ESCURIDÃO

O que aconteceria se o Sol apagasse?

Giovanna Rubbo

Seu nome era Lavínia.

E era um privilégio ter um nome naquele lugar onde todos, antes criaturas racionais, agora agiam como animais, divididos apenas entre Fortes e Fracos.

Lavínia sabia que um dia houvera uma coisa chamada luz. Sim, sua tataravó, quando era apenas um filhote, havia visto uma coisa chamada Sol, que brilhava sobre a Terra com sua luz, e a noite, a escuridão, durava apenas 12 horas.

Além da luz, com o Sol havia cores e calor, e de noite as pessoas usavam uma tal de energia elétrica para enxergarem. Até que um dia, a luz sumiu. O Sol apagou.

Aquela geração entrou em pânico. No começo, ainda havia a luz elétrica, mas logo veio o frio, congelando rios e mares, e com ele a escuridão eterna. Tudo convertido em trevas.

Todas as plantas conhecidas murcharam, e uma peste terrível se alastrou, matando dois terços da vida existente no planeta Terra, que agora era chamado de Buraco Negro: um enorme deserto escuro, congelado e cinzento.

O restante da população que sobrou se dividiu em dois grupos conforme se passaram os anos. Os Fracos, que não conseguiram evoluir, se abrigaram em cavernas profundas perto do núcleo do planeta, onde ainda havia calor, alimentando-se de certas ervas que ali cresciam.

Os Fortes, como Lavínia, viviam na superfície. Eram seres humanos de DNA mais forte que evoluíram para criaturas quase selvagens, com olhos enormes que enxergavam no escuro e sangue frio, como de mortos, que permitia que eles agüentassem as baixíssimas temperaturas.

Não se alimentavam de plantas como os Fracos. Alguns animais também haviam evoluído, em sua maioria répteis de sangue frio, pingüins e pássaros estranhos e coloridos, que sobreviviam comendo folhas de uma espécie de árvore gigante, que haviam crescido no frio e no escuro.

Os Fortes eram como vampiros: se alimentavam do sangue desses animais. Mas a ambição humana também é algo que permaneceu e evoluiu. Os Fortes tinham um objetivo: encontrar a caverna subterrânea dos Fracos e provar aquele sangue quente e humano, o banquete que os aguardava.

Os Fortes eram divididos em clãs nômades com cerca de dez pessoas. Cruzavam continentes e mares congelados, sempre buscando a entrada secreta da caverna dos Fracos. Ás vezes haviam guerras entre clãs, mas o clã de Lavínia era um dos mais fortes.

Ela era a filha da líder do clã, Safira. No clã havia também o assistente de sua mãe, Rodolfo. No resto do clã, composto por cinco fêmeas e três machos, ninguém tinha nome.

Um dia, quando atravessavam a América do Sul, um dos lugares onde havia mais fauna e flora naquele deserto sem fim, cruzaram com outro clã. Era guiado por Kátia, uma mulher de rosto sem expressão. O clã dela possuía treze membros.

Os dois clãs se posicionaram para lutar, rosnando e expondo os dentes, mas Kátia deu um grito, ordenando para que seu clã se calasse. O clã dela falava a mesma língua que o clã de Safira.

- Salve! – gritou Kátia para Safira. – Não queremos guerra. Estamos procurando a entrada para o buraco dos Fracos e acreditamos que estamos perto. Você e seu bando pode se unir a nós, e dividiremos o sangue dos Fracos igualmente.

- Salve! – respondeu Safira. – Se é assim, aceitamos seu acordo de união.

Kátia também tinha um filho, Markus, o único que tinha nome no clã, além dela própria. Lavínia não gostava da maneira como Markus olhava para ela, com seus enormes olhos verdes.

Na hora em que os clãs iam se deitar para dormir, Kátia fez um sinal para o seu bando e partiu para cima de Safira, usando garras e dentes para dilacerar sua garganta. O resto do bando caiu também sobre o clã de Lavínia. A garota correu, apavorada, e conseguiu escapar graças à sua velocidade.

Encolheu-se perto da raiz de uma das grandes árvores, sem fazer nenhum ruído. Kátia os traíra. Era tudo uma jogada para conseguir o sangue dos seus iguais. Esse pensamento causou repulsa em Lavínia. Nunca havia ouvido falar nisso antes. Canibalismo. Mas não era a mesma coisa fazer isso com os Fracos?

Estava sozinha agora. Não tinha coragem de pedir ajuda para outro clã. Esse mundo era feito de criaturas vis e cruéis. Não existia piedade, e ela deveria se lembrar disso para se manter viva. Estranhou ao sentir uma coisa molhada em seus olhos. Água. A lágrima rolou e logo virou uma minúscula pedrinha de gelo.

Foi então que ela escutou um ruído atrás de si, mas quando se virou para ver de onde vinha aquele barulho, já era tarde. Uma mão tampou sua boca com um pano, e braços fortes a aprisionaram.

