Lúcio de Souza Coelho

A SEMENTE DOS OLHOS

Revelação

- - - - -Naquela noite, o cenário celestial da Terra havia se tornado um tanto exótico, com uma lua adicional. Não outro disco branco azulado como a lua original. Em vez disso, algo aproximadamente esférico, metálico, com a superfície repleta de detalhes tão pequenos que, a olho nu, podiam ser apenas percebidos, mas não discernidos. Naturalmente, um objeto com essa superfície quase especular tinha um albedo bem superior ao da velha Lua, e o fulgor do Sol se refletindo em sua superfície fazia parecer que talvez não uma segunda lua, mas sim um segundo sol havia sido adicionado à abóbada celeste.
- - - - -Fora a diferença de aparência, havia também uma diferença cinestésica e outra dimensional. Um observador suficientemente paciente - um astrônomo, em outras palavras - que a acompanhasse durante um bom tempo perceberia que a nova "lua" girava dezenas de vezes mais rapidamente ao redor da Terra que sua irmã natural, o que significava que sua órbita era muito mais baixa. Quanto à diferença dimensional, era talvez o único aspecto em que essa maravilha não podia rivalizar com a velha Lua: seu diâmetro aparente às vezes era aproximadamente igual ao do satélite natural, mas na maior parte do tempo era duas, até três vezes menor.
- - - - -Agora o objeto emergia do cone de sombra da Terra e o Sol explodia num brilho ofuscante em sua crosta argêntea. Qualquer pessoa num raio de seis mil quilômetros ao redor do objeto, mesmo nas regiões onde era dia, poderia acompanhar o espetáculo sem ter de procurar muito no céu.- "Eis que Ele vem com as nuvens e todos os olhos O verão, mesmo os que O traspassaram" - citou o Físico ante a assombrosa visão.
- - - - -- O quê? - perguntou o Biólogo.
- - - - -- Nada, apenas uma divagação bíblico-astronômica. É curioso como esses alienígenas conseguem dar ao mundo todo uma visão impressionante mais por meio da engenhosidade que por meio de uma ostensiva utilização de recursos. A órbita da nave é perceptivelmente elíptica, ficando na maior aproximação da Terra a nove megâmetros do centro...
- - - - -- Nove o quê?
- - - - -- Um megâmetro equivale a um milhão de metros, ou mil quilômetros. Acho estranho os múltiplos maiores do metro serem tão pouco familiares...Mas, como eu ia dizendo, é uma órbita pouco circular, com nove megâmetros de periastro e inclinada mais ou menos uns quarenta e cinco graus em relação ao Equador. Em outras palavras, em certo ponto da órbita a nave ocupa um dos cantos de um quadrado cujos outros vértices são o centro da Terra, um dos pólos e algum ponto da linha equatorial. Como o período orbital da nave e a rotação da Terra são bem defasados, garantidamente todas as pessoas em qualquer lugar da superfície da Terra podem ver a nave passando no céu algumas vezes por dia. E, como a nave tem 24km de diâmetro, ela é, a essa altitude, tão visível quanto a Lua, ou mais, já que tem um albedo muito maior. É como se os alienígenas quisessem assegurar que todos tomassem conhecimento de sua existência, sem sombra de dúvida...
- - - - -- Por falar em visualização... Veja! Nossa "carona" parece estar chegando...
- - - - -De fato, no horizonte uma nova fonte puntual de luz surgiu, distinguindo-se das estrelas pelo seu movimento retilíneo e suspeitosamente rápido. Em alguns segundos, o ponto de luz atingiu o zênite, e então cresceu desmesuradamente em mais alguns segundos como resultado de sua vertiginosa descida. Ao final do processo, os convidados tinham alguns metros acima de suas cabeças um disco voador de tamanho suficiente para transportá-los, levitando de maneira tão estática que parecia magicamente pregado ao ar. Sua superfície emitia um brilho amarelado, leitoso, e uniforme, a princípio forte, mas que agora parecia arrefecer lentamente.
- - - - -- Por quê isso brilha? - Perguntou o Caoplexo. - Nossas aeronaves não brilham, a não ser nos lugares onde instalamos luzes sinalizadoras e coisas assim. Mas o disco inteiro está brilhando.
- - - - -- Meu palpite - principiou o Físico - é de que se trata de alguma forma de laser cooling, ou refrigeração a laser. Consiste em estimular, por meio de luz coerente, os átomos mais quentes de um material especialmente preparado, de modo que eles ficam excitados e acabam emitindo mais energia por meio de fótons que aquela que foi absorvida, resfriando o material; é claro que, para nós, essa tecnologia está em sua infância. Se for isso mesmo, estaria de acordo com o fato observado de que a nave brilhava mais quando estava voando (e dissipando mais potência em forma de calor) do que agora, quando está apenas levitando.
- - - - -Nesse ínterim, uma linha circular de luz claríssima se formou na parte inferior do disco, cujo casco agora estava quase tão negro quanto a noite. A parte inferior da nave então se destacou, descendo vagarosamente para o chão.
- - - - -- Uma plataforma de embarque! - Exclamou o Caoplexo. - Isso me deixa muito decepcionado. Sempre pensei que, se discos existissem, usariam aqueles arquetípicos fachos de luz da ficção científica para subir e descer passageiros!
- - - - -- Infelizmente, a casuística ufológica mostra que, na maior parte das vezes, os mecanismos de embarque em discos são coisas perceptivelmente mecânicas, como essas plataformas de embarque e garras e guindastes - explicou o Ufólogo com um perceptível orgulho de entendido no assunto.
- - - - -A plataforma havia baixado o suficiente para que seus ocupantes fossem agora inteiramente visíveis. Fantasmagoricamente iluminados pela luz vinda de dentro na nave, pareciam anjos descendo de um portal no céu a bordo de uma nuvem. Embora, é claro, a aparência física dos mesmos fosse bem pouco angélica. Os corpos grotescamente magros, com pescoços grotescamente finos e compridos sobre os quais se assentavam os crânios enormes dominados por olhos imensos, negros e oblíquos. As narinas e a boca eram vestigiais, mal podendo ser percebidas. O facho de luz dava um certo brilho etéreo às suas peles normalmente descoradas, cinzentas.
- - - - -- São grays - comentou o Ufólogo. - Como seria de se esperar.
- - - - -- São o quê? - perguntou o Caoplexo.
- - - - -- Grays, o tipo mais comum de entidade biológica extraterrestre.
- - - - -- Você quer dizer, esses aliens com olhos imensos que vemos para todo lado, de séries de ficção científica a anúncios de liquidação?
- - - - -- Eu não colocaria de uma forma tão imprecisa mas, sim, são exatamente eles.
- - - - -- Puxa, eu os chamo simplesmente de Zuiudos. Veja só, essa denominação populóide não necessita do seu anglicismo e, ainda por cima, é bem mais abrangente! O ET de Varginha, por exemplo...
- - - - -- Um marco da casuística ufológica... Bem, pelo menos até Eles aparecerem nos céus de todo o mundo agora.
- - - - -- Sim, claro... Como eu ia dizendo, o ET de Varginha não poderia ser classificado como gray, já que tinha pele marrom, mas poderia ser classificado como Zuiudo, já que seguia esse padrão de olhos enormes e esbugalhados. O Chupacabras também não é lá muito cinzento, sendo por vezes muito peludo, mas também é tão Zuiudo...
- - - - -- Zuiudo?! Mas isso é uma denominação quase chula! Não é a nomenclatura científica padronizada.
- - - - -- Sim, acho que agora podemos usar a expressão "nomenclatura científica" relacionada à Ufologia - lembrou o Caoplexo, com um sorriso ao mesmo tempo sarcástico e triste. - Mas o futuro dirá o que o Atrator escolherá como uma expressão padrão para essas... entidades. - concluiu, acrescentando em um tom de brincadeira propositadamente sombrio: - Se é que existirá um futuro para nós.
- - - - -O rosto do Ufólogo demonstrou que ele não considerava aquela insinuação final uma brincadeira.
- - - - -Já no chão, os alienígenas desembarcaram da plataforma e simplesmente ficaram parados de pé olhando em direções aleatórias. Apesar de possuírem cabeça, dois braços, duas pernas, simetria bilateral e outras características humaniformes, de alguma forma soavam incrivelmente inumanos. Tão inumanos que nem se podia perceber que estavam aguardando um último integrante da "comitiva". Este logo apareceu, voltando com a plataforma, que havia subido para mais uma "viagem" após o desembarque da primeira leva.
- - - - -Era sem dúvida muito mais humaniforme que os demais. Poderia ser chamado de humanóide. Na verdade, poderia ser chamado de humano, mas um humano muito estranho, com ar andrógino, uma quase despigmentação generalizada, cabelos ralos e brancos a despeito de ser aparentemente jovem e olhos com uma expressão tão vazia quanto os horripilantes olhos Zuiudos. Talvez pudesse ser considerado um humano hermafrodita, albino, lobotomizado e com um incipiente problema de calvície.
- - - - -- Um híbrido de humano com alienígena! - Exclamou o Ufólogo.
- - - - -O Biólogo, que até então olhava embasbacado para as EBEs à sua frente, olhou com uma expressão de desdém para o Ufólogo. Os olhos vazios do recém-chegado, por sua vez, também voltaram-se para o Ufólogo, e a criatura quase humana falou com uma voz cuja estranheza era tão grande quanto a das demais características de seu corpo:- Na verdade, esta unidade não é um híbrido de humano com alienígena. Ela foi gerada apenas a partir de alterações em códigos genéticos que originalmente eram humanos.
- - - - -- Com que finalidade? - Perguntou o Biólogo, como se tentando avaliar com os olhos porque alguém faria uma experiência genética com um acabamento final tão estranho quanto aquele.- Esta unidade destina-se à comunicação verbal com vocês, humanos. Nós a chamamos de Interface Humaniforme.
- - - - -- Mas por quê... Bem, é difícil ser diplomático ao fazer essa pergunta mas... Por quê Vocês fizeram uma interface com uma aparência tão feia? - Perguntou o Caoplexo, hesitante.
- - - - -- Nossa ênfase ao criar esta Interface foi desenvolver um meio para nos comunicarmos verbalmente. Critérios estéticos foram desconsiderados e negligenciados no processo, levando ao resultado morfológico que agora vocês vêem. No entanto, um aperfeiçoamento morfológico segundo os padrões estéticos humanos é um interessante trabalho futuro.
- - - - -- Mas... - principiou o Ufólogo em tom de dúvida. - Os relatos de abduções mostram que Vocês usam a comunicação telepática com humanos de maneira eficiente e descomplicada. Porque então se dar ao trabalho de criar um robô biológico para utilizar a comunicação verbal, que suponho ser bem menos poderosa?
- - - - -- De fato, a comunicação verbal é não só menos poderosa, como cheia de imperfeições. "As palavras são a fonte dos mal-entendidos"...
- - - - -- Um Saint-Exupèrry alienígena! - Exclamou o Caoplexo, visivelmente divertido. - Como você conseguiu tamanha erudição, Sr. ET?
- - - - -- A erudição de que você fala não é inerente a esta unidade, mas sim a Nós. Nós a obtivemos através do estudo detalhado de sua civilização por diversos meios, como a análise de suas comunicações por ondas eletromagnéticas que escapam para o espaço e a absorção das memórias dos Abduzidos. E, para sermos absolutamente sinceros, diversos pensamentos que só ocorreram à Humanidade há poucos séculos, como o aforismo que acabo de citar, Nos ocorreram em tempos tão remotos que parecem nebulosos mesmo em Nossa memória.
- - - - -- Mas que papo é esse de "unidade" e "Nós" com "n" tão enfático que parece ser uma maiúscula?
- - - - -- Creio que isso é uma referência lingüística ao fato de que Eles são uma só mente, uma consciência coletiva - interviu o Ufólogo.
- - - - -- Exatamente - aquiesceu a Interface Humaniforme.
- - - - -- Incrííííííível! - Exclamou o Computata, os olhos brilhando de fascinação ante às possibilidades imaginadas. - Como uma rede de computadores onde os nodos são cérebros em vez de máquinas! Parecem os Borgs de "Jornada nas Estrelas - A Nova Geração"! Creio que uma tal unificação das mentes deve ser inevitável em uma civilização cujos componentes são telepatas.
- - - - -- E, a propósito, ainda não me foi explicado porque Vocês abriram mão da telepatia em favor da linguagem... - lembrou o Ufólogo em tom queixoso.
- - - - -- Porque Nossos cérebros são intrinsecamente preparados para a telepatia, enquanto os seus não. Assim sendo, embora a telepatia possa de uma só vez fornecer a resposta a todas as perguntas de um humano, a mente deste será afetada, às vezes de maneira muito séria, por um tal contato. Logo, agora que dispomos do recurso das Interfaces Humaniformes, preferimos utilizá-las. O Caoplexo avançou um passo na direção da Interface, com um fugaz brilho obsessivo nos olhos, dizendo:
- - - - -- Mas eu quero a resposta a todas as indagações! Por favor, deixem que ao menos por um momento minha mente se una à Sua para que eu possa ao menos vislumbrar toda essa luz que Vocês dizem possuir...
- - - - -A Interface ficou em silêncio por um longo instante, e o Computata imaginou que talvez as inúmeras consciências estivessem se comunicando mais que o normal para estudarem o requerimento do Caoplexo. Finalmente, a entidade quase humana disse:
- - - - -- Então, que assim seja.
- - - - -Subitamente, o Caoplexo sentiu uma compulsão irresistível de olhar nos olhos de uma das EBEs, qualquer uma. Seu olhar se fixou nos imensos e esbugalhados olhos do alienígena mais próximo. Então, a escuridão daqueles olhos de outro mundo pareceu envolvê-lo; ou talvez uma melhor descrição da sensação fosse a de que o Caoplexo se sentia afundando naquela escuridão, como se ela fosse uma ameba que o fagocitasse. Então, num átimo, um imenso volume de informação simplesmente apareceu em sua mente, como se num instante sua memória fosse a de um ignorante, e no instante seguinte a de um sábio que tivesse passado anos estudando. Após essa transição estonteante, a escuridão pareceu recuar, e o Caoplexo viu-se novamente fora dos olhos do alienígena, olhando transfigurado para tudo e para todos.
- - - - -- Você está bem? - Perguntou o Biólogo, preocupado.
- - - - -- Não - respondeu o Caoplexo, a voz arrastada e hesitante. - Mas, agora, tanto faz.
- - - - -- Mas o quê você experimentou? - Indagou o Computata, ansioso.
