Inventário Final
Ronald Rahal

1 – Café matinal.

Richard estava adorando aquele momento. Já passara da casa dos quarenta anos, mas quem não estivesse a par de suas exata idade, não lhe daria mais do que trinta. Essa impressão talvez se devesse aos fios de cabelos escorridos que se desmanchavam acima de seus olhos, remoçando-lhe a aparência.

O hábito matutino de sentar-se à mesa e de cerrar as pálpebras, constituía um verdadeiro ritual para ele. Após os cuidados que se dispensava, num barbear cuidadoso e no banho matutino que lhe revigoravam as forças, seguia-se o encontro com a família para a primeira refeição do dia.

Era quando se acomodava na mesa da cozinha fechando os olhos.

Então inspirava profundamente e expirava pausadamente, como se o simples ato de respirar lhe desse um ilusório poder de congelar o tempo. Gostava de ficar assim por quase um minuto, ciente da reação das duas gêmeas que sempre o fitavam num intrigado silêncio, enquanto Alice, sua esposa, ocupava-se com o desjejum matinal.

Aquele era o momento do dia que tinha uma importância especial na rotina de sua vida, já que era a única pausa nas atribuladas horas que se seguiriam, sem que pudesse dispor da companhia das pessoas que mais amava do seu pequeno mundo.

Para um estranho isto talvez parecesse uma atitude quase mística, ou algo semelhante derivado da chamada Nova Era. Para ele, no entanto, nada mais era do que prolongar aquele pequeno lapso de tempo, antes que se perdesse e fugisse por entre seus dedos como pequenos grãos de areia.

Mas para os mortais que sempre viviam à mercê das garras do tempo, logo a ilusão se desfez quando uma das gêmeas quebrou o silêncio, naquele habitual tom de voz infantil.

- Papai? – disse Linda, uma das gêmeas. – Papai, é verdade que em baixo da cama existe um buraco muito, muito grande que engole a gente se formos ruins p’ras nossas bonecas?

Ele abriu os olhos, não escondendo o sorriso provocado pelas concepções ingênuas e sinceras que a pouca idade podia produzir.

- Quem lhe disse isto, Linda?

- Foi ela papai – apontando para a irmã que apenas fez uma careta de indignação pela leve traição.

- Não Linda. Claro que não! Dorothi, não disse isto de verdade, não é Dorothi? – afirmou ele, olhando de forma marota para a segunda gêmea, que apenas fez uma expressão desinteressada.

- Sabe Linda, nunca devemos descuidar de qualquer coisa que possuímos. Os homens que as fabricam dedicam muito do seu tempo para construí-las. E depois elas são valiosas porque sempre ganhamos de alguém que gosta muito de nós e sempre quer ser lembrado por isso, entendeu?

Linda apenas balançou a cabeça afirmativamente como se com aquela resposta, todas as preocupações do seu pequeno mundo estivessem resolvidas para sempre.

- Sua irmã – continuou ele, - com certeza estava brincando, quando disse que havia um buraco em baixo de sua cama. Ela apenas... Apenas quis dizer que gostaria que tivesse um buraco ali, para levar as menininhas que maltratassem as suas bonecas... – e afagou seus cabelos.

Depois franzindo o rosto, mas sem deixar de continuar sorrindo, apenas simulando uma seriedade inexistente, voltou-se para a irmã. - Quanto a você Dorothi, o papai sabe que é mais caprichosa com as suas coisas do que a Linda, mas eu já lhe disse que é feio inventar histórias que assustem a sua irmã. Promete que não fará mais isso?

- Prometo papai. - disse Dorothi soluçando.- magoada com a suave repreensão.

Richard arrependido de não ter usado as palavras corretas, abriu um largo sorriso e estendeu os braços para as duas que rapidamente pularam das cadeiras e se ajeitaram em seu colo. Ele as abraçou com carinho, beijando seus rostos e afagando seus cabelos.

Mas tinha que mostrar a filha, bem cedo, que não se podia fazer coisas erradas neste mundo, sem arcas com as consequências. - Papai gosta muito das duas e não quer que nenhuma machuque a outra seja com palavras ou com empurrões, certo?

Depois posicionou cada uma em cada perna, ora olhando para uma, ora para outra. - Vocês duas sabem que Papai Noel acompanha o que as crianças fazem durante o ano todo e anota tudo num grande livro para saber se elas merecem ou não ganhar presentes no Natal. Prometem ser sempre boazinhas uma para a outra?

As duas gêmeas arregalaram os grandes olhos azuis, movimentando sincronicamente suas pequenas cabeças num gesto afirmativo, enquanto seu pai alisava carinhosamente as longas cabeleiras loiras, que lhe davam o aspecto de duas bonecas vivas. – Prometemos papai. – disse Dorothi, falando pela irmã.

Alice presenciara tudo em silêncio e não interviera na conversa, observando a psicologia do marido. Quando ele se deu conta de que sua esposa observara seu gesto de ternura, apenas moveu os lábios num silencioso “eu te amo”. Prontamente ela correspondeu enviando-lhe de volta um beijo pelo ar.

Ela aproveitou aquela pausa e trouxe o suco de laranja que acabara de preparar. Após colocá-lo na mesa, sentou-se ao lado do marido, beijando-lhe carinhosamente a face.

Alice era uma mulher que chegara aos seus trinta anos bastante conservada e nem o parto das duas gêmeas deixara qualquer marca em seu corpo esguio. Possuía cabelos claros bem lisos, com uma franja que reforçava a jovialidade dos traços de seu rosto quadrado que terminavam num suave sorriso, denotando muita paciência e perspicácia.

Ela começou a encher os copos com o suco preparado, olhando os três abraçados. Em seguida virou-se para o relógio pendurado na parede da cozinha e a contragosto interrompeu aquele momento falando suavemente, mas de forma decidida.

- Prestem atenção crianças! Papai precisa trabalhar e para isso ele precisa estar bem alimentado. Sentem-se agora em seus lugares e o deixem comer alguma coisa.

As duas afastaram-se dele resmungando e rumaram para suas cadeiras. Seus lugares ficavam frente à mãe e para ficarem o mais próximo possível do pai começaram a arrastar as cadeiras que o ladeavam com grande barulho.

Alice apenas olhou para as duas, o que já era suficiente, utilizando um falso ar de severidade. – Crianças...! Olhem os modos! – Estas palavras foram suficientes para pararem o que estavam fazendo, pois sabiam que sua mãe não era tão condescendente quanto o pai.

Conseguindo controlar a impetuosidade das gêmeas, virou-se para Richard e ternamente segurou uma de suas mãos. – E então, irá falar com o Joe hoje sobre as suas ideias?

Ele bebeu um pouco do suco e depois calmamente enxugou os lábios com um guardanapo, pensando no que deveria dizer a ela, para que pudesse satisfazer sua expectativa - Bem que gostaria querida. Bem que gostaria. Mas o Joe é teimoso. Acha que por ser mais velho sempre tem razão em tudo. Pessoas mais novas como eu, podem dar ideias, mas no seu entender não possuem experiência suficiente no ramo.

- Mas você já lhe mostrou para onde as coisas podem ir se ele continuar insistindo nisso? – disse sua companheira, num tom de voz que demonstrava preocupação quanto ao futuro de sua família.

- Sim! – disse ele, colocando as duas mãos sobre as têmporas, olhando para frente como se seu sócio estivesse ali parado ouvindo o que dizia naquele momento. – Uma série de vezes! Fiz até um gráfico demonstrando nossas perdas percentuais em termos de clientes e o que deveríamos fazer para reverter isso.

- Mesmo assim ele não se convenceu, não é?– disse ela com um ar pesaroso.

Ele a fitou, balançou a cabeça e após uma pausa respondeu. – Sim. Pura perda de tempo. Apenas deu uma rápida olhada e fez um “hmpf”. Disse-me que pensaria no assunto e até agora não voltou a tocar nele.

Ela afagou suas mãos e esticou o corpo para encostar sua cabeça à dele, tentando com isso animá-lo.

- Não desanime querido. Mais cedo ou mais tarde, o Joe verá que tem de lhe dar mais atenção e aí as coisas vão melhorar. Acredite.

Richard carinhosamente segurou uma das mãos de Alice entre as suas e a beijou. - É! Você tem razão! Não sei o que seria de minha vida sem você! Se não fosse pela confiança que deposita no seu marido acho que já teria tentado outra coisa.

Ela retribuiu as palavras de reconhecimento, beijando-lhe as mãos, ante o olhar curioso das duas gêmeas. – É por isso que estou aqui. Para lhe dar apoio e para que saiba que não deve desistir facilmente. Você não sabia que por trás de um grande homem há sempre uma mulher decidida? Não é o que dizem por ai?

Ele apenas sorriu e a puxou-a mais ainda, quase derrubando os copos.

Ops! – disse ele, olhando de repente para o relógio da cozinha. – É hora de trabalhar. Eu sinto muito querida! Gostaria de ficar... Gostaria mesmo, mas...

Ela apenas meneou a cabeça num gesto compreensivo. Levantou-se para ajeitar sua gravata, tentando inutilmente arrumar os cabelos rebeldes do marido. Uma lufada de ar balançava intermitentemente as cortinas da cozinha e o ribombar distante de um trovão prenunciava uma tempestade que se aproximava. Era assim no verão e os dias anteriores haviam sido bastante abafados. Aquela chuva chegava em boa hora para amenizar o calor.

Para se inteirar melhor ele se virou para o móvel perto da mesa e ligou a pequena tv, a tempo de ver o apresentador do noticiário da manhã, explicando num mapa da região, a previsão do dia. Via-se nitidamente a imagem do satélite e as grandes massas de nuvens que acompanhavam as linhas de instabilidade passando por de sua cidade. Informado, mudou para o canal de desenhos que as crianças costumavam assistir. Isto sempre funcionava para entretê-las, enquanto sua esposa cuidava dos afazeres da casa.

Atraído pelo som distante, Richard afastou-se da mesa e foi até à janela para ver se poderia sair antes da chuva cair. Ele segurou a cortina para poder observar melhor o céu e notou que para o lado norte o horizonte estava mais escuro assinalando o local por onde a chuva se aproximava. Percebeu que ela se deslocava rapidamente e se continuasse nessa cadência, logo estaria sobre sua casa. Já se podia perceber isso pela diminuição da claridade.

- Alice. É melhor me apressar. Quero estar a caminho do escritório quando essa chuva cair.

Ela apenas o olhou, prosseguindo com a tarefa de tirar a mesa e colocar a louça sobre a pia da cozinha. – Talvez não precise correr. Você sabe como eles costumam se enganar, Richard.

- É! Talvez tenha razão. Mas em todo caso, não vou esperar para ver.- disse ele, afastando-se da janela.

Não dando muita importância ao fato, ajeitou a camisa dentro da calça e se preparou para sair. – Querida, me dê um beijo de despedida que já estou saindo.

Depois de receber o beijo da esposa ele chamou as duas gêmeas que saíram da frente da tv, mais uma vez se atropelando na ânsia de ser a primeira a chegar próxima do pai. – Meninas dêem um beijo no papai e obedeçam à mamãe, está bem?

Após abraçá-las abriu a porta da cozinha para se dirigir na direção da garagem. Assim que se preparou para fechá-la, uma forte lufada de ar o surpreendeu, fazendo-a bater ruidosamente, antes que pudesse evitar.

– Desculpe-me querida, foi o vento. – disse ele meio sem jeito, pois sabia que sua esposa detestava quando uma das gêmeas fazia isso.

2 – A Anomalia.

Lá fora Richard olhou para as casas vizinhas e depois para o céu, observando o cinza chumbo que cobria cada vez mais a parte azulada da atmosfera.

Inspirou fortemente, percebendo de imediato o forte odor de ozônio que caracterizava as precipitações de verão, por causa das descargas elétricas. Súbito um forte vento desceu sobre ele agindo como um grande ventilador. Seus cabelos revoltearam devido às pequenas correntes de ar e algumas gotículas de água, transportadas por elas, aspergiram seu rosto. Agora os estampidos dos trovões, que os ouvira abafados, ressoavam mais próximos, ocorrendo a intervalos cada vez menores.

Apressou o passo e correu até a garagem com a intenção de sair com o carro antes que a chuva caísse. Abriu a porta e ajeitou-se rapidamente no assento do veículo. Deu a partida e apoiando uma das mãos na direção, virou-se para trás para controlar o carro enquanto manobrava em marcha à ré. Percorreu alguns metros e logo percebeu que a direção puxava para um dos lados de forma inusitada. Pela experiência só poderia ser uma coisa: o pneu da sua direita perdera bastante ar durante a noite, devido a algum furo provocado por um prego ou parafuso sobre o qual passara inadvertidamente no dia anterior. Praguejou, pensando no tempo que gastaria para trocá-lo, ainda mais se fosse debaixo da chuva que ameaçava cair a qualquer instante. Teria que levar o carro de volta para a garagem.

Antes de concretizar a manobra, como previra, algumas gotas começaram a pingar sobre o pára-brisa do carro. Em poucos segundos elas se multiplicaram e por fim caíram em profusão, acompanhadas por relâmpagos e trovões.

Richard pensou que naquelas circunstâncias a melhor maneira de ganhar tempo, seria largá-lo ali mesmo, trocando de carro. Levaria o da sua esposa, deixando o seu para que ela, avisada do escritório, chamasse o mecânico para reparar o pneu murcho, já que também, na pressa, esquecera o celular sobre a mesa da sala. De qualquer forma não trouxera o guarda-chuva e para efetivar a troca de veículos, teria que se molhar.

Agora chovia copiosamente e lá do interior do carro, a umidade no interior rapidamente se condensara sobre os vidros, impedindo-o de ter uma visão muito nítida do que acontecia lá fora.

Enquanto refletia no que fazer, se esperava a chuva amainar, atrasando-se mais ainda ou se trocava de carro evitando isso, mas ao mesmo correndo o risco de se encharcar, optou pela segunda alternativa.

A tempestade mudara o dia para quase noite, onde relâmpagos sulcavam a grossa camada de nuvens e o ar era invadido por fortes estampidos. Enquanto criava coragem para sair do carro, Richard impulsivamente colocou a cabeça para fora da janela para avaliar a situação de quanto deveria esperar.

Mas no mesmo instante que abriu a porta e preparou-se para correr, uma repentina luminosidade causada por uma descarga elétrica acompanhada de um forte estrondo, irrompeu cegando-o momentaneamente. Mas o efeito provocado foi mais do que isso. Apesar de lhe vir à mente o noticiário das tragédias provocadas pelas descargas elétricas de verão, quando muitos motoristas saiam de seus carros, esquecendo-se que estariam a salvos dentro deles, já que suas estruturas se comportavam como verdadeiras gaiolas de Faraday, o que veio depois lhe era totalmente desconhecido. Imaginou-se naquele instante mais uma vítima oriunda da própria negligência, provavelmente com a visão afetada. Tudo ao redor estava envolto em pequenas descargas elétricas azul-esverdeadas que surgiam e desapareciam com bastante rapidez. Todo o seu corpo comportava-se da mesma maneira e por instantes ficou maravilhado olhando as palmas das mãos sobre as quais dançavam minúsculas faíscas.

Mas tais coisas não duraram mais do que alguns segundos e logo desapareceram, o que lhe causou certo alívio já que poderiam ser apenas partes de um efeito secundário da corrente elétrica dissipando-se na terra.

Apoiando-se nessa ideia voltou para o carro e assim que ia fechar a porta, sua atenção voltou-se para cima. Havia no céu outra coisa estranha. Algo que também nunca vira antes. Assim sentou-se com a porta aberta para melhor observá-la melhor enquanto as gotas batiam direto em seu rosto. Por instantes pensou ser mais um dos efeitos secundários do relâmpago que o cegara momentaneamente ou ainda uma turvação provocada pela água da chuva em seus olhos. Para ter certeza de que era isso, recolheu-se para o interior do carro e os enxugou. Depois olhou novamente para o céu e viu que não se tratava de nenhum tipo de ilusão de ótica passageira, provocado pela refração. Movia-se rapidamente pela esfera celeste como se uma cortina de seda azulada, faiscante, estivesse sendo distendida rapidamente pelo céu cor de chumbo. Fascinado ele esqueceu-se de Faraday e tornou a colocar a cabeça para fora, para ver melhor aquilo, e, apesar do incômodo provocado pela água que lhe caia na face, tal visão aguçou a sua curiosidade.

