ELA

Rogério Paulo Vieira

Deveria ter começado a escrever este relato antes, quando ainda tinha saúde. Hoje, velho e adoecido, as frases demoram para se formarem em minha mente. Escrever uma simples linha cansa-me. Manter a caneta firme na mão é tarefa árdua. Entretanto, tempo livre é o que não me falta nesta cama, de onde dificilmente levanto, e espero conseguir, mesmo devagar, escrever minha história. Se não a história completa, pelo menos o que foi mais importante.

Minha vida começou a sair da monotonia assim que entrei na Livraria Sapiens, atraído por uma promoção de trinta por cento de desconto. Por quase oito anos comprara na Livraria Toin, mas entrara pela primeira vez na Livraria Sapiens com o fito de usufruir desse desconto. Perguntei onde era a seção de livros de ficção científica. Nos fundos. Em criança apaixonei-me por contos e histórias ambientadas no futuro, em outros planetas, com outras formas de vida. Influência de quem ou de quê? Talvez das histórias a que assistia na TV – seriados e filmes onde o futuro ora se mostrava maravilhoso, ora catastrófico – mais catastrófico do que maravilhoso. O que sentia de tão atraente em ficção científica era a possibilidade de antever o futuro, além do próprio sabor das histórias, onde praticamente tudo era novidade, tudo era diferente. Talvez seja uma das áreas da Literatura que exija mais da imaginação do leitor: imaginar máquinas que não existem, planetas que não se conhece, alienígenas de formas e cores as mais estranhas.

Fui atendido pela vendedora Fernanda. Ela me perguntou qual livro eu estava procurando e não só prontamente fez a encomenda da edição, que estava esgotada na loja, como me sugeriu outra obra do mesmo autor. Como constatei mais tarde, seria uma das mais bonitas histórias que eu já lera.

Assim, foi entre essas prateleiras que vi a Fernanda pela primeira vez. Olhos castanhos escuros de brilho discreto. Cabelos pretos, lisos, descendo dois palmos abaixo dos ombros e que ondulavam suavemente conforme ela se movimentava. Pele branca, aveludada. Lábios finos, bem delineados, convidativos. Sua voz enchia meus ouvidos de alegria. O caminhar tinha a graça e a leveza de um andar felino. Seios médios e firmes, cintura fina, nádegas ligeiramente arrebitadas. Seus óculos denunciavam que os livros eram seus amigos constantes. Seu perfume despertava desejos.

Fascinava-me o conhecimento que ela tinha sobre os autores de ficção científica. Virei cliente cativo da livraria. Antes, eu comprava mensalmente um livro; depois de conhecer a Fernanda, a periodicidade aumentou. Quando dei por mim, minha paixão pela Fernanda estava mais forte do que a paixão pelos livros.

Verifiquei os dias e horários em que a livraria ficava mais tranqüila, com poucos clientes e procurava freqüentá-la nesses horários. Ficava conversando com a Fernanda sobre as histórias que gostara, sobre artigos científicos que lera. Ocasionalmente, ela me presenteava com um recorte de jornal ou revista com algum artigo científico que ela achava que eu iria gostar. Eu gostava do artigo e do gesto dela. Nos horários mais movimentados, eu me sentava numa poltrona e ficava a observar a Fernanda, admirando seu andar, como atendia os clientes, como atendia o telefone, seu jeito de falar: admirava o que ela era e o que ela fazia.

Lia os livros que comprava na Sapiens rapidamente para poder conversar com ela sobre as histórias. Não houve livro que eu lera que ela já não tivesse lido antes. Isso me impressionava e nutria-me a paixão. Só depois de dois meses que consegui juntar coragem para fazer-lhe um tímido convite para um almoço. Ela aceitou. Fiquei rindo à toa, acho que até durante o sono. Foi o almoço em que menos comi, pois estava com toda minha atenção centrada nela, no que ela falava, pensando em como ela era especial.

Nas semanas seguintes já passeávamos juntos pelos parques da cidade, saíamos à noite e ficávamos horas conversando sentados à mesa de algum bar. Íamos ao cinema, ao teatro, aos shows. Chegamos até a escrever em conjunto uma história para um fanzine. Após três semanas de namoro, passamos uma primeira noite juntos. Nessa noite de amor percebi quanto ela era mais especial ainda. Lembro até hoje de cada detalhe, pois nunca tinha tido tão intensamente essas sensações. Achara estranho ela partir no meio da madrugada para dormir em sua própria casa.