- - - - -O Caoplexo tentou explicar as sensações que vivenciou no seu breve contato com a consciência coletiva extraterrestre, mas notou que estava sendo muito mal sucedido em sua descrição. Por isso mesmo, finalizou dizendo:
- - - - -- Mas, de qualquer forma, o que aconteceu está além da minha capacidade de explicação, é indescritível. Aliás, agora as opiniões do Ufólogo e da Interface soam incrivelmente verdadeiras para mim. Que forma tosca de comunicação é a palavra!
- - - - -- Eu quero experimentar isso também! - Decidiu o Computata.
- - - - -- Não, por favor não faça isso. Se eu soubesse que minha cabeça ficaria como está agora, como a de um peixe que subitamente tivesse consciência da imensidão do oceano, eu não teria experimentado isso...
- - - - -- Talvez isso explique por que as vítimas de abdução costumam enfrentar graves problemas psicológicos após seus contatos com os alienígenas - conjecturou o Ufólogo.
- - - - -- Costumam? Provavelmente... - admitiu o Computata a contragosto. - Então, acho que o resto de nós terá de aprender tudo da maneira tradicional. Para começar, como esse negócio de telepatia é implementado?
- - - - -- A telepatia ocorre quando as funções de onda de duas ou mais consciências são misturadas, possibilitando a transmissão de informação entre elas por uma via quântica que não sofre interferência de qualquer tipo.
- - - - -- Vocês estão querendo dizer que a consciência é mesmo um fenômeno quântico? - Perguntou o Físico, incrédulo.
- - - - -- Como assim "é mesmo"? - Perguntou o Biólogo. - Já havia alguma suspeita de que era?
- - - - -- Bem, isso tem a ver com as suspeitas de que a mente humana é capaz de fazer computações além do limite de Turing...
- - - - -- Que Turing?
- - - - -- Aquele que te... Bem, Alan Turing, um matemático inglês, foi o Pai da Ciência da Computação - explicou o Computata. - Ele criou um modelo matemático, conhecido por Máquina de Turing, que descreve o princípio de funcionamento de todos os computadores já idealizados ou construídos.
- - - - -- No entanto - prosseguiu o Físico - esse modelo é limitado no sentido de que existem problemas que ele é incapaz de resolver. É possível provar matematicamente essas limitações da Máquina de Turing. Na atualidade, porém, muitos cientistas e matemáticos têm suspeitado que o cérebro humano tem uma capacidade de computação além do limite de Turing, ou Super-Turing. Essa é uma afirmação muito curiosa. Como a Máquina de Turing pode executar qualquer método de solução de problema, ou algoritmo, capaz de ser descrito, ao que parece a resposta a perguntas do tipo "Como eu faço para resolver tal problema que não é Turing-computável?" parece não poder ser descrita. Em outras palavras, é muito difícil responder como ir além do limite de Turing. As tentativas mais em voga atualmente envolvem a chamada... - O Físico mordeu o lábio inferior por um momento. Ele esperava que seus colegas não notassem que com isso ele tentava conter um ataque de riso. - ... Física da Consciência. Os adeptos dessa... hipótese acreditam que fenômenos quânticos ocorrendo no cérebro podem colocar a nossa mente em contato com as soluções para esses problemas. Alguns deles chegam mesmo a acreditar que as entidades matemáticas existem por si mesmas, sem a necessidade de uma mente para pensar nelas; os tais fenômenos quânticos permitiriam às nossas consciências ver esse cosmo matemático atemporal, o Mundo Platônico.
- - - - -As expressões sardônicas nos rostos de muitos dos ouvintes do Físico desapareceram quando a Interface comentou num tom que quase parecia de espanto:- Ora, mas vê-se claramente que as entidades matemáticas existem por si mesmas, e que não precisam de consciências para existirem. Na verdade, todas as coisas em nosso Universo são, em última análise, entidades matemáticas, o que implica que, de certa forma, as consciências é que dependem da Matemática para existir, e não o contrário.
- - - - -Os cientistas presentes se entreolharam com olhos arregalados. Em mais de um deles veio à tona a lembrança de alguns desenhos do Pernalonga onde este mostrava aos espectadores um cartaz com uma bola de beisebol e um parafuso como indicativo inequívoco de que seu interlocutor estava louco. Esses olhares teriam intimidado um ser humano mas, como era de se esperar, a Interface prosseguiu impassível em sua exposição:
- - - - -- Mas, como vocês iam dizendo, terão de aprender tudo sobre Nós da maneira convencional, através da linguagem. No entanto, imagens e outras vivências físicas serão de grande valia para Nossas explicações. Mas, para isso, é necessário que vocês visitem Nosso mundo - lembrou a Interface. - Por isso, por favor, senhores passageiros, dirijam-se à plataforma de embarque.
- - - - -- Um replicante comissário de bordo... - disse o Caoplexo, tentando recuperar um pouco de seu habitual senso de humor.
- - - - -Por um motivo que logo seria revelado, o Físico apressou-se em alegremente seguir para a plataforma de transporte. Quando todos estavam a bordo e a estrutura começou a levitar em direção ao disco, o cientista exclamou, como uma criança que grita de alegria ao abrir um presente e ver que era aquilo que ela esperava que fosse:
- - - - -- Antigravidade!
- - - - -Foi a única coisa que ele pôde gritar antes de sumir dentro da nave. O Caoplexo, com uma expressão um tanto cética, perguntou:- Mas como você tem certeza de que é Antigravidade? Não poderia ser que o disco simplesmente puxou a plataforma com um campo magnético cuidadosamente controlado?
- - - - -- Um campo magnético tão forte assim teria imediatamente chupado quaisquer objetos ferromagnéticos, como as chaves do meu carro que estão no meu bolso.- Mas porque toda essa alegria com a Antigravidade? Pelo que sei, a pobre física Terráquea já começa a estudar fenômenos antigravitacionais.
- - - - -- Você disse bem, nós começamos. No entanto, prevejo que ainda levaremos décadas para dominar a antigravidade, como estes pálidos visitantes parecem fazer com tanta desenvoltura. Na verdade, a Física Terráquea atual sequer compreende teoricamente de maneira completa a antigravidade. Nesse ínterim, o feixe de luz vindo de cima, que até então iluminava profusamente a plataforma, apagou-se de repente e sem transição.
- - - - -- Não estou enxergando nada! - Reclamaram todos.
- - - - -- É nossa persistência retiniana - lembrou o Biólogo. - Mais alguns segundos e nos acostumaremos à escuridão. No entanto, algo me diz que os alienígenas estão muito mais à vontade nestas trevas.
- - - - -- Por quê?
- - - - -- Olhos imensos são característicos de animais noturnos. Além disso, a pele deles é bastante despigmentada. Tenho a impressão de que eles vivem sempre na escuridão, longe do Sol.
- - - - -- Outra evidência a favor de sua teoria é o fato desses alienígenas virem de um mundo artificial onde provavelmente todos os habitantes vivem no interior de estruturas artificiais protetoras, isolados do Sol - lembrou o Físico. - E, mesmo se assim não fosse, o mundo deles seguia uma órbita parecida com a de um cometa de longo período, de modo que na maior parte do tempo devia estar nas sombrias regiões além dos limites do Sistema Solar.
- - - - -- Mais uma evidência é o fato das abduções em sua esmagadora maioria ocorrerem à noite - ressaltou o Ufólogo. - Talvez isso aconteça não apenas devido às óbvias vantagens em se operar quando todo o mundo humano dorme, mas também porque a própria fisiologia dos grays favoreça esse horário.
- - - - -Conforme a previsão do Biólogo, logo todos puderam distinguir as superfícies de cores escuras do interior do disco. Além das cores escuras, a iluminação era fraca e vinda de fontes indetermináveis. Um detalhe logo saltou aos olhos das mentes mais claustrofóbicas:
- - - - -- Eles não usam janelas.
- - - - -- De fato - confirmou a Interface - janelas são dispensáveis para Nós, uma vez que os sensores de Nossas máquinas, incluindo os discos, também estão diretamente ligados à Nossa consciência. Assim sendo, Nós podemos observar todas as visões que o espaço ao Nosso redor oferece, desde a infinidade de matizes do espectro eletromagnético até o mundo vibrante das ondas gravitacionais.
- - - - -- Que lindo! - Maravilhou-se novamente o Computata. - Eles já dominam a Ciberpatia, e a consciência deles é formada não apenas pela união dos cérebros e corpos orgânicos, mas também pelos computadores e as máquinas às quais estes se ligam!
- - - - -- No entanto, Eles deviam ter feito uma nave mais politicamente correta para transportar passageiros portadores de deficiências... os humanos, no caso - comentou o Caoplexo. - Uma tela mostrando o exterior na faixa da luz visível seria bem vinda.
- - - - -- Felizmente, tivemos esta preocupação. Por favor, observem esta parede. A Interface apontou para uma superfície vertical que, ao contrário das demais, que eram barrocamente irregulares e foscas, era plana e polida.
- - - - -A tela gigante iluminou-se com uma imagem familiar a todos:
- - - - -- A Terra!
- - - - -O planeta mãe da humanidade mostrava-se em toda a sua glória, tão imenso que a maior parte da borda de seu disco estava além dos limites da tela.
- - - - -- Mas como isso é possível? Agora mesmo estávamos a poucos metros de altura do solo. Como podemos agora estar a milhares de quilômetros de altura? - Perguntou o Biólogo, perplexo. - Além disso, como a nave poderia ter se arremessado no espaço com tanto ímpeto sendo que não sentimos o mínimo movimento?
- - - - -- Uma vez que Eles usam propulsão gravitacional, isso é perfeitamente possível - opinou o Físico. - Quando um avião cai, por exemplo, as pessoas são aceleradas a dez metros por segundo ao quadrado, mas ninguém sente essa aceleração; de fato, as pessoas pensam que estão paradas e sem peso, porque o campo gravitacional acelera simultaneamente todas as partículas do avião e passageiros com o mesmo módulo, direção e sentindo. Esta nave deve operar segundo o mesmo princípio, "despencando" em uma campo propulsor gravitacional autogerado de alta intensidade. É claro que só tenho vagos palpites de como isso é feito. E é claro que o setor de passageiros do disco pode ser acelerado a uma taxa menor, gerando um simulacro de campo gravitacional terrestre no interior do disco, de modo que ficamos com a confortável sensação de peso em vez de ficarmos flutuando por aí com enjôos. Só fico um tanto espantado ao pensar como o disco deve ter acelerado imensamente dentro da atmosfera sem se superaquecer com o atrito com o ar.
- - - - -- O Campo Propulsor de nossas naves diminui gradualmente de intensidade para além do espaço físico ocupado pela nave - explicou a Interface. - Logo, as próprias moléculas de ar são aceleradas em menor intensidade juntamente com a nave, formando camadas de aceleração progressivamente mais lentas. Isso minimiza extraordinariamente o atrito com o casco. Além disso, a superfície do casco é nanotecnologicamente reativa, alterando sua textura de modo a minimizar a formação de fluxo turbulento e o conseqüente atrito com o ar. É como a pele de alguns animais Terráqueos, como golfinhos e tubarões.
- - - - -- Um atrito com o ar tão pequeno e a propulsão por meio de gravidade devem explicar porque sabidamente os discos não produzem qualquer ruído na maioria dos avistamentos, mesmo quando se deslocam com velocidades inalcançáveis pelas máquinas voadoras humanas - disse o Ufólogo.
- - - - -- Exato - confirmou a Interface. - A propósito, falando em gravidade, a fase de aceleração desta nave está chegando ao fim. Lamentavelmente, isso acarretará no fim do simulacro de gravidade sob o efeito do qual vocês estão.
- - - - -No mesmo instante, todos se sentiram novamente sem peso. Alguns fizeram nítidas caretas de enjôo, enquanto os outros faziam caretas de nojo ante a horrível possibilidade de seus companheiros com estômago mais fraco produzirem asquerosos vômitos flutuantes e giratórios. Felizmente, porém, isso não chegou a acontecer.
- - - - -- Mas, agora que toda essa maravilhosa tecnologia está perfeitamente explanada, ou quase isso, gostaria de lembrar que, embora sejamos perdidos de amor por nosso planeta, a imagem dele nos é um tanto familiar. Seria tão bom se esta tela mostrasse o mundo dos Zuiudos para o qual estamos indo... - insinuou o Caoplexo.
- - - - -- Aí está ele - anunciou a Interface, ao mesmo tempo que a imagem na tela mudou. A imensa Terra deu lugar a um minúsculo objeto dezenas de vezes menor. A fulgurante nova "lua" que havia aparecido nos céus do planeta.
- - - - -- A que distância estamos desse estranho mundo agora? - Perguntou o Biólogo.
- - - - -- Muitos megâmetros - disse o Físico. - Mas, graças à enormidade dessa estrutura, podemos vê-la em algum detalhe mesmo a esta distância.
- - - - -- Sim, 24km de diâmetro é um tamanho assustador para um objeto artificial - lembrou o Caoplexo.
- - - - -- Na verdade, Nosso mundo não é propriamente artificial - discordou a Interface.
- - - - -- Como? - Perguntou o Biólogo em outro ataque de perplexidade. - Nós podemos ver perfeitamente a superfície dessa coisa e ver que é cheia de irregularidades lembrando máquinas, tubulações, antenas, cidades, etc. Como isso pode não ser artificial?
- - - - -- Como você bem observou, vocês só podem ver a superfície de Nosso mundo. Essa superfície é, realmente, uma casca artificial, mas o interior, o corpo original ao redor do qual ela foi construída, é natural.
- - - - -- E o que exatamente é esse interior? - Perguntou o Físico com os olhos brilhando de curiosidade.
- - - - -- Um núcleo cometário de dimensões um pouco acima da média, semelhante às centenas de bilhões que existem na região esférica ao redor do Sistema Solar conhecida por vocês como Nuvem de Oort e, em menor número, na região Transnetuniana conhecida como Anel de Kuipier. Em outras palavras, uma bola de gelo sujo com muitos quilômetros de diâmetro.
- - - - -- E vocês encapsularam um mundo natural e voaram do sistema planetário de vocês até o nosso carregando isso tudo? - Perguntou o Ufólogo. - Por quê?
- - - - -- Mas Nós não viemos de outro sistema planetário - corrigiu a Interface. - Este mundo que colonizamos é um dos planetesimais das regiões mais internas da Nuvem de Oort.
- - - - -O Ufólogo estava visivelmente perplexo.
- - - - -- Mas suponho que vocês dominam o vôo interestelar, não? Já sabemos que o warpdrive é teoricamente possível, não é? - Perguntou, dirigindo-se ao Físico.
- - - - -- Sim - respondeu ele. Acrescentou um tanto a contragosto: - E acho que não seria problemático para quem controla a gravidade.
