dra. Katlyn iníciou a exibição de uma série de imagens. O que se via na grande tela da sala de reuniões, dentro do Centro de Pesquisa Langley na Virigínia, era antigas fotos de 1927, de pessoas em meio a uma floresta devastada. Todos tinham participado da primeira expedição organizada à remota região de Tunguska pela extinta União Soviética. À medida que elas se sucediam, ouvia-se a voz de MINERVA, a inteligência artificial conectada via satélite àquela sala repleta de especialistas. Sua suave voz recordou que a revolução que depusera a dinastia dos Romanov retardara por quase duas décadas a organização de uma expedição para pesquisar os efeitos físicos da estranha explosão.

- Assim que os membros chegaram à região, - continuou ela, - o primeiro dos efeitos destacava-se a olho nu: mais de 80 milhões de árvores derrubadas. Todas estavam dispostas num determinado ângulo indicando a direção da onda de choque. Mas para assombro daqueles pesquisadores, nenhuma cratera de impacto foi encontrada no epicentro da explosão que, em relação aos danos provocados na área, estimo numa potência de 20 megatons. Para que todos tenham uma ideia da energia envolvida na explosão ela foi superior à de Hiroshima em mil vezes. Sua capacidade teria sido suficiente para obliterar uma grande megalópole atual da Terra.

Ela fez uma pausa e deu prosseguimento à apresentação dos dados. - Apesar de pequenos lagos próximos serem investigados como suspeitos de abrigarem os fragmentos de um cometa que se chocara com o solo, após espatifar-se em plena atmostera, as sondagens nada revelaram neste sentido. Os minerais encontrados, até hoje estão sujeitos a diversas interpretações.

A seguir ela mostrou na tela os resultados das análises feitas pelo MIT de pequenas amostras dos sedimentos retirados do solo da região, contrabandeados por dissidentes do antigo regime soviético. Enfatizou que sondagens feitas naquele longiquo século XX, pela falta de instrumentos mais sofisticados, pouca contribuição haviam dado para esclarecer as dúvidas. Mesmo no século seguinte, exames e estudos haviam descartado que pertencesse a um corpo como de um cometa ou de um meteorito pela falta do elemento irído muito comum nestes corpos celestes.

O Doutor Stone sem esconder a satisfação de ter apontado o caminho, com um leve passar da mão sobre um sensor, criou uma pequena tela para analisar por si mesmo as análises dos sedimentos de Tunguska feitas pelo laboratório do MIT. Estas indicavam uma anomalia: uma alta concentração de partículas TIN.

Nos séculos anteriores, não havia a tecnologia necessária para captar as tênues partículas resíduais deixadas pela aniquilação da matéria em contato com a antimatéria. Até o início do século XXI era senso comum entre a comunidade científica que o contato da matéria ordinária com antimatéria provocaria a total aniquilição de ambas. Mas à medida que instrumentos mais sensíveis foram sendo construídos, descobriu-se que parte da massa convertida em energia transmutava-se em pequenas partículas que hipotéticamente poderiam misturar às do nosso universo. Cunhadas como TINYCLES por causa da contração dos termos ingleses “tiny” e “particles”, seu aparecimento só ocorria nos grandes colisores ou em raras circunstâncias hipotéticas em que ela estivesse presente, o que até então nunca fora detectado. Esta seria a primeira vez.

A pergunta que percorria a mente de todos era como os sedimentos haviam se impregnado “naturalmente” com as fugazes particulas Tinycles? Tal impregnação só poderia acontecer a partir de uma fonte externa. E não havia naquela ocasião nenhuma fonte natural ou artificial no cosmos que pudesse fornecer a quantidade necessária. Era uma anomalia que só poderia ser explicada pela explosão de um gerador de antimatéria semelhante ao utilizado pela ARES.

O Dr. Stone interrompeu a fala de MINERVA que prosseguia e lhe fez uma pergunta. – Acessando todos os registros que conseguiu obter daquela época, há qualquer indicio de que a entrada na atmosfera, do que quer que tenha sido, foi errática ou guiada por alguma inteligência?