Ele se perguntou se era o único a presenciar aquele estranho e hipnótico espetáculo, já que não havia nenhum transeunte por perto ou vizinhos postados, nas poucas janelas que podia observar daquele ângulo. Poderia chamar Alice para mostrar-lhe o que estava vendo, mas sem o celular para avisá-la para ver o fenômeno de sua janela, não queria ir até a sala. Sabia que se o fizesse a forte chuva acabaria por molhá-la e com certeza as gêmeas tentariam acompanhar a mãe e não desejava que elas viessem a adoecer por sua causa. Decidiu naquele momento não fazer isso e continuou ali, como solitária testemunha do fenômeno.

Mas ele tomou um rumo inesperado e no mesmo tempo que cobria o céu, o manto azul faiscante começou a se confundir com o horizonte e não demorou muito para começar a preencher o seu próprio campo de visão até chegar às casas próximas, do outro lado da rua, avançando celeremente na sua direção.

A visão daquela parede azulada transparente o fez pensar na segurança da sua família e ele decidiu sair do carro e correr de volta para a sua casa sem se importar com o forte aguaceiro. Mas ela foi mais rápida que a sua vontade. Em segundos tudo foi engolfado por ela como uma onda irresistível. Sentiu-se estranho e confuso. Seus pensamentos foram para a família e não foi com certa frustração que se imaginou morrendo tão perto de casa, sem poder se despedir. Tentou manter-se consciente, mas os sentidos começaram a falhar e antes que sua visão se turvasse por completo, ainda pode ver de relance sua casa e a garagem. Tudo ao redor tornara-se translúcido e tremeluzia como numa imagem diáfana, sem qualquer consistência física, banhado por uma espécie de fluido desconhecido, entrecortado por pequenos feixes de energia azulada que chicoteavam aleatoriamente.

Ele olhou seus braços e suas mãos e o que viu, seu cérebro teve dificuldade de compreender. Poderia ser um efeito colateral das múltiplas descargas elétricas ou de qualquer outra coisa que afetara seus neurônios, mas foi tomado pelo pavor quando percebeu que todo o resto do seu corpo apresentava a mesma condição. Imagens borradas que pareciam buscar na justaposição, uma espécie de equilíbrio ou de sintonia. Depois sobreveio a escuridão e o nada.

3 – No Hospital de um outro Universo.

- Senhor Richard?Acorde! Senhor Richard...

A sensação que ele sentia era de estar sendo puxado de um poço muito fundo. Alguém estava lhe dando suaves tapas no rosto e mesmo assim ele não tinha a menor vontade de voltar daquele nada onde tudo era tão quieto e reconfortante.

- Senhor Richard acorde! Acorde... Por favor!

- Hein...? O-O quê? Oh... O-Onde estou?

Ele não conseguia articular as palavras. Era difícil também abrir os olhos e a língua parecia-lhe presa.

- O senhor esta no hospital municipal. Como se sente?

- É... É... Te-Tenho... N-Não consi-go pensar di-rei-to. Fa-lar é di-fí-cil.

- Calma. Procure relaxar.

A enfermeira gentilmente o ajudou a acomodar-se na cama enquanto ele tentava controlar o corpo que teimava em não lhe obedecer.

- Fique calmo enquanto chamo o Doutor. Ok?

Com muito sacrifício ele fez um sinal afirmativo movimentando a cabeça.

Enquanto ele tentava descobrir o que tinha acontecido, a memória fugia-lhe com muita facilidade e por mais que tentasse recordar de como viera parar na cama do hospital, as lembranças se recusavam a lhe dar respostas.

Enquanto Richard estava naquele estado confuso, o Doutor que o atendera retornou para averiguar sua recuperação. Era um homem de meia idade, com cabelos grisalhos e uma barba rala. Seus pequenos óculos que encimavam um sorriso constante, transmitiam um certo ar de confiança.

- Olá! Como estamos hoje?

- Eu... Eu... N-Não consigo me lembrar de nada... O senhor pode me ajudar, Doutor?

O médico parou bem à sua frente e fez uma careta brincalhona. – Não se lembra de quem é?

- S-sim. E-Eu sou Richard, Richard Mackena.

- Ótimo. O que mais lembra?

- N-Não me... Lem-bro de co-como vim parar aqui! Do que aconte-ceu!... O se-senhor sabe dou-doutor?

- Pelo que sei, quando o senhor deu entrada no hospital, a pessoa que o trouxe nos avisou que fora vítima de uma descarga elétrica. Mas ela desapareceu e o formulário de entrada continha poucas informações a seu respeito. Estávamos aguardando a sua recuperação.

Richard ouviu o médico e esforçou-se para se lembrar. Um flash percorreu sua mente e ele se viu dentro de um carro olhando o céu procurando compreender uma coisa que vinha na sua direção. Mas do mesmo jeito que se tenta as vezes lembrar-se dos sonhos, a imagem logo lhe fugiu.

- Não consegue se recordar do que lhe aconteceu? Nada mesmo?

- N-não Doutor. P-por mais... Que tente... Não... Não me lembro. Vi... Vi um carro. Só...

- Bem senhor Richard. De qualquer maneira já é um começo tentar se lembrar. Deixe-me reexaminá-lo.

O médico deu uma rápida olhada na prancheta que continha o histórico dele, resmungou qualquer coisa e em seguida auscultou seu coração e mediu a pressão arterial.

- Aparentemente o senhor esta em bom estado, senhor Mackena. Richard... Mackena.

Ele folheou os papéis presos à prancheta e olhou para ele.

- Para quem ficou três dias dormindo é bem salutar que tenha se recuperado logo. Normalmente pessoas que são atingidas por fortes correntes elétricas raramente sobrevivem para contar a história. O senhor está entre os raros sobreviventes. Onde foi que aconteceu isso? Esteve viajando?

- Foi... Foi... Aqui! Desculpe-me. M-mas eu estou le-tárgico. Te-Tenho dificuldade em arti-cular as... Pa-palavras. A chuva de hoje... Um raio...

- Estranho! O senhor quer dizer que foi atingido por um raio? Aqui perto? Que eu me lembre não choveu por esses dias! Bem acredito que esteja confuso e isto logo passará, e aí poderá explicar melhor o que aconteceu.

- Mas... A fala... Retornará ao normal?

- Sim. Creio que sim. O que está sentindo é apenas um efeito temporário do choque. – disse o médico com toda a paciência, esboçando um amplo sorriso. - Acredito que em breve o senhor voltará à normalidade, recuperando todos os seus movimentos. Terá que ter se acostumar com o retorno gradual da fala e dos movimentos.

Richard sentiu-se mais confiante com as palavras do médico e procurou ajeitar-se melhor na cama.

- Gos-gosta-ria... De falar com... Com minha esposa.

- Claro senhor Richard. Pedirei a enfermeira chefe que avise sua família. Lembra-se do número do telefone?

- Sim. É... È... 23... 45... 76554.

- Muito bem! Vou pedir que liguem para sua casa. Mas não poderei liberá-lo ainda hoje. Quero que fique em observação por mais dois dias e se sua recuperação for tão rápida como espero que seja, eu lhe darei alta. Estamos combinados?

- S-Sim Doutor. Es-estamos.

Ele acompanhou com os olhos o médico afastar-se e depois descarregou o peso do corpo sobre os travesseiros onde estava apoiado. Fechou os olhos e deu um longo suspiro. – Afinal – pensou - era um homem de sorte. Agora, só tinha um objetivo em mente: ver suas filhas e sua amada esposa.

Como de praxe foram muito gentis e pacenciosos com ele. Serviram uma leve refeição e depois trouxeram para o quarto uma televisão pequena para que se distraísse assistindo uma variedade de notícias, programas e shows diversos. Era a forma usual com que os doentes eram tratados durante o período de convalescença para que não se aborrecessem com a falta de atividade. Mas por mais que tentasse, não conseguia concentrar-se nas imagens da tela, que eram interrompidas por flashs do que acontecera pouco antes da descarga elétrica. As lembranças iam e retornavam à sua mente sem controle algum. Sempre o carro, a chuva, a claridade e... Não conseguia recordar-se mais do que isso. O que acontecera depois? Além dessa dificuldade de lembrar-se, sentia-se angustiado, pois queria ver sua família mais do que tudo. Assim que a visse talvez afastasse o que sentia e se sentiria mais calmo, dando-lhe a certeza de que a vida continuava a seguir sua marcha normal.

Enquanto se entregava a estes pensamentos sentiu necessidade de ir ao banheiro. Gostaria de seguir as instruções do médico de continuar deitado, mas ele se sentia forte o suficiente para ir sozinho. Se percebesse qualquer dificuldade, chamaria a enfermeira.

Levantou-se devagar, com todo o cuidado e quando ficou em pé, apoiando-se na beirada da cama, pensou estar sendo vítima de algum efeito colateral do choque elétrico, que não sentira quando deitado.

Tudo à sua volta tornou-se transparente. Para certificar-se que não estava sendo vitima de algum tipo de ilusão, esfregou os olhos e como ela persistia, estendeu a mão em direção à cadeira que estava ao lado da sua cama. Seus dedos simplesmente a atravessaram, confirmando que era mais do que uma ilusão.

Aturdido com o que estava presenciando, fechou os olhos novamente, desejando que quando os abrisse, a normalidade estivesse de volta. Culpou-se por não ter chamando a enfermeira para ajudá-lo e já estava a ponto de fazê-lo quando a solidez do ambiente retornou.

Ele se perguntou se aquilo que presenciara nada mais era do que uma adaptação de seu cérebro ao choque ou se seria alguma coisa mais grave que estava acontecendo com ele. De qualquer modo perguntaria ao médico assim que este viesse examiná-lo novamente.

Antes de prosseguir rumo ao banheiro, cautelosamente aproximou a mão da cadeira novamente e sentiu-se aliviado com a sua solidez normal. Isto lhe deu forças para continuar mesmo com a reprimenda da enfermeira, que o surpreendeu no meio do caminho.

Duas horas depois Alice e as duas gêmeas chegaram.

Apesar da tentativa da mãe de controlá-las, quando viram Mackena correram rapidamente para ele com grande alarido.

- Crianças, crianças... Por favor, me escutem... Respeitem os doentes do hospital.

- N-não faz mal Alice – disse Mackena estendendo os braços para as duas. – Ve-Venham com o papai. – Ele já se sentia bem melhor a ponto de controlar com eficiência os braços e as pernas.

Enquanto as gêmeas o abraçavam fortemente, Mackena beijava-as e trocava olhares com sua esposa, que respondia da mesma maneira, sem entender muito bem o que estava acontecendo.

- Richard Mackena...! O que aconteceu? Você está bem, meu amor?

Ela o abraçou também, postando-se por cima das crianças que achando o gesto uma brincadeira, começaram a rir.

- Eu recebi o telefonema de que você estava aqui no hospital e não acreditei. Vim o mais rápido que pude. Eu pensei que estivesse com o Joe. Você desmaiou no caminho?

Mackena apenas retribuía as perguntas com uma expressão de genuína desorientação. Apesar dos flashs ele se imaginara socorrido pela esposa após ter desmaiado.

- M-Mas n-não foi você que me trouxe aqui?O médico falou numa pessoa. Pensei que era você!

- Não! – respondeu ela, denotando a maior surpresa.

- A-A chuva Alice. Lembra-se da... Da... Chuva de hoje? Dos trovões?

- Vo-cê está sentindo-se bem?- continuou ela intrigada. - Diga-me que está tudo bem com você? Hoje não choveu! Tem certeza de que não imaginou isso? Ou que...

- E-Eu... Não sei querida. Já não tenho mais certeza de nada. E-eu pensei que você me tivesse trazido para o hospital, depois da chuva, dos trovões... Talvez... Tenha imaginado mesmo. Parecia tão real!

Um novo flash percorreu o cérebro dele. E lembrou-se da cortina azulada que se estendia pelo céu. O que efeito lhe causara para deixá-lo naquele estado?

- E-Eu... Não... Consigo entender co-como vi-vim parar aqui...Alice. Só me lembro da chuva... Da luz azul. Estou tão confuso que até imaginei que... Você tivesse me trazido até aqui... Veja só!

- Mas porque eu faria isso? Estava tão ocupada cuidando das crianças que não prestei atenção ao que aconteceu depois que se despediu de nós e rumou para o serviço. Se tivesse acontecido alguma coisa, teria chamado a ambulância e o teria acompanhado. Mas tudo aconteceu como sempre. Me deu um beijo, nas crianças e foi para o escritório.

- Se-Será que... Estou... Será... Que... Que so-sofri um aci-den-te no-no trajeto que me-me fez imaginar coisas? Confundiu minha memória? Será minha esposa?Não se lembra de eu ter comentado sobre o tempo?

Alice encostou a sua cabeça junto ao coração de Mackena tentando de alguma forma acalmá-lo, ao vê-lo tão agitado. Com toda ternura lhe contou do que se lembrava.

- Sim. Você realmente comentou sobre o tempo. Ligou a tv. Foi até a janela... Disse que não ia chover mais um dia. Quando se virou, olhei também por ela... O céu continuava bem azul. E não dei mais importância para isso. Do que se lembra?

- Eu... Já lhe disse que... Lembro-me... Quer... Quer dizer... Eu... Imaginei que tomei... O café da manhã com todos... Nós reunidos, co-como fazemos todas as manhãs... Nestes dois anos... Dois anos.

Alice continuou encostada nele, reforçando sua segurança.

- Trovejava muito lá fora. Eu... Eu queria sair logo. Antes que a chuva caísse.

Enquanto ele falava gentilmente acariciava os cabelos de Alice.

- Assim que... Entrei no ca-carro e... Notei que um dos pneus estava... Estava vazio... Eu parei... Para pensar no que fazer. Aí começou a chover. Depois eu... Só me lembro de... Uma luz azul... Vindo na minha direção. E a casa... Nossa casa tremeluziu... Cheguei a ver várias casas. Ligeiramente diferentes da nossa, meio borradas. Co-mo se... Se não estivessem... E estivessem lá... No mesmo lugar. Não fisicamente...Sabe?

Ela procurou endireitar o corpo e o segurou com as duas mãos, olhando-o diretamente nos olhos.

E... Depois? O que aconteceu?

- Estava... Estava acontecido o mesmo comigo. Depois... Tu...Tudo sumiu e... Acordei aqui.

- Papai...? Por que você está deitado nesta cama? - Perguntou uma das gêmeas.

Mackena gentilmente puxou-a para mais próximo de si e respondeu-lhe, alisando seus curtos cabelos loiros.

- Papai só esta descansando um pouco. Eu... – ele olhou para Alice – estarei amanhã em casa e aí poderemos conversar bastante.

- Você brincará com a gente amanhã papai? Promete?

Ele puxou a outra para mais perto e a afagou também. – Claro. O papai promete.

Depois ele continuou a conversa com a esposa.

- Talvez... Eu... Eu tenha imaginado tudo isto, devido ao... Ao estress. Sabe querida?... Eu sei que a situação no Joe não anda boa e acho que... Tudo isto me causou talvez... Algum tipo de amnésia e... Como dizem, sob muita pressão... A mente acaba nos pregando peças.

- É! - disse ela, afastando-se da cama. – Deve ser isso. Não houve chuva. Trovões. Nada mesmo!

- Só tem uma coisa Alice.

- O que seria? – disse ela, ajeitando-se na cadeira ao lado.

Ele ainda segurando as duas gêmeas, virou-se para olhá-la melhor.

- Se... Se não foi você... Quem?... Trouxe-me até aqui? Quem foi?

Ela apenas fez um gesto com os ombros, dando a entender que não sabia. – Eu sei que não fui eu, querido. Esta parte não está bem clara para mim. Mas alguém deve tê-lo trazido, se não você se lembraria de ter vindo para cá por conta própria. Apesar de que o seu estado não permitiria isso. Quem te trouxe aqui é que deve ter inventado esta história da descarga elétrica, que me informaram na recepção.

- E isto que eu também não entendo Alice. Tu...Tudo está nebuloso. Como fui atingido por um raio de uma chuva que nunca aconteceu? Se fi... Fiquei desmaiado, quando... Quando isso ocorreu? Mas... Mas foi em casa...! Próximo de ca...Casa! Dis... Disto eu tenho certeza.

- Tem certeza de que o que te deixou assim foi mesmo um choque elétrico, Richard?

- Segundo o médico sim, mas-mas da minha parte, as lembranças ainda são confusas.