- - - - -Na verdade, é um tanto problemático sim - disse a Interface. - Uma dobra espacial capaz de transportar uma nave a velocidades Superluminais, se é a isso que vocês se referem, não pode ser produzida por Nossa tecnologia, ou por qualquer outra que conheçamos. Teríamos de criar um campo de gravidade incrivelmente intenso à frente da nave, e um campo de antigravidade igualmente intenso atrás. Porém, esses campos teriam de ter uma forma muito específica por dois motivos: para gerar uma "ilha de estabilidade" no centro da distorção, onde a nave poderia ficar sem ser gravitacionalmente esfacelada, e para evitar uma interpenetração dos campos propulsores, o que exigiriam imensos gastos de energia. Embora a energia do campo gravitacional seja positiva e a do antigravitacional seja negativa, somando uma energia zero, se eles se interpenetrassem haveria uma imensa energia de ligação entre eles, muito além das nossas capacidades de geração energética. E simplesmente não podemos criar um campo propulsor que atenda a essas necessidades morfológicas e que, além disso, fique inteiramente fora da nave. Este disco, por exemplo, tem uma região majoritária que é acelerada gravitacionalmente de modo que todos podemos viajar confortavelmente, mas o casco da nave, onde ficam os motores, pode sofrer tensões exatamente opostas. Por isso mesmo, é feito de materiais diamantóides.
- - - - -- Acho que Eles têm razão - disse o Físico, com um brilho de compreensão nos olhos. Enfiando a mão em um dos bolsos de sua roupa, retirou de lá uma reluzente calculadora científica.
- - - - -- Com licença, preciso improvisar alguns cálculos. - Sob o olhar curiosíssimo de seus companheiros de viagem (excetuando os de origem alienígena, que como era de se esperar permaneceram inexpressivos), alguns momentos depois ele anunciou: - Vejam só, para mandar uma pequena nave de uns dez metros de diâmetro até Alfa do Centauro em um mês, seria necessária uma quantidade de energia equivalente ao consumo atual da Humanidade durante milhares e milhares de anos. Ou equivalente à explosão de um terço do antigo arsenal nuclear dos Estados Unidos e da União Soviética, se é que uma tal quantidade de bombas poderia caber em uma esfera de dez metros de diâmetro. Usei para esses cálculos uma aproximação em termos de campos gravitacionais esféricos convencionais, e não a forma necessária para uma dobra espacial energética e estruturalmente viável.
- - - - -Todos arregalaram os olhos de espanto até quase começarem a parecer os alienígenas, apenas ao vislumbrar com a imaginação o quão grande era aquela energia. Mas o Ufólogo parecia inconformado:
- - - - -- Mas Eles têm uma tecnologia muito à frente da nossa! Talvez eles possam gerar quantidades inimagináveis de energia num piscar de olhos. Vejam por exemplo como esse disco alçou vôo numa aceleração inconcebível.
- - - - -- Não, Nossos recursos de geração de energia são limitados - discordou a Interface. - De fato, a ascensão deste veículo não foi muitas vezes mais rápida que a de um de seus foguetes para lançamento de satélites. É verdade que Nossos sistemas de geração de energia são mais compactos e eficientes que os seus, de modo que esta pequena nave pode levar uma carga útil tão pesada quanto a dos seus maiores veículos lançadores.
- - - - -- E como Vocês geram energia de forma tão compacta e eficiente? - Perguntou o Físico, com mais um brilho, dessa vez de curiosidade irrefreável, no olhar.
- - - - -- Usamos reatores gravitacionais, que absorvem a prodigiosa energia armazenada nos campos gravitacionais. Não menos importante é a Nossa tecnologia de armazenamento de energia, que Nos permite uma grande economia em manobras astronáuticas, por exemplo. Quando descemos até o seu planeta para buscá-los, absorvemos a energia potencial gravitacional deste veículo em relação à Terra; agora que estamos ascendendo de volta ao Nosso mundo, estamos usando a energia armazenada para restaurarmos nosso potencial gravitacional anterior.
- - - - -- Que lindo! - O Físico não pôde se conter. Seus colegas se entreolharam constrangidos, como se temerosos de que a qualquer momento aquele estudioso da matéria, da energia, do espaço e do tempo fosse irromper num choro de felicidade. Mas logo o Físico voltou a ficar sério como se uma dúvida tivesse subitamente vindo à sua mente: - Mas como vocês podem armazenar tanta energia tão eficientemente?
- - - - -- Usamos bobinas com supercondutividade do Tipo II, que podem gerar campos magnéticos ilimitadamente fortes sem quebra do efeito supercondutor. Dessa forma, podemos armazenar vastas quantidades de energia sob a forma de campos magnéticos. É claro que, dependendo da aplicação, um campo magnético ultra intenso pode ser indesejável. Por isso usamos baterias etéricas, que são estruturas nanotecnologicamente construídas capazes de armazenar energia na forma de densidades energéticas de vácuo, utilizando o Efeito Casimir.
- - - - -- No entanto, como as posições do mundo de Vocês e do nosso mudam constantemente, suponho que esse mecanismo de "reciclagem" de energia não deve ser cem por cento eficiente - deduziu o Caoplexo. - Assim, vocês inevitavelmente têm de sempre absorver um pouquinho de energia gravitacional. Se isso funcionar do jeito que eu estou pensando, então isso quer dizer que, quando vocês decolaram, a Terra passou a ficar um pouquinho mais próxima do Sol.
- - - - -- Não apenas isso. A rotação da Terra diminuiu um pouco, a Lua ficou um pouco mais próxima (ou se afastou menos) da Terra, e mesmo os demais corpos do Universo estão sendo afetados à medida que as ondas gravitacionais resultantes de Nossas absorções de energia gravitacional se propagam.
- - - - -- Meu Deus! - Exclamou o Biólogo. - Mas então essa é uma forma muito irresponsável de obtenção de energia. Com o tempo, mundos inteiros podem ser destruídos por causa disso.
- - - - -- Correção: com muito tempo, mundos inteiros poderiam ser destruídos. Preciso fazer mais cálculos - disse o Físico, apanhando a calculadora que, na cabeça de seus companheiros, já estava adquirindo o status de cérebro auxiliar.
- - - - -- Vejam só, se toda a Humanidade residente na Terra mantivesse o consumo atual de energia por um bilhão de anos, então a Terra ficaria míseros três quilômetros mais próxima do Sol. E, daqui a um bilhão de anos, a potência do Sol deve estar uns 10% superior ao valor atual, de modo que a vida na Terra vai estar extinta por causa naturais mesmo.
- - - - -O Ufólogo vinha escutando toda essa conversa com um quê de impaciência. Finalmente, ele se manifestou:
- - - - -- Essas discussões tecno-ético-científicas parecem interessantíssimas, mas estamos fugindo a um problema que, misteriosamente, vocês parecerem ter decidido ignorar: se os grays não viajam Superluminalmente, como eles chegaram até o Sistema Solar?
- - - - -- Talvez eles nunca tenham saído do Sistema Solar - conjecturou o Biólogo, com um leve brilho de demência no olhar. - Talvez eles sejam uma civilização que nasceu na Terra, mas que há muito abandonou nosso mundo! É claro - apressou-se em dizer, recuperando a compostura de seu ceticismo científico - que não existe a mínima evidência paleontológica ou arqueológica favorecendo essa hipótese.
- - - - -- O que era de se esperar, já que essa hipótese não corresponde à realidade - disse a Interface. - Nossa origem é extra-solar.
- - - - -- Mas, então, poderia responder à minha pergunta? - Lembrou o Ufólogo, num tom peremptório.
- - - - -- Há muitos milênios, alguns de Nossos mundos, parecidos com este para onde vocês estão sendo levados, mas bem menores, chegaram a este sistema planetário por acaso.
- - - - -Novamente, todos se entreolharam, desta vez como se estivessem se perguntando: "Olha, Eles ficaram loucos! Por acaso eles querem dizer que os mundos deles ficam vagando para lá e para cá, e de vez em quando chegam a um sistema planetário?"
- - - - -. O Ufólogo expressou verbalmente essa pergunta (omitindo a observação sobre loucura), ao que a Interface respondeu afirmativamente.
- - - - -- Isso não é tão estranho quanto parece à primeira vista - disse o Caoplexo com um sorriso de reconhecimento. - Lembrem-se de que os movimentos astronômicos não são o "mecanismo de um relógio" que Newton imaginou, mas são na verdade caóticos. Corpos de um sistema planetário ocasionalmente podem ser espirrados para fora desse sistema, especialmente se tiverem massas relativamente pequenas, como no caso de asteróides, cometas e cidades espaciais. Após uma viagem de algumas dezenas de milhares de anos, um desses mundos espirrados pode chegar a outro sistema planetário.
- - - - -- Gostaria de acrescentar - começou o Físico - que um desses corpos de pequena massa teria uma órbita excepcionalmente instável caso os seus habitantes fizessem uso intensivo (e talvez exclusivo) da Energia Gravitacional. Numa análise intuitiva (que ainda requer cálculos comprobatórios) eu diria que a probabilidade de uma "cidade espacial" movida a reatores gravíticos ser espirrada seria muito maior que a de um asteróide ou cometa desabitado.
- - - - -- Suas deduções estão corretas e bem explicadas - confirmou a Interface. - De fato, o mundo para o qual vocês estão sendo levados só está passando próximo à Terra devido a uma improvável aproximação casual com um objeto interestelar massivo que Nos lançou no tórrido Sistema Solar Interior.
- - - - -- Meu Deus, o Contato Final da Humanidade com uma civilização alienígena é um acaso... Mas como um mundo do tamanho de uma cidade poderia ter recursos suficientes para que sua população sobrevivesse ao longo de dezenas de milhares de anos no Nada? - Perguntou o Ufólogo em tom insistente.
- - - - -- A objeção dele parece válida - conjecturou o Caoplexo. - Um ecossistema tão pequeno e fechado como o que imagino existiria em uma cidade espacial estaria sujeito a grandes flutuações hipercríticas. Na Terra, por exemplo, os ecossistemas de ilhas pequenas são bastante instáveis. Numa dessas flutuações hipercríticas, talvez as condições se tornassem insuficientes para a manutenção da vida dos habitantes. Vejamos, por exemplo, a contínua criação e extinção de civilizações nas ilhas da Polinésia.
- - - - -- No entanto, vocês estão partindo do pressuposto de que uma nave multigeração como estamos imaginando realmente permaneceria hermeticamente fechada na travessia de um sistema solar a outro. Mas o espaço interestelar não é um nada. Por exemplo, a Nuvem de Oort, a camada esférica de cometas que envolve o Sistema Solar, deve se estender por muitos trilhões de quilômetros pelo espaço interestelar afora. Observações de fenômenos de lentes gravitacionais mostram que devem haver corpos planetários do tamanho de Júpiter no meio interestelar. Finalmente, imagens recentes capturadas pelo Telescópio Espacial Hubble sugerem que, nas fases finais de sua vida, uma estrela pode induzir a formação, na nuvem de gases por ela desprendidos, de dezenas de milhares de objetos planetários com massa semelhante à da Terra, que são ejetados no meio interestelar. “Assim sendo, uma cidade espacial... Não gosto muito desse nome, prefiro chamá-las de uranópoles, do Grego para 'cidades celestiais’. Uma uranópole poderia perfeitamente usar a matéria desses incontáveis mundos perdidos na escuridão para suprir qualquer carência de recursos que poderia ocorrer durante sua viagem para lugar nenhum. Poderia inclusive usar essa matéria para expandir sua estrutura ou se reproduzir, criando novas cidades espaciais que começariam novas viagens sem rumo. Aliás, acho que, muito mais provavelmente, devem ser as descendentes longínquas de uranópoles ejetadas no espaço interestelar aquelas que chegam a outros sistemas planetários, muitas gerações de cidades espaciais depois."
- - - - -- Como bactérias se reproduzindo e se agitando em Movimento Browniano em uma poça d'água! - Exclamou o Biólogo, maravilhado com a analogia. - Civilizações aumentando e se diversificando, numa lenta difusão pelo Universo, como uma gota de corante jogada na água.
- - - - -- Vocês chegam a Nos surpreender com suas capacidades de especulação tão acuradas - elogiou a Interface, sem no entanto usar qualquer calor emocional nesse elogio.
- - - - -- Novamente, suas deduções a partir de conhecimentos extremamente incompletos estão corretas. Gostaríamos, porém, de acrescentar mais um fator que impede um isolamento dos ecossistemas de nossos mundos artificiais: o espaço interestelar está cheio de uranópoles. Isso permite que cidades espaciais vizinhas mantenham contato regular entre si, fazendo com que seus ecossistemas se comportem não como entidades estanques, mas sim como componentes ativos de um ecossistema incomensuravelmente maior, permeando toda a Galáxia e talvez todo o Universo.
- - - - -Muitos dos pesquisadores ali reunidos tiveram a impressão de ouvir o Biólogo suspirando como que num êxtase religioso; ao mesmo tempo, o Caoplexo parecia mal poder conter um de seus risinhos. Só o Ufólogo parecia um tanto desapontado. Mas, subitamente, o nascimento de uma suspeita foi revelado por seu olhar, e ele perguntou:
- - - - -- Mas, se existe essa Rede Universal da Vida... Esse poderia ser um bom nome para alguma seita religiosa... Se existe essa Rede Universal da Vida e Vocês, que são parte dela, nos visitam, então as próprias biosferas naturais, obviamente incluindo a Terra, são parte dessa Rede.
- - - - -- Obviamente - parafraseou a Interface. - Embora a Terra seja uma das parte conhecidas da Rede mais importantes, mais especiais para Nós.
- - - - -- Por quê?
- - - - -- Talvez seja melhor discutirmos isso após desembarcarmos no Nosso mundo, ao qual em breve chegaremos. Assim, muito do que foi explicado aqui, e do que será explicado a respeito da singularidade da Terra, poderá ser apreendido não apenas com palavras, mas com a própria demonstração de nossos propósitos. Entrementes, a gigantesca esfera argêntea já havia se agigantado na tela de observação. Era evidente que o pouso, ou atracagem, ou qualquer que fosse a forma de chegada, ocorreria em poucos segundos. Mesmo assim, os segredos que a Interface prometia revelar eram tão tantalizantes que os humanos a bordo do pequeno disco tinham a sensação de que cada um daqueles segundos demorava uma eternidade para passar. Mas é claro que, para a consciência coletiva dos alienígenas, qualquer segundo parecia uma eternidade, já que qualquer eternidade parecia um segundo.

O Céu e o Inferno

- - - - -A superfície do mundo alienígena era extremamente irregular, como se as máquinas fossem plantas que houvessem crescido em torno de alguma coisa. No meio desse caos que, no entanto, dava uma impressão subliminar de organização fractal, qualquer padrão geometricamente mais euclidiano logo chamava a atenção. Por isso mesmo, logo que o disco contornou o hemisfério escuro (que não era tão escuro assim, devido ao brilho dos irradiadores de calor e de luzinhas de função ignorada) da gigantesca bola prateada, o Computata logo falou:- Vejam, uma matriz de atracagem!