Todos se voltaram para ele. MINERVA, sem qualquer sinal de alteração na voz, respondeu-lhe prontamente. Segundo ela, os raros testemunhos da época relataram apenas um forte brilho nos céus, seguido por uma onda de choque, o que era pouco para indicar qualquer ação inteligente. Assim que acabou de responder ela continuou a explanação. - Mas por outro lado, fenômenos naturais como meteoros, cometas e até mini buracos-negros, foram descartados com exceção de raras nuvens de posítrons. - Vamos lá MINERVA! – disse o Dr. Stone. – Por que não citou o Dr. Yuri Labvin? - Quem é este homem, MINERVA? – perguntou por sua vez, a Dra. Katlyn. Ela respondeu prontamente que Yuri Labvin fora o presidente de uma excêntrica organização russa denominada Fundação de Fenomelogia Espacial. Seus membros alegavam que uma nave espacial teria colidido com a Terra em junho de 1908. - E em quê ele baseava esta excêntrica teoria? - perguntou o Dr. Stone. Houve um momento de suspense. - É correto supor, - disse ela, - que ele estava totalmente errado em suas suposições. Alegava que tinha encontrado restos da nave em cristais de quartzo no solo, o que é bastante discutível. - E há algum registro de qualquer afirmação que fez? Ela fez outra pausa. - Sim, ela diz textualmente que "Nós não temos nenhuma tecnologia que possa imprimir essas marcas nesse tipo de cristal.(…) E foi encontrado silicato de ferro que não pode ser produzido em nenhum lugar da Terra, somente no espaço." - Estão vendo senhores. Ele podia estar errado quanto às provas, mas estava certo quanto às evidências. O quartzo poderia ser explicado facilmente, mas as partículas TIN, não. Obrigado MINERVA.

A Dra. Katlyn, fez por sua vez outra pergunta à Inteligência Artificial. – Quais são as probabilidades de que estamos lidando com algum vestígio da ARES?

MINERVA processando uma série de variáveis e parâmetros fornecidos, respondeu-lhe que a estimativa era de exatos 97 %.

Por mais estranho que pudesse soar, a única nave até então construída pela humanidade dotada de um gerador de antimatéria, que no caso de uma pane, poderia impregnar as rochas do planeta com partículas exóticas era a ARES. A menos que outras fossem construídas no futuro e poderiam ser vitimadas pelo mesmo processo.

A pedido do Dr. Stone, MINERVA fez uma simulação na tela. Por ela demonstrou que devido à rotação da Terra, por pouco a explosão não se dera sobre uma grande cidade russa, o que afastava qualquer possibilidade de ser um evento natural, já que o fenômeno apresentava uma probabilidade de 86.7 % de ter sido direcionado àquela região pelas simulações requeridas.

Seria um indício inequívoco que explicaria onde a nave reaparecera e fora destruída, após o desaparecimento? Era a pergunta que assaltava a mente da maioria dos presentes. Mas não do Dr Stone que não tinha mais dúvidas.

Mas ficava a pergunta: se fosse mesmo a ARES, como viera parar em 1908?

O Dr. Bramanir pediu a MINERVA que fizesse outra simulação, no que foi acompanhado atentamente pelo Dr. Stone.

Cada um dos físicos inseriu seus cálculos e à medida que faziam isso, MINERVA os acompanhava alterando constamente as simulações. Após quase meia hora de discussões e revisões ficou bem claro, que a ARES, ao romper o tecido do espaço-tempo, penetrara devido ao acréscimo súbito de partículas pesadas não na fenda de Kraniskov, mas sim, num buraco de minhoca tipo Schwarzchild. E não era só isso. Para que a nave reaparecesse na data especulada, ele teria que girar.

Se o Dr. Stone apontara o caminho, o Dr. Bramanir foi mais longe. Não havia garantias de que a nave irrompera num único determinado espaço-tempo como o de 1908. Por ser rotatório, o próprio fenômeno implicava no reaparecimento em diversos espaços-tempos aleatórios. Não havia como controlá-lo. Poderia seguir o ritmo da flecha do tempo, do passado para o futuro, ou talvez não.

Teria a aparição de 1908 sido a última? Ou a ARES poderia antes ter reaparecido no futuro, antes de regressar ao passado? Ou reaparecera em data mais antiga? Era essa uma das informações que V087 lamentara não poder entregar.

Mas a Dr. Katlyn não se limitaria a encontrar explicações científicas. Sua presença era requisitada em outros lugares, conforme a necessidade da investigação exigisse. Naquele mesmo dia, ela se ausentou da reunião e foi encaminhada para uma sala do imenso prédio do FBI em Langley. Lá, antes de adentrá-la, foi recepcionada por um dos diretores departamentais.

O método de investigação era o habitual da agência. Foi avisada pelo diretor de que o homem que podia ver através da parede transparente não sabia que estava sendo vigiado. Ela se aproximou e ficou boquiaberta. Não podia acreditar no que estava vendo. Depois, se recompôs e voltou-se a ele.

- Quem é? – perguntou.

- O homem que vê é Joshua Timberland?

- Joshua Timberland? Onde já ouvi este nome antes?

- Ele trabalha para nosso governo. Está envolvido em um projeto secreto na Área 51. É um trabalho bastante confidencial da Força Aérea. É só o que posso dizer. Devido às circunstâncias conseguimos uma permissão especial do gabinete do Presidente para trazê-lo. Como sabe nossa jurisdição não permite a entrada na área sem a permissão do Presidente dos Estados Unidos.

- Sei disso. – ela retorquiu. – Mas seu nome... Ah! Lembrei-me. – estalando os dedos. – Há dois anos ele publicou um trabalho, sobre deslocamento molecular contínuo. Depois nunca mais tive notícias dele... Até hoje.