No começo ela tentou lutar, mas logo ficou imóvel. Aqueles braços que a apertavam e a puxavam para debaixo das raízes da árvore causavam uma sensação estranha em sua pele. Uma coisa que ela nunca sentira ou pudera imaginar.

Calor, disse uma voz em sua mente. Por que realmente aqueles braços eram quentes, quentes como antes todos os seres humanos haviam sido.

E ela deixou-se levar para cada vez mais no fundo da terra.

***

Lavínia estava em um lugar quente. Era bom, agradável. Diferente do mundo gelado que ela conhecia. Tentou abrir seus olhos, grandes como os de um personagem de desenho japonês, mas alguma coisa os feria cada vez que tentava.

- Ela está acordando! – disse uma voz masculina. – Derek! Derek! Saía de peto dela! Ela vai fincar essas pressas horríveis na sua garganta!

- Ele está mesmo merecendo! – gritou outra voz, dessa vez feminina. - Ele insiste na história de que esse monstrinho quase morreu nas garras de outro clã, e que estava sozinha no mundo. Mas aposto que ela achou a entrada da nossa caverna e estava esperando seus amiguinhos para nos atacar.

- Calem a boca! – disse uma voz de homem, que soou bem perto de Lavínia. – Consegue me ouvir?

Ela tentou abrir os olhos de novo, mas por mais que se esforçasse, não conseguia mantê-los abertos.

- Ainda não consegue abrir os olhos por causa da luz. – disse novamente a voz do lado dela. – Mas pode me ouvir?

- Posso. – respondeu ela, trêmula. – Você disse luz?

- Sim. – respondeu a voz. – Meu nome é Derek. Bem vindo ao mundo subterrâneo.

- Meu nome é Lavínia. – disse ela, ainda de olhos fechados. – Prometo que não vou machucar ninguém se me deixarem ficar aqui.

- Você gosta daqui?

- Gosto. Gostei do calor. – era uma sensação tão deliciosa em sua pele, que ela achou que morreria se a obrigassem a se afastar daquilo e voltar para o frio cortante lá de cima.

Nesse instante, ela conseguiu finalmente abrir os olhos. E ficou paralisada.

O cenário diante dela não parecia uma caverna escura, como sempre imaginara. Havia pequenos chalés de madeira por todos os lados, plantações de grãos e frutos que ela nunca vira, bem diferente das ervas mortas e amargas que todos lá em cima supunham que os Fracos se alimentavam.

E havia bicicletas, jardins, cães, gatos, água em fontes e outras coisas maravilhosas, e com uma temperatura agradável. Lavínia se levantou devagar. Havia pessoas por todos os lados, e tantas cores! Adultos, idosos e crianças, brincando ou fazendo tarefas comuns, como lavar roupa nas fontes. Ela notou que aquelas pessoas não tinham pressas, e seus olhos eram pequenos. Era como as histórias que ouvia dos mais velhos: estava em uma cidade.

Tudo era vivo, feliz. E a melhor parte: a luz.

A luz vinha das paredes e do teto da cidade subterrânea. Primeiro ela pensou que eram estrelas mais potentes do que as que ela via da superfície, que não eram capazes de iluminar nada. Mas quando se aproximou das pequenas fontes de luz, viu que eram pequenos diamantes fluorescentes.

Encantada, percebeu que a garota que olhava para ela de dentro das pedras era ela mesma, Lavínia. Os olhos cor de violeta, o cabelo escuro e comprido, a pele pálida como de todos os outros e os lábios finos lhe lembravam Safira, mas uma Safira jovem e sorridente, como nunca vira.

Derek se aproximou dela.

- É incrível, não é? – perguntou ele.

Ela concordou com a cabeça.

- Os diamantes são uma fonte de luz inesgotável, e o calor vem do solo, onde existe uma lava que vai demorar pelo menos bilhões de anos para esfriar. A comida é cultivada por nós, e a água vem de buracos feitos na terra e que sobem até as geleiras, derretendo o gelo ao se aproximar do solo.

- É a coisa mais linda que eu já vi. – ela olhou para ele em tom de súplica. – Eu posso mesmo ficar aqui? Para sempre?

Lavínia nunca tivera um lugar em que ficasse muito tempo, um lugar para chamar de lar. E alguma coisa dentro dela não podia se imaginar longe dali.

Derek sorriu.

- Você pode ficar, contando que não machuque ninguém. Essa é a nossa lei.

Uma mulher de cabelos claros e um homem já grisalho se aproximaram deles. Usavam roupas coloridas, diferentes das roupas escuras que Lavínia e todos que viviam na superfície preferiam usar.

- Seja bem vinda, forasteira! – gritou a mulher, em tom vibrante. Era a mesma voz que ela ouvira falar enquanto não podia abrir os olhos. – Espero que não tenha contado para o seu clã sanguinário onde é fica entrada da nossa cidade.

- Eu não tenho clã. – respondeu ela, simplesmente.

- Lavínia, - disse Derek – Esses são Flor e