- - - - -A região apontada por ele, no centro da tela, era um triângulo equilátero subdividido em centenas de células, como favos de uma colméia. Alguns dos "favos" estavam vazios, mas a maioria estava ocupada por estruturas de várias formas e tamanhos, cujo único ponto em comum parecia ser a simetria radial. Algumas dessas estruturas eram idênticas ao disco onde agora os cientistas viajavam, o que lhes possibilitou inferir que as estruturas com simetria radial deviam ser naves auxiliares, e os "favos", atracadouros. O triângulo aproximava-se a olhos vistos, tornando óbvio que em breve o disco estaria conectado a um dos favos.
- - - - -- Uma o quê? - Perguntou o Físico, levantando uma sobrancelha.
- - - - -- Ahn... Bem, é uma rede periódica bidimensional de atracadouros padronizados, e assim senti-me à vontade para chamá-la de "matriz de atracagem". Não reparem, são coisas de cientista da Computação...
- - - - -- Realmente, parece uma coisa de cientista da Computação - disse o Caoplexo por entre o sorriso cínico que seu rosto quase sempre mostrava. - Mas, vejam, parece que agora é a manobra de pouso mesmo.
- - - - -A imagem na tela girou tão rapidamente que, num segundo, a matriz de atracagem era visível, mas no outro só o espaço estrelado o era. As estrelas distantes não poderiam, naturalmente, dar nenhuma pista de um movimento de afastamento em relação a elas, mas o baque que se ouviu no instante seguinte indicava que o disco havia "baixado" algumas centenas de metros num átimo e se conectado ao corpo imenso de seu mundo natal.
- - - - -- Senhores, acabamos de chegar - anunciou superfluamente a Interface. - Peço que se dirijam à saída do disco.
- - - - -Nem bem a Interface terminou de falar, a plataforma circular de embarque se desprendeu novamente, soltando um chiado provocado pela equalização de pressão. Os cientistas que flutuavam diretamente "acima" da plataforma viram que ela se afastou alguns metros e depois se grudou no "chão" - que era algo barrocamente esculpido com tubulações, fiações e outras estruturas mais misteriosas, exatamente como o interior do disco, e parecendo de fato uma continuação deste.
- - - - -Ao que parecia, a parte "de baixo" do disco se acomodava perfeitamente na concavidade do atracadouro, providenciando uma vedação hermética entre a câmara de desembarque e o vácuo do espaço.
- - - - -Com algum esforço, os pesquisadores (nenhum dos quais havia recebido treinamento em zero g, e que raramente haviam sonhado experimentar microgravidade um dia) se dirigiram à abertura; a Interface e seus "irmãos" muito menos humaniformes demonstraram uma previsível desenvoltura ao fazerem o mesmo trajeto, saindo primeiro.
- - - - - Talvez um pouco mais afoito que os demais, o Ufólogo foi o primeiro a sair do disco, achando um ponto de apoio favorável, impulsionando-se com as pernas e se lançando pela abertura. Seus colegas então puderam ouvir seu grito apavorado vindo lá de fora:
- - - - -- AAAAAAARRRRRGH! Chupacabras! Muitos deles!
- - - - -Os outros trocaram os olhares habituais de ceticismo mas, quando atingiram o compartimento de atracagem, também sentiram um calafrio primordial percorrer seus corpos agora imponderáveis. Dispostos em círculo ao redor da abertura, e olhando em direções aleatórias com a indiferença inerente aos alienígenas, havia algumas criaturas bem diferentes, mas ainda assim de alguma forma semelhantes, às EBEs que acompanharam os pesquisadores na viagem. A primeira impressão era a de que eram morcegos gigantes; com as asas abertas, eram muito maiores que um ser humano, mas o corpo no centro dessas asas era menor e muito mais magro que o de um homem. Na verdade, os corpos eram muito parecidos com os das EBEs "convencionais", mas pareciam mais suaves, mais macios, enquanto que os Greys vistos até agora eram basicamente esqueletos cobertos de pele com músculos filiformes se movendo febrilmente entre os dois. As pernas dos alienígenas alados eram mais compridas que as dos ápteros, e o pé era muito comprido e terminando em dedos curvados como garras, lembrando os pés de uma águia. Os braços eram ainda mais compridos e, nas mãos, alguns dedos eram finíssimos e extremamente longos, com membranas interdigitais, formando as asas parecidas com guarda-chuvas; mas os demais dedos eram de tamanho "normal" e sem membranas, parecendo se prestar à manipulação. A cabeça lembrava fortemente a dos Greys ápteros, com os imensos olhos negros e a boca e nariz vestigiais, mas era mais estreita, mais chata e mais comprida na parte de trás; em suma, parecia mais aerodinâmica. Finalmente, a pele era cinzenta como a dos alienígenas sem asas, mas nas asas era tão fina que mostrava-se translúcida, deixando a fraca iluminação ambiente passar.
- - - - -- Estas não são as criaturas que vocês chamam de chupacabras, mas sim unidades de outro modelo - corrigiu a Interface, imperturbável.
- - - - -- Mas como? São tão diferentes de um Grey... - disse o Ufólogo, ainda olhando aterrorizado para os seres alados.
- - - - -- Se você se refere às diferenças entre as unidades aladas e as ápteras vista por você até agora, estas são puramente devidas às diferenças entre os ambientes para os quais cada uma foi projetada - explicou a Interface. - As unidades ápteras são destinadas a trabalho em ambientes com gravidade terrestre, enquanto as aladas são o tipo usado aqui, onde as condições de microgravidade imperam.
- - - - -- Isso é lindo! - Exclamou o Biólogo. - Eles controlam a forma dos próprios corpos de modo a adequarem-nos às funções que desempenharão. Mais uma vez, lembram os insetos sociais, como formigas e cupins, onde os indivíduos diferem significativamente uns dos outros de acordo com a casta à qual pertencem. E notem como a adaptação à microgravidade é tão perfeita nas unidades aladas! Uma vida adaptada à falta de peso seria anatomicamente mais análoga a peixes e anfíbios que a pássaros e morcegos, já que na água a sustentação fornecida pelo empuxo livra todas as criaturas da sensação de peso. E, se vocês repararem, as "asas" das unidades aladas são mais como nadadeiras gigantescas, adequadas para o ar, um fluido muito menos denso que a água.
- - - - -De fato, as "asas" eram puramente membranas interdigitais, como as de um sapo, não se unindo ao braço e ao corpo, como nos morcegos, E, naquele momento, algumas das unidades aladas se deslocaram suavemente na direção das ápteras, e o movimento lembrou mais uma rã se impulsionando na água que um morcego voando.
- - - - -As unidades aladas então agarraram as ápteras com os pés e partiram carregando-as em velocidade bem maior, voando (ou nadando no ar) freneticamente até desaparecerem em um dos buracos misteriosos e escuros que saíam da câmara de desembarque. As unidades aladas restantes então voaram em novo movimento suave, postando-se nas proximidades dos humanos.
- - - - -- Ah, peraí, Vocês não estão querendo nos carregar nas garras dessas coisas horrorosas, estão? - Perguntou o Ufólogo, olhando em desespero para a Interface.
- - - - -- Estamos - confirmou ela , sem dó. - Note que a locomoção de seres acostumados a uma forte gravidade, como vocês, num ambiente como o do Nosso mundo, seria extremamente difícil, para não dizer impossível. Em algumas das cavidades maiores, alguns de vocês poderiam inclusive se desprender acidentalmente da superfície interna e ficarem vagando no ar por horas.
- - - - -- É, deixe de frescura! - Disse o Caoplexo com um sorriso maroto. - Na verdade, estou doido para experimentar como é andar de alienígena!
- - - - -Resignadamente, o Ufólogo deixou que o "seu" transportador se aproximasse e fechasse as garras sobre seu corpo. Para a sua surpresa, o local do toque não foi no ombro, mas sim nas laterais do tórax, com um pé agarrando de cada lado.
- - - - -"Realmente", pensou ele, "este ponto de contato é mais próximo de meu centro de gravidade, e deve tornar as manobras aéreas mais simples para esse bicho feio.".
- - - - -Quanto à sensação provocada pelo contato do corpo do alienígena com o seu, foi novamente surpreendente: esperava algo frio e duro, mas os pés eram como que acolchoados, muito macios, e não pareciam mais frios que o ambiente. Foi então que o Ufólogo atentou para um detalhe:
- - - - -- Vocês notaram como é quente aqui dentro?
- - - - -- Sim, agora que você mencionou, é muito quente, certamente mais de trinta graus - concordou o Físico. - E é úmido também, estou começando a suar e acho que vou ficar realmente encharcado durante nossa expedição.
- - - - -- Suspeito que existe uma razão metabólica para isso - supôs o Biólogo. Então, dirigindo-se à Interface: - Vocês são pecilotermos?
- - - - -- Sim.
- - - - -- Então, por isso eles precisam manter artificialmente o ambiente numa temperatura onde o metabolismo é otimizado. A bioquímica deles deve ser diferente em muitos detalhes, mas percebe-se que são baseados em água e carbono, e tenho a impressão de que a temperatura metabólica ideal para eles deve ser próxima à do corpo das aves e mamíferos. Estranho... Já que Vocês parecem controlar com tanta desenvoltura suas formas físicas, porque escolheram ser pecilotermos? Os homeotermos parecem ser evolutivamente mais vantajosos.
- - - - -- Não em um ambiente artificial como Nosso mundo, onde Nós podemos controlar minuciosamente muitas das condições ambientais. Se fôssemos homeotermos, gastaríamos muito mais energia com aquecimento corpóreo e precisaríamos de muito mais comida, e Nosso mundo comportaria um número muito menor de unidades. É mais eficiente utilizar energia diretamente para aquecer o ambiente que usá-la para cultivar mais alimentos, caso em que sempre há perdas devidas a sub-aproveitamento. Pelo mesmo motivo, não nos preocupamos em produzir sensação artificial de gravidade por centrifugação e coisas do tipo; o consumo de alimentos é bem menor em microgravidade.
- - - - -- Nossa, como eles são pão-duros! - Comentou o Caoplexo em tom jocoso. - E qual a população deste mundo, isto é, quantas unidades existem aqui?
- - - - -- Quarenta milhões.
- - - - -- Uau! A pão-durice funciona mesmo.
- - - - -- Por isso a utilizamos.
- - - - -- Toda essa adaptação dos alienígenas é fascinante, mas isso me lembra de algo - disse o Biólogo. - No caso Varginha, um dos bombeiros envolvidos com a captura dos alienígenas morreu de uma misteriosa infecção fulminante, que supõe-se ter sido causada por exposição a um vírus extraterrestre. Será que não corremos o mesmo perigo ao respirarmos o ar deste mundo e sermos tocados por estas unidades?
- - - - -- Não - tranqüilizou a Interface. - Visitamos a Terra há muito tempo, e intencionalmente nunca tivemos preocupações com assepsia, de modo que certamente quaisquer microorganismos que existem em nosso ecossistema e que poderiam contaminar a biosfera terráquea já o fizeram. Os humanos provavelmente já desenvolveram imunidade contra esses possíveis micróbios, assim como nós já desenvolvemos contra os da Terra. Essa era a nossa intenção. Não conhecemos esse assim chamado incidente em Varginha...
- - - - -- Ah, então foi só mais um boato! - Concluiu o Físico, triunfante.
- - - - -- Não necessariamente. Lembrem-se que a escuridão entre as estrelas, e por conseguinte os limites exteriores do Sistema Solar, são cheios de vida se desenvolvendo em mundos como este. Não somos os únicos que visitam a Terra, mas somos os de presença mais atuante. Mas, como íamos dizendo, caso o chamado Incidente em Varginha tenha realmente ocorrido, talvez os alienígenas envolvidos fossem portadores de algum microorganismo ainda desconhecido na biosfera terrestre. Ou talvez simplesmente tivessem a pele coberta de veneno, como alguns sapos terráqueos. Convém salientar, no entanto, que isso é mera especulação.
- - - - -- Uma consciência coletiva alienígena... cética! - Admirou-se o Caoplexo. - Pensei que uma entidade assim tão... incomum, e de origens também muito incomuns, não teria dificuldade em acreditar nas histórias mais extraordinárias...
- - - - -- O Ceticismo é uma característica necessária à sobrevivência. Me parece até que um ditado de algumas de suas culturas diz que o Seguro morreu de velho, e o Desconfiado ainda vive. Mas agora, vamos partir - anunciou a Interface, que entrementes já havia sido agarrada pelo seu transportador.
- - - - -O grupo partiu impulsionado pelas asas-nadadeiras dos transportadores, mergulhando em um dos túneis escuros que saíam da câmara.
- - - - -- Já que Vocês propositadamente mantêm as condições de Seu mundo em microgravidade, e assim deve ser há muitos milênios - continuou o Biólogo - então imagino que as unidades ápteras foram produzidas com a única e exclusiva finalidade de explorar a Terra.
- - - - -- Sua imaginação está correta.
- - - - -- O que traz à tona a pergunta que todos nós, humanos, ansiamos por ver respondida: por quê vocês vêm nos visitando?
- - - - -- Mostraremos em breve a resposta à sua pergunta. Para isso, no entanto, teremos de percorrer um grande trecho de nosso mundo; a localização da matriz de atracagem não é exatamente favorável. Portanto, tenham paciência.
- - - - -Naquele instante, uma luz avermelhada surgiu após uma curva do túnel sombrio. Parecia uma saída do mesmo e, quando se revelou realmente uma saída para os humanos, estes prenderam a respiração ante à visão dantesca com que foram presenteados.
- - - - -A câmara onde haviam entrado era gigantesca. De fato, era possível notar que acompanhava a curvatura do cometa, e devia ter alguns quilômetros quadrados de superfície. A altura entre o "teto" (a região mais afastada do centro do cometa) e o "chão" (a mais próxima do centro) era de dezenas de metros. Tudo era iluminado por uma lúgubre luz avermelhada vinda das fendas da superfície interna, que era toda torcida em padrões semelhantes a descomunais circunvoluções cerebrais. Mas o mais impressionante a respeito da câmara não era seu tamanho.
- - - - -A câmara era pululante de vida. A superfície interna era coberta por um tapete de verde que parecia quase negro à luz rubra. Plantas de aparência extremamente alienígena, especialmente porque não obedeciam a qualquer forma de geotropismo. Um botânico poderia enlouquecer tentando classificá-las. Ocasionalmente, alguma pequena criatura voava de uma "árvore" para a outra. Mesmo àquela distância, podia-se ver que não eram unidades aladas, mas sim animais diferentes, alguns com o que pareciam ser pêlos, e com cabeças menores e grandes olhos vermelhos.