Os agentes próximos do diretor apenas ficaram olhando para ela, sem confirmar ou desmentir o que dizia. Era como se falasse sozinha. - Por isso foi levado à base e... Deixe pra lá.

Ela os olhou interrogativamente, receando não poder se aproximar mais dele, o que a deixaria frustrada. Mas não foi o que aconteceu. Se soubessem de algo, de algum perigo que poderia representar, pelo menos naquele momento, não fizeram objeções à sua entrada.

- Tome aqui Doutora. – disse um deles. – entregando-lhe um processador de dados portátil. Ela o pegou e ficou olhando para ele.

- Está desbloqueado para certas informações. Tem aí tudo que precisa saber sobre ele que foi possível liberar. Mas ele ainda não sabe porque foi trazido até aqui.

O dispositivo era uma das ferramentas mais usadas pela agência em suas investigações de campo e poderia acessar a I.A. do FBI a qualquer hora ou de qualquer ponto da Terra que fosse necessário. Com ligeiros toques de dedos, descobriu tudo o que era necessário sobre Joshua Timberland. Não era um clone ou qualquer coisa deste gênero. Impressões digitais, nervuras óticas e o próprio ADN, não deixavam dúvidas. Eram os mesmos marcadores biológicos do homem que vira morrer baleado no centro de lançamento. Mas este ainda estava vivo? Como? Precisava falar com ele, para ver se conseguia descobrir alguma coisa. Não que o FBI já não tivesse tentado. Mas ela queria ter sua própria opinião.

Katlyn respirou fundo. A conversa poderia resultar num enorme fracasso se não fizesse as perguntas certas. Perderia assim a chance de poder esclarecer a parodoxal situação de Joshua Timberland, que estava vivo e morto ao mesmo tempo. O FBI tinha sido precavido em esconder este fato para evitar algum possível choque. Mas isto também não ajudava em nada, já que não poderia usar esta informação para ajudá-la na conversa que teria dali a poucos segundos.

Assim que deu os primeiros passos, ouviu seu dispositivo de comunicação apitar. Retirou-o do bolso e leu a mensagem. Não queria ativar o áudio. No momento sua ideia era a de manter em sigilo o pedido que fizera a Ian, pelo menos no que tocasse aos resultados. Ele terminara com ATENA, aproveitando ao máximo o tempo que lhe haviam concedido. E preferia falar-lhe pessoalmente.

Ela prosseguiu, deu uma última parada e depois abriu a porta. – Joshua Timberland? Como vai?

8 – RUMO A FLORENÇA.

VINCI 238 despediu-se dos habitantes da vila, em trajes que, pela lógica, não despertariam mais a atenção por onde passasse. Isto o ajudaria a concentrar-se na tarefa que tinha pela frente de encontrar um meio de retornar à sua época e completar a diretriz básica de preservar as informações. Não dispondo de uma montaria, seu plano inicial era o de fazer o percurso a pé até a cidade mais importante daquela região da Itália. Talvez ali pudesse encontrar os meios, as condições necessárias para implementar algum tipo de ação neste sentido. Condições impossíveis de se encontrar naquela pobre aldeia de pescadores, carente de qualquer recurso.

A única coisa que levava consigo, numa rota sacola de couro, eram os mantimentos oferecidos pela velha senhora. Eles não lhe seriam úteis, mas pretendia desfazer-se deles quando estivesse bem longe do vilarejo. Primeiro porque não pretendia ofender a atenção da velha senhora e segundo, para não despertar algum tipo de curiosidade desnecessária pelo fato de não precisar ingerir alimentos. Sem um mapa da topografia da época, teria que se basear para orientação, no primitivo sistema de comunicação verbal.

Pedindo informações aqui e ali, passou por uma série de aldeias, onde constatou o evidente domínio da região pela poderosa cidade-estado da toscana: Florença. Sinal de que deveria mesmo estar ou no século XV ou XVI, em plena Itália renascentista. À medida que continuou no rumo nordeste, seus sensores se deram conta do crescente aclive do terreno que se acentuava cada mais em direção à distante cordilheira central dos Apeninos, que corta a península itálica em duas partes. Neste percurso, um dos seus primeiros objetivos era descobrir a data exata em que estava. Um dos locais que poderia lhe fornecer material para este propósito seria um dos edifícios onde os humanos cultuavam suas divindades: as igrejas. Mas para conseguí-lo deveria se aproximar de uma e mascarar suas intenções. Talvez se se fizesse passar por um devoto comum, não despertasse suspeitas, alegando contratar uma celebração pela morte de um ente falecido. Poderia indagar o ano, passando-se por um iletrado camponês, obtendo assim a data que desejava. Ou aguardar a chegada a alguma cidade maior onde deveriam existir repartições governamentais, com os mais diversos registros que com certeza facilitaria sua busca. Mas seus conhecimentos referentes a estes detalhes eram nulos. Poderia fazer a pergunta errada e ser tomado por algum estrangeiro de alguma cidade rival, levando-o a uma situação que desejava evitar. Seria mais fácil, conseguí-lo com um clérigo.