Quando estávamos para completar um ano de namoro, tive a idéia de uma surpresa que eu sabia que a agradaria muito. Tinha um amigo que trabalhava no planetário da cidade; conversei com ele e consegui com que reservasse uma apresentação extra somente para mim e a Fernanda. Ela sempre falava com entusiasmo de uma certa constelação de nossa galáxia. Fiz diversas pesquisas e separei informações sobre essa região, inclusive imagens da constelação. Com o auxílio do meu amigo, preparei por dois meses essa apresentação no planetário, embora achasse estranho o interesse dela numa região tão longe, situada a cerca de 14.000 anos-luz de nosso planeta. Chegado o dia, disse-lhe que tinha reservado um evento especial para ela. Levei-a ao planetário e sentamos para assistir a apresentação que eu planejara. Meu amigo operava os projetores e o sistema de áudio. Eu gravara a narração para acompanhar as imagens conforme eram exibidas. Mesmo com a pouca luz percebi as lágrimas que rolavam em profusão pela face dela. Não pensei que ela se emocionaria tanto assim; fiquei muito orgulhoso por ter proporcionado a ela aquele momento.

Mas sua reação depois da apresentação não foi a que eu esperava. Estava melancólica, como nunca a tinha visto. Vai entender as mulheres... Pedi desculpas se a tinha magoado. Porém ela disse que apreciara muito o presente. Queria conversar com ela sobre o ocorrido e, após muita insistência, essas foram as suas palavras:

— O motivo que me levou a procurar trabalhar numa livraria foi desejar entrar em contato direto com pessoas que lessem com prazer histórias de ficção científica. Os clientes que se dirigiam àquela seção sempre tinham a minha atenção especial, pois só uma pessoa que estivesse habituada com esse tipo de história conseguiria me entender. Das dezenas de rapazes que conheci, você foi quem achei apto a compreender-me e a aceitar-me e espero não perceber que estive errada após você ouvir o restante da história.

Ela continuou:

— Lembra-se daquela palestra à qual assistimos sobre vida extraterrestre e como conversamos sobre ser impossível não existir outras formas de vida em outros planetas? Bem, posso lhe afirmar que tenho convicção de que há vida em outros planetas porque não sou um ser humano... Não nasci neste planeta... Meu planeta natal, em sua língua, se chamaria Gorior.

Andávamos pelo parque que cerca o planetário. Ela percebeu que eu tentava disfarçar o sorriso. Achei que ela estava querendo zombar de mim com essa história de alienígena, pois ela gostava de brincadeiras. Ela olhou para os lados para ver se não havia ninguém mais por perto e ergueu o braço, que começou a mudar de forma. Notando que eu ficara um tanto branco com a demonstração, sugeriu que sentássemos num dos bancos do parque. Ela continuou:

— No meu planeta, minha atividade seria o que vocês chamam de exobióloga: eu estudava outras formas de vida que não fossem do meu planeta. Eu ia a campo estudar essas formas, navegando por diversos planetas que orbitavam outras estrelas. Na minha última viagem, por sorte, eu estava sem a minha equipe – éramos sete, cada um com sua função. A astronave que usávamos, do instituto onde trabalhávamos, era muito fácil de pilotar. Seus controles eram automatizados e obedientes a comandos de voz. Nessa minha última viagem houve uma pane no sistema de propulsão enquanto a nave cruzava o espaço por um, digamos, atalho, pela dimensão seis. Essa era a dimensão que usávamos para cruzar longas distâncias no menor tempo possível. Essa falha de propulsão desestabilizou a nave. Perdi os sentidos e, quando despertei, a nave estava na superfície de seu planeta.