- - - - -As unidades pareciam não prestar muita atenção a essa natureza exuberante. Passavam voando às dezenas pela câmara, emergindo de ou sumindo em outros túneis de acesso, ou então entrando e saindo de grandes estruturas de forma indefinida, mas nitidamente artificiais, parecendo órgãos gigantescos com extremidades incorporadas ao "teto" e ao "chão" da câmara.
- - - - -- Meu Deus, Eles têm um completo ecossistema no interior do cometa! - Exclamou o Biólogo, maravilhado. - E, pelo que vejo das espécies de plantas, este pequeno mundo, que deve ter a superfície de uma ilha terráquea, tem uma biodiversidade comparável à de uma floresta pluvial! E eu que esperava uma espécie de cidade espacial completamente estéril, tendo como habitantes únicos e exclusivos os alienígenas.
- - - - -- Também estou impressionado com a riqueza da vida deste mundo - concordou o Caoplexo - mas... Algo me diz que essa biodiversidade deve ser necessária, e não apenas um fenômeno interessante casual.
- - - - -- O que o leva a essa suspeita?
- - - - -- Este é um pequeno mundo com um ecossistema isolado, eternamente trancado aqui. Oh, certo, pode existir um certo intercâmbio com formas de vida de outros mundos artificiais, e talvez até com as da Terra, mas esse contato é mínimo. Para este ecossistema ficar estável, o número de espécies vegetais e animais teria de ser maximizado, de forma a que todos os nichos ecológicos fossem preenchidos e que todos os recursos fossem aproveitados e reciclados harmoniosamente, sem desequilíbrios. Estou certo, Interface?
- - - - -- Sim. Mas o que há de incomum nisso? Na Terra, acontece a mesma coisa, embora os desequilíbrios demorem mais para se manifestar.
- - - - -- Já posso até ouvir os novos slogans dos ecologistas, baseados em sabedoria alienígena - caçoou o Caoplexo. - Mas o nosso amigo Ufólogo estava agora há pouco aterrorizado com o terrível Chupacabras, e estou vendo na "floresta" alguns animais que lembram muito a descrição desse mito. São animais mesmo, não, isto é, não são outras unidades, são?
- - - - -- Não, não são.
- - - - -- Mas porque todas as criaturas neste mundo não são parte da inteligência coletiva, isto é, porque todas não são unidades? - Perguntou o Biólogo. - Se assim o desejassem, vocês poderiam levar avante essa coletivização multi-espécie, não?
- - - - -- Sim. Mas é mais vantajoso deixar o ecossistema como um conjunto de indivíduos agindo sem uma consciência maior integrando-os. As ações aleatórias produzidas pelo comportamento deles são mais eficientes em manter o equilíbrio desta biosfera que o seriam ações planificadas. Em muitos casos, o Acaso é uma ferramenta muito mais poderosa que a Inteligência.
- - - - -- Mas, voltando à vaca fria... Então, existem mesmo chupacabras? Alguns desses bichinhos escaparam para o ecossistema da Terra e lá estão se reproduzindo? - Perguntou o Ufólogo.
- - - - -- Se isso está acontecendo, não é do Nosso conhecimento. Mas não seria impossível algum desses animais embarcar clandestinamente em uma das naves e saltar para o ecossistema terrestre. O que Nos parece improvável é a sobrevivência de criaturas adaptadas à falta de gravidade em um ambiente onde a gravidade é muito forte.
- - - - -- As cabras do mundo inteiro ficarão radiantes de alívio ao saberem disso - declarou o Caoplexo com falsa gravidade. - Mas, mudando mais uma vez de assunto... O que são essas estruturas artificiais, mas que parecem estômagos e corações gigantes, espalhadas entre o "teto" e o "chão"?
- - - - -- Alguns são comedouros-dormitórios, e outros são núcleos de gestação.
- - - - -- Hhihihihihihhih... O que é um comedouro-dormitório? E um núcleo de gestação?
- - - - -- Talvez seja conveniente desviarmos um pouco nossa rota para visitá-los.
- - - - -Os transportadores viraram em uníssono, como num balé sincronizado, na direção de um dos "órgãos" mais próximos. No caminho para uma das aberturas, desviaram-se de um globo de água com muitos metros de diâmetro, flutuando no ar. Alguns "passarinhos" banhavam-se na formação, e alguns chegavam mesmo a nadar em seu interior, entrando de um lado e saindo no ponto antípoda.
- - - - -- Nossa! O que é aquela grande esfera de água pela qual passamos? - Perguntou o Físico, despertando do torpor no qual aquele ambiente surreal o havia lançado.
- - - - -- Creio que você poderiam chamá-la de gota de chuva.
- - - - -Mais uma sessão de olhares estranhos ocorreu entre os pesquisadores. Mas o Físico fez em vez disso uma expressão de reconhecimento, afirmando:
- - - - -- Mas é claro! Sem a gravidade para limitar o tamanho das gotas de água, elas devem atingir dimensões assustadoras! E devem demorar muitos minutos para cair até o chão, puxadas pela gravidade ridícula deste planetesimal! Entrementes, o grupo chegou à entrada do "órgão" para o qual se dirigiam. Este parecia um rim, ou um grão de feijão, com hectômetros cúbicos de volume e uma sombria superfície exterior cor de chumbo. Quando lá adentraram, novo espanto. A estrutura era internamente dividida em muitas lamelas, lembrando uma mitocôndria, e nessas superfícies jaziam incontáveis cilindros transparentes. Cada cilindro estava cheio de um líquido amarelado diáfano, no qual boiava uma unidade. Cada unidade em cada cilindro estava com os olhos imensos fechados ("Eles têm pálpebras!", admirou-se o Biólogo) e as asas-nadadeiras enroladas em volta do corpo, como guarda-chuvas fechados. Pareciam dormir.
- - - - -- O que estas unidades nos vidros estão fazendo? Ou deixando de fazer? - Perguntou o Caoplexo, o primeiro dos humanos a se recuperar de mais aquela visão assombrosa. - Isto parece alguma cena tirada de "Admirável Mundo Novo", o Aldous Huxley até poderia cobrar direitos autorais!
- - - - -- Estão se alimentando e repousando - explicou a Interface.
- - - - -- Ah, que gracinha, eles fecham os olhões para dormirem! Mas tem certeza de que eles estão comendo? Eles estão simplesmente boiando nesse fluido amarelo, sem levar nada à boca.
- - - - -- Nós não temos um sistema digestivo como o de vocês. Nos alimentamos através da pele, absorvendo aminoácidos, vitaminas, sais minerais e açúcares simples diretamente. O fluido amarelo é um líquido nutritivo.
- - - - -- Parecem com certos vermes da Terra, que também se alimentam, respiram e excretam pela pele! - lembrou o Biólogo. - A propósito, as unidades nos vidros também estão excretando no líquido enquanto absorvem os nutrientes? Imagino que, já que vocês absorvem diretamente nutrientes moleculares, não produzem resíduos sólidos, mas apenas soluções líquidas, como nossa urina e suor.
- - - - -- Sim, as unidades estão (também por via epitelial) excretando no fluido ao mesmo tempo que se alimentam.
- - - - -- Que nojo! - Opinou o Caoplexo, torcendo o nariz. - Imagino que essa é mais uma das medidas de contenção de gastos.
- - - - -- Exatamente.
- - - - -- E como vocês obtêm a comida? - Perguntou o Biólogo.- Em sua maioria, ela provém de microorganismos desenvolvidos por engenharia genética para produzirem os nutrientes de que precisamos. Esses microorganismos são cultivados em grandes tanques dos quais os nutrientes são extraídos de tempos em tempos. Eventuais carências ou superproduções dessa, digamos, agricultura microbiana são supridas do ou descarregadas no ecossistema, que se adapta para corrigir os desequilíbrios.
- - - - -- E quanto à respiração? Vocês sempre respiram através da pele?
- - - - -- Durante essas imersões para alimentação, Nosso metabolismo diminui tanto que a respiração epitelial satisfaz plenamente as necessidades de oxigênio. Mas, quando as unidades estão acordadas, necessitamos dos nossos pulmões.
- - - - -- Estou satisfeito em saber de todas essas diferenças! - Disse o Biólogo. - Logo que vi esses alienígenas, considerei-os parecidos demais com pessoas, no caso das unidades ápteras. Mas, agora, vejo que a implementação dos corpos deles deve ser bem diferente da dos nossos. Uma nova era se abre para a Biologia com os seres deste mundo!
- - - - -- Uma implementação tão diferente... Mas, agora que sua curiosidade a respeito dos comedouros-dormitórios foi satisfeita - prosseguiu a Interface - sugerimos a visita a um dos núcleos de gestação.
- - - - -Os transportadores levaram os visitantes para o exterior novamente - se é que se pode chamar de exterior um ambiente fechado, ainda que imenso. Agora, rumaram para outra estrutura, esta lembrando um monte de alças intestinais, cada uma com dez a vinte metros de diâmetro, emaranhadas. Por um instante, o interior do "intestino" foi desapontador, parecendo outro comedouro-dormitório. Isso porque, novamente, as superfícies internas eram cobertas por cilindros hialinos cheios de líquido. Os cilindros eram perpendiculares à superfície, apontando para o eixo ou centro do compartimento tubular. Mas, aqui, alguns cilindros estavam vazios exceto pelo líquido. Outros tinham minúsculas estruturas de forma indefinida boiando no centro. E outros tinham em seu interior o que só poderia ser... Fetos de alienígenas.
- - - - -- É uma instalação para ectogênese! - Admirou-se o Biólogo. - Milhares de úteros artificiais para o desenvolvimento de novas unidades.
- - - - -Um grupo de unidades voava por entre os recipientes, como que verificando-os. Então, pararam ao redor de um recipiente que continha um alienígena não apenas completamente desenvolvido, mas adulto. O líquido no interior do cilindro começou a ser substituído por ar e, quando a substituição foi completa, a parede cilíndrica transparente recolheu-se, sumindo na superfície interna do compartimento, e deixando o alienígena livre. A criatura abriu os olhos gigantescos. Suas asas se desenrolaram, moveram-se timidamente, incertamente por alguns instantes. A princípio completamente molhada, a pele do recém-nascido secou a uma velocidade assustadora - provavelmente porque a pele absorvia o caldo nutritivo como uma esponja.
- - - - -Então, o recém-nascido moveu-se - e saiu acompanhando seus "parteiros" como se sempre tivesse sabido voar.- Senhores, somos as primeiras testemunhas humanas de um parto alienígena! - Declarou o Ufólogo, em tom grave e maravilhado.
- - - - -- Estou emocionado - disse o Caoplexo em tom indiferente. - Mas as novas unidades já nascem prontas, isto é, adultas?
- - - - -- Sim - respondeu a Interface com o laconismo habitual.
- - - - -- Mais uma semelhança com formigas e abelhas - lembrou o Biólogo. - De fato, para que indivíduos de uma inteligência coletiva teriam necessidade de infância? Não há nada para aprender, a coletividade supre todo o conhecimento necessário. A propósito, qual a expectativa de vida de cada unidade?
- - - - -- Cerca de cento e cinqüenta anos terrestres.
- - - - -- E a, digamos, gestação? Quanto tempo uma nova unidade demora para ser produzida.
- - - - -- Algumas dezenas dos seus dias, dependendo do modelo.
- - - - -- Mas, então, é impressão minha ou está havendo uma superprodução de unidades? Só este núcleo de gestação deve ter dezenas de milhares de unidades em desenvolvimento, e acho que existem muitos outros núcleos. Para seres tão longevos, eu esperaria uma natalidade menor se a finalidade da mesma fosse a simples reposição dos mortos.
- - - - -- Não estamos simplesmente repondo os mortos. De fato, desde que entramos em órbita da Terra, estamos aumentando Nosso número.
- - - - -- Por quê?
- - - - -- Isso é necessário para o cumprimento de Nossos propósitos, cuja revelação, lembramos mais uma vez, requererá uma certa paciência de sua parte, até chegarmos a ao local adequado para as explicações. O que lembra que devemos prosseguir nossa jornada.
- - - - -Os transportadores novamente bateram suas asas, levando o grupo para fora do núcleo de gestação. Novamente na gigantesca cavidade, os transportadores dirigiram-se ao "chão". Por um instante, os pesquisadores pensaram atemorizados que se embrenhariam naquela selva cheia de criaturas desconhecidas, mas depois notaram, aliviados, que os transportadores se dirigiam a uma das saídas - esta um buraco no "chão" - da cavidade.
- - - - -A visão na outra cavidade gigantesca onde então entraram deveria também ser de tirar o fôlego mas, talvez por excesso de exposição a coisas estranhas, os pesquisadores não se admiraram em ver... Um gigantesco mar interior. Uma massa imensa e com curvatura esférica, sumindo no horizonte em todas as direções. Devia ser azul, mas a luz novamente avermelhada, emanada pelas fendas no teto (que era uma espécie de "negativo" morfológico da superfície interna da câmara anterior, com as "circunvoluções" viradas ao avesso), tornava tudo negro. O próprio teto era cinzento e cheio de reflexos vermelhos, dando novamente um visual lúgubre à câmara. Pilares desciam do teto e se apoiavam na massa líquida, possivelmente sustentando toda a "crosta" metálica acima por meio de flutuação.
- - - - -- Deixe eu adivinhar - principiou o Físico. - Esta gigantesca massa de água, que deve ter milhares de quilômetro cúbicos de volume, era o núcleo do cometa que Vocês colonizaram. Com o tempo e o contato com essa crosta quente que Vocês construíram ao redor, ele deve ter derretido, se transformando em um mar interior.
- - - - -- Sim. Então processamos o líquido e a atmosfera resultantes, de modo a remover substâncias tóxicas ou irrespiráveis, como o metano e a amônia.
- - - - -- E porque fizeram isso? Por quê simplesmente não deixar este mar interior separado de Sua biosfera artificial?
- - - - -- Porque nossa biosfera artificial ficaria mais estável ainda se incluísse um ecossistema marítimo. Assim sendo, após a retirada das substâncias indesejadas povoamos o mar então formado com diversas formas de vida.
- - - - -Como que para ilustrar o que a Interface havia acabado de falar, algum animal de grande porte emergiu parcialmente no mar "abaixo" do grupo, e afundou novamente. "Respingos", cada um com muitos centímetros de diâmetro, voaram da turbulência provocada na água. O evento lembrou a aparição fortuita de uma baleia nos oceanos da Terra.