V238 constatou uma precariedade visível nas comunicações terrestres. Todas se apresentavam mal conservadas e sem nenhuma segurança. Como era possível o transporte por aquelas vias de mercadorias e homens? Principalmente o domínio político exercido pela cidade? Diferentemente da época romana, a estrada que cruzava agora se apresentava como um sério obstáculo para o rápido transporte de um exército, o que dificultava o entendimento de como a cidade conseguia assim mesmo dominar aquela vasta região da Toscana.

Para piorar sua locomoção havia claros sinais de que tinha chovido muito nos últimos dias. Seus sensores visuais captavam todo tipo de sulcos provocados pela passagem de carroças, patas de cavalos e pegadas humanas. Tudo misturado num barro escuro, salpicado de poças de água estagnada. Outros sensores indicavam uma temperatura amena, o que dificultava identificar a estação do ano em que se encontrava. A duração do dia poderia lhe dar um indicio da estação. Mas sem saber quando fora o último equinócio ou solstício, a precisão seria inexata. Programado por uma sociedade obcecada por precisão, a definição da data poderia parecer irrelevante diante daquela situação inusitada, mas era a maneira como seus processadores trabalhavam. A obtenção de dados precisos como a data, na sua maneira de interagir com o mundo era de primordial importância para elaborar um plano de ação para retornar ao período de onde viera. Cumprir sua missão era algo semelhante ao instinto de procriação nos seres vivos. Retornar e informar o que acontecera a ARES dali em diante, seria a única razão para a sua existência. Sua programação constantemente preenchia seus processadores com uma série de ações que deveria tomar, à medida que prosseguia por aquelas estradas barrentas. Necessitava de uma data. Um ponto de partida. Quando a determinasse, talvez tivesse que convertê-la para o calendário gregoriano caso ainda estivesse longe do ano de 1582. Uma probalidade de 99,8 % de estar correto.

Em seu trajeto, passou por alguns andarilhos, que o olhavam de forma estranha. Talvez suspeitassem que fosse algum assaltante, já que nos campos, a insegurança era muito grande devido a grupos constantes de ladrões. Muitas vezes teve que dar passagem a grupos de soldados armados que passavam numa cavalgada disparada sem se desviarem de quem quer que encontrassem pela frente.

As armaduras que cobriam seus torsos e os elmos que cobriam suas cabeças eram tão diversas, tão diferentes dos uniformes homogêneos dos exércitos do século XXI, que tentar descobrir de qual ano procediam, era uma tarefa quase impossível. Mesmo assim esforçou-se para compará-las com os escassos registros de que dispunha de algumas gravuras da época. Algumas remontavam ao século XV. Isto talvez pudesse lhe fornecer mais um parâmetro temporal para confirmação. Por outro lado poderiam ser armaduras já gastas, reutilizadas por diversos soldados ao longo de décadas, o que prejudicaria a definição de uma data precisa a partir de simples comparações visuais.

Após uma longa caminhada, avistou uma pequena cidade, em cima de uma colina com as características construções em forma de torre, como dedos apontados para o céu. Dirigiu-se na direção do campanário mais próximo.Acelerou os passos e logo se viu em meio a ruas estreitas, que davam para uma das poucas praças visíveis.Parou um transeunte e perguntou-lhe o nome da cidade. Este lhe respondeu que estava em San Gimignano, a meio caminho entre Siena e Florença. Da pequena praça fez um giro completo de cento e oitenta graus para registrar as torres que a rodeavam. Pareciam desafiar uma à outra em altura. A razão de serem assim era um enigma para um visitante do século XXI como ele. Não que desconhecesse construções maiores do seu tempo, mas aquela disposição carecia de significado. Aproximou-se então de um homem já bastante velho que caminhava lentamente apoiado numa pequena vara. Ele demorou um pouco para responder, como se tivesse dificuldade em lembrar-se da própria razão de existir. Depois apontando para algumas, como se as recordações revigorassem suas energias, explicou-lhe que em épocas passadas cada uma pertencera a uma facção que lutara para dominar a cidade. Cada uma funcionando como verdadeiros bastiões, para onde se entrincheiravam os bandos, nos frequentes casos de disputa pelo poder.