Os dois se olharam por um tempo, cada qual tentando entender aquele desencontro de informações.

- Outra coisa Alice. Você disse que eu-eu saí com o carro. Sabe onde ele está agora?

- Com você é claro!

Ele apenas olhou para Alice. – Não querida, eu não sei ao certo onde ele está. Pre-pre-ciso sa-saber onde ele foi parar. Inclusive... O pneu! O pneu parecia vazio. Como alguém poderia dirigir o meu carro com o pneu vazio?

- Eu acho – disse ela - que quem te trouxe até o hospital, na urgência dirigiu mesmo com o pneu vazio. Talvez não estivesse tão vazio, ou nunca esteve vazio. Assim foi possível trazê-lo até aqui. Mas não se preocupe, vou perguntar se não deixaram as chaves do carro com alguém da recepção. E vou procurá-lo no estacionamento. Não se preocupe.

- Po-posso estar um pouco confuso para falar Alice, mas ainda não estou louco. N-Não me... Lembro-me de nada disso... Depois da luz. E... No-no estado em que... Que eu... Eu estava... Tudo escureceu tão de repente... Co-como poderia me lembrar?

Fez-se um breve silêncio entre eles, já que Alice se fazia as mesmas perguntas.

- E têm mais uma coisa querida. Eles me... Disseram que eu estou aqui há três dias...

- O quê?

- Acredite! Foi... Foi o que me disseram.

Ela passou as mãos pelos longos cabelos pretos e procurou ajeitá-los, como se isto fosse uma espécie de exorcização que sempre repetia quando sentia dificuldade em entender alguma coisa.

- Tem certeza, Richard? Será que você não entendeu mal?

- Te-tenho certeza. – disse ele com uma expressão de surpresa estampada no rosto.

Ela aproximou a cadeira para bem perto da cama e segurou suas mãos. – Não é possível, Richard! Faz menos de quatro horas que saiu de casa!

- O quê? Quatro horas... Mas...

Alice percebeu que a conversa não estava ajudando o seu marido, já que ele estava ficando cada vez mais agitado. Então procurou acalmá-lo.

- Bem Richard. De qualquer forma vamos deixar as explicações para este pesadelo para mais tarde. Procure descansar. Eu me informarei com o médico sobre seu estado e vou procurar saber onde está o seu carro. Quem te trouxe. Tudo. Não pense em mais nada. Quando voltar para casa, vamos esclarecer o que aconteceu; todos os detalhes. Combinado meu amor?

Ele apenas assentiu com a cabeça. Sabia que era difícil vencer sua esposa em qualquer discussão. Pensou melhor e chegou à conclusão que ela tinha razão. O primeiro objetivo era sair do hospital. Depois com mais calma, tentar descobrir o que realmente acontecera.

Mackena sabia que era a hora da despedida e sabia também o quanto era difícil, tanto para ele como para as crianças, separaram-se. Mas não podia ser de outra maneira e foi com tristeza que se dirigiu a elas. Afastou-as gentilmente, segurando uma em cada braço.

- Crianças, prestem bem atenção ao que o papai vai lhes falar.

As duas meninas apenas arregalaram os olhos, enquanto escutavam.

- Papai, esta doente e não poderá ir hoje para casa...

- Oh, papai! – retrucaram.

- Mas eu prometo que assim que chegar amanhã, eu... Eu... Levarei duas bonecas bem bonitas, para cada uma de vocês... Se... Forem com a mamãe. Pro-prometem que se comportarão?

As gêmeas olharam bem para ele, não escondendo a alegria pela expectativa de ganharem mais uma boneca e o largaram, correndo rapidamente para os braços da mãe.

Alice as abraçou também e apenas olhou para ele. Era a oportunidade para sair sem que as crianças chorassem.

Ele resignado beijou-lhe a testa assistindo à sua saída do quarto. Por alguns segundos a imagem dela com as crianças ficou congelada em sua mente e sentiu uma grande tristeza por não poder acompanhá-las. Por fim impotente procurou pensar em outras coisas. Como viera parar ali. Sobre o que Alice lhe dissera. Sobre a luz que vira. Sobre a ilusão que não comentara com ela. E sobre o carro... E...

Ele não queria mais pensar em tudo aquilo, mas não podia impedir que os flashs viessem à tona a todo instante. Talvez, tudo o que estava sentido não passasse de uma alucinação. Sentia-se confuso e fisicamente cansado.

Uma espécie de torpor invadiu seu corpo e sentou-se na cama para se recuperar daquele cansaço. Recostou-se no enorme travesseiro e procurou relaxar. Semi acordado, seus olhos começaram a ver coisas que seu bom senso não queria admitir. Era como se seu tempo estivesse fora de sincronia com o do ambiente onde estava. Ele via pessoas passaram rapidamente onde sombras se superpunham, ora bem devagar, como se fosse em câmera lenta, ora rápidas demais, como vultos indistintos. Talvez fosse o efeito de alguma droga que lhe haviam ministrado, pensou. Ou talvez estivesse sonhando que estava acordado.

Já estava quase inconsciente quando algo chamou sua atenção, fazendo sua mente voltar ao estado de vigília. Próxima a parede em frente de onde estava, uma luminescência subitamente apareceu e por alguns instantes pensou que estava sendo vítima de mais um efeito colateral da descarga elétrica. Esfregou os olhos várias vezes, para assegurar-se de que não estava sendo vítima de outra ilusão. Como ela persistia, levantou-se e dirigiu-se com esforço na direção dela. Mal deu alguns passos e estacou. O fenômeno luminoso cedeu lugar a uma imagem que se formou de cima para baixo. Parecia uma projeção e tremeluzia, como se a fonte da imagem, não tivesse energia suficiente para firmar-se. Mesmo assim era uma imagem perturbadora.

Ela consistia num ser de aparência humanóide, trajando uma vestimenta azulada que se colava num corpo franzino. Preso a este traje havia uma série de aparelhos que Mackena não podia precisar para que serviam.

O que mais lhe chamou a atenção foi a parte superior do corpo. Possuía uma cabeça enorme. Parecia estar buscando algo e estava de costas para ele. Quando deu meia volta, a aparência chocou Mackena. A cabeça constituía-se de um crânio enorme, totalmente calvo. Mas o rosto, apesar de pequeno, possuía traços infantis nitidamente humanos.

Conectados às orelhas pequenas, nariz e boca, havia outros aparelhos de utilidade indefinida. Talvez fosse, pensou, algum sistema integrado de escuta-comunicação. Mas não estava certo quanto a este palpite.

Aproximou-se lentamente apoiando-se nas paredes, com um misto de medo e curiosidade.

Quando chegou perto, cautelosamente estendeu um dos braços para que cruzasse a imagem, para ver se isto causaria alguma reação e nada aconteceu. Quando pensou em chamar a enfermeira para confirmar sua visão, o ser começou a manobrar alguns dos instrumentos junto do corpo e todo o quarto à volta, sumiu numa faixa opalescente indistinguível.

Com receio de perder o equilíbrio, Mackena fechou os olhos, turvando a percepção da realidade. Era como se tivessem injetado algum sedativo em sua corrente sanguínea e não teve tempo de voltar para a cama. Sentiu a escuridão envolvê-lo novamente.

***

Alice passou pela recepção e nem teve tempo de fazer o que prometera ao marido. Ao ligar o celular levou um choque. Tinha recebido várias ligações de Richard, seu marido. E o número era o do escritório. Sentiu as mãos tremerem.

Com o coração palpitando, ligou e ouviu nitidamente a voz dele do outro lado.

- Alice! Alice! Está me ouvindo?

- S-sim!

- Liguei para casa várias vezes e você não atendeu. Estava ficando preocupado. Está tudo bem. As gêmeas estão bem?Alice?

- Richard... Eu... Não sei o que está acontecendo.

- O que houve?

- Há... Um homem... Aqui no hospital municipal.

- Hospital? Alguém conhecido?

- Não sei... Ele... É você...

- O quê?

- Por favor, pode vir até aqui?

- Estou indo, o mais rápido que posso.Um beijo. Ah!... Não deixe as crianças se aproximarem dele. Está entendendo? Não deixe.

Ela desligou e procurou uma poltrona para se sentar. E chamou as gêmeas, abrançando-as fortemente, nervosa. Quem era aquele homem que se parecia com seu marido?Na verdade ele era o seu marido? As afirmações que fizera...

4 – O quarto do outro Universo.

- Richard... Uma voz distante o chamava. – Richard, acorde meu amor. Você está se sentindo bem? Quando chegou?

Mackena abriu os olhos lentamente e aos poucos a conhecida silhueta de sua esposa tornou-se nítida.

- Eu... Oh! Eu estava sonhando... Estava sonhando... Ele olhou em redor e não estava mais no quarto do hospital. Estava em seu quarto, em sua casa.

- O que foi, meu amor? Você estava tão ofegante que resolvi acordá-lo. Estava todo agitado balbuciando palavras sem nexo. Desculpe-me por acordá-lo. Não sabia que chegaria hoje. Se soubesse não teria me recolhido cedo.

Mackena bruscamente sentou-se na cama e passou as mãos pelo rosto. Tentou ajeitar o cabelo. Olhou longamente ao redor como se seus olhos pudessem atravessar as paredes de seu quarto. Seu quarto - pensou. Ele era ligeiramente diferente do que se lembrava. E se sentia confuso pela brusca mudança de cenário. Como viera parar em casa se não se lembrava disto? Será que sua mente estava tão perturbada que só ocasionalmente tinha lampejos de lucidez?Mas o quarto era ligeiramente diferente. Disso ele tinha certeza.

- O que há Richard? Alguma coisa errada? Eu não o vi chegar?Como foi a viagem?

Ele virou-se para ela e como alguém que tenta recordar-se de alguma lembrança fugidia, falou pausadamente.

- E-era... Tudo tão real!

- Nos sonhos tudo sempre parece real. Mas o que era?

- O sonho. Eu estava num hospital. Tinha sido atingido por uma espécie de descarga elétrica e não sabia quem tinha me levado até ele. Mesmo você também não se lembrava de nada. Comecei a pensar que estava ficando louco.

Alice afagou os cabelos do marido carinhosamente.

- Foi apenas um sonho ruim, só isso. O cansando da viagem. Procure relaxar e volte a dormir. Quer tomar alguma coisa?

- Não. Obrigado. - Ele a abraçou fortemente e alisou os longos cabelos dela.

- Oh, Alice. Você não faz idéia do meu desespero. Mas você falou em viagem. De que viagem está falando?

- Não se lembra?

- Apesar de estar confuso, tenho certeza de que me lembraria.

- Você não se lembra de ter chegado aqui?E este pijama que está usando? Trouxe de onde?

- Pois é Alice! Isto é o mais engraçado. Eu acordei no tal hospital vestido nele, como já lhe contei. O que torna tudo mais incrível. Não me lembro como me colocaram nele. Se o comprei e o coloquei sem perceber. Enfim, tenho muitas dúvidas e poucas explicações. Mas vou fazer o que me pede. Relaxar e dormir. Amanhã pensarei nisso e com certeza me lembrarei da viagem e de como adquiri este pijama.

Alice o olhou de forma suspeita, perguntando-se se o marido não estaria tão estressado a ponto de precisar de algum tipo de terapia. Se o fosse o caso, amanhã tocaria no assunto e procuraria ajudá-lo da melhor forma possível. Pensando nessa hipótese procurou tranquilizá-lo.

- Pronto Richard. O pesadelo já passou. Relaxe e amanhã conversaremos.

- Claro meu amor, é o que eu farei. Deixe-me apenas dar uma olhada nas gêmeas.

- Gêmeas? – reagiu Alice. – Do que você esta falando?

- As nossas filhas Alice! Es-Estou... Falando de Dorothi e Linda... Alice.

Ela pôs a mão na testa dele. – O que está acontecendo Richard? Com febre não está! Primeiro a viagem e agora as... Gêmeas? Você sabe que nunca tivemos filhos. Lembra-se do que concordamos?

Ele novamente passou as mãos trêmulas pela cabeça e levantou-se desesperado, rumo ao quarto que deveria ser das crianças. Mas era verdade. Não havia ninguém dormindo nele. Nem ao menos era o quarto decorado especialmente para as crianças.

Alice correu atrás dele, abraçando-o. Sua expressão demonstrava grande preocupação. Ele nunca agira daquele jeito. Não pelo menos até aquela noite. Sempre havia os pesadelos. Mas era só isso: pesadelos.

Richard ficou parado apoiado no batente da porta, sem desviar o olhar para a parte do quarto onde ficavam as camas das gêmeas. Qual era a explicação para tudo aquilo?

- Não estou conseguindo assimilar tudo isto Alice. Será que sou eu ou... É... Tudo consequência do acidente? Será que estou morto e isto aqui uma espécie de limbo para onde as pessoas são levadas? Ou partes do meu cérebro foram tão danificadas que estou perdendo o contato com a realidade? Será que minhas recordações não passam de ilusões, como sonhos?

- Do que está falando querido? Calma. É evidente que não está morto. E olhe, estou aqui do seu lado. Sou real. – disse ela apoiando o rosto no seu ombro.

- Ou... Certa vez Alice, li em algum lugar que podem existir muitas versões da vida de cada pessoa. De cada coisa que acontece no mundo. É como uma bifurcação constante de cada decisão que tomamos, de cada ação que fazemos. Alternativas sem fim, gerando Universos sem fim. Mas como se explica isto em minha vida? A corrente elétrica mudou a constituição do meu cérebro permitindo que acessasse cada uma delas Alice? Como posso estar aqui, ouvindo você me dizer que não tenho filhas, quando me lembro perfeitamente do rosto de cada uma? Como fiz uma viagem da qual não me lembro?Muito menos de ter chegado aqui? A própria casa é diferente daquela que me lembro! O que significa tudo isso Alice? O quê?

Abatido, ele lentamente deslizou o corpo para baixo apoiado num dos batentes. Depois cruzou as pernas e apoiou a cabeça sobre os braços. Olhando para o chão, começou a murmurar para a mulher que continuava do seu lado. - Isto não pode estar acontecendo Alice! Isto não pode estar acontecendo. Não pode... Não pode...

- Olhe Richard, procure se acalmar. Amanhã vamos procurar ajuda. Deve ser a pressão.

- Não... È...

Ele não conseguiu terminar a frase. Ele viu novamente a imagem difusa do homenzinho que vira no hospital e apontou na sua direção.

- Você não está vendo Alice? Olhe!

Ela olhou e não viu nada. Seu marido estava realmente tendo uma crise. Não poderia esperar até o dia seguinte. Precisava levá-lo a um hospital ou pedir algum tipo de ajuda.

- Richard!Escute-me! Vou até a escrivaninha da sala, pegar o telefone de emergência. Não faça nada, promete? Já volto.

Ele ouviu e balançou a cabeça afirmativamente. O que poderia fazer? Sentia a própria realidade desfazer-se e sabia que por mais que quisesse concordar, aquele não era seu mundo. Não o que conhecia.

Enquanto Alice se afastava ele fixou os olhos na imagem do homenzinho que de certa forma parecia perceber sua presença, mas não se comunicava. Apenas tocava em várias coisas que não conseguia ver, mas que com certeza deviam fazer parte de uma parede ou de um painel que ele, por sua vez, não conseguia visualizar. E a cada vez que fazia isso, um torpor invadia seu corpo, deixando-o cada vez mais sonolento a ponto de precisar de toda sua vontade para não voltar a dormir. Onde acordaria da próxima vez? Não queria dormir. Queria ficar lúcido para tentar entender o que estava acontecendo. Tinha medo de dormir. Mas a sonolência quebrou sua resistência e ele tombou inconsciente.

Alice foi até a sala e a primeira coisa que notou, assim que ligou as luzes, é que não havia malas depositadas no chão. Se Richard chegara de madrugada, onde as deixara? Mas a explicação poderia esperar. Pegou a agenda de telefones e muita agitada teve dificuldade de encontrar o número de emergência hospitalar. Por fim o achou e pegou o telefone para faze a ligação do quarto, próxima do marido. Mas assim que retornou, ficou estática. Seus olhos arregalados presenciaram o corpo de seu marido desaparecer numa névoa luminosa, sem que pudesse ajudá-lo ou entender o que estava acontecendo.

Dias depois contaria ao Richard daquele Universo, o estranho acontecimento daquela noite. A estranha conversa que tivera, sem ter certeza se sonhara ou vivenciara de fato um acontecimento inexplicável.