- - - - -- Estas grandes cavidades internas - recomeçou o Físico - são visualmente impressionantes, mas não são elas um tanto perigosas no que concerne a impactos de meteoros? Por exemplo, se um meteoro suficientemente rápido e veloz perfurasse a crosta metálica deste mundo até chegar ao mar interno, todo o ar dos ecossistemas artificiais escaparia, e a própria água deste mar evaporaria e se dispersaria no espaço. Todos morreriam. Mas, se este mundo fosse subdividido em incontáveis pequenas câmaras razoavelmente isoladas umas das outras, apenas um pequeno volume de ar seria perdido.
- - - - -- A solução das incontáveis pequenas câmaras é utilizada nas camadas mais externas de Nosso mundo, como vocês puderam observar na matriz de atracagem. O impacto de meteoros pequenos só danifica essas camadas periféricas, nunca atingindo as profundas, subdivididas em grandes câmaras. Quanto ao impacto de grandes meteoros, estes são detectados de longe e defletidos, também não representando uma ameaça.
- - - - -Felizmente para os humanos mais sensíveis, os transportadores rumavam não para aquela água negra cheio de "monstros marinhos", mas sim para um tubo de alguns metros de diâmetro que corria pelo "teto". A intervalos regulares, o tubo cruzava com outros, formando "nodos" de interconexão. Logo ficou claro que o nodo mais próximo era o destino. Os transportadores entraram em um orifício na parte de "baixo" da estrutura globular.
- - - - -No interior da mesma, os humanos viram as bocas dos tubos que ali terminavam. De cada boca saía uma estrutura que, de alguma forma vaga e obscura, lembrava trilhos de trem. As "linhas de trem" se encontravam no centro do globo oco, num complexo entroncamento. Qual não foi a surpresa dos humanos ao constatarem que, de certa forma, aquilo era realmente uma linha de trem. Um veículo chegou deslizando por uma das linhas. Era um cilindro envolvendo completamente os trilhos, e que parecia não tocar nos mesmos.
- - - - -- Vejam, parece ser um trem de propulsão magnética, como os que começam a ser usados na Terra - observou o Físico. - Lá é uma tecnologia de ponta, mas é estranho como parece primitivo neste mundo repleto de tecnologia incompreensíveis.
- - - - -- Não obstante tal impressão de primitivismo, é um meio de transporte muito eficiente no interior de Nossos domínios - garantiu a Interface. - Por favor, entrem - disse, apontando para a abertura retangular que acabava de ser deixada por um painel deslizante no casco do trem magnético.
- - - - -Os humanos logo constataram que, seguindo a linha claustrofóbica de desenho dos alienígenas, o trem não possuía janelas. O fechamento da porta isolou-os completamente do mundo exterior, e as fracas luzes internas se acenderam. Então, o trem começou a acelerar, e os passageiros foram suavemente empurrados contra uma de suas paredes circulares.
- - - - -Em pouco tempo, porém, começaram a ser novamente empurrados, desta vez contra uma mesma região da parede cilíndrica.
- - - - -O Físico observou:- Vejam que interessante! Estamos percorrendo a curvatura proximadamente esférica deste mundo a uma boa velocidade. Como resultado desse movimento, estamos sofrendo uma força centrífuga e sendo empurrados em direção contrária ao centro do cometa, ou ex-cometa. Mesmo assim, estamos ainda muito "leves", com talvez um sexto da sensação de peso que temos na Terra.
- - - - -O Caoplexo soltou mais uma de suas observações jocosas:
- - - - -- Parece um brinquedo de parque de diversões. A que velocidade você acha que estamos nos movendo?
- - - - -O Físico consultou sua já famosa calculadora e estimou:
- - - - -- Uns 500km/h é um bom chute. Suponho que velocidades muito maiores seriam possíveis para este veículo, mas o efeito centrífugo então esmagaria estes seres acostumados à microgravidade.
- - - - -De fato, os transportadores estavam encolhidos em um canto, apoiando-se uns nos outros com uma nítida dificuldade em se manterem de pé. Após muitos minutos, o trem parou - o que foi denunciado por outra suave desaceleração que empurrou os presentes na direção da outra parede circular. O painel que fechava a porta deslizou mais uma vez para dentro da parede. Os transportadores, novamente dotados de confortável imponderabilidade, alçaram vôo e agarraram suas cargas humanas.
- - - - -O lugar onde desembarcaram era um nodo idêntico ao de embarque. Mas, em vez de saírem pela abertura na parte de "baixo", os transportadores dirigiram-se a outra na parte de "cima". Lá, havia uma antecâmara onde, em uma das paredes, uma superfície circular com cerca de dois metros de diâmetro girava lentamente.
- - - - -- Qual a finalidade desse disco girando aqui? - Perguntou o Físico.
- - - - -- O disco é uma porta - explicou a Interface. - É a passagem para um módulo esférico de Nosso mundo, módulo este que é mantido girando em um campo magnético, para fins de produção de "gravidade" centrífuga. A porta se situa num dos pólos dessa esfera, daí o movimento de rotação observado.
- - - - -- E por quê vocês mantêm um módulo de bom tamanho com "gravidade" centrífuga? Vocês não disseram que a simulação de gravidade é antieconômica e, portanto, evitada?
- - - - -- Ela é evitável na maioria das vezes, mas para certas finalidades precisamos simular gravidade. As unidades ápteras que viajaram conosco para cá, por exemplo, bem como esta Interface Humaniforme, precisam ser mantidas em um ambiente com "gravidade" artificial, a fim de manterem a tonicidade muscular. As unidades ápteras que vocês viram foram levadas a outro desses módulos esféricos, no ponto antípoda, do outro lado deste mundo. Vocês devem imaginar que, em um planetesimal deste tamanho, precisamos ter cuidado com transferências de momento angular, daí a necessidade de dois módulos esféricos girando em sentidos opostos.
- - - - -- E o que vamos encontrar aqui? - Perguntou o Biólogo. - Mais unidades ápteras?
- - - - -- Não. Entrem, por favor - pediu novamente a Interface, ao passo que a porta (na verdade, uma espécie de diafragma gigante) se abriu. Os cientistas obedeceram. Entraram na pequena câmara logo além do diafragma, que novamente se fechou. Tocando na superfície cilíndrica rotativa, logo começaram a sentir um peso fraquíssimo e se colocaram de pé. Vendo que os visitantes estavam já devidamente acomodados, a Interface anunciou:
- - - - -- Agora, finalmente todas as suas dúvidas a respeito de Nossas intenções serão respondidas. Observem.
- - - - -Um segundo diafragma, exatamente em frente ao primeiro, se abriu, e o panorama que os visitantes descortinaram na próxima sala espantou-os mais que qualquer outra coisa até agora naquela estranha expedição.
- - - - -- Humanos! - Exclamou o Ufólogo como se estivesse vendo alguma nova espécie alienígena.
- - - - -De fato, o próximo compartimento estava cheio de pessoas. Todos pareciam muito jovens, quase adolescentes, e indivíduos de ambos os sexos e de todas as raças podiam ser identificados. Usavam trajes pretos inteiriços de algum tecido colante, preto e opaco, e só a pele das mãos e da cabeça era deixada a descoberto. Andavam de um lado para outro, subindo e descendo escadas que desembocavam naquele compartimento cilíndrico do eixo rotativo.
- - - - -- Não exatamente - corrigiu a Interface.
- - - - -- Não são humanos - disse o Caoplexo em voz baixa e grave, sentindo um calafrio. - Vejam os olhos!...
- - - - -Os olhos daquelas pessoas tinham esclerótica e íris, e suas cores eram normais. Mas eram olhos com a mesma expressão vazia dos da Interface. Os rostos também pareciam incapazes de expressar emoções, como se os próprios músculos faciais tivessem atrofiado por falta de uso.
- - - - -- Não pode ser - disse o Caoplexo. Agarrou o jovem que passava por perto, uma moça morena de olhos azuis frios como cacos de gelo, e implorou: - Ei, diga alguma coisa!
- - - - -A moça apenas desvencilhou-se e continuou a caminhar.
- - - - -- Essas unidades não são capazes de falar, embora esperemos que seus similares que nascerem entre vocês o sejam - disse a Interface.
- - - - -- Como assim, unidades? São pessoas! O que aconteceu com elas? O que vocês estão fazendo?
- - - - -- Não são pessoas, são unidades, e são exemplares dos instrumentos que usaremos para atingir Nossos propósitos. Ouçam o que Nós temos a dizer.
- - - - -E a Interface começou a contar uma longa história aos assombrados pesquisadores - que ficavam cada vez mais assombrados ao ouvi-la.

A Geração dos Unificados

- - - - -- Era uma vez... - Principiou a Interface. Logo, porém, se interrompeu, observando: - Não, achamos que essa não é uma boa maneira de começar Nossa história. - Após uma breve pausa, recomeçou: - Há muitos e muitos milênios atrás, em uma região muito, muito distante do Sistema Solar, iniciamos a colonização deste cometa.
- - - - -- Vindos de onde? - Perguntou o Ufólogo.
- - - - -- De outro cometa, naturalmente.
- - - - -- Com que finalidade?
- - - - -- O cometa de onde as unidades responsáveis pela colonização deste vieram já estava completamente explorado e modificado para atender às Nossas necessidades. Nada mais natural então que nos lançarmos à colonização de novos mundos. Em quanto mais mundos existirmos, maiores as Nossas chances de sobrevivência como um todo.
- - - - -- É o mesmo método que a Humanidade, bem como muitas outras espécies terráqueas, utiliza - lembrou o Biólogo. - Na aurora do Homem, existiam hominídeos apenas na África, mas depois nos espalhamos por todo o planeta. Agora, começamos a dar os primeiros passos tímidos na exploração do espaço...
- - - - -- Passos que logo não serão tão tímidos assim - acrescentou a Interface, em tom (como sempre) enigmático.
- - - - -- ... E, um dia, creio que o colonizaremos - prosseguiu o Biólogo, imperturbável.- O caso é que qualquer espécie tem suas chances de sobrevivência maximizadas se se disseminar por muitos lugares. Logo, a Seleção Natural tende a favorecer o aparecimento de um "instinto de expansão", como aconteceu com a Humanidade.
- - - - -- Após esse breve interlúdio evolucionário-demográfico, creio que podemos prosseguir - lembrou a Interface. - Como íamos dizendo, colonizamos este cometa e, desde o princípio, sabíamos que ele nos levaria a onde nenhuma unidade jamais esteve: a região planetária do Sistema Solar. Este é o que vocês chamariam de um cometa de longo período, sumindo na Escuridão durante milênios e, então, voltando despencando para passar brevemente por entre os planetas, nas proximidades do Sol.
- - - - -"Mais do que isso, sabíamos também que, da próxima vez que nosso mundo passasse por entre os planetas, jamais voltaria novamente à Escuridão. Calculamos sua trajetória interplanetária e vimos que incomuns aproximações com Júpiter e Saturno iriam alterar sua órbita, fazendo-a ficar confinada ao Sistema Solar interior. Mais especificamente, após as interações com os Planetas Gigantes, nosso mundo passaria a descrever uma órbita bastante elíptica e perceptivelmente inclinada em relação ao Plano Eclíptico; no periélio dessa nova órbita, nosso mundo passaria pouco além da órbita da Terra; no afélio, quase ultrapassaria a órbita de Júpiter."
- - - - -- Como Vocês puderam calcular com tanta precisão a órbita futura deste mundo, se ao que parece o Sistema Solar, ou pelo menos a parte dele próxima ao Sol, compreendendo os planetas, lhes era desconhecido? - Perguntou o Físico.
- - - - -- Como vocês devem imaginar, Nossos instrumentos de observação astronômica são mais avançados que os seus, e podemos de fato até mesmo observar diretamente planetas de outros sistemas planetários. Dessa forma, os corpos mais massivos do Sistema Solar Nos eram perfeitamente visíveis mesmo das profundezas da Nuvem de Oort. Além disso, graças a dados coletados por explorações de outros povos em outros tempos, tínhamos registros detalhados inclusive sobre corpos menores e inobserváveis por nós, como cometas de curto período e asteróides. Mas, como íamos dizendo, sabíamos que ficaríamos confinados para sempre nas iluminadas proximidades do Astro Rei...
- - - - -"Fosse este sistema planetário igual a quase todos os outros, a mudança não representaria qualquer preocupação adicional para Nós. Mas havia algo incomum neste sistema: nossos registros cosmográficos, bem como nossas observações astronômicas, indicavam que o Terceiro Planeta - a Terra - tinha condições de desenvolver uma civilização tecnológica. Mais inquietante ainda é que alguns dos registros cosmográficos mais recentes de fato descreviam uma espécie em desenvolvimento no planeta - vocês, humanos - que começava a fazer uso extensivo de tecnologia."
- - - - -- Mas o que há de incomum em uma civilização tecnológica vizinha? - Perguntou o Caoplexo. - Vocês não disseram que o espaço interestelar está cheio de civilizações habitando esses pequenos mundos perdidos na Escuridão? O que haveria de errado em dividir o Universo com mais uma civilização?
- - - - -- Como você mesmo disse, Nossos vizinhos da Escuridão eram todos habitantes de pequenos mundos. A grosso modo, estávamos todos em pé de igualdade. Mas a Terra não é um pequeno mundo. É um grande mundo habitável, com capacidade para suportar uma civilização com bilhões de integrantes. Imaginemos que essa civilização logo alcançasse o nosso nível de tecnologia. Teríamos então como vizinha uma civilização com ordens de magnitude mais recursos que Nós e capaz de utilizá-los com a mesma eficiência com que usaríamos. Acima de tudo, essa civilização estaria na aurora de sua exploração do Universo, e talvez seus primeiros contatos com outras civilizações astronáuticas não fossem exatamente amistosos. Eles poderiam ser uma ameaça seríssima para Nós.
- - - - -- Mas, como? Vamos supor que alcançássemos o nível de tecnologia que Vocês tinham quando começaram a se precipitar para o Sistema Solar Interior - teorizou o Caoplexo. - No tempo que levássemos para atingir esse nível tecnológico, Vocês não teriam progredido para um nível bem mais alto? Desse modo, mesmo com nossa superioridade numérica e de recursos, não representaríamos qualquer ameaça para Vocês.
- - - - -- Você supõe, talvez baseado no prodigioso progresso científico e tecnológico experimentado por sua espécie nos últimos séculos, que a Ciência e a Tecnologia podem progredir indefinidamente. Infelizmente, Nossa experiência vinda de tempos imemoriais e de contatos com incontáveis civilizações nos diz que esse não é o caso. Existe o chamado Nível Assintótico, além do qual a Tecnologia, bem como a Ciência Pura, não mais progride. Ocasionalmente, conhecimentos são perdidos e redescobertos; pode haver também casos de civilizações diferentes onde a tecnologia evolui de maneiras completamente diferentes; mas, no final, tudo é limitado. De fato, estamos no Nível Assintótico há tanto tempo que, mesmo para Nossa prodigiosa memória, é como se sempre tivéssemos existido nesse nível.