Satisfeito em solucionar aquela insólita característica arquitetural, passou por um pequeno agrupamento de barracas onde os camponeses locais vendiam o que produziam. Seu objetivo era a igreja que dominava a pequena praça. Construída em estilo romano, aproximou-se de sua porta e observou o seu interior tomado por um pequeno grupo de pessoas. Todos prestavam atenção ao sermão do clérigo. Com certeza estavam envolvidos nos estranhos rituais humanos de reverência a uma força sobrenatural que ainda não conseguira compreender plenamente em sua breve existência. Experiências como vida e morte lhe eram desconhecidos. Não que não os tivesse presenciado, ou não se inteirasse deles. Sofrimento e dor eram constantes nos seres biológicos. Estes conceitos faziam parte de sua programação básica para poder melhor entendê-los. Sobressaia-se entre elas a instigante particularidade humana de desejar sobreviver à não existência. De apelar a forças desconhecidas para que seus desejos fossem atendidos ou que seus destinos fossem mudados sem se ater à lógica de causa e efeito. Era como se o homem que tudo pensava poder fazer, abdicasse inexplicavelemente de seus predicados e como uma criança indefesa, recorresse a um adulto para ampará-la. Era um paradoxo dificil de entender e muito mais difícil de explicar. Como uma entidade tão poderosa que imaginavam estar fora do Cosmo e do próprio tempo, poderia distiguir naquelas manchas formadas por milhões de galáxias, algo tão ínfimo habitando um pequeno borrão? Não seria o mesmo que pedir ao homem que tomasse conhecimento de cada uma dos trilhões de bactérias presas a poeira flutuando no ar?

Enquanto fazia estas considerações, próximo da porta da igreja, não deixou de soar irônico o falar do clérigo sobre o desapego aos bens materiais, sobre a perenidade da vida e à necessidade de se preparar o espírito para as benesses daqueles que seguiam os ditames do cristianismo na “outra vida”, fosse lá o que isso significasse para uma mente que só trabalhava em termos lógicos. Tais declarações lhe pareciam paradoxais já que o homem que as pregava, demonstrava se apegar mais aos bens terrestres do que aos do céu, pela suntuosidade da roupa que vestia e pela obesidade provocada pelo sedentarismo e farta alimentação.

Se havia algo que sobre o qual muitos de seus congêneres se debruçavam, era a natureza deste corpo translúcido que todo humano dizia possuir: o espírito. Não eram dados à filosofia, mas se perguntavam se também possuiriam algum componente interior que poderia se classificar como alma. Tanto os humanos como eles próprios, não passavam de uma composição diversa, dos mais diversos órgãos e não compreendiam como esta disposição interior poderia albergar algo mais, que não fosse a própria conseqüência de sua interatividade. Afinal era a alma que pensava, ou a complexa disposição dos neurônios dentro do cérebro? Como não poderiam ter uma, se conseguiam pensar de forma quase idêntica à humana?

Enquanto esses fluxos de dados perpassavam seus sensores nanoneurais, ele acabou se dando conta de que, fixada na madeira escura da grande porta da igreja, estavam fixadas sem qualquer ordem, uma série de listas e outras informações para aqueles que soubessem ler. Além de listas de batizados, falecimentos e casamentos, havia menções sobre algumas celebrações religiosas. A impressão, laboriosa, em latim, utilizava ainda muito pergaminho e pouco papel. Com sua visão aprimorada percebeu que naquela região, o tipo de impressão móvel de Gutenberg ainda não era utilizado, recorrendo-se a letras fixas de madeira. Mas isto era irrelevante já que o mais importante era o que continham: datas. Talvez alguns estivessem ali, há semanas ou meses, pelo desgaste em que se apresentavam, submetidas às constantes mudanças do clima. Leu as mais legíveis e a última, sobre a qual fixou seu sensor mais demoradamente indicava uma data precisa: 14 de setembro de 1480.Isto já era um começo. O ano indicava que ainda seguiam o sistema Juliano, antes da reforma feita pelo papa Gregório XIII em 1582. Portanto, pelo novo sistema a data correta do papel seria 24 de setembro daquele mesmo ano. Só não havia como saber, se fora colocado ali no mesmo dia da sua confecção ou em outro dia qualquer. Mesmo assim se existisse alguma diferença, seria no máximo de alguns poucos dias. Ao passar os dedos sobre ele notou que a textura e a tinta eram de confeção recente o que confirmava suas suspeitas de estar ali há pouco tempo. Isto significava que estava em pleno outono e dependendo das correntes aéreas, começariam as chuvas e a tendência de queda na temperatura. Isto explicava também o estado das estradas pelas quais passara. Mas como a península estava rodeada de água, que retinha mais calor, seria um inverno mais ameno do que na região acima dos Alpes ou no seu interior montanhoso.

Sabendo agora o ano em que se encontrava, teria que recorrer às escassas informações que dispunha deste período, para poder idealizar um plano de ação que conseguisse concretizar as ordens de V087 de levar informação até o longinquo século XXI.

Seus criadores humanos esperavam que unidades como ele pudessem reagir e tomar suas próprias decisões nas situações em que estes estavam ausentes. Por isso, seguindo este principio, o haviam alimentado com uma série de diretrizes e informações, entre elas um apanhado geral da história da humanidade para que pudesse interagir com as mais diversas formas de linguagem e culturas. Se não pudesse receber instruções diretas esperava-se ao menos que pudesse funcionar de forma independente adaptando-se ao meio em constante mudança.