— Os sensores da nave revelaram o estrago. Era o ano 1908 de seu calendário e a colisão foi na região que vocês chamam de Sibéria. A entrada de minha nave saindo da dimensão seis havia causado uma devastação colossal numa floresta. A onda de choque derrubara centenas de árvores, seguindo-se um incêndio. Fiquei aliviada por ser desabitada a região. Minha nave sofreu poucas avarias, pois ela foi construída obviamente com nossa mais avançada tecnologia e com materiais os mais resistentes. Entretanto, o sistema de propulsão dimensional estava inoperante. Comandei à nave que fizesse um teste no sistema redundante de propulsão dimensional. Também estava avariado.

— A nave possui um sistema de camuflagem utilizado para que as espécies estudadas não percebessem que estavam sendo observadas e ele estava ativo, calibrando-se automaticamente às ondas eletromagnéticas existentes nesse sistema planetário. A nave testou todos os outros sistemas e estavam operacionais. Decidi levantar vôo e entrar em órbita do planeta locomovendo-me com o sistema de propulsão subdimensional, que opera em baixa velocidade e é usado para locomoções dentro de sistemas solares, enquanto decidia os próximos passos.

— Assim que a nave constatou o acidente, iniciara a transmissão periódica de um sinal solicitando ajuda; porém eu sabia que seria pouco provável que me localizassem, a não ser que uma sonda cruzasse essa região. O sinal de socorro demoraria 14.000 anos para alcançar meu planeta. Sabia desde então que estava condenada a passar o resto de minha vida nessa região da galáxia...

A Fernanda me disse que demoraria milênios para se chegar no planeta dela somente com a propulsão subdimensional, se a nave conseguisse se manter por tanto tempo. Com a nave dela em órbita e uma sonda camuflada que percorria a superfície ela pôde monitorar a vida no planeta, aprender os hábitos, assistir aulas e assimilar a cultura e a língua. Ela decidiu participar da vida no planeta e escolheu um país tropical, pois precisaria viver numa área do planeta com muito sol. Escolheu o Brasil também pela facilidade em obter documentação falsa e viver com essa falsa identidade.

O planeta não era desconhecido para a espécie dela. Já haviam coletado informações através de sondas lançadas por naves que passaram pelas proximidades. Essa região do espaço é considerada uma das mais desabitadas e Fernanda sabia que não haveria naves de seu planeta circulando nas proximidades.

Depois de ouvir a história, entremeada com algumas perguntas e respostas que não transcrevi para não me estender demais, eu disse mais ou menos isso:

— Fernanda, desde que nos conhecemos eu tenho você sempre em meus pensamentos e agradeço ter encontrado alguém tão especial. E eu continuo com esse sentimento por você...

Abraçamo-nos e beijamo-nos. Ainda falei:

— Agora eu entendi porque você riu tanto quando lhe disse na nossa primeira noite que você não era desse planeta...

Rimos juntos.

Depois dessa revelação nosso relacionamento ficou melhor ainda, pois ela pôde ser mais aberta, contar sobre a vida dela tanto aqui como em seu planeta natal. Ouvi dezenas e dezenas de histórias interessantes e, a cada dia, percebia que estava mais apaixonado. Sua constituição física permitia que assumisse quase qualquer forma, como uma massa de modelar, desde que conseguisse acomodar seus órgãos internos nessa nova forma que assumisse. Na evolução das espécies em Gorior, o planeta natal de Fernanda, houve muito mais competição entre as espécies do que a que teve no planeta Terra. Houve animais predadores em abundância em Gorior. Os animais que deram origem à espécie da Fernanda desenvolveram, com o passar de milhões de anos, um sofisticado sistema de camuflagem. E esses animais é que evoluíram para serem os seres inteligentes do planeta dela.

Sua nave continuava em órbita transmitindo o pedido de socorro para que, quem sabe, sua espécie porventura a localizasse um dia. Esse sinal ainda não era detectável pela tecnologia terrestre e o sistema de camuflagem inteligente da nave encontrava-se ativo. Fernanda me disse que se algum dia a tecnologia terrestre estivesse num nível que permitisse detectar sua nave, a espécie humana já estaria avançada o bastante para poder aceitá-la e ela não precisaria mais se disfarçar.