5 – O Hospital do outro Universo.

Richard chegou o mais cedo que pode ao hospital e encontrou Alice num quase estado de choque. Abraçou-a e fez que tudo que estava a seu alcance para tranquilizá-la. Mas tinha que encarar o problema de frente e assim que conseguiu convencê-la a não voltar para o interior do hospital, menos ainda com as crianças, rumou para o quarto onde estava internado o seu outro “eu”.

A surpresa foi geral, tanto pela parte dos médicos como dos enfermeiros que atendiam o homem que se dizia ser ele, pela completa semelhança. Mas como ele não possuía um irmão gêmeo, pelo menos dentro do que sabia, não havia como explicar a presença dele na mesma cidade. Procurou pelo médico que o atendera e apesar dos lapsos de memória que este lhe descreveu, não havia como afirmar se isto era só um efeito passageiro do que alegava ter-lhe acontecido ou se era alguém que não estava em plena posse das faculdades mentais. Mas não havia como explicar as lembranças da família e a reação da própria esposa e filhas que não tinham percebido qualquer diferença.

Antes de conversar com ele, o Richard daquele mundo solicitou a ajuda da polícia para identificar aquele homem. Poderia ser um louco, que fizera uma operação plástica para executar algum crime hediondo ou qualquer outra coisa, real ou fictícia contra sua família, que percorria sua mente.

Ele caminhou pelo corredor, enquanto a polícia não chegava e por alguns segundos parou em frente á porta criando coragem para falar com ele. Olhou de relance sem se expor e ficou admirado com a semelhança. Era a imagem de um espelho.

Por fim criou coragem e entrou.

A surpresa estampada no rosto da sua imagem espelhada não foi menor.

- Oh... O que significa isso? Q-Quem é você?

- Eu sou Richard Mackena. E você?

- Eu é que sou Richard Mackena! Você deve ser um impostor, apesar da grande semelhança.

- De onde você é? Como venho parar aqui? – perguntou o seu outro “eu” tão incrédulo quanto ele.

- Sou daqui... Como você. Como vim parar... Neste hospital ainda não sei... Mas pretendo descobrir. E voltar para casa.

- Seja lá o que pretende fazer, fique longe de minha mulher e minhas filhas.

- Por que diz isso. Eu nunca...

- Fique longe delas. É um aviso.

- Você é que deve ficar longe dela! Ela é a minha família! Richard não conseguia entender a reação daquela cópia sua já que o que mais queria era voltar à normalidade do ambiente familiar. Nunca gostara de hospitais.

- Olhe. Sei que minha presença aqui é tão estranha para você quanto a sua para mim. – disse ele para sua cópia, tentando evitar uma discussão que não fazia sentido algum. - Não sei explicar como vim parar aqui. Mas não pretendo fazer qualquer mal á sua família. À minha...

Quando o policial chegou, Richard olhou para ele admirado. O que fizera?

Mas o policial ficou mais confuso do que eles. – São irmãos gêmeos?

- Não oficial. – disse o Richard parado diante de sua cama. – Só quero que tire as impressões digitais desse homem, para ver quem ele realmente é.

O policial se sentiu desconfortável, já que não via ameaça alguma, e jamais enfrentara sua situação semelhante.

- O senhor quer fazer alguma queixa?

- Sim. Sim. – disseram os dois.

- Eu não posso simplesmente fazer isso, sem uma autorização. – disse o oficial. – Não vejo aqui uma queixa ou crime cometido.

- Eu acuso formalmente este homem de ser um impostor! – disse o Richard que estava em pé. – Ele é uma ameaça para a minha família e exijo uma identificação datiloscópica, de DNA. De qualquer coisa.

- Você age como eu. – disse Richard para a sua imagem, parada na frente da cama.

- Por quê não me ajuda? Não sou uma ameaça.

- Veremos.

- Mesmo que o oficial colha as digitais, verá que eu sou você.

- Veremos.

Richard sentiu a bizarrice daquela situação. Ele provocando a si mesmo. Mas sabia que quando se tratava da família, podia-se esperar qualquer reação.

- Bem. O que decidem? Querem oficializar uma queixa?- disse o oficial sem saber direito o que fazer.

- Richard, acredite. Eu não sou um criminoso. Não precisa procurar pelo óbvio. – disse, constrangido por ser considerado algum tipo de criminoso. Em toda sua vida, nunca passara por aquilo. Era uma afronta.

- Oficial! Ele quer uma queixa. Vou providenciar uma. Meu nome é Richard Mackena. Moro na...

Ele não conseguiu terminar a frase. Sua cópia o agarrou pelo colarinho do pijama, e gritou. – Pare! Pare com essa farsa!

O oficial continuava sem saber o que fazer diante do ânimo exaltado de dois homens, cada qual afirmando ser ou outro.

Richard pulou da cama e empurrou o seu outro “eu”. Aquela conversa sem sentindo o estava aborrecendo. Sentia necessidade de fugir dali. De procurar sua família. De deixar aquele ambiente de loucos.

O oficial tentou apartar os dois, que se acusavam mutuamente de impostores.

Na refrega Richard também empurrou o oficial, fazendo-o cair. Desvencilhou-se do seu outro “eu” gritando como louco. Estava começando a agir como um e não fora essa sua intenção. Mas a pressão era muita e de certa forma, precisava desabafar. Sair dali.

- Vou sair daqui! Vou voltar para minha casa!

Os enfermeiros correram na sua direção e ele esmurrou um deles. Logo o oficial, Richard e o outro que não fora agredido o agarraram.

- Preciso sair daqui! Preciso voltar para o meu mundo! Soltem-me!

O médico avisado de seu estado logo chegou e percebeu que teria de agir. Recolocaram-no na cama e lhe aplicaram um sedativo. Ele tentou se desvencilhar dos homens, mas eram muitos e o efeito do sedativo logo começou a fazer efeito. Não queria dormir, pois cada vez que isso acontecia, acordava num lugar. Alguns piores do que os outros.

- Eu...Eu... Alice... Não é real... Não é real. – balbuciou, antes de perder a consciência novamente.

***

- Senhor Mackena...! Senhor Mackena...!

Ele sentiu que mexiam em seus ombros e os olhos recusavam-se a obedecer. As pálpebras pareciam pesadas. Com tremendo esforço conseguiu abri-las e quando sua visão firmou-se, ele se deu conta de que estava de volta ao quarto de hospital. Ao maldito quarto do hospital! Mas não era o mesmo. Como fora parar ali? Não vira o pequeno ser.

A última lembrança que tinha, era da briga, da tentativa de fugir e da sedação. A voz que o chamava era de um dos enfermeiros que viera lhe trazer um remédio e gentilmente o sacudira.

- Desculpe-me se eu o assustei, senhor Mackena. O senhor me parecia tão agitado que resolvi acordá-lo bruscamente. Perdoe-me.

Mackena apenas ficou olhando o enfermeiro com um ar totalmente perdido. Como se sua mente estivesse ainda vagando por um outro local.

- Está tudo bem, senhor Mackena?

Ele apenas balançou a cabeça... E viu que havia mais dois enfermeiros, uma enfermeira e um médico mais afastados, observando-o com bastante curiosidade . Sentia-se como uma aberração. Uma atração de circo.

- Eu... Me, me... Desculpe. O que disse?

- Eu perguntei se está tudo bem com o senhor?

- Se está... Tudo bem comigo? Eu... Eu... Não sei... Po-por favor... Onde estou? Quero falar com o médico.

- Está na ala psiquiátrica do hospital. Há algo errado? Está sentindo alguma coisa?E fez um sinal de cabeça para o médico se aproximar.

Richard ainda sentindo os efeitos do sedativo, levantou-se descontroladamente, derrubando a bandeja que o enfermeiro segurava na outra mão, onde estavam o copo de leite e o remédio que deveria tomar.

- Eu... Eu... Não sei. Q-quero falar com o médico, por favor.

- Calma, senhor Mackena. Estou indo. Procure ficar calmo. - disse o médico enquanto se aproximava.

Richard apenas passou uma das mãos pelas têmporas e adotou uma posição ameaçadora para ele, quando ele ficou do seu lado.

- Eu... Eu quero falar que não é o que estão pensando. – disse, agarrando-o pela camiseta.

- Enfermeiro Ward, ajude-me aqui. Rápido. O senhor Mackena está um pouco agitado...

Mackena tentou desvencilhar-se do médico, mas este o agarrou firme, fazendo que tombasse no leito.

- Solte-me! – disse Richard, lutando para se livrar dos braços dele. – Não quero agredi-lo sem razão alguma. Quero lhe dizer que não estou louco. Que tudo isto não é necessário!

Logo mais outro enfermeiro, que ladeava Ward, precipitaram-se sobre ele, imobilizando-o na cama.

- Soltem-me! Soltem-me! Preciso explicar!

- Calma, senhor Richard, já vamos soltá-lo. – Enquanto dizia isso, o médico fez um gesto para o enfermeiro que entendeu a mensagem e logo correu para preparar um sedativo leve para ser inoculado em Mackena.

- Vejo que recuperou o controle do corpo mais rápido do que imaginava. Muito bem! Qual o motivo desta agitação senhor Mackena? – perguntou o médico inclinando-se sobre ele. – O que quer explicar?

- Vo-Vocês não entendem? Não estão vendo?

- O que não estamos vendo senhor Mackena? – continuou o médico, enquanto rapidamente o enfermeiro lhe passava a seringa.

- Is-Isto tudo... Não é real... Não sei o que vocês são, mas não é real.

- Claro que somos parte do que é real senhor Mackena! Não sente a pressão de nossas mãos? A materialidade de tudo que está à sua volta? É esta a razão da agitação? Acha que não somos reais? Por quê?

Enquanto os enfermeiros continuavam subjugando-o, o médico por fim aplicou-lhe o sedativo que circulando pela sua corrente sangüínea, logo chegou ao cérebro, turvando-lhe o raciocínio.

- Senhor Mackena procure se acalmar. Tente raciocinar e me diga por que não somos reais?

Ele tentou livrar-se dos três homens que o seguravam, mas o efeito do tranqüilizante logo o enfraqueceu.

- Existe... Uma pessoa... É ela que está fazendo isso... Eu... Antes de chegar aqui... Eu estava... No meu quarto. Com... Com minha esposa. Eu não consigo controlar o que acontece... Espere... Não estão vendo?

O espectro surgira novamente e olhava fixamente para ele. Por que só ele o via?

- Vendo o quê, senhor Richard?

- O homem... Ali... – Ele apontou na direção da parede, mas sabia que isto só agravaria o que imaginavam a seu respeito. Continuava executando gestos sobre algum tipo de painel que não conseguia ver.

- Onde? Senhor Richard?

Logo o pensamento se tornou difícil e por mais que se esforçasse para ficar lúcido e explicar as sensações e lembranças de outros lugares por onde seu corpo transitara, o controle das palavras começou a lhe fugir e mais uma vez, a escuridão o envolveu. Desta vez, não era a sedação. Sentia-se transportado para outro lugar.

Pela primeira vez, todos que estavam no quarto foram testemunhas de um fenômeno inusitado. Aquele paciente não era somente uma pessoa com transtornos. Passava a ser um enorme mistério. O que era aquela névoa que envolvia o seu corpo e o fazia desaparecer?

6 – De volta ao início.

A casa... A casa era a... Sua casa!

Mackena estava parado em frente de sua residência. Será que ficara ali o tempo todo, como num transe? Não sabia mais uma vez explicar como viera parar ali, mas com toda certeza... Ele estava ali. Talvez nunca tivesse saído dali, mas... Lembrou-se aos poucos. Do carro, do pneu, da tempestade, da estranha luz azul e... Da pequena criatura de vagas feições humanas. Só podia ser mesmo um delírio. As crianças, o hospital, Alice... As idas e vindas do hospital ou hospitais de uma vida que nunca seria a dele.

Talvez estivesse preso num laço do tempo. Ou talvez, estivesse morto. E a vida após a morte seria aquilo? Um eterno vagar entre lembranças que não paravam de se repetir, indo e vindo eternamente, até que se resolvesse o que era para ser resolvido? Ou será que ele estava preso dentro de sua própria mente, ainda desmaiado ou mesmo dormindo sob efeitos de sedativos, na cama do hospital?

Recordou-se do que ocorrera fora do carro e talvez... Estivesse em coma e isso explicaria porque as imagens misturavam-se, como é comum ocorrer nos sonhos. Apalpou-se e sentiu-se sólido. Beliscou-se para ver se realmente sentia alguma coisa que lhe lembrasse estar consciente e de fato... Sentiu dor. Uma dor inquestionável. Se o sistema nervoso podia lhe transmitir essa sensação o que estava ocorrendo era bem mais real do que um sonho.

Respirou profundamente e sentiu o ar da manhã de verão invadir seus pulmões. O Sol logo ascenderia no horizonte e as ondas de calor se fariam sentir em sua pele. Mais uma vez refletir que se tudo aquilo não passava de um sonho, tais sensações não seriam assim tão vívidas. Ou seriam...?

Foi então que Mackena, forçando os olhos para cima das casas vizinhas, notou que o céu para os lados do oeste estava escuro. Era uma tempestade que se aproximava e as pesadas nuvens cor de chumbo que se dirigiam rapidamente na sua direção, às vezes tornavam-se translúcidas conforme o irromper dos relâmpagos no seu interior. E à medida que os segundos transcorriam um pequeno ribombar anunciava também os trovões. Ele refletiu que se continuasse ali, em breve receberia todo o impacto da chuva. Mas claro... Já havia visto isto antes. Foi onde e quando tudo começara.

Procurou se esconder para que o outro não o visse e testemunhou a sua saída da casa em direção à garagem, da mesma forma como se lembrava... Logo os pingos d’água começariam a cair. Depois ocorreria a estranha luminescência azul e o estampido que confundiria com um relâmpago.

Daquele ângulo pode observar que de certa forma a tempestade e o fenômeno estavam interligados, mas não saberia dizer até que ponto. Ou qual deles precedia o outro. Viu detalhes que não pudera ver da outra vez. Em meio às nuvens, observou uma neblina azulada que cintilava; provavelmente a fonte da corrente elétrica que o atingira. E viu também o mesmo ser, transpassado pelo seu carro como se este não possuísse consistência física. E os enigmáticos movimentos que fazia, como se estivesse lidando com alguma espécie de controle. Ele o olhava fixamente e o outro Richard, parecia não perceber sua presença. O que significava afinal aquilo?

Ele viu impotente o fluxo de energia se desprender da névoa e atingir o outro Richard, banhando-o numa multitude de pequenas descargas e seu comportamento quase infantil diante do que se seguiu. Depois o desespero provocado pelo estranho fluido que tudo cobria e que rumou na direção dos dois. A sua tentativa de entrar na casa e ficar com a família, destino esse que nunca atingiria.

Ele fechou os olhos, preparando-se para sentir mais uma vez a passagem do estranho fenômeno por seu corpo. Mas ele o atravessou como se não existisse, deixando-o atônito. Não conseguiu entender por quê desta vez não fora afetado. Talvez estivesse fora de fase com aquela linha temporal, apesar de poder interagir. Mas ele não estava ali como espectador, disso tinha certeza, e abandonou as perguntas que se fazia.

Sua atenção se voltou para o Richard que estava lá, caído perto do carro. Não havia mais qualquer sinal do humanóide. A chuva desaparecera misteriosamente. Na verdade não havia sinal algum dela. Percebeu pelo pneu vazio que tanto o carro como ele haviam sido deslocados para este cenário sem chuva. Outros detalhes também estavam mudados. O carro de Alice não estava na garagem e sua casa estava fechada. Mesmo que quisesse, apesar do espanto que causaria, não poderia lhe pedir ajuda. Mas ele não tinha tempo para entender o que acontecera. Sabia que os minutos seguintes seriam decisivos. Correu na direção do carro e afobado abriu a porta, colocando o outro “ele” desmaiado no seu interior. Ajeitou-o da melhor maneira que podia com o cinto de segurança e encostou o seu rosto junto aos lábios dele, para ver se ainda respirava. Mesmo com o pneu furado, deu a partida e fez uma rápida manobra rumando para o hospital municipal mais próximo que conhecia. Ele não ficava longe e o pneu murcho teria de aguentar até lá.