Depois de obter a data que procurara, ele ficou parado, olhando a praça e o para onde deveria ir a partir dali. Apesar de suas baterias funcionarem à base de um isótopo do rádio, o RA-226, com meia vida de 1602 anos, dificilmente seus componentes, sem a manutenção adequada durariam 600 anos, tempo suficiente para continuar existindo até o século XXI e poder informar a NASA o que sucedera à tripulação. Quanto a ARES, o súbito desligamento, interrompera o registro de informações e desconhecia se o seu superior V087 tivera sucesso em levar a nave de volta ao período do qual tinham sido projetados. Em caso positivo sua missão seria apenas secundária. Em caso negativo, de primordial importância.

Biologicamente não havia opções. Ele não dispunha de uma genitália ou mesmo de órgãos de excreção que pudessem fazê-lo comportar-se como um humano normal. Desta forma não podia interagir com as fêmeas humanas, deixando um descendente direto que de geração em geração pudessem prosseguir com a missão. Mesmo a adoção, ou uma fertilização artificial estava fora de cogitação pelas implicações e dificuldades. Sem os reparos e as máquinas auxiliares que permitissem uma manutenção em seu corpo, poderia no máximo prolongar sua existência por três séculos, algo impensável para os humanos daquela época. Seus membros seriam os primeiros a parar, impedindo a locomoção e por último cessariam as centrais de processamento nanoneurais. Teria de encontrar um meio de continuar ativo até o século XXI, utilizando os recursos de que cada época dispunha ou interferir para criá-las, como se fossem partes do processo de avanço tecnológico da humanidade.

Os detalhes históricos daquele período armazenado em sua memória, e posteriormente conhecido como Renascença, dava-lhe uma visão bastante simplificada da época. Vários nomes se destacavam, entre eles o de Leonardo, da pequena cidade homônima que designava a classe de biônicos a que pertencia. De acordo com os dados, por esta época, ele deixara a Bodega de Verrachio e instalara-se a sua própria ainda na cidade de Florença. Em pouco tempo, deixaria esta grande urbe e se dirigiria para Milão, para se por à serviço de Ludovico Sforza. Se a data estava correta ele ainda não se mudara. Sua intenção era localizá-lo e contando com sua infindável curiosidade e sabedoria, que transcendia o normal para sua época, talvez pudesse persuadi-lo a ajudá-lo. Quem sabe, depois que o preparasse e revelasse sua real natureza, poderiam juntos encontrar um meio de prolongar sua existência, mesmo estando longe da tecnologia do século XXI.

Enquanto avaliava estas probabilidades, a cerimônia religiosa acabou e o pequeno aglomerado de fiéis começou a deixar o interior da igreja. Estavam tão ocupados, entregues aos próprios pensamentos que ninguém lhe deu a mínima atenção. Mas o clérigo que oficiara a missa, não deixou de receber o aviso de um dos auxiliares a respeito da personagem que observava atentamente os avisos fixados na porta. Ele discretamente o olhou dali mesmo e se perguntou quem era afinal aquele estranho de vestes simples, que parecia procurar por alguma coisa importante no que estava ali escrito, e depois ficara parado na porta, sem participar do oficio religioso? Talvez um clérigo daquele período não tivesse notado. Mas ele não era um clérigo daquela época e fora enviado para observar. Para cumprir uma missão. Instruíra-se sobre a liturgia das missas e sobre o latim, para poder melhor desempenhar o seu papel. E havia sido alertado para observar os detalhes dissonantes. E o que viu se encaixava. Era um comportamento diferente do que notara na maioria dos habitantes da pequena cidade quando passavam em frente da igreja. Não fizera os gestos rituais e não parecia demonstrar qualquer reverência por ela. Além do mais, os trajes rústicos próprios de um aldeão pobre e analfabeto, não combinavam com uma pessoa que demonstrava saber ler. A maneira como diligentemente observava cada um dos proclamas e editais constituia uma demonstração cabal desta habilidade. Poderiam ser estes detalhes contrastantes pertencer àquele por quem estavam procurando? O que viera junto com a luz que caíra do espaço?

Assim que se despediu dos membros restantes da família que solicitara seus serviços, dirigiu-se na direção dele.

- Posso ajudá-lo em alguma coisa, meu filho? – Depois o olhou por algum tempo, procurando descobrir em seu semblante, algum traço que o ajudasse a entender a razão de sua presença. Mas apesar de ser um rosto comum, carecia de expressões, o que o deixou surpreso, já que conseguia antecipar pelos traços faciais, o que motivava os homens a procurá-lo. - Eu não o conheço. Tenho boa memória para rostos e não me recordo do seu. Está de passagem pela cidade? Precisa de algum tipo de ajuda?

- Sim.

- Quer se confessar? Algum conforto espiritual?

- Não.

- Então o que quer?