Podíamos agora ficar mais tempo juntos. Antes ela se mantinha um pouco distante para preservar seu segredo. Nunca havíamos adormecido um ao lado do outro antes; ela sempre ia embora para dormir em sua casa. Passei a entender o motivo. Ela só consegue se manter numa forma desejada quando consciente. Quando inconsciente, em total repouso, assume uma forma ovalada e escura. Quando eu acordava no meio da noite estava abraçado com a forma ovalada e escura dela, o que me acostumei, com o tempo – aliás, muito tempo.

O povo de Fernanda decidira usar também implantes tecnológicos para aperfeiçoar as funções corporais. Eram os neurocircuitos, que poderiam ter as mais diversas funções a critério dos usuários. Fernanda optou por implantar neurocircuitos que aumentassem a capacidade de memória – serviam para armazenar informação – e um neurocircuito de comunicação – que servia para ela contatar sua nave. Nos neurocircuitos ela armazenava dados das civilizações que visitara nos diversos planetas. Aqui na Terra ela usava para armazenar informações da anatomia feminina: são milhões de detalhes, desde como simular a voz, já que esse não é o meio de comunicação dela entre os da mesma espécie, até como simular a penugem dos braços; ela escolheu a atual forma com base no que mais gostou do que estudou sobre as mulheres.

Casamos depois de um ano e meio de namoro. Foi uma cerimônia simples. Seus parentes não viriam, é lógico, mas seus amigos compareceram à cerimônia, além de meus parentes e amigos. A história que ela contava para justificar o fato de não ter parentes era a de que era órfã e não fora adotada por ninguém, vivendo num orfanato até começar a trabalhar e se virar sozinha.

Ela me contou toda a História e características do povo dela. Eles também formavam casais, tinham filhos, assim como a maioria das raças planetárias que ela pesquisou. Havia poucas raças nos planetas que ela estudara que eram assexuadas. Uma curiosidade de uma espécie que ela pesquisou foi que seus filhos nasciam do relacionamento de três gêneros diferentes; era a mais baixa população de um planeta num estágio avançado de tecnologia pois era muito difícil se formar um trio em que cada um se desse bem com os outros.

Nosso relacionamento era muito bom. Brigávamos pouco e reconciliávamos logo em seguida. Respeitávamos um ao outro, além de admirarmo-nos mutuamente pelas qualidades que tínhamos. Viajávamos quando podíamos.

Fernanda gostava de surpresas. Um dia, ao chegar em casa vindo do trabalho, abri a porta e levei aquele susto pois estava à minha frente, com uma sensual camisola, a garota da capa do mês de uma revista masculina de grande circulação. Ela deu aquele sorriso e disse: — Sou eu, a Fernanda... E caiu na gargalhada. Ela havia estudado as fotos da moça e alterara a sua forma para a da garota da capa. Ela passou a noite naquela nova forma. Sem dúvida, eu seria o homem mais invejado do planeta se alguém mais soubesse sobre a Fernanda! De vez em quando ela aprontava isso, recepcionando-me simulando ser uma atriz, uma modelo, uma cantora. Era muito divertido e, como ela dizia, o importante não é a forma mas o conteúdo.

Não havia como termos filhos. Fernanda me explicara que dificilmente poderia haver geração de prole entre espécies de planetas diferentes. Minha família e nossos amigos cobravam a vinda de filhos, o que é natural. Dizíamos que havíamos decidido não ter filhos para poder aproveitar a vida melhor a dois. Optamos também por não fazer uma adoção, pois seria perigoso alguém mais saber sobre a verdadeira identidade da Fernanda. A precaução parecia ser a melhor opção. Cheguei a pensar se não deveria me relacionar com alguém da minha espécie mesmo, para poder formar uma família, mas o amor que sentia pela Fernanda fazia com esses pensamentos virassem fumaça.