***

Logo que parou o carro no estacionamento do hospital, Mackena antes de descer, verificou mais uma vez se o outro “eu” continuava respirando. Após certificar-se que ele ainda o fazia, sem poder contar com ajuda de alguém, carregou-o até a recepção do hospital, onde começou a gritar por socorro. Logo a ajuda apareceu e ele foi colocado sobre uma maca.

- Por favor, chamem um médico para socorrer este homem. Ele foi atingido por um raio. Precisa de cuidados urgentes.

- Calma, senhor... Senhor...? – disse a recepcionista.

- Ah... RC. Pode me chamar de RC.

- R...O quê?

- Não importa. Depois eu lhe darei o nome completo.Cuidem dele...

Logo dois atendentes apareceram e levaram a maca na direção do pronto – socorro, atônitos com a semelhança de ambos e pelo fato dele estar usando um pijama. Ele tentou acompanhá-la, mas assim que chegou próximo da porta, foi detido.

- O senhor não pode passar daqui, senhor...? Eh... O senhor precisa ir até à recepção e preencher o formulário de entrada.

Um segurança apareceu e antes de pegar em seu braço e levá-lo para a recepção observou o homem deitado e por duas vezes, olhou para os dois. Não aguentando a curiosidade lhe fez a pergunta óbvia.

- É o seu... Seu irmão gêmeo senhor?Aconteceu na sua casa?

- Por quê diz isso?

- Por causa do pijama... Eu pensei...

Sem saber o que dizer, e, ansioso pelo atendimento médico, Mackena apenas balançou a cabeça, num gesto afirmativo.

Seus olhos acompanharam a maca até onde podia e quando ela sumiu atrás da porta, ele virou-se e caminhou na direção da recepção para preencher o formulário de entrada.

Estava muito cansado e muito confuso. Sentiu tudo começando a se distanciar. E ele já suspeitava o que seria. Quando isso acontecia, logo o ser reapareceria e ele acordaria em outro lugar. Não podia evitar. Mas descobriria um jeito.

Um dos funcionários que prestava serviço junto ao balcão da entrada notou o seu estado físico quando lhe entregou o formulário.

- Está sentindo-se bem senhor?Não está com frio?

Ele apenas virou-se e balbuciou algumas palavras.

- Hã? Eu... A-Acho que... Não. Estou apenas um pouco tenso.Peço desculpas pelo traje.

- Por favor, sente-se numa daquelas poltronas, que estão atrás daquelas divisórias e só preencha o formulário, quando se sentir melhor.

- É... É melhor mesmo. – falou Mackena, pegando os papéis e dirigindo-se para a poltrona indicada.

Assim que se sentou, respirou bem fundo e fechou os olhos tentando recuperar-se.

Mal preencheu algumas linhas, sua atenção voltou-se para uma pequena porta, que podia ver através de uma fresta das divisórias. O espectro surgira de novo, como já acontecera várias vezes, só que sua imagem era mais nítida desta vez. O corredor onde parecia estar não lhe causava qualquer interação já que um médico ou funcionário que vez ou outra por lá transitavam, traspassava-o, sem se dar conta de que ele estava ali. Por quê só seus olhos podiam vê-lo. Mas como? E o quê ele era afinal? Um ser de outra dimensão? Aberta depois da descarga elétrica? Se pudesse se comunicar talvez encontrasse a resposta para todos aqueles eventos que estavam se sucedendo.

Mackena pode dessa vez observar os detalhes daquela visão com mais riqueza de detalhes. Além da constituição bem franzina, calculou que sua estatura aproximava-se da de um adolescente de uns treze anos. Seu traje compunha-se de uma espécie de roupa inteiriça de um azul metálico, que lembrava vagamente a roupa de um astronauta.

A maneira como ele se comportava, demonstrava que estava ciente da sua presença, pois o olhou diversas vezes, como se fosse entrar em contato. Mas depois, para sua decepção, movimentou um dos aparelhos que carregava, desaparecendo da mesma forma como viera.

Mackena estava confuso com tudo aquilo. Já não tinha certeza se o espectro era a causa de tudo que estava acontecendo ou se era o primeiro sintoma de uma loucura latente maior. A frustração de não poder contatá-lo foi demais, principalmente depois de seu esforço para salvar a si mesmo.

Sentiu-se cansado, muito cansado. Como se suas pálpebras pesassem mais do que o normal. Mas antes que perdesse a consciência ele agora sabia que toda vez que se sentia dessa forma, acabaria acordando em qualquer lugar, em qualquer situação. Não sabia para onde seria levado e que situação encontraria. Menos ainda de como se dava o processo de transporte de um lugar para o outro e o que cada um significava em relação à sua linha de vida. Precisava se comunicar com aquele ser de qualquer jeito, para descobrir o que estava acontecendo e se poderia por um fim àqueles intermináveis pesadelos.

Quando o último pensamento se foi, ninguém foi testemunha ocasional de seu desaparecimento. Uma névoa envolveu seu corpo, e somente as folhas largadas do formulário sobre a mesa, preenchidas com sua letra, era a única prova de que salvara uma versão de si mesmo.

7 – Ala psiquiátrica do outro Universo.

Richard quando acordou, tentou movimentar-se, mas alguma coisa tolhia seus movimentos. Na verdade, estava preso. Olhou para a parte de baixo de seu corpo e se deu conta de que estava preso na cama. Haviam colocado um cinto sobre seu tórax que o mantinha quase imóvel. Seus pulsos também estavam presos por pequenas tiras a ela e ele começou a gritar, ao mesmo tempo, que tentava se livrar das amarras.

- Alguém esta aí? Alguém me ouve? Tentou forçar os cintos e sentiu a pressão das tiras nos pulsos.

- Por favor. Há alguém aqui? Eu preciso falar com alguém.

Depois de alguns minutos desistiu de tentar livrar-se. Ele não sabia se estava sob o efeito de alguma droga, mas tinha a impressão que vultos indistintos passeavam rapidamente pelo quarto. Os movimentos assemelhavam-se a um filme projetado em alta velocidade. Os vultos continuaram no quarto até que um deles foi desacelerando e tomou a forma do médico da ala psiquiátrica.

- Como fez isso, senhor Mackena?

Ele o olhou fixamente. – O quê? O que foi... Que eu fiz?

- Seu corpo! Brilhou intensamente e chegou desaparecer por alguns segundos. Sabe o que é isso? Sempre lhe aconteceu?

- Eu... Eu... Não sei. Foi... Foi o que tentei explicar... É aquela coisa... Ela está fazendo isso comigo. Não tenho certeza de mais nada. Nem sei se tudo isto aqui é real ou faz parte de minha imaginação.

- Não se lembra do que aconteceu? – disse ele com uma expressiva curiosidade.

- Eu... Quer dizer... Aqui nesta pseudo-realidade? Sim... Mas acabei de vir de uma outra... Onde eu... Não vai acreditar!

- Outra? Como assim outra?

- Está... Não é a única. Eu... Não sei como... Acordo em uma... Em outra. Como agora...

- Interessante senhor Mackena! Está me dizendo, que quando seu corpo brilha, é levado para outro lugar? É igual a este?

- Sim... Depende... Às vezes é... Às vezes não...

- Vamos reunir um grupo de médicos para examiná-lo senhor Richard. Não só de médicos. Mas de físicos também. O seu caso é único. Mas como está muito agitado... – disse ele de forma complacente. – E enquanto não entendermos o que está acontecendo ficará aqui para sua própria proteção.

- Mas... Mas preciso ficar amarrado?

- Bem senhor Mackena. É uma tentativa rudimentar de impedir que desapareça. Mas como deverá ficar, dependerá da decisão de meus colegas e de outros especialistas. Percebi que tais manifestações o deixam muito agitado. No momento só estou procurando deixá-lo mais confortável e longe de perigos.

Mackena tentou levantar-se, mas foi em vão.

- Oh! Diabos! Eu não preciso de conforto. Eu preciso de respostas. Entende? De respostas.

- Nós também. – disse o médico, com um ar de paciência.

- Eu sei que meu comportamento pode parecer incoerente, mas não estou louco. Acredite. Se ficou assim por algo que viu que nem eu estou entendendo, como acha que deveria me comportar?

- Claro senhor Mackena! Claro! – disse ele. – Por isso decidi mantê-lo assim para evitar qualquer dano físico.

- Olhe! Pode parecer a você que estou perturbado mentalmente. Mas não é isso. Eu não sei lhe explicar tudo o que esta acontecendo, mas juro, eu... Repito, eu não estou louco! Pode ao menos me soltar?

- Quem decidira isso é o grupo de médicos e especialistas, senhor Mackena. Tente convencê-los de que está bem. Que quando submetido a tais manifestações consegue manter sua sanidade mental e não oferece perigo a ninguém. Mas o que vimos precisa ser estudado.

Ele apenas fez uma careta para o médico, reagindo ao que acabara de ouvir.

Mackena chegou à conclusão que seria uma perda de tempo, tentar convencê-lo e obter respostas para tudo que estava acontecendo. Resolveu ficar calado para não parecer mais louco ainda. Mas tinha, é claro, que encontrar uma explicação para todas aquelas circunstâncias inusitadas. Conseguir algum tipo de ajuda para por um fim àquela loucura que não cessava.

Ele não queria aquele tipo de auxílio que os médicos estavam tentando lhe dar, já que com toda certeza imaginavam estar diante de um homem mentalmente perturbado e causador de um fenômeno inexplicável. Ele precisava fazer-se entender de que este estado era decorrente de coisas que só ele via e que aconteciam independentemente de sua vontade ou interferência. Que estava conseguido lidar com aquilo, sem perder a sanidade. Pelo menos a tal luminosidade e sua transparência que haviam testemunhado poderia ser o primeiro passo nesse sentido, mas não queria virar um rato de laboratório.

À medida que o médico deixava o quarto ele percebeu que seu andar começou a ficar lento demais, como se o tempo estivesse desacelerando novamente. O oposto do que observara assim que ficara consciente. Tudo aquilo permanecia não fazendo o menor sentido. Por que continuavam acontecendo? Mais uma vez, angustiado, tentou livrar-se das correias, mas percebeu que o esforço era em vão.

Tentou levantar o corpo para conseguir ver de que forma fora amarrado e olhou fixamente para as duas mãos. Subitamente o espectro reapareceu, comportando-se da maneira habitual.

À medida que tocava na parede invisível os limites do quarto começaram a afastar-se vertiginosamente, perdendo o ambiente qualquer nitidez. A impressão sensorial era de que sua cama estava sendo arremessada em alta velocidade para algum lugar no horizonte infinito. Fechou os olhos, temeroso de chocar-se contra qualquer coisa que por ventura estivesse posicionada à sua frente, nessa rota alucinógena, quando ouviu uma voz feminina. Abafada a princípio, interrompida em outras... Até...

8 – Futuro de outro Universo.

- Papai? É você? Papai...? Eu-eu n-não estou entendendo! Como?Estou vendo um fantasma?Será que estou inconsciente?

Aquela miscelânea de imagens turvas estabilizou-se. Abriu os olhos e a cama, o quarto... Tudo se fora. Agora ele estava diante de uma jovem mulher que lembrava muito sua esposa Alice. Estava pisando uma grama recém cortada, diante novamente de sua casa. Só que ela apresentava-se envelhecida, desgastada que fora pela ação do tempo. Alguns reparos de emergência demonstravam que a estrutura pedia socorro há anos.

Ele ficou ali, imaginando por que a casa chegara naquele estado, sem perceber que uma voz denotava espanto ao vê-lo ali, até que tropeçou numa velha mangueira largada no chão. Foi então que despertou do transe e voltou sua atenção para a jovem que lhe dirigia a palavra.

- Papai? É você mesmo? Não está me reconhecendo?Como chegou até aqui? - disse a moça, ameaçando desmaiar com a sua visão.

Quem era aquela jovem que se parecia muito com sua querida Alice, que lhe fazia tantas perguntas, enquanto a segurava.

- E-Eu... Desculpe-me? O que disse?

Ela tocou o seu rosto ainda não acreditando que ele fosse real.

- Papai? Não me reconhece? Sou eu...Sua filha! A Dorothi!

- Do-Dorothi? – disse Mackena, ajudando-a a se recompor.

- E-Eu não estou entendendo! Será que estou sendo vítima de alguma ilusão por demais realista? Você morreu faz mais de vinte anos e agora... Reaparece aqui... Diante de meus olhos... Assim... De pijama...! Está... Do mesmo jeito como me lembrava! Não envelheceu! Deus... Será que vou acordar?

Ele a segurou, com o rosto tenso, tentando acalmá-la e ao mesmo tempo tentando explicar-lhe o que não saberia explicar.

- Dorothi, eu... Eu... Estou tão... Tão perplexo... Tanto quanto você... Minha filhinha. Q-quero dizer, minha filha. Eu não sou um fantasma que voltou do mundo dos mortos. Isso eu lhe posso garantir. Pode me tocar novamente. Veja... Sou tão real quanto você!

Ele a abraçou, tentando tranquilizá-la e ao mesmo tempo ancorar em alguma coisa familiar que fizesse sentido.

- E-Eu não sei explicar-lhe o que esta ocorrendo, principalmente comigo. Mas quero que saiba que estou muito feliz em te ver assim, jovem e saudável.

Mackena passou a mão por sobre os cabelos de Dorothi, enquanto falava num tom de voz bastante calmo.

Sua filha encostou a cabeça em seu peito e começou a chorar. Mesmo que fosse um futuro que talvez nunca viesse a acontecer, a imagem de Dorothi demonstrava possuir sentimentos, o que realçava ainda mais a sensação vívida daquele momento. Vendo-a assim, tão frágil, ele precisou de muito controle para não sucumbir às emoções que insistiam em aflorar.

- Sshhiu! Não chore meu bem. Papai está aqui agora.

Choramingando ela tentou falar com ele. - V-Você... Sumiu de nossas vidas...! Assim... Tão de repente! É... É estranho! Você não mudou nada! Está com a mesma aparência da última foto que guardei de você. Como isso é possível? Acho que estou sonhando papai. Mas tudo parece tão real!

- Não sei lhe explicar isso Dorothi. Não sabia que havia desaparecido da sua vida. Só sei que estou aqui. E lhe garanto que não é um sonho. Nem sei explicar-lhe como cheguei até aqui ou o porquê. Também não sei quanto tempo este momento irá durar e se quando eu o deixar, você da forma como está aqui, continuará existindo.

- Por que diz isso Papai? Não quero perdê-lo novamente. Como a mamãe e Linda.

- Sua mãe e Linda? Elas não vivem mais aqui?

Ela afastou-se dele e o olhou bem nos olhos. – Você não se lembra?

- Não! - Respondeu, com uma expressão angustiada sulcando seu rosto.

- Não se lembra do acidente de carro?

Ele começou a tremer, esperando que seus temores não se confirmassem. – Acidente? Que acidente? O... O que aconteceu com as duas?

- Elas morreram junto com você papai! Não se lembra de nada?

Mackena sentiu suas pernas perderem a firmeza do solo. Era muita coisa para ele absorver de uma só vez. Sentiu um suor frio invadir seu corpo e a sensação de que ia perder a consciência. Desta vez foi Dorothi que com muito esforço conseguiu apoiá-lo para que ele não caísse desajeitado no gramado.

- Co-Como foi isso?- disse com muita dificuldade em articular as palavras. Eram notícias amargas demais para serem aceitas.

Ela ajoelhou-se ao lado dele e carinhosamente começou a falar.

- Foi no dia em que a mamãe pediu para você levá-la no hospital. Não conheço os detalhes daquele dia. Tudo o que sei foi o que a vovó me contou depois. Mamãe ligou para ela, dizendo que pela primeira vez tinham brigado. Você não queria que ela fosse ao hospital. A razão era um homem que estava internado nele. Um louco que dizia que era você. A mamãe queria vê-lo de qualquer jeito. Queria ter certeza. Mas não sei qual.

Richard sabia exatamente do que ela estava falando. Mas desconhecia esta parte dos acontecimentos. – Continue Dorothi.

- Ninguém soube explicar ao certo o que aconteceu. Como conseguiu sair do hospital psiquiátrico. O que se sabe é que utilizou nosso carro, com todos nós dentro, para fugir da policia. Foi quando aconteceu o acidente. Na fuga, o carro capotou. Só eu sobrevivi. Por mais que procurassem o corpo do outro homem, ele nunca foi encontrado. Mais um dos mistérios daquele dia. Eu e a vovó, mesmo os policiais, nunca entendemos o que aconteceu. Talvez você possa me explicar tudo agora papai. Sabe o que aconteceu?