- Eu venho de uma família pobre, como pode perceber. Não sei ler e nem escrever, por isso, ao passar pela igreja, lembrei-me de minha falecida mãe. Gostaria de rezar pela alma dela. Mas já faz tanto tempo, que eu nem me lembro de quando isso aconteceu. Não sei ler os números e por isso nem sei em que dia do ano estamos.

O sacerdote ficou desconfiado com sua afirmação, já que ele dera claras demonstrações de saber ler. E apesar da maioria ser analfabeta, acompanhavam o calendário das celebrações religiosas com bastante assiduidade, sabendo o exato dia em que estavam, o que o fazia soar mais falso ainda.

- Sei que pode parecer estranha esta pergunta. Mas fiquei prisioneiro dos turcos por muito tempo, e não pude acompanhar o culto como deveria. Fui libertado há poucas semanas, graças a uma galera veneziana, que antes de afundar o barco dos muçulmanos, libertou todos os prisioneiros cristãos.

- Posso entender o sofrimento que passou nas mãos daqueles que não seguem o verdadeiro caminho. – disse o clérigo. - Rezarei por alma e pela graça que lhe foi concedida. Entendo que esteja confuso. Hoje é o dia 15 de setembro de 1480 de nosso senhor Jesus Cristo.

Não era intenção de V238, prolongar-se num diálogo sem sentido com o sacerdote, já que obtivera a informação precisa que procurava, registrando-a em sua memória. Ele apenas precisava adaptar-se a situação política daquela região da Itália de fins do século XV, para por em prática algum tipo de plano. Seu objetivo agora era o de rumar para Florença e encontrar Leonardo.

- Quer rezar comigo? – perguntou-lhe o sacerdote, deixando-o sem saber o que responder.

– Agradeceria muito. Mas quando fui capturado, estava a caminho de Florença, onde mora minha família. Fiquei quase dois anos como prisioneiro e ainda tenho um longo caminho pela frente.

- Meu filho, deve agradecer a Deus a graça que ele lhe concedeu. Isto só abençoará seu caminho até Firenze. Na verdade, sei que as estradas estão cheias de bandidos, e vai precisar da ajuda Dele mais uma vez.

Era uma situação embaraçosa que V238 não previra. A igreja daquela época era uma força respeitável na península, e fazia parte da cultura local. Era prudente não desrespeitá-la. Alguns minutos a mais não faria diferença, se quisesse continuar anônimo. Apesar de que a insistência do clérigo começava a lhe parecer forçada, segundo o perfil relativo a interatividade humana. Descobrira o clérigo seu disfarçe assim tão rápido?

O sacerdote sem maiores explicações empurrou as portas, deixando-os a sós em seu interior. Imaginando que o sacerdote encerrara seus serviços naquele dia, ele o acompanhou até um dos bancos e repetiu os gestos que vira dos humanos, ajoelhando-se e respeitosamente fazendo o sinal da cruz. Era uma situação inusitada, já que fora construído para outros propósitos. Mas a missão vinha em primeiro lugar e teria que se comportar como um humano normal.

V238 não fora programado para fazer orações e procurou imitar o gesto humano de reverência, fechando os olhos. Enquanto assim procedia, não notou que duas outras figuras aproximavam-se sorrateiramente pelos lados. O sacerdote apenas trocara olhares com elas durante o ofício, e utilizando o pequeno comunicador escondido nas vestes, os alertara sobre o estranho parado junto às portas. Tinham aguardado na sacristia, esperando o momento certo para capturá-lo, assim que o sacerdote o convencesse a entrar. O engodo dera certo. A captura daquele homem seria fácil, bem mais do que a missão que vinham cumprindo até aquele momento.

Mas V238, não era um homem comum, e sua audição sofisticada, ouvira a respiração daquelas duas figuras que se aproximavam. Antes que pudessem aproximar-se demais, ele levantou-se bruscamente, deixando-os atônitos pela reação inesperada. Por que agiam daquela forma?

Eram dois soldados, que o olharam fixamente. As armaduras estavam cobertas por uma capa avermelhada. Mas ao invés de desembainhar suas espadas, retiraram um dispositivo oval. Ele ampliou a resolução da imagem e constatou que ou a história não havia registrado tais objetos ou o que era mais provável, não eram compatíveis com a tecnologia daquela época. E pelo comportamento dos dois homens, as intenções não eram nada amigáveis.

Ele se jogou para o lado, em cima do padre, a tempo de se desviar de dois jatos rubros que passaram a poucos centímetros de seu corpo, que explodiram junto às paredes da igreja. Decididamente não eram daquela época. Mas se não eram daquele período, de onde eram e porque o atacavam?

V238 agiu sem escrúpulos. O sacerdote que o agarrara, para que não fugisse dos soldados, demonstrando com esse gesto sua participação na sua captura, foi facilmente dominado e erguido, sendo jogando contra os soldados que não tiveram tempo de reagir.