No ano em que completávamos vinte anos de casamento, a Fernanda sugeriu que fizéssemos algo muito diferente em nossas férias: propôs que fôssemos dar um passeio com a nave dela pelo sistema solar! Eu, que sequer cogitara em pedir para dar uma olhada em sua nave, fiquei entusiasmado. Foram as melhores férias que tivemos. Já ficara maravilhado só por ficar em órbita da Terra, observando os contornos dos continentes, a formação de um ciclone, a luminosidade das tempestades. Partimos para a Lua e tivemos a bela visão do planeta Terra à distância. Vênus e Mercúrio não foram tão interessantes quanto os planetas exteriores. Em Marte voamos por uma tempestade de areia, passamos sobre o Monte Olimpo e sobre as calotas polares. Fiquei maravilhado com as cores de Júpiter e, dentre suas luas, visitamos Europa e Io. Saturno é um espetáculo – passamos sobre as partículas de poeira, pedra e gelo que formam seus anéis. Urano e Netuno não me atraíram muito e vimos como Plutão era o menor dos planetas, frio e escuro. Voltando à Terra, chegamos a nos divertir no cinturão de asteróides, com a nave ziguezagueando entre eles.

A espécie a qual Fernanda pertencia vivia muito mais do que a espécie humana, assim ela tinha que simular fisicamente um envelhecimento como humana. Quando saíamos, a forma dela assumia a idade aparente, mas fazia questão, quando estávamos a sós, de manter a mesma forma, a mesma idade simulada, de quando nos conhecemos. Eu envelhecia, meus cabelos foram ficando grisalhos, o vigor físico diminuindo. Sabia que partiria muito antes da Fernanda. Perguntei-lhe o que faria após a minha morte. Ela não gostava de tocar nesse assunto, mas como insisti ela respondeu que iria mudar para outro Estado do país, alterando sua forma, voltando a simular uma idade mais jovem e criando uma nova identidade. Ela até mostrou para mim como deveria ser sua forma futura. Brinquei dizendo-lhe que era muito feia e quase saio de casa com o olho roxo.

Uma vez ou outra eu deixava um bilhetinho com alguma mensagem ou uma declaração de amor no criado-mudo da Fernanda antes de sair para trabalhar. Ela apreciava muito. Fiquei comovido quando, ao procurar por uma blusa numa gaveta, achei um álbum onde a Fernanda guardara cuidadosamente todos os pequenos bilhetes que eu já lhe tinha escrito. Havia um que estava em posição de destaque nesse álbum, devia ter sido o preferido dela. Eu escrevera: “Fê, hoje acordei de madrugada e não consegui voltar a dormir. Assim, aproveitei para limpar a geladeira que tínhamos posto ontem em degelo. Comi todo o resto da torta de morangos. Desculpe-me se você pretendia comer um pedaço. Tive um pesadelo: sonhei que seu povo detectara o pedido de socorro de sua nave e levara você de volta a seu planeta. Despertei e vi que você ainda estava dormindo ao meu lado. Queria lhe acordar e abraçar, mas resisti à essa vontade para não lhe interromper o sono. Amo você. Beijos.”

São muitas histórias, muito tempo passado um ao lado do outro, um relato que se estenderia por muitas páginas se eu ainda tivesse forças e ânimo para continuar escrevendo. Espero ter conseguido dar pelo menos uma ligeira idéia desse relacionamento tão singular.

Em si, até que o processo de envelhecimento é lento, sendo que nos damos conta ocasionalmente do tempo transcorrido. Parece-me similar à situação de caminharmos distraídos em nossos pensamentos e, quando nos voltamos ao mundo, vemos que já estamos mais próximos de nosso destino, sem ter percebido o quanto já caminhamos.

Com minha velhice vieram minhas doenças, mas paro por aqui minhas palavras. Acredito que não vou passar do dia de hoje. Paro de escrever por aqui... quero dormir...

. . .

A partir desse ponto sou eu, Fernanda, quem escreve. Achei essa pequena biografia de nosso relacionamento no caderno de anotações que se encontrava ao lado de meu querido esposo e tomo a liberdade de terminá-la por ele. Não poderia deixar inacabado o relato de nossa história. Li tudo o que meu amor escreveu e não consegui conter minha emoção. Recordei-me da primeira vez que o vi na livraria, da expressão de susto dele quando lhe provei que eu era uma alienígena, dos bilhetinhos que encontrava sobre meu criado-mudo... Achei engraçado meu marido ter escrito que gostou tanto da viagem pelo sistema solar, pois passou boa parte dela com enjôo e nunca mais quis repetir o feito – descobrira que não nascera para ser astronauta, dizia ele. Entretanto, sempre queria fazer de tudo para me agradar. Por exemplo, embora ele adorasse cães, nunca cogitou de termos um, pois eu havia-lhe dito que os cães, com seu olfato apurado, não suportavam algumas substâncias alienígenas de minha composição química corporal.