Ele se levantou e olhou para a casa que lhe trazia tantas recordações. Onde estariam Alice e as crianças naquele instante, se estivessem vivas? E o seu outro eu daquele mundo? Ele não podia aceitar o que Dorothi lhe dissera. Isto nunca acontecera. Deu alguns passos e depois se virou para ela.

- Entenda Dorothi. Eu não sei como explicar em detalhes. Na verdade eu não sei como lhe explicar qualquer coisa. Elas estão me acontecendo, aos saltos. Sem que tenha qualquer controle sobre elas. Então, o pouco que sei, é que talvez isto ainda não aconteceu, ou nunca venha a acontecer. Não para mim. E talvez nem para você.

Ela meneou a cabeça. – Do que você esta falando papai?

- Não sei ao certo Dorothi. Só sei que isto é um possível futuro, ou qualquer outra coisa semelhante que isto agora possa ser. E o quê ou quem está fazendo isso comigo, talvez esteja procurando alguma forma de evitar o que acabou de me contar, mostrando o que pode ou não acontecer ou... Pode ser a causa... Não sei Dorothi. Sinceramente eu não sei. Não tenho certeza de nada. Mas farei o possível para evitar o que me contou. Isto eu lhe prometo com todas as minhas forças.

Depois se afastou um pouco, fitando-a detalhadamente. – Mas seja como for e onde seja este agora para onde vim parar, foi muito bom ter te conhecido nesta fase de sua vida minha filha. Você está muito bonita. Tem os traços de sua mãe. E nunca imaginei vê-la um dia assim tão crescida, tão depressa. Mas não posso aceitar que tudo isto seja um futuro que acontecerá, apesar de estar muito feliz por te ver e pesaroso demais para conviver com o que acabou de me dizer.

Ele deu as costas para ela, para rever todo aquele cenário, esperando que pudesse usá-lo como uma espécie de âncora, mas quando se virou para falar com Dorothi, ela começou a desaparecer como uma chama que fosse afastada de sua fonte de oxigênio. Antes que pudesse dizer qualquer palavra, sua imagem foi substituída por outra. No lugar dela estava agora o ser que já observara várias vezes. Desta vez ele tentaria um contato.

Correu o mais rápido que pode na direção dele. Mas à medida que se aproximava sentiu o corpo enrijecer. A casa e tudo o mais que compunham aquele cenário do futuro, desapareceram rapidamente como se, do seu ponto de vista, estivesse sofrendo uma aceleração rumo a algum ponto do horizonte, da mesma forma que ocorrera antes a partir da perspectiva da cama do hospital. Desta vez o processo ocorria sem que ele perdesse a consciência. Apesar da vertigem provocada pela alta velocidade, ele não fechou os olhos aguardando ansioso o que viria em seguida.

***

- Richard! Richard! Cuidado! Preste atenção! Não faça isso! Vamos todos morrer!

Quando ele se deu conta, mal teve tempo de se adaptar. Ouviu o grito das crianças e de Alice. Estava na direção de seu carro, cuja posse do volante era disputado com um outro Richard.

Ele estava correndo e podia ouvir a sirene do carro de polícia atrás. Tentava manter o seu veículo em linha reta com muito esforço, já que o seu outro eu, tentava tirar-lhe o domínio do carro. O que estava acontecendo?

A disputa pela posse do carro se intensificou, fazendo-o desgovernar. Richard ainda tentou evitar a capotagem, mas não conseguiu. Mas quando se viu, acidentando-se com todos, novamente tudo se desfez, perdendo-se em imagens difusas que pareciam correr na direção de algum ponto indefinido do horizonte.

9- No Hospital Psiquiátrico.

O fenômeno da aceleração reverteu-se bruscamente, não lhe dando tempo de se adaptar à nova situação tão rapidamente como pretendera. Assim que conseguiu controlar a visão viu-se de volta à mesma cama do hospital, onde estava imobilizado.

Então o que estava acontecendo não era o produto de alguma disfunção cerebral. Não era nenhum tipo de ilusão. Não restavam mais dúvidas. Estava envolto por fenômenos físicos desconhecidos e com toda certeza devia-se à ação daquele estranho ser. Mas o que quer fosse que sucedesse de cada vez, tinha que encarar cada situação como real, as quais de alguma forma podiam afetá-lo em maior ou menor grau, dependendo do que fizesse. Teria que ser mais cauteloso em futuras ações, inclusive a de fugir, como pretendia.

Ele impotente olhou então para os homens parados diante de sua cama. Um era médico, mas o outro, apesar de bem vestido, era uma incógnita. Da forma como o olhava parecia estar ali para testemunhar o que lhe acontecia quando era arremessado de um Universo para o outro ou mesmo para linhas temporais dentro deles. Nunca os havia visto antes e desconsolado preparou-se para interagir com uma situação cuja causa anterior não vivenciara.

- Como se sente senhor Mackena?Seu corpo dói quando se desmaterializa? Consegue se manter consciente do que acontece? – perguntou o homem de terno.

- Perdão? O que disse?

- O que sente quando seu corpo brilha? – disse o médico.

Ele olhou conformado para os dois homens. – Não sei exatamente. Varia muito conforme o lugar para onde sou levado.

O médico e o homem se entreolharam. – Para onde é levado senhor Mackena? - perguntou o homem de terno. - É como aqui? Diferente? Lá acontece o mesmo com seu corpo?

Ele procurou em sua mente as palavras mais exatas que poderia encontrar para explicar o que lhe acontecia, mas não conseguia.

- Sei que pode... Ah... Parecer absurdo... Mas eu... Eu não estava aqui agora. Não sei como acontece. Acho que quando isso ocorre... As moléculas do meu corpo ficam agitadas... Daí o brilho... Não sei explicar em termos científicos.

- Pensamos o mesmo que senhor. – continuou o homem de terno. – Meu palpite é de que o senhor é o único ser humano que consegue, como direi, se teletransportar. Fizemos uma coleta de suas digitais e descobrimos que é idêntica a de um outro homem que se diz ser o senhor.

- Não me parece que sua face é o produto de uma cirurgia plástica e nem suas digitais. – disse o médico. - Enquanto esteve sedado, fizemos um exame preliminar de alguns pontos de seu rosto e eles combinam com os deste homem com uma exatidão de 99,9999 %. Ou o cirurgião que fiz isso é um gênio em sua área ou...

- Ou o senhor não é deste mundo, senhor Mackena. – disse o homem bem vestido. Mas é cedo para dizermos. Mais testes serão necessários. O senhor é um caso único. O senhor é a primeira prova de um Multiverso. Para onde vai ou como isso ocorre ainda é um mistério que pretendemos desvendar. Tem certeza de que tal movimento independe de sua vontade?

Ele ficou calado por alguns segundos e decidiu que era melhor usar uma outra estratégia para não parecer um rato de laboratório. Já imaginava como isso ia acabar e não pretendia ser vivissecado. Muito menos ser considerado louco.

Com certeza os dois homens estavam animados com as pesquisas que fariam, o que significava que seria mantido preso até morrer

- Sim. Podemos fazer um acordo?

- Qual senhor Mackena? – perguntou o homem de terno.

Richard sentiu que tinha fisgado o homem.

- Direi tudo que sei, desde que me mantenham em liberdade. Procurarei responder todas as perguntas... Tudo. O que acham?

- Muito interessante senhor Mackena. – respondeu o homem olhando para o médico como se trocassem pensamentos telepaticamente.

- Eu... Só queria que... Entendessem... Que apesar destes fenômenos... Eu... Eu estou de posse de todas as minhas faculdades mentais. Eu... Não estou demente... E não represento qualquer risco para a sociedade. Certo?

- Entendemos perfeitamente, senhor Mackena.

- E então?

Os dois se olharam mais uma vez. Depois de uma pausa demorada, o homem de terno respondeu.

- Relaxe por enquanto. Não se preocupe com isto agora.

Os dois começaram a se afastar trocando impressões mudas, o que pareceu a Richard um mau presságio.

- Esperem. Esperem. – gritou Mackena desesperado. – Vocês não podem me deixar aqui, desse modo? Eu estou bem. Acreditem. É... Eu... E... Eu não represento risco algum. Por favor, acreditem?

- Claro senhor Mackena. O senhor só esta assim para sua própria proteção. – disse o médico já quase de saída.

Para tornar a situação mais desesperadora a criatura reapareceu bem no meio da porta, seguida por mais uma, do mesmo tipo. Era a primeira vez que via duas criaturas da mesma vez. O que estava acontecendo? Será que tinham noção do que ele estava passando naquele hospital psiquiátrico? Poderiam lhe ajudar a escapar dali?

Como sempre ocorria os dois homens não se deram conta daquelas presenças, atravessando-as facilmente.

- Ei! Ei! Vocês não estão vendo? – gritou ele, antes que se afastassem demais no corredor.

O médico voltou para o quarto.

- Vendo o que senhor Mackena?

Ele tentou com as mãos amarradas, apontar para a porta.

- Aí. Onde vocês estão. Não estão vendo nada?

O outro homem de terno retornou e olhou em volta detalhadamente sem perceber quaisquer indícios das criaturas. Depois olharam fixamente para ele, perguntando-se se aquilo era uma demonstração da insanidade provocada pelo fenômeno ou uma parte dele que ainda desconheciam.

O desespero de Mackena para demonstrar aos dois que o que ele via era tão real como a cama onde estava preso, aumentou. – Vocês, espectros, mostrem-se! Provem para eles que eu não estou louco. Por favor, mostrem-se! Mostrem-se, eu lhes peço! Por que estão fazendo isso comigo? Por quê? – E ele continuou gritando e debatendo-se na cama com a intenção de livrar-se das amarras, enquanto os dois apenas observavam o seu comportamento.

Mackena queria alcançar os seres que via. A resposta para tudo que estava passando só poderia vir deles. Começou a gritar mais e mais para as figuras espectrais, levantando o máximo que podia as mãos amarradas e apontando o dedo na direção da porta.

O médico foi até o corredor e logo voltou com uma enfermeira. Ela segurava uma seringa que com toda certeza conteria algum tipo de sedativo. Não desejava dormir e acordar em outro lugar.

Mackena quando a viu, tentou mais uma vez livrar-se e naquele desespero, ficou espantado quando seus pulsos repentinamente passaram pelas correias transparentes. Na verdade tudo se tornara transparente. Como se a solidez daquela realidade fosse uma fase temporária.

Seu corpo atravessou a cama e antes que fizesse o mesmo através do assoalho, este voltou a ser tangível, impedindo uma queda maior, já que nem mesmo ele sabia dizer em que andar estava daquele hospital.

De qualquer forma ele estava agora debaixo da cama, livre. Não sabia explicar o que acontecera e nem pensou em encontrar uma explicação. Rolou para o lado e levantou-se com uma agilidade que desconhecia.

Do ponto de vista da enfermeira Mackena misteriosamente desaparecera de cima da cama, reaparecendo embaixo. Antes aturdida, logo se recuperou e tentou barrar-lhe o caminho injetando-lhe alguma sedativo, mas ele foi mais rápido. Segurou suas mãos e com um pequeno esforço a fez cravejar a seringa em si mesma. Ela debateu-se por alguns segundos e depois despencou sobre ele, inconsciente.

Com uma força oriunda do desespero, ele a depositou no chão e correu em direção à porta, onde os seres continuavam a assistir toda a cena, impassíveis. O médico começou a gritar por ajuda e tentou agarrá-lo, mas, ele o acertou com um soco na barriga, fazendo-o dobrar-se no chão de dor. O outro homem o segurou, dobrando seu braço esquerdo às costas, mas Mackena, utilizando o corpo como um aríete, o empurrou contra a parede. O impacto fez o médico soltar o seu braço. Ele virou-se e o golpeou também no estômago várias vezes. Por último, acertou um soco direto no rosto do homem, que com a violência do golpe bateu a cabeça com toda força na parede.

Indeciso, sobre o que fazer em seguida, ficou ali parado, diante do médico caído, vendo uma poça de sangue formar-se em torno de sua cabeça. Isto o deixou mais confuso, pois sua única intenção era a de falar com aqueles espectros, e não a de machucar alguém. Mas não podia mais reverter o que fizera. No entanto, raciocinou que aquela situação poderia ser igual às outras. Tão prováveis que talvez nunca viessem a acontecer e aquele homem jamais seria ferido de verdade.

Menos pesaroso pela sua atitude, caminhou na direção dos seres que pareciam estar ali parados, como meros espectadores, aguardando o seu contato.

O médico que golpeara, havia se recuperado e ali mesmo, estendido no chão, virou-se abruptamente e num gesto extremado segurou uma de suas pernas, fazendo-o perder o equilíbrio.

Ao cair, Mackena apoiou-se no chão e com a outra perna desfechou um violento chute no rosto do médico, pondo-o inconsciente. Ele não se preocuparia mais com que acontecesse dali para frente. Nada era real naquele mundo. Apenas parecia ser.

Mais uma vez se recompôs, e resfolegando muito, dirigiu-se na direção dos espectros. Desta vez ele tinha certeza de que estavam esperando por ele. Mas foi atropelado pelo excesso de confiança. Os seres apenas manipularam uma série de aparelhos presos ao traje metálico e desapareceram como das outras vezes, deixando-o frustrado.

Ele viu os enfermeiros chegando para agarrá-lo e gritou para as criaturas.

- Não! Não! Esperem! Esperem! Não vão embora...! Não me deixem aqui...! Eu...

E antes que sentisse os braços dos enfermeiros a cena mudou bruscamente, naquela aceleração e parada brusca que já vivenciara antes. Para onde o estariam levando desta vez? Estavam usando-o como uma cobaia? Do mesmo jeito que aqueles homens pretendiam fazer com ele?

Quando os enfermeiros se aproximaram, estacaram ao ver Richard brilhar e desaparecer diante de seus olhos.

10 – A fuga.

- Moço! Moço!... O-O se-senhor... Está se sentido bem?

Quando Mackena conseguiu entender o novo cenário ele se viu no estacionamento do hospital, segurando o rapaz responsável pelo estacionamento.

De repente a imagem do jovem tremeluziu, como se não fosse um corpo sólido e depois voltou ao normal. Aquilo o deixou atônito e num gesto brusco, afastou o aterrorizado rapaz, jogando-o no chão. Ele precisou só de alguns segundos para entender para onde viera parar e o porquê. Finalmente as criaturas haviam decidido ajudar, transportando-o para fora da ala psiquiátrica do hospital. Era a sua chance de escapar do que pretendiam lhe fazer.

Era-lhe repugnante a ideia de praticar qualquer ofensa física com quem quer que fosse, mas ele sabia que se não fugisse dali, depois do que fizera ao homem de terno, poderia passar o resto dos seus dias numa prisão para loucos violentos ou num laboratório, vítima de testes sem fim. Se pudesse ao menos contatar um daqueles espectros e pedir-lhe que parassem de jogá-lo numa situação para outra, talvez aquele inferno cessasse. Por quanto tempo ele aguentaria tantas mudanças bruscas antes de realmente enlouquecer?

O que o deixava mais desesperado era o fato de que não tinha controle algum sobre o que estava acontecendo e isso sim, acabaria por levá-lo a alguma situação fatal, como já acontecera com o homem e poderia acontecer também com ele. Se morresse, eles o ressuscitariam? Nunca mais veria sua mulher e suas filhas? Tal ideia o deixou desesperado. Só os espectros poderiam dar-lhe uma resposta para estas questões e estava resolvido a tentar um meio de comunicar-se com eles para por um fim ao que estavam fazendo. Mas agora o mais premente era sair dali. Não saberia dizer por quanto tempo a mudança permaneceria, antes que fosse transportado para outro tempo ou Univero.

Afastou-se do rapaz, que correu para a interior do hospital. Suas roupas de paciente com certeza seria motivo suficiente para alertar os seguranças do hospital. Ele não dispunha de muito tempo.

Aquelas mudanças constantes, aleatórias, faziam-no perder a noção da realidade a qual estava acostumado. Dia e noite, alternavam-se bruscamente, em meio a tantas situações variadas que dificilmente uma mente humana não sucumbiria. Ele lutava para se manter são, mas não sabia dizer quanto mais aguentaria.