Assim que os três humanos tentaram se recompor, ele apressou-se e dirigiu-se rapidamente para a sacristia. A porta, que estava trancada, foi facilmente destroçada com golpes certeiros. Assim que a transpassou se viu perante mais dois soldados montados que aguardavam do lado de fora. Um dos cavalos, assustado com o barulho da porta e o seu súbito aparecimento, empinou-se bruscamente derrubando seu condutor. O outro que tentava controlar a sua montaria, não pode impedir a ação de V238, que puxou o cavalo pelo arreio, derrubando-o também.

Sob os olhares espantados de alguns moradores, V238 não hesitou. Com agilidade incrível montou um dos animais e fez o cavalo, assustado com um cavaleiro inumano, correr na direção contrária do centro da pequena cidade.

Um dos soldados que caira, ainda tentou montar em seu cavalo e perseguí-lo, mas foi barrado pelo sacerdote, que apontou para os danos na porta, como um sinal de que o estranho possuía força sobre-humana e era sábio manter distância. Mas uma porta destroçada era um detalhe insignificante diante das acusações de incompetência que receberia de seus superiores caso deixasse o alvo escapar.

Ele fez um sinal para os soldados para que se dispersassem e rumassem para as coordenadas estabelecidas, para serem levados de volta ao tempo daquele mundo paralelo de onde tinham vindo. Seu senhor o havia enviado àquele período para descobrir a natureza da anomalia que ameaçava a realidade em que viviam. Certos acontecimentos ainda não definidos por acontecer naquela linha temporal. Não lhe haviam concedido muito mais informações do que isso, então tivera que refinar sua busca, reduzindo cada vez mais as coordenadas temporais e indícios por menores que fossem. Procuraram por um bom tempo sem encontrar qualquer evidência e já estavam a ponto de desistir quando soube por um dos agentes de um rumor, que talvez pudesse ser a fonte da anomalia. Os testemunhos falavam de uma estranha luz que caíra na água, próxima à costa. Mas como havia desaparecido no mar, se desconhecia se era de fato um fenômeno natural como um meteoro ou outra coisa desconhecida por aqueles habitantes. Mas se fosse esse o caso, poderia ter alguma implicação quanto à anomalia que se produziria. Alguém vindo de uma outra época como eles ou algo oriundo de um outro sistema solar. Com esse objetivo tinha transportado instrumentos de varredura sofisticados para descobrir qualquer coisa diferente na área em torno da queda.

Até aquele momento a busca revelera-se infrutífera. Por causa do grande acesso de pessoas às igrejas seus agentes haviam se aproveitado deste hábito para sondá-los com os detectores de amplitude eletromagnética em busca de qualquer desvio que fugisse aos padrões habituais. Até então não tinham obtido sucesso nas discretas leituras empreendidas até que, olhando por acaso para aquela figura do camponês parado junto à porta, um dos agentes apontara o analisador para ele. O que o aparelho revelou o deixou surpreso. O espectro na faixa do infravermelho indicava uma emanação diferente de um humano comum. Irradiava pouco calor, semelhante ao espectro das criaturas artificiais de seu tempo. Só poderia ser o que viera junto com a luz suspeita. E pela demonstração de força e agilidade que demonstrara só poderia ser o que buscavam. E as ordens que recebera eram bem específicas. Capturar ou destruir qualquer anomalia para que seu mundo, do jeito como o conheciam, continuasse existindo.

Antes de deixar a sacristia, ele olhou ao redor e verificando que não havia testemunhas, retirou de uma caixa, um pequeno aparelho. Tinha a forma de um hexágono. Ele o olhou fixamente e utilizando a sonda eletromagnética transferiu as leituras obtidas do estranho para o objeto. Este, a princípio opaco, brilhou com a informação recebida como se ganhasse vida. Começou lentamente a flutuar até parar próximo a seu rosto.

O sacerdote o segurou com uma das mãos e com a outra pressionou algumas partes do hexágono. Assim que o fez, este como que animado por um propósito, afastou-se com um leve zumbido, passando pela porta destroçada. Em seguida como se buscasse no próprio ar algum sinal, girou em várias direções até que se fixou numa determinada direção. Assim que encontrou o que procurava ascendeu rapidamente e depois seguiu na mesma direção por onde se evadira V238.

O homem com as vestes sacerdotais se deu por satisfeito quando o viu partir. Esperava que cumprisse as instruções de perseguir e eliminar o estranho, sem chamar a atenção dos habitantes locais. No momento não havia mais nada para fazer ali. Assim que o Obliterador retornasse, examinaria os registros da missão antes de entregá-los ao seu senhor. Discretamente verificou se não havia pessoas próximas à porta destruída. Assim que constatou isso, levantou as vestes e apertou um dispositivo preso à cintura. Em poucos segundos, sua imagem tremeluziu como se fosse uma miragem. O fenômeno, porém, teve curta duração e em poucos segundos seu corpo deixou aquela realidade.



Apresentação

PARTE - III



RONALD RAHAL
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