- - - - -O Caoplexo, que já não parecia a pessoa mais feliz do mundo desde que havia visto as sinistras criações humanas dos alienígenas, sentiu uma sombra passar por seu rosto. Comentou:
- - - - -- É uma coisa muito triste de se dizer para cientistas. Diria até que, subitamente, nossa busca de saber perde todo o sentido.
- - - - -- Mas coisa alguma nunca teve nem terá sentido - disse a Interface, demonstrando completa insensibilidade para com os sentimentos de seu interlocutor humano.
- - - - -Mas, mesmo assim, seu tom de voz quase parecia conter uma ponta de admiração ao proferir essa pitoresca observação sobre o Sentido da Vida. - Mas, se isso serve de consolo para vocês, seres individuais, suas vidas são tão curtas, e suas capacidades de aquisição de conhecimentos tão pequenas, e suas sociedades e culturas tão efêmeras, que para vocês, humanos, a Vida será sempre uma perpétua descoberta.
- - - - -"Discussões metafísicas à parte, podemos voltar à Nossa história. Face a essa possibilidade de ameaça futura, enviamos de início sondas automáticas e, mais tarde, naves tripuladas, à Terra, a fim de observarmos os progressos da Humanidade. De posse desse fluxo constante e suficiente de informações, pudemos fazer nossas computações de História Potencial..."
- - - - -- De quê? - Perguntaram quase todos, crendo que não haviam ouvido direito.
- - - - -- De fato, essa é uma ciência que parece não existir ainda entre vocês. A História Potencial é a previsão dos desdobramentos futuros da história de uma civilização, com bases estatísticas e probabilísticas.
- - - - -- Hihihihihihi... - Riu o Caoplexo, recuperando sua antiga alegria, mas com um brilho de insanidade bastante intensificado nos seus olhos. - É a Psico-História que o Asimov descrevia nos livrinhos dele sobre a Fundação!
- - - - -- Pode-se dizer que sim - admitiu a Interface.
- - - - -- Mas, se vocês são uma inteligência coletiva, como vocês poderiam desenvolver a História Potencial? - Argumentou o Ufólogo.
- - - - -- Mais uma vez, devemos lembrá-los que, na Escuridão, havia muitas civilizações nos muitos mundos vizinhos ao Nosso, e é claro que muitas delas, na verdade a maioria, eram sociedades de indivíduos. Essas sociedades, principalmente, desenvolveram a História Potencial, e Nós mesmos utilizávamos esses conhecimentos para prevermos a situação futura de nossa pequena vizinhança do Universo.
- - - - -"Voltando novamente à narrativa, Nossas computações de História Potencial Nos mostraram que, por volta da época de nossa assimilação definitiva pelo Sistema Solar Interior, a Humanidade atingiria um nível tecnológico que começaria a ser perigoso para Nós. Então, começamos a estudar alternativas que poderiam salvaguardar Nosso futuro.
- - - - -Obviamente, a primeira alternativa que vem à mente seria o extermínio da Humanidade", disse a Interface, espantando até os cientistas, que já deveriam estar acostumados com a fisionomia que continuava impassível mesmo proferindo as coisas mais difíceis de ouvir. "Poderíamos, por exemplo, desenvolver um vírus que exterminasse grande parte da população. Mas, mesmo com as poucas dezenas de milhões de humanos que então viviam, não poderíamos desenvolver um vírus que matasse todos os humanos. Sobrariam indivíduos resistentes que logo se multiplicariam e novamente Nos ameaçariam. Poderíamos também invadir a Terra naquele estágio primitivo de desenvolvimento da Humanidade e exterminá-la com um exército ou algo do tipo. Mas, considerando-se a imensa distância que então Nos separava da Terra, parecia-Nos muito custoso montar uma operação desse tipo. Poderíamos também destruir apenas a civilização humana, sem destruir a Humanidade. Isso era perfeitamente possível. Bastaria deslocar um pequeno asteróide de, digamos, um quilômetro de diâmetro, para uma nova órbita, a qual interceptaria a Terra em sua órbita. O impacto com a Terra geraria uma explosão tão devastadora que a poeira na alta atmosfera provocaria uma Era Glacial instantânea. A Fome, a Miséria e o Desespero destruiriam a civilização, atrasando seu desenvolvimento em milênios. Mas o que são milênios para Nós? Apenas uma pausa para tomar fôlego, e então a Humanidade renasceria das cinzas como uma fênix furiosa para nos ameaçar novamente. De uma maneira geral, essas alternativas agressivas, além de parecerem desanimadoras em termos de custo e eficiência, contrariavam nossa curiosidade científica. É extremamente raro ter a oportunidade de estudar uma civilização emergente e, destruindo-a, essa oportunidade se perderia para sempre. Em vista de todas essas desvantagens, decidimos procurar uma alternativa não-agressiva."
- - - - -- Mas, espere aí - interrompeu o Físico. - Se Vocês podem defletir a órbita de pequenos mundos, porque não deslocaram a trajetória do Seu próprio mundo, deixando-o eternamente na segurança da Escuridão?
- - - - -- Porque impulsionar um asteróide de um quilômetro é uma coisa, mas impulsionar um cometa com vinte e quatro quilômetros de diâmetro é outra coisa milhares de vezes mais difícil - respondeu prontamente a Interface. - Isso porque a massa de Nosso mundo é milhares de vezes maior que a de um asteróide pequeno. Com nossos recursos de propulsão e geração de energia, poderíamos deslocar nossa órbita minimamente, e de maneira nenhuma conseguiríamos evitar Nosso aprisionamento no Sistema Solar Interior.
- - - - -- Mas, se Seu próprio mundo não poderia ser movido, então por quê não mudar toda a população para um novo mundo, novamente afastado do Sol, da Terra e da Humanidade? - Sugeriu o Ufólogo.
- - - - -- Porque, mais uma vez, haveria uma relação custo-benefício desfavorável. Em especial, deixaríamos neste mundo recursos de valor incalculável, que levamos muito tempo para construir.
- - - - -"De qualquer forma, vimos a melhor alternativa possível quando percebemos que todos os nossos receios eram causados pelo fato de vocês e Nós sermos duas coisas diferentes. Mas e se fôssemos a mesma coisa?"
- - - - -Um calafrio de compreensão percorreu os corpos dos pesquisadores.
- - - - -- Em outras palavras, todos os Nossos problemas - e também os seus - estariam resolvidos se integrássemos os seres humanos em Nossa consciência coletiva. Obviamente, no estado de então da Humanidade, isso seria impossível. Estaríamos capacitados a fundir a consciência de alguns humanos à Nossa, mas isso seria temporário, danoso e poderia ser feito apenas com um número limitado de indivíduos. Não. Precisávamos usar nossa avançada Engenharia Genética e alterar a própria essência da Humanidade, possibilitando que, um dia, finalmente, toda a espécie pudesse comungar com Nosso espírito.
- - - - -"Passamos então a não apenas observar as atividades humanas, mas também a abduzir alguns espécimens humanos e estudarmos o mapeamento entre o genoma e as funções e atividades físicas e mentais. Quando dispúnhamos de conhecimento suficiente, iniciamos nossos primeiros experimentos com a alteração do genoma.
- - - - -No começo, essas alterações eram globais, afetando grandes populações de uma vez. Projetávamos vírus especiais, capazes de realizar alterações cuidadosamente especificadas em segmentos-alvo do genoma, determinados por nossos estudos. Por razões óbvias, tínhamos maior interesse em vírus que afetassem o sistema reprodutivo e a produção de gametas, pois assim criaríamos novas gerações um pouco diferentes da anterior."
- - - - -- Em que exatamente consistiam essas alterações? - Perguntou o Biólogo.
- - - - -- Principalmente alterações na arquitetura cerebral, preparando pouco a pouco suas mentes para desenvolverem a habilidade de se unirem a outras, a Telepatia, e, além disso, a habilidade de cooperar harmoniosamente, de forma totalmente descentralizada e distribuída, com mentes mescladas, a fim de propiciar a formação de uma consciência coletiva. É claro que, por mais desenvolvida que seja nossa capacidade de prever sistemas complexos como a dinâmica dos genes em uma população, por vezes surgiam efeitos fora de hora, fora das especificações ou mesmo indesejados. Temos evidências para acreditar que o incomumente rápido aumento da estatura e inteligência da população neste século, bem como manifestações esporádicas do que vocês chamam de dons paranormais ao longo das eras, podem ser efeitos colaterais totalmente adversos de nossas manipulações.
- - - - -O Biólogo discordou, parecendo ofendido:
- - - - -- O aumento da estatura é simplesmente um efeito da melhoria das condições de alimentação e saúde da população em geral. Se o "aumento de inteligência" a que Vocês se referem é o fato da contagem absoluta média dos testes de Q.I. aumentar conforme as gerações se sucedem, isso é considerado pelos psicólogos apenas um efeito cultural; de fato, o próprio teste de Q.I. é muito questionado como métrica de medição de inteligência. Finalmente, não existem evidências conclusivas atestando a veracidade dos chamados "fenômenos paranormais".
- - - - -- Curioso - principiou o Ufólogo, em tom de falsa inocência - eu pensava que a Ufologia era enquadrada no campo de pesquisas da paranormalidade, e agora temos provas irrefutáveis comprovando várias de nossas teorias...
- - - - -- Temos, devido à Nossa própria constituição mental e Nosso avanço científico e tecnológico, meios mais acurados de sondar e medir a realidade que vocês, o que Nos dá suporte experimental para fazer as afirmações que tanto lhe perturbaram - afirmou a Interface, dirigindo-se ao Biólogo. - De qualquer forma, em breve sua própria Ciência deverá fornecer essas respostas.
- - - - -"De qualquer forma, Nossas manipulações genéticas prosseguiam na Humanidade. Chegou-se então ao ponto em que essas reformas de cunho geral, por meio de epidemias virais de reconstrução genética, estavam concluídas, e tínhamos agora de partir para reformas bem mais sutis. Vendo a Humanidade e sua dinâmica de população como um sistema complexo cujos componentes são os seres humanos, tínhamos agora de procurar os pontos hipercríticos desse sistema, isto é, aquelas pessoas cuja reprodução afetaria o genoma de grandes segmentos da população no futuro. Estudando o sistema e usando nosso conhecimento do Caos e da Complexidade..."
- - - - -- A Caoplexidade - interrompeu o Caoplexo em voz baixa.
- - - - -- ... passamos a detectar esses indivíduos e abduzi-los. Interferíamos em suas reproduções, alterando diretamente embriões ou gametas e dando aos seus filhos características que de outra forma não teriam surgido. Como esses indivíduos abduzidos eram pontos hipercríticos da evolução humana, as minúsculas perturbações introduzidas por nossas intervenções logo se propagavam assustadoramente por todo o sistema, em poucas gerações alterando o genoma de toda a espécie.
- - - - -- Esses filhos da mãe aprenderam a usar o Efeito Borboleta para seus propósitos sombrios! - Praguejou o Caoplexo.
- - - - -- Efeito o quê?
- - - - -- Em um sistema caótico, as perturbações se propagam de forma não-linear, de modo que pode acontecer de minúsculas perturbações em locais e momentos adequados alterarem o comportamento de todo o sistema no futuro. Por exemplo, o tempo, ou variação das condições meteorológicas, é um sistema caótico de âmbito planetário. Perturbações mínimas nesses sistema podem levar a comportamentos imprevisíveis em pouco tempo, por isso mesmo as previsões meteorológicas nunca são de longo prazo, nem nossos maiores computadores conseguem enxergar muito à frente na névoa do Caos. Dessa forma, em teoria uma borboleta batendo as asas em Pequim poderia ter influência em um furacão que se abatesse sobre a Flórida.
- - - - -- Essa é uma analogia fascinante - elogiou a Interface, mas como sempre foi um elogio sem calor. - Pode-se dizer, continuando com a analogia, que estávamos fazendo as "borboletas" humanas certas baterem as asas nos momentos e lugares certos para provocarem furacões.
- - - - -"De qualquer modo, apenas modificar o genoma da Humanidade não era o suficiente. Tudo o que nossas manipulações faziam era acumular uma... Faltam-Nos palavras para descrever isso, de modo que talvez devamos chamar isso de uma "tensão" acumulada no genótipo geral da população. Seria preciso um empurrãozinho, um estopim, para transformar esse potencial genotípico em uma expressão fenotípica real, num fenômeno de quebra de simetria."
- - - - -- Quebra de simetria!?
- - - - -- Quebra de simetria - apressou-se o Físico a explicar - é, explicando de forma muito simplificada, o nome dado a uma vasta gamas de fenômenos onde um sistema qualquer sofre uma súbita transição de uma fase para outra. Um exemplo clássico é o da água super-resfriada. Se a água for resfriada com muito cuidado, ela pode atingir temperaturas abaixo do ponto de congelamento sem se congelar. Isso acontece porque as moléculas na água super-resfriada não têm como escolher uma orientação específica e realizar o processo de cristalização em gelo, onde as moléculas têm orientações muito bem definidas. Mas, se um único grãozinho de poeira ou floquinho microscópico de neve cair nessa água super-resfriada, então... Zás! Todas as moléculas se alinham num tempo surpreendentemente pequeno e a água vira gelo num átimo. Acho que Eles querem dizer, com a expressão "quebra de simetria", que toda a "tendência" genética acumulada nesses milênios todos na população de indivíduos só precisa de um evento diminuto para fazer com que todos esses indivíduos se aglutinem numa entidade coletiva. Eu apenas não imagino o que poderia ser o equivalente de um grão de poeira ou floco de neve, o que serviria de semente para desencadear o processo, nesta situação.
- - - - -- Eu acho que imagino - afirmou o Caoplexo. - Veja só, Eles disseram que, devido a um evento astrofísico um tanto incomum (aproximações com Júpiter, essas coisas) o mundo Deles foi aprisionado para sempre no Sistema Solar Interior. Mas será que esse evento astrofísico era tão incomum assim que faria com que este cometa entrasse em órbita ao redor da Terra? O espaço orbital ao redor da Terra está para o Sistema Solar Interior assim como um grão de areia está para uma melancia... Acho que, embora não fossem capazes de fornecer suficiente propulsão ao Seu mundo para lançá-lo novamente para longe do Sol, Eles ainda assim alteraram minimamente a rota do cometa para trazê-lo para cá.