Apesar de alguns postes de iluminação lançarem uma pálida luz sobre o estacionamento, muitos trechos eram escuros e ele contava com isso para escapar. Mas tinha que elaborar um plano, já que não sabia como encontrar os seres espectrais para que pusessem um fim àquelas incessantes mudanças.

Precisava sair daquele lugar sem chamar a atenção e obviamente teria que começar se livrando do pijama que vestia. Mas onde conseguiria roupas normais?

Esgueirou-se de carro em carro, quase se arrastando no asfalto, quando levantou a cabeça e notou um automóvel que conhecia muito bem. Aquele em que fora trazido para o hospital. Continuava no mesmo lugar com o pneu no mesmo estado. Mas não poderia utilizá-lo, mesmo que desejasse, já que não fazia a mínima ideia de como entrar e dar a partida sem as chaves. Por sorte viu outro veículo chegando e mesmo que a ideia o repugnasse, não havia outra opção para se afastar dali, a não ser a de ter que tomar o veículo à força.

De longe, por causa da fraca iluminação, não vira os detalhes do carro que estava estacionando. Para sua surpresa era o seu carro. Na verdade uma outra versão dele. E para complicar as coisas o seu outro eu o dirigia e nele estavam também Alice, do lado do motorista e as gêmeas no banco de trás.

Correu na direção do carro ciente de que provocaria as mais diversas reações, das quais ele mesmo não estava isento. Era difícil reprimir o que sentia, mas depois de tantas reviravoltas agora sabia que aquele não era o seu verdadeiro mundo. Por mais difícil que fosse admitir aquela não era a sua Alice nem suas filhas. Não queria chocá-los apesar de saber que não poderia evitar a confusão que causaria na mente das crianças e da mulher.

Procurou manter-se sereno enquanto se aproximava do carro. Quando o viram a comoção foi total. Alice o olhou fixamente do interior do carro, enquanto as duas crianças não paravam de movimentar a cabeça ora se virando para ele ora para o verdadeiro pai.

O outro Richard saiu rapidamente do carro. – O que está fazendo aqui? Como saiu? – agarrando-o pelo colarinho do pijama.

Ele o empurrou, livrando-se dele. - Não sei lhe explicar e não quero fazer nenhum mal. Só preciso que me empreste o carro.

- Nunca! - Disse o outro Richard, avançado de novo. Antes que ele fosse esmurrado, uma das gêmeas gritou pela janela, o que fez os dois estacarem.

- Papai? Você é o nosso pai também?

- Não querida. O seu pai é ele. Eu sou apenas parecido. Só isso.

A inocência da menina fez com que os ânimos se amainassem. Ele virou-se para Alice, com o outro Richard ainda interpondo-se entre ele e a porta do carro.

- Alice. Por favor. Ajude-me a sair daqui. Você não faz idéia do que pretendem me fazer.

- Escute ele. - ela disse, bastante emocionada.

- O que pretendem lhe fazer?- perguntou o seu outro “eu”.

- Acredito que acabarei sendo dissecado. Como um rato de laboratório. Foi por isso que fugi.

- Como vou saber se é verdade?

- Olhe não tenho muito tempo, antes que descubram que estou aqui. Pergunte a ela se estou ou não mentindo.

O outro Richard olhou para Alice contrariado. Ela levantou a cabeça para melhor enxergá-lo.

O olhou por alguns instantes, tentando entender como tudo aquilo era possível. Como poderiam existir dois Richard idênticos? Conhecia aquela expressão e reconheceu a sinceridade de suas palavras. - Ajude-o. Tenho certeza de que diz a verdade. Conheço bem você.

O outro, ainda contrariado afastou-se. – Espero que saiba o que está fazendo, Alice.

- Obrigado Alice.- Disse ele. - Você é tão maravilhosa quanto a outra que conheço.

- Como ela é?- perguntou Alice.

- Uma boa pessoa. Excelente mãe e... Companheira. Esteja lá onde estiver agora.

- E Richard. Meu outro eu. – disse ele. - Tenho certeza de que a ama tanto quanto eu. Peço desculpas por tudo esta confusão. Ainda não sei como explicar o que é tudo isto. Mas não foi desejo meu.

Ele tentou disfarçar seu desespero e manter uma calma que não podia manter por muito tempo.

- Richard, pode parecer sem sentido para você, mas escute-me com atenção. Eu quero... Eu lhe peço que a Linda, a Dorothi, você e Alice deixem este carro para que nada de mal lhes aconteça, entendeu?

Alice olhou para ele novamente.

- Entre Richard, discutiremos aqui dentro do carro. Assim ninguém te descobrirá aqui. – disse ela.

Ele balançou a cabeça negativamente.

- Não Alice, confie em mim. Saia do carro com as gêmeas. É melhor para todo mundo que todos fiquem aqui. Eu sei o que estou dizendo. Não tenho mais tempo para explicar. Fiquem.

Ele olhou para a porta do hospital e viu os dois seguranças saindo a sua procura. Isto o deixou desesperado. Para agravar ainda mais a sua situação havia um carro da polícia chegando, provavelmente chamado pelos seguranças. Naquela altura já deveriam ter descoberto o que fizera ao homem de terno.

Logo um deles conversou com dos policiais. Não podia ouvi-los de onde estava, mas percebeu o policial entrar no veículo e utilizar o radiocomunicador. Com certeza estaria avisando a Central da sua fuga e da agressão aos dois homens.

Do interior do carro, Alice notou a sua angústia e indecisão.

- O que foi Richard? Por que está tão nervoso, como se tivesse cometido um crime?

Aconteceu alguma coisa que você não quer me contar?- perguntou o outro Richard.

Ele não respondeu. Apenas continuou falando o mais calmo que podia.

Richard não olhou o seu outro eu nos olhos. Apenas continuou falando com a imagem de sua esposa. - Alice se você realmente ama o seu marido e as nossas... Suas filhas, saia e fique aqui com Richard. Por favor! Eu lhe... Imploro!

Ele era tão parecido com seu marido que queria ajudá-lo, o que provocava sua hesitação. Mas tinha que se decidir.

- Pelo amor de Deus Alice, confie em mim! Não tenho tempo para explicar-lhe agora, mas se você tentar me ajudar agora, eu nunca me perdoarei. Olhe bem nos meus olhos e veja o quanto estou sendo sincero.

Ela continuou indecisa por mais alguns segundos e por fim concordou. Retirou as gêmeas do carro e pediu que o outro Richard o deixasse entrar no carro.

Mackena olhou bem para a sua imagem, que de certa forma, não se sentia bem em não ajudá-lo e agradeceu.

- Cuide bem delas. Dê-lhes todo o amor que puder.

- Você não vai ficar com a gente, moço? – perguntou Linda.

- Não querida. Eu preciso ir. Cuide bem do papai e da mamãe, promete?

- Sim.

- Boa garota.

Ele deu um pequeno tapa no ombro de Richard e beijou as duas crianças e um último olhar para Alice. Depois acomodou-se no carro. Deu a partida, e doeu-lhe o coração ver pelo espelho o olhar atônito da mulher que amava segurando as crianças, enquanto afastava-se, deixando-as para trás. Mas era melhor assim. Só ele sabia o que ia acontecer. O encontro com aquela Dorothi do futuro jamais aconteceria. Não da maneira como se lembrava.

Procurou dirigir o carro lentamente para não despertar suspeitas dos seguranças e do policial. Mas quando se aproximava da saída, um dos seguranças do hospital, ajudado pela claridade da iluminação acima dela, viu suas estranhas roupas. Correu na direção do carro e tentou forçar a porta, quase conseguindo abri-la. Mackena fez uma rápida manobra e desvencilhou-se dele, fazendo-o cair. Mesmo assim o homem logo se recuperou e pôs-se em pé começando a gritar.

- Por aqui! Por aqui! Ele esta neste carro!

O outro segurança e o policial correram na sua direção, mas ele conseguiu enganar os dois, acelerando o carro o quanto podia. Por pouco não colidiu com outro veículo que atravessava a frente do estacionamento, que para evitar o choque jogou-se contra a calçada.

O policial enquanto isso retornou ao carro e deu o alerta, fazendo uma rápida descrição do automóvel em fuga e do motorista. Depois deu a partida no veículo e em rápida velocidade tomou a mesma direção de Richard. Assim que se afastou do hospital ligou a sirene.

Enquanto isso Mackena estava dirigindo em alta velocidade sem ainda saber ao certo para onde deveria se dirigir. Sentia instintivamente que deveria rumar na direção de sua casa, já que ela era o único elo que o ligava à normalidade da sua vida pregressa. Mas também tinha consciência de que ele seria uma presa fácil se fosse para lá, quando o certo seria sair da cidade. Mas para onde deveria ir, se sua vida sempre se limitara àquela cidade?

Era óbvio que logo obteriam seu endereço e pelo trajeto que estava fazendo, a polícia logo chegaria a esta conclusão. Mas algo o impelia a seguir nesta direção.

Não demorou muito e logo escutou a sirene do carro de polícia atrás de si e o característico jogo de luzes revolteando no alto do veículo.

A unidade policial que o perseguia era mais potente que o seu e logo Richard percebeu que seria alcançado. Acelerou o máximo que pode tentando livrar-se de seu perseguidor, mas o policial era um motorista experiente e qualquer manobra que fazia para livrar-se dele, não durava muito.

Procurou despistá-lo o máximo que pode. Entrou em diversas travessas que pouco conhecia, fazendo um trajeto errático. Por diversas vezes, evitou colisões de última hora, mas no desespero algumas latas de lixo não puderam ser arrastadas, bem como algumas cercas de jardins bem cuidados. Mesmo assim o policial continuava em seu encalço e a distância entre os dois diminuía cada vez mais. Logo o guarda conseguiu emparelhar com ele para forçá-lo a parar. Estava quase conseguindo seu intento quando uma caminhonete que vinha em sentido contrário, obrigou o policial a desviar-se na última hora para evitar uma colisão frontal. Isto lhe deu alguns segundos preciosos e ele rumou na direção de sua casa.

Entrou em rápida velocidade na rua que desembocava nela, mas seu coração bateu forte quando viu no outro extremo dois outros carros oficiais, formando uma barreira. Havia sido levado para uma armadilha. Se voltasse seria encurralado pelo outro carro e se continuasse, as chances de passar a barreira seriam mínimas. Tinha poucos segundos para pensar no que fazer, antes de ser apanhado. Resolveu acelerar e desse no que desse poria fim ao que estava acontecendo.

Ele estava tão próximo de sua casa e lamentou não conseguir atingi-la. Assim que acelerou, Mackena viu os policiais afastando-se dos veículos parados e preparou-se para o impacto. Então fora assim que os três tinham morrido? Desta vez seria ele, o homem de um outro mundo. Mas se fosse esse seu fim, estava de certo modo resignado. Salvara o outro Richard, Alice e Linda. E naquele Universo onde estava, mesmo admitindo que não eram as mesmas pessoas de sua família, já que jamais reveria a sua, era o que mais importava.

Foi nesse exato momento, quando se preparava para morrer, deixando toda aquela loucura para trás, ocorreu um fenômeno diferente das ocasiões anteriores. Agora era ele que se tornara transparente e como um ferro quente, atravessando uma barra de manteiga, aconteceu o mesmo com relação ao carro onde estava. O veículo continuou sua marcha enquanto ele permaneceu estático. Duas daquelas criaturas que sempre observara apareceram, uma de cada lado, tocando-o pela primeira vez em cada braço. Ele viu atônito o carro prosseguir e depois se transformar numa mera projeção holográfica, enquanto retornava ao estado sólido e permanecia estático, graças a alguma coisa que as criaturas haviam feito.

11 – Vindo do Futuro.

Mackena estava agora fora do carro. Aliás, fora de qualquer coisa familiar, já que sua rua ou as casas vizinhas com as quais estava habituado, estavam totalmente transparentes. Aquela realidade imaterial movia-se ao seu redor, transpassando seu corpo a todo instante como meros objetos espectrais. Demorou um pouco para se acostumar àquela nova situação.

Os dois seres que tinham aparecido inúmeras vezes, eram agora tão sólidos como ele. Estavam ao seu lado no interior de dois pequenos casulos transparentes, sendo o seu, o do meio. Manipulavam vários controles que com toda certeza produzia ou pelo menos eram os responsáveis por aquele cenário espectral, onde segundos antes suas moléculas se mesclavam a uma solidez e realidade aparentes, como este em que viera parar.

Dentro do seu pequeno casulo, em que mal cabia, ainda pode ver o prosseguimento daquela estranha realidade de onde fora retirado. Viu o seu automóvel chocar-se violentamente contra uma barreira de veículos policiais, rodopiando e lançando pedaços para todos os lados. Reconheceu a imagem como o ato final da angustiante fuga da qual estivera participando. E ficou satisfeito por ter tomado a decisão correta e evitado a morte das variantes de sua família.

Fechou os olhos para não ver mais aquela cena já que continuava imóvel dentro do casulo. Mas não poderia mantê-los assim por muito tempo e reabriu-os de novo. A perplexidade cedera à curiosidade e mais do que nunca ele queria entender a razão de tudo aquilo.

Do interior do casulo conseguiu movimentar a cabeça um pouco para os lados e para além da projeção observou que o local possuía o teto e o chão totalmente recobertos por um material negro semelhante a plástico. Não havia janelas, apesar do ambiente estar iluminado de forma natural, como se fosse a luz do dia. Tentou mover-se mais um pouco para ver mais detalhes, quando percebeu que não estava mais imobilizado. Então uma voz fez-se ouvir.

- Bem vindo ao futuro senhor Mackena. Esperamos que este idioma seja de seu entendimento. Perdoe-nos por tudo que passou até agora.

Richard ficou apenas escutando, sem ter a mínima idéia de onde estava o interlocutor. Mas tinha a certeza de que os seres que o ladeavam eram os responsáveis por tudo que passara até aquele momento e agora que podia tocá-los, desejava agredí-los.

Antes das imagens desaparecerem completamente, encolhendo para um único ponto, pode ainda ver os policiais rumarem para o seu automóvel todo amassado com as armas em punho. E as expressões atônitas, quando não encontraram o motorista em seu interior.

Nesse meio tempo o humanóide da esquerda, saiu do seu casulo e caminhou para um outro painel, onde desligou um aparelho situado acima de sua cabeça. Mesmo assim ele não se moveu, aguardando o que viria a seguir. Seu receio era de que ainda poderia ser jogado de volta para o interior de uma daquelas projeções sem qualquer aviso, deixando-o sem saber o que fazer. Diante de sua hesitação a voz pronunciou-se novamente.

- Pode sair senhor Mackena. Não tenha receios.

Ele deu alguns passos e ficou próximo do ser da direita que deixara o casulo. A aparência não era a das mais agradáveis, mas os olhos eram bem humanos. A figura que estava próxima aparentava ser mais franzina que a outra e pela constituição delicada, Mackena deduziu que seria do sexo feminino.

Ele a fitou curioso por alguns instantes no que foi correspondido do mesmo modo. Depois, com raiva de tudo que lhe haviam feito, avançou para agarrar-lhe o fino pescoço. Apesar da figura ter se afastado instintivamente, ele recolheu as mãos rapidamente quando elas se chocaram com um pequeno, mas potente campo de força.

Com as mãos ardendo, como se tivessem sido perfuradas por pequenas agulhas, ele ficou parado, lamentando a sua precipitação. Seres tão avançados não seriam pegos assim tão facilmente. Principalmente se fosse ele representante de uma cultura ou de uma época tão atrasada como a dos Neandertais, como parecia ser a sua.

Esfregando as mãos para afastar o incômodo, gritou raivoso para ela. - Onde estou? Que lugar é este? Quem são vocês? Alienígenas?

A frágil criatura balançou a cabeça mostrando desentendimento e fez com uma das mãos, um sinal nitidamente humano, para que aguardasse.

Richard olhou para o gesto e esperou impacientemente.

- Peço-lhe perdão novamente, senhor Mackena. Inclusive pelo campo. Yela sabia que reagiria desta forma, depois de tudo que lhe aconteceu. Mas ela não entende seu idioma e quando percebi seu ataque tomei esta medida para protegê-la. Ela não é responsável pelo que lhe aconteceu.

- É? E quem é então? Vocês me devem muitas explicações. Muitas mesmo. – Da próxima vez não atacaria a menos que tivesse certeza de que não tinham alguma blindagem de algum tipo. - Por que ela não entende meu idioma e você sim?