Meu amado também não escreveu sobre tudo o que ele fazia por mim. Por exemplo, eu devo evitar o contato com água. Qualquer serviço doméstico que exigisse contato com água, se não fosse feito por nossa empregada, era feito por meu marido. Outro exemplo foi que ele quis aprender a linguagem usada por meu povo para poder ler, no tempo livre, os arquivos que eu tinha armazenado sobre a minha espécie. Como ele tinha facilidade com línguas estrangeiras, não foi tão difícil dominar minha língua. Ele se preocupava com minha saúde, pois eu não poderia consultar um médico terráqueo no caso de algum problema. Assim, ele leu todos os estudos sobre a fisiologia de meu povo para poder auxiliar caso eu precisasse, embora fosse raro algum problema desse gênero. Até brinquei com ele que, no caso de minha espécie me localizar, ele poderia ganhar a vida como médico no meu planeta.

Infelizmente as relações com minha sogra não foram boas. Ela me culpava por não ter netos. Não poderia explicar-lhe a real razão de não podermos ter filhos. Mantenho meu segredo conhecido pelo menor número de pessoas; só meu marido sabia quem eu era na realidade.

Foi uma vida conjunta muito boa; falta muita coisa ainda nesse relato. Tivesse meu marido começado a escrevê-lo antes... Ele estava muito fraco. O médico já dissera que ele não passaria de ontem, mas ele ainda resistiu corajosamente mais um dia. Já está morto. Morreu há trinta minutos. Sua face está serena, parece-me que até há um ligeiro sorriso ainda em seu rosto. Deixe-me contar como foram seus instantes finais.

Eu estava sentada ao seu lado, nesta mesma cadeira onde estou. Ele abriu os olhos vagarosamente. Reconheceu-me. Disse, lentamente e com a voz muito fraca:

— Fê, você me proporcionou uma vida muito feliz... Não sei para aonde vou agora, mas sei que onde quer que seja, você não estará lá... Agora nos separamos e não sei se nos reencontraremos... Espero que você continue a sua vida com uma nova identidade e que seja feliz...

Uma emoção muito forte tomou conta de nós. Havia um segredo que eu nunca contara a ele e isso estava em desacordo com o que combinamos logo na primeira semana de namoro: que seríamos sempre honestos e verdadeiros um com o outro. Somente esse segredo eu mantinha fora de seu conhecimento. Não sabia qual teria sido sua reação se tivesse contado antes. Ele era muito compreensivo, mas mesmo os tolerantes têm seus limites.

Enxuguei as lágrimas dele... Queria chorar, mas isso não é possível para minha espécie... Respirei fundo e falei-lhe, carinhosamente, perto do ouvido:

— Você foi muito especial para mim. Eu sabia, desde o momento que lhe tinha visto naquela livraria, que teria essa vida maravilhosa ao seu lado... Em nosso compromisso de sempre ser verdadeiro um com o outro, há algo que nunca lhe falei e espero que entenda o porquê. Preciso lhe contar para que fique na minha mente que tivemos um relacionamento onde realmente conhecíamos bem um ao outro. Já lhe falei que no meu planeta também temos dois gêneros: macho e fêmea. Em verdade, eu sou do sexo masculino, eu sou um macho...

Meu marido queria falar-me alguma coisa. Aproximei o ouvido ao seu rosto. Ele se esforçou para perguntar, num tom de voz quase inaudível, inteligível somente para quem passara décadas de vida ao seu lado:

— Fê,... então... você... tem... um... pênis?

Eu lhe respondi:

— Tenho, querido, algo parecido, mas sempre o mantive oculto em meu corpo...

Novamente ele se esforçou para falar o que seriam suas últimas palavras:

— E... é... maior... que... o... meu?

Não consegui conter a risada... Ele sempre foi muito brincalhão... Ele deu um leve sorriso. Sua mão desprendeu-se da minha... Sua respiração cessou... Falecera... Passei a mão pelo seu rosto e abaixei-lhe as pálpebras...

Rogério Paulo Vieira



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