- - - - -- Sua dedução está correta - confirmou a Interface. - O que fizemos foi modular o uso de nossos reatores gravíticos, subtraindo energia potencial gravitacional nos momentos certos, e fazendo tênues manobras de frenagem e aceleração usando a gravidade dos corpos celestes nas proximidades de Nosso caminho. Assim, conseguimos entrar em órbita ao redor da Terra, o que não teria acontecido se não tomássemos nenhuma medida.
- - - - -- Acho que começo a ver a necessidade dessa complexa e indireta manobra - afirmou o Computata. - Embora o funcionamento exato da telepatia, que é a base física na qual a rede de consciência dos alienígenas é implementada, nos seja desconhecido, sou capaz de apostar que a transmissão de informação se dá à Velocidade da Luz. Se este mundo ficasse vagando a esmo pelo Sistema Solar Interior, então na maior parte do tempo ele ficaria a centenas de milhões de quilômetros... ou a centenas de gigâmetros, como diria nosso amigo Físico... da Terra, e os pacotes de informação demorariam dezenas de minutos para irem dos humanos modificados até os alienígenas. Para implementarem um sistema de tempo real, eles precisariam ficar próximos da Terra.
- - - - -- Seu raciocínio seria inteiramente válido se o Nosso conceito de "tempo real" fosse igual ao seu. Mas o caso é que, para Nós, a passagem do Tempo é quase indiferente. A população deste mundo é só uma fração de Nossa consciência como um todo; o nodo de consciência coletiva formado pelas unidades daqui também se comunica com outros nodos, formados por outros mundos, localizados na Escuridão.
- - - - -Se a Terra fosse outro nodo, poderíamos nos comunicar com ela sem problemas causados por longas distâncias, a despeito da limitação da Velocidade da Luz, que para Nós é indiferente. "Mas - e aí seu raciocínio se torna válido - a Terra não possui - ainda - uma consciência coletiva. Para iniciarmos esse complexo processo, realmente é necessária a proximidade de um nodo de consciência - no caso, este mundo - para interferir em tempo real - desta vez no conceito de 'tempo real' usado por vocês"
- - - - -- Isso será o evento que desencadeará a quebra de simetria - compreendeu o Físico. - O contato com uma consciência coletiva já "cristalizada" fará os humanos por sua vez se "cristalizarem" também numa consciência coletiva!
- - - - -- Suponho que isso demandará um grande, digamos, processamento extra por parte deste nodo, o que deve explicar a produção acelerada de novas unidades que vimos naquela "maternidade" de Zuiudos - lembrou o Caoplexo.
- - - - -- Exato - confirmou a Interface.
- - - - -- Mas, se a chegada do Seu mundo é o evento que quebra a simetria, porque a Humanidade inteira, incluindo nós que estamos aqui conversando com Vocês, ainda não virou uma consciência coletiva? - Perguntou o Ufólogo.
- - - - -- Suas mentes já estão cristalizadas em formas individuais, e além disso seus genótipos estão um pouco aquém do ponto perfeito. Contudo, as novas gerações de humanos serão unidades de Nossa mente, assimiladas desde a formação do cérebro em estágio fetal e sendo do nascimento à morte unidades em perfeita harmonia Conosco. As unidades humanas que vocês vêem aqui são uma prova de conceito do êxito do Nosso plano. Seus genótipos são, no que diz respeito aos Nossos propósitos, iguais aos das crianças que nascerão de agora em diante na Terra. Nós os produzimos aqui, com uma certa antecedência, para fins de verificação, antecipação e treinamento de assimilação.
- - - - -- Mas espere aí - disse o Biólogo. - Se nossas mentes não serão aglutinadas, mas as dos nossos filhos, netos e futuras gerações ad aeternum serão, então existe esperança para a Humanidade! Duvido muito que todas as crianças nas próximas gerações nascerão com o genótipo adequado para a assimilação; a Evolução é estatística, e certamente muitas crianças nascerão "imunes" à assimilação. Logo, tudo o que temos a fazer para evitar que a Humanidade seja assimilada é matar as crianças... Unificadas, ou abortá-las quando testes genéticos adequados forem desenvolvidos!
- - - - -Os companheiros do Biólogo olharam assustados para ele, talvez devido à tranquilidade com que ele mencionou uma alternativa tão macabra.
- - - - -- De fato, isso livraria a Humanidade da assimilação, mas temos quase certeza de que vocês não farão isso - opinou a Interface.
- - - - -- Por quê?
- - - - -- Os seres humanos são, de uma forma geral, extremamente apegados a seus filhos, assim como todos os mamíferos. Mesmo que pais descubram que seus filhos são unidades - e acreditamos que isso não será evidente no princípio da vida das unidades humanas - poucos pais teriam coragem de matar sua prole. Quanto a atitudes de controle por parte dos governos, estes se perderiam em infindáveis debates a respeito de algo que vocês chamam de Ética, e provavelmente considerariam o infanticídio e aborto ilegais em tais casos, e chegariam mesmo a considerar genocídio o extermínio de uma nova humanidade. Note que seus próprios colegas, que não parecem exatamente entusiasmados com o fim da Humanidade como vocês a conhecem, ficaram consternados ao ouvirem sua proposta. Dessa forma, acreditamos ser extremamente improvável que, salvo alguns casos isolados, os humanos não assimilados tomem essa medida extremada.
- - - - -- Mas algo me diz que vocês não confiam apenas na estatística - suspeitou o Caoplexo. - Suponhamos que os humanos tenham um ataque de crueldade e impiedade e falta de amor mamífero e promovam infanticídio ou genocídio dos Unificados, arruinando o Seu Plano. O que Vocês fariam então?
- - - - -- Nesse caso, teríamos de lançar mão de uma alternativa de curto prazo. Em outras palavras, realizaríamos a deflexão da órbita de um asteróide de modo a fazê-lo colidir com a Terra, destruindo a civilização humana e nos dando mais alguns milênios para tentarmos concluir nosso Plano. De fato, pensando nessa alternativa, instalamos propulsores em diversos asteróides de órbitas próximas à da Terra, de modo a podermos bombardear o planeta num prazo de no máximo um ano, caso isso seja necessário.
- - - - -- Mas e se bombardeássemos este mundo com armas nucleares e matássemos todos Vocês, impedindo a quebra de simetria que aglutinará a mente das gerações humanas futuras?
- - - - -- Consideramos improvável o sucesso de um ataque com armas nucleares empreendido por vocês contra Nosso mundo. Os mísseis que vocês usariam para lançar ogivas contra Nós seriam destruídos sem qualquer esforço por nossos armamentos, mesmo se vocês lançassem todas as suas milhares de armas nucleares. Além disso, na remota possibilidade de uma ou algumas dessas bombas Nos atingirem e causarem danos letais à Nossa biosfera artificial, ainda assim Nós teríamos tempo de ativar remotamente os propulsores nos asteróides, e a civilização humana morreria junto com a Nossa.
- - - - -- Então, não existe nenhuma esperança de determos Vocês - concluiu o Caoplexo com voz cavernosa. - Minha próxima pergunta seria "Se Vocês têm um Plano tão terrível para Nós, porque estão nos contando tudo?". Mas o segredo ou a ausência dele não fazem mais diferença. Nada pode ser feito.
- - - - -- De fato, não - confirmou a Interface. Após uma pausa em que pareceu hesitar ligeiramente, acrescentou: - Resistir é inútil.
- - - - -
- - - - -Na viagem de volta, os pesquisadores foram acompanhados não pelas pálidas unidades com quem haviam ido ao mundo alienígena, mas sim por unidades morfologicamente semelhantes, mas com pele marrom oleosa e olhos vermelhos. Obviamente, o Ufólogo admirou-se com a notável semelhança com os ETs de Varginha. A Interface explicou que aquelas eram unidades com defesas epiteliais e oftalmológicas contra a luz solar, o que seria necessário na viagem de volta, já que o dia havia raiado no ponto de aterrissagem. Como a excursão de grandes explicações já havia terminado, a Interface não os acompanhou.
- - - - -Como era de se esperar, o humor do pequeno grupo de humanos não estava em sua melhor fase. Mesmo assim, o Computata comentou:
- - - - -- Isso é um fraco consolo, mas acho que, assim como estamos assistindo ao princípio do fim da Humanidade, estamos também vendo o princípio do fim dessa consciência coletiva alienígena.
- - - - -- Como assim? Ela vai é se expandir enormemente, às custas da Humanidade!- Discordou o Físico.
- - - - -- Não exatamente. Ao começar a ter uma parte humana, ela vai ter contato com experiências que nunca teve, vai começar a sentir coisas que nunca sentiu, e isso vai começar a mudá-la profundamente. Além do mais, a Terra consegue agüentar, com nossa tecnologia atual, uns oito bilhões de humanos. Com a tecnologia avançadíssima deles, e com prováveis manipulações genéticas mais "invasivas", provavelmente serão muitas vezes mais bilhões de humanos Unificados. Assim, existirão algumas dezenas de milhões de unidades no mundo em órbita e dezenas de bilhões de unidades humanas aqui na Terra; por uma simples questão de representatividade numérica, a consciência coletiva será mais absorvida pela Humanidade do que a Humanidade absorvida por ela. Quem sabe até os Unificados do futuro não serão criaturas sensíveis e emotivas como são os humanos individuais hoje, e não aqueles seres sem alma, aqueles robôs de carne e osso, que vimos no cometa?
- - - - -- Talvez - concordou o Ufólogo. - Além do mais, talvez a assimilação da Humanidade seja, no fundo, uma coisa boa. Nos parece algo horroroso e sinistro porque estamos acostumados com a individualidade mas, analisando friamente a questão, pode-se ver inúmeras vantagens. Todas as guerras finalmente acabarão para sempre, não haverá mais fome, miséria ou qualquer tipo de sofrimento físico, e o fato de todos partilharem de uma mente muito maior, parecida com a de um deus, livrará todos de todas as angústias que afligem a alma humana. Talvez a Humanidade finalmente atinja a Felicidade... Supondo que a coletividade alienígena seja feliz, não perguntamos isso a ela. Particularmente, acho que Eles transcenderam tanto a Felicidade quanto a Tristeza.
- - - - -"É curioso como isso lembra as profecias das religiões. Parece o Apocalipse, onde uma fase de grandes trevas e sofrimentos serve de prelúdio para uma Era de Ouro eterna. Talvez todas essas profecias fossem na verdade lembranças truncadas e distorcidas de abduzidos que, há séculos ou milênios atrás, tiveram contato com a mente dos alienígenas e vislumbraram o Plano."
- - - - -- Talvez - disse o Caoplexo, por sua vez. - De qualquer forma, passado o choque inicial, refleti sobre a situação de nossa espécie e concluí que, muito provavelmente, a Humanidade como nós a conhecemos não será extinta.
- - - - -- Como isso poderia não acontecer? Você mesmo concluiu que não há saída. - Não há saída para a Humanidade na Terra. Mas e quanto ao espaço... A Fronteira Final? Certamente, serão necessárias muitas décadas até que o último indivíduo humano desapareça da face da Terra. Esse espaço de tempo é suficientemente grande para que nossa tecnologia evolua o bastante para que muitas pessoas migrem para o espaço. Nesse novo meio, a Humanidade poderia continuar se desenvolvendo e se expandindo com uma liberdade que nunca teve. Uma potencial que só podemos vislumbrar a partir do que a Interface nos contou da Escuridão. Livres da influência Deles, esses humanos dificilmente se tornariam consciências coletivas, ou nodos dessa inteligência. Além do mais, nossa Genética estaria então tão avançada que poderíamos talvez "corrigir" o genoma das futuras crianças, tirando o potencial para fusão mental.
- - - - -- Mas será que Eles concordariam com isso? - Questionou o Ufólogo, desconfiado. - Será que não vão destruir a civilização a força, aquelas coisas?
- - - - -- Fossem Eles emotivos como nós, talvez tomassem alguma medida baseada em puro medo, como parece ser isso que você descreve. Mas Eles são racionais demais, e logo veriam que uma versão espacial da Humanidade não representaria perigo. Provavelmente viveríamos em pequenos mundos artificiais, como Eles, e cada um desses mundos seria insignificante comparado com a Terra, não representando qualquer ameaça.
- - - - -- Mas e se a Humanidade se multiplicasse muito no espaço e, um dia, esses pequenos mundos se unissem para tentar reclamar o Planeta Mãe novamente?
- - - - -- A troco de quê? Quando isso acontecesse, há séculos a Humanidade teria abandonado a Terra, e para os humanos de então o Planeta Mãe seria apenas uma lembrança e um pálido ponto azul perdido em distâncias imensas. Talvez eles tivessem se adaptado tanto ao espaço (por exemplo, vivendo em ambiente de microgravidade) que a Terra fosse até considerada inabitável por eles. Finalmente, mesmo que por uma improbabilidade histórica parte desses humanos do futuro resolvesse empreender uma "cruzada" para "livrar" a "Terra Santa" dos "invasores" alienígenas, essa "cruzada" requereria a reunião de vastos recursos espalhados por terâmetros cúbicos de espaço, e tenho minhas dúvidas se uma operação militar dessas é realizável.
- - - - -- Acho plausível sua hipótese de um êxodo para o espaço - opinou o Biólogo. - Talvez até viveremos o suficiente para sabermos se ela se realizará ou não. Algo me diz que, brevemente, começaremos a observar os primeiros efeitos da assimilação. Talvez, neste momento, uma criança Unificada já esteja nascendo em algum lugar da Terra.
- - - - -
- - - - -De fato, em uma sala de cirurgia de uma grande maternidade, uma mulher jovem acabava de dar à luz um bebê. O tradicional anúncio de "É um menino!" foi dado entusiasticamente pelo médico que, também tradicionalmente, ergueu o bebê pelos pés e deu um tapinha em seu bumbum. Para surpresa do médico, o bebê não chorou, nem com o segundo tapinha. Em vez disso, moveu seu pescoço com incomum destreza virando seu rostinho na direção do médico. E então abriu seus olhinhos apertados e inchados de recém-nascido. O médico quase largou o bebê com a assustadora sensação que teve ao olhar naqueles olhinhos. A sensação de que o negro das pupilas daqueles olhinhos subitamente crescera até se tornar o próprio Cosmos, fagocitando o médico, que se sentiu insignificante ante a uma Presença incomensuravelmente superior à sua. Mas, então, tão rapidamente quanto vieram, as Trevas saídas dos olhos do bebê desapareceram. Olhando distraidamente em outra direção, como se acabasse de lembrar alguma coisa, o bebê fechou novamente os olhinhos, e começou a chorar. Era a atitude racional a se tomar, já que os pulmões daquela unidade precisavam começar a trabalhar para manter seu correto funcionamento.

Lúcio de Souza Coelho
omnilandia.blogspot.com

Contos e Livros Virtuais de
Ficção Científica e Fantástica