- Ele deixou de ser falado há dezena de milhares de anos. Muitas civilizações transcorreram até a nossa e muitas línguas extinguiram-se durante este processo. Tivemos muita dificuldade em encontrar o seu idioma em antigos registros. Foi um grande esforço reverso partindo da nossa linguagem, para redescobrir o seu.

Ele olhou para os lados e para cima, procurando por alguma janela ou porta por onde pudesse fugir. E também tentando localizar de onde provinha a voz. - Mas com quem ou... Com o que... Estou falando? Por que não se apresenta?

- Permita-me apresentar então, senhor Mackena. – respondeu a voz, enquanto um globo luminoso rotacional, materializava-se à sua frente. – Eu sou o Gestor, uma inteligência desprovida de invólucro corporal. Estou em todos os lugares e auxílio os meus pares orgânicos em quase todas as tarefas.

- Eh... Muito, muito desprazer, Gestor. Diga-me, onde é aqui? E quero saber porque fizeram isso comigo? Quero voltar para minha casa, minha família.

- Primeira resposta: este é o complexo dual. Segunda: é um pouco complicado, mas lhe explicarei da forma mais simples possível. Terceira: estamos nos esforçando nesse sentido.

- Ah! Sei. Você disse complexo dual? É um outro planeta? É muito longe da minha casa?

- O senhor ainda está na Terra, senhor Mackena. Mas não naquela que conheceu?

- Se estou, porque não vejo pessoas iguais a mim?

- Sua espécie acelerou a evolução por si mesma.

- Então... Então sou o único com esta aparência?

- Exato senhor Mackena. Quanto a estar longe de sua casa, acreditamos que sim. O tempo na nossa cultura, -- continuou a voz que saia do globo giratório – não utiliza mais o seu sistema de datação. Mas para que possa se situar, recorrendo a seu antigo sistema de datas, estamos em oitocentos mil, seiscentos e doze dias, quinze horas e vinte e cinco minutos e dezesseis segundos do seu tempo.

Mackena arregalou os olhos.

- O que? Oitocentos mil anos? Como vim parar tão longe?

- Será explicado oportunamente.

O que diabos, aconteceu comigo até agora? O que é tudo isto? Por que me fizeram passar por tantas situações diferentes? – apontou ele para o painel na frente dos casulos.

- Apesar de todo o nosso cuidado, senhor Mackena, tudo que lhe aconteceu é resultado de um fenômeno inesperado em nosso dispositivo de armazenagem de dados.

- Como? Que fenômeno?

- Procurarei explicar-lhe tudo que for possível da maneira mais simples que puder. Acompanha-me.

Um dos humanóides moveu-se para o console e próximo ao casulo, religou o projetor. De imediato surgiu a imagem tridimensional de uma paisagem tórrida. O céu era rubro e a circunferência da estrela que iluminava o dia, era maior do que o Sol que conhecia. O ambiente lembrava em muito, um deserto. Pior que isso. Parecia mais uma rocha crestada sem vida, de onde pequenas nuvens de gazes ascendiam, devido à exposição das rochas ao extremo calor.

- O que está vendo, – disse a voz - é o efeito de nossa estrela central, cujo brilho entre o seu período de tempo e o nosso, aumentou em mais de trinta por cento, tornando a superfície do planeta mais quente do que era em sua época, incapacitando-a para qualquer forma de vida. No momento a temperatura externa é de “xenedar yerelons”.

- Desculpe-me? Mas o que é... Xenedar yerelons?

- Perdoe-me o erro senhor Mackena. Vou traduzi-la para seu antigo sistema de graduação. A medida que ouviu corresponde a 110 graus centígrados de temperatura. Impossível de ser habitado pela maioria das formas de vida, a não ser por bactérias extremófilas.

- Com essa temperatura não admiro que não haja mais humanos habitando a superfície do planeta. – perguntou Mackena. – cada vez mais curioso.

- Exato - confirmou a voz. – Yela, Telar e mais uma centena de iguais são os últimos que habitam uma série de complexos, como este, situados em média, vinte quilômetros abaixo dela.

- Foi só o que restou da raça humana? De todos aqueles bilhões? – indagou Mackena, franzindo as sobrancelhas.

- Muito do registro antigo se perdeu, e não sabemos com precisão quantos habitantes o planeta tinha em sua época. Mas independente do período o número oscilou e só posso afirmar que agora restam poucos.

- O que aconteceu? - murmurou Mackena.- cada vez mais interessado em que via, e menos em desabafar sua raiva.

- Nosso ciclo de vida neste mundo chegou ao seu término, por razões estritamente astronômicas. A humanidade não vivenciou o suficiente, antes de nosso tempo, para perceber que o Sol, apesar de ainda continuar na sequência principal, sofreria oscilações na produção de energia.

- Com a sua tecnologia isto não pode ser evitado?

- Já tentamos vários meios e chegamos à conclusão que isso seria apenas adiar o inevitável. Por isso criamos o maior projeto humano, para tentar legar ao futuro, seja onde ocorrer, todas as nossas conquistas e realizações.

- Ainda não entendi porquê o Sol ficou tão quente? - perguntou Mackena.

- O corpo central que chama de Sol, esta se transformando numa estrela variável pulsante.

Utilizando conceitos e termos de sua cultura, acreditamos agora que as reações de fusão no seu interior não são do ciclo próton-protón e sim carbono-nitrogênio, o que acelerou seu tempo de vida. Paralelamente a expulsão de neutrinos, indica o grau de aumento na temperatura do núcleo e os nossos sensores vem acusando um acréscimo destas partículas.

Isto é um sinal de que o ponto de equilíbrio entre a força de contração e expansão de suas camadas está para se romper a qualquer momento, aumentando o seu raio de forma irregular antes de decrescer.

Quando ocorrer o primeiro pulso de expansão, os planetas mais próximos, entre eles a Terra, não serão destruídos mas calcinados de tal forma, que poucas formas de vida, poderão continuar existindo na sua superfície. E não temos condições de saber, por quanto tempo, tal situação se manterá, antes de retroceder para nova expansão. Tais acontecimentos nos levaram ao projeto que já citei. O que restou da humanidade planejou e pôs em prática o empreendimento mais ambicioso até então empreendido: o inventário final de toda a história do planeta.

Criou-se um dispositivo que gravaria tudo o que já aconteceu, desde sua origem até o presente momento.

Nosso projeto foi dotado de toda a tecnologia necessária para registrar a sequência completa das coordenadas espaços-temporais que a compõem. Não sabemos ainda por que a interação de uma corrente de elétrons com a energia dos átomos de seu corpo produziu o que chamamos de uma onda de probabilidade quântica. Sem uma solução para esta anomalia, o sistema a inseriu na gravação. Na verdade tudo o que o senhor vivenciou foram as interferências destas ondas volbarianas se sucedendo dentro do sistema de gravação.

- Interagi com ondas volbarianas? O que significa isso? – perguntou Mackena, sentindo dificuldade em entender as explicações do globo.

- O mais próximo que posso descrever dentro de sua cultura é que interagiu com as interferências destas ondas quadrimensionais em expansão. Elas são emitidas em feixes cônicos, provocando difrações. Com as citadas interferências indesejáveis nos pontos em que se tocam. Conseguimos eliminar muitas dessas interferências indesejadas, impedindo seu avanço. Em muitos casos, porém, as lembranças do que vivenciou foram apagadas de sua memória. Mas cada vez que fazíamos isso, outra onda se tocava arrastando-o consigo.

Mackena fechou os olhos, esforçando-se para entender o que o Gestor lhe dizia, mas percebeu que a dificuldade aumentava a cada explicação. Pelo menos fazia sentido para que pudesse entender a razão das mudanças bruscas dos eventos, alguns dos quais só se lembrava parcialmente. Ele fez um sinal para que o globo interrompesse a função. – Foi por isso que me trouxeram até aqui? Para por um ponto final em tudo isso que me contou, ou não?

- Sim, mas antes tínhamos que cancelar o maior número possível das interferências. Telar e Yela sondaram uma infinidade delas para onde foi inserido, até encontrar a mais conveniente para retirá-lo. Falhamos algumas vezes, mas por fim conseguimos trazê-lo.

- Então isso explicaria os saltos. E as visões espectrais. Mas não era para estar... Dentro deste... Programa?

- De certa forma, o senhor deveria estar lá, bem como tudo o mais. Mas como já lhe expliquei, a forte corrente de elétrons foi a responsável pela difração quântica que defletiu o nosso programa de cópia no exato momento em que registrava o seu momentum. O senhor se tornou um fator inesperado do que conhecemos como a equação de Solbius, desconhecida da ciência do seu tempo. É uma complexa proposição matemática sobre variações de um ponto probabilístico.

- Desculpe-me, se não consegui entender tudo o que me disse. Mas se não estou enganado eu ouvi que tal... Probabilidade tem sérios problemas no ponto onde se tocam. O que significa?

- Uma das interferências que o arrastou, se sobrepôs à nossa linha principal de eventos dobrando-a numa direção inesperada devido às suas ação. Ela deve ser anulada para que a raça humana, nesta sequência de eventos, tenha uma chance de sobreviver à expansão da estrela central.

- Minha ação?

- Equacione os fatores. Uma das interferências deu-se durante a sua fuga do hospital, quando um dos homens acidentalmente morreu de traumatismo craniano. Tal acontecimento interferiu na linha principal de eventos de tal forma que não podemos corrigí-la daqui. A única solução é eliminá-lo, evitando-o na fonte.

Mackena agitou-se todo. – Eu... Não tive a intenção... Eu estava... Desnorteado... Só queria fugir dali. Mas se alterei a tal linha, minha esposa e minha filha devem morrer?

- Não. Na sua linha, a morte de cada uma ocorreu dentro do padrão normal da existência humana. O senhor apenas introduziu um desvio na nossa linha, sem repercussões na sua. Na verdade, a corrigiu, ao salvar a variante da sua família, que jamais morreria na fuga. Sua correção no entanto, provocou outro efeito indesejado: a morte de um homem que jamais deveria morrer. Este homem é Velar, o inventor do pulsor gravitrônico que abriria uma passagem para outra estrela mais hospitaleira assim que nossa tarefa de registrar a história planetária acabasse. Com a sua ação ele desapareceu repentinamente e com ele o seu dispositivo. Tentamos construir outro, mas diante da iminente expansão estelar creio não dispormos de mais tempo.

- Entenda senhor Mackena, que o homem de terno que acidentalmente matou no passado, quanto fugiu do hospital, era um antepassado de Velar e isto nunca deveria ter acontecido. Este acontecimento mudou o destino de todos os que estão aqui presentes. Nesta linha.

Mackena, com o semblante carregado e com um forte sentimento de culpa demorou em encontrar as palavras para se justificar.

- Foi... Foi... Um acontecimento que independeu de minha vontade... – balbucio cabisbaixo.

- Correto e pretendemos mudar isso. – disse a voz sintética.

- Farei tudo o que puder para ajudá-los. – disse Mackena, ansioso para consertar o que pudesse.

- Então acompanhe-nos de volta ao local de onde o senhor saiu. Tentaremos uma recópia no dispositivo, remetendo-o ao momentum, onde o ponto de probabilidade matemática foi criado. Tente impedir seu outro eu de deslocar-se para o ponto em que se forma a equação de Solbius. Assim a sequência correta de eventos será restabelecida e todas as reverberações deixarão de existir.

- Como? Que ponto de Solbius é este?

O globo parou um pouco de rodopiar e depois retornou à rápida rotação. - O ponto é onde se acumulará a diferença de carga elétrica.

- Quer dizer onde o relâmpago ocorrerá?

- Ilação correta.

Mackena hesitou por um momento e olhou para os dois humanóides. Sentiu pena e lamentou o fato de ter sido o causador de uma falha que punha em risco a sobrevivência dos últimos homens sobre a Terra daquele Universo. Mas sentiu também medo... E lembrou-se de Alice e de suas filhas. Lembrou-se do mundo que deixara e também de que a humanidade fosse em que tempo ou lugar que fosse, merecia uma segunda chance.

Ele acomodou-se no apertado casulo e deu uma última olhada para o complexo dual. Viu mais seres aproximarem-se, em cima dos quais rodopiava o Gestor. Ele pode perceber no olhar de cada um o desejo sincero de que obtivesse sucesso. Viera decidido a vingar-se de todos aqueles que haviam lhe causado momentos de verdadeiro pesadelo. Agora partia triste, lamentando não poder ficar mais para saber o que acontecera na Terra em toda aquelas centenas de milhares de anos.

Mackena posicionou-se e um campo energético o envolveu.

- Não se preocupe, - disse a voz. – Se conseguir o que pretendemos nada de mal lhe acontecera. Tudo o que é incorreto de desvanecera. Velar voltara a existir e a nossa fuga estará garantida.

- E quanto a mim? O que acontecerá? Lembrarei-me de tudo? Continuarei tendo existência própria?

Antes que pudesse ouvir qualquer resposta, todo o cenário se desmanchou numa luz leitosa.

12 – Normalidade.

- Richard! Richard!

Alguém estava agitando levemente o seu corpo para que voltasse a si. Com muita dificuldade ele abriu os olhos.

- Ah! Quem... O quê? Ah! Oh!... Alice... Alice?

- O! Ainda bem. Está melhor meu amor?

Mackena dobrou-se e recostou-se no assento do carro. Estava posicionado em frente da direção e não se lembrava muito bem do que tinha acontecido. Sua mulher, ao seu lado o amparava ansiosa.

Lá fora chovia fortemente. As gêmeas estavam agarradas à mãe, olhando-o curiosamente.

- O que aconteceu? – perguntou ele, passando a mão pelos cabelos.

- Sente-se bem, querido? De verdade?– perguntou ela.

- A-Acho que... Sim. O que aconteceu?

- Eu ouvi a buzina do carro disparar e sai para ver o que era. Quando cheguei aqui, você estava com a cabeça apoiada na direção do carro. Teve ter desmaiado. Não é melhor chamarmos uma ambulância? O quer que o leve ao hospital?

- Não querida. Creio estar melhor. Dever ser a pressão do trabalho. Logo passará.

- Vamos entrar então, querido? Você telefona para o Joe e diz a ele, que hoje não irá.

- Mas?Eu...

- Nada de mas... Hoje você não irá. Não é um pedido senhor Mackena. É uma ordem. Já para casa...

- É... Vo-você tem razão. Que diferença fará um dia a mais ou menos?Ajude-me aqui...

Ela o ajudou a sair do carro, tomando o cuidado para que se molhasse o mínimo possível, enquanto as gêmeas acompanhavam o casal, contentes com a ideia do pai não ir trabalhar. Seria um dia diferente.

Os dois se abraçaram e Mackena caminhou na direção da casa, sem se importar com a chuva que os molhava. Deu alguns passos apoiado no ombro de Alice e por alguma razão desconhecida, olhou para trás na direção da garagem.

Ele não conseguia explicar, mas sua mente foi invadida por uma sensação estranha, como a de um viajante que tivesse retornado ao lar depois de muito tempo ausente. Ele continuou a caminhar desejando que aquele momento de paz durasse para sempre.

***

Richard conseguira. E antes que Alice saísse com as crianças, olhou para sua mão e viu que ela se dissipava lentamente. Não sentiu medo. Não sentiu nada. Na verdade estava até feliz, pois sabia que tudo voltaria ao normal.

Epílogo?

A última nave ainda estava na borda do sistema solar. Telar e Yela faziam parte da equipe de registro. Graças a um longínquo antepassado de um outro Universo a humanidade conseguiria se salvar.

A bordo, o Gestor estava satisfeito, pois os últimos cristais de memória estavam sendo utilizados, registrando o final do planeta Terra.

Os sensores de longo alcance acompanharam a rápida expansão da fotosfera e o aumento da coroa. Em pouco menos de minutos, Mercúrio, Vênus e por fim a Terra foram tragados por aquele plasma incandescente em sua máxima expansão, que estilizaria suas superfícies. Todas as lutas, impérios, nomes já esquecidos, todas as conquistas e sonhos da humanidade eram agora apenas registros em delicados cristais. Nada mais havia para se fazer.

A um comando, o espaço a frente da nave moveu-se como que prensado por forças titânicas. A nave acelerou e penetrou pela fenda, deixando para sempre o sistema solar. A humanidade daquele Universo rumava para um novo mundo, uma nova estrela, talvez uma nova esperança.

RONALD RAHAL
r o r a h a l @ t e r r a . c o m . b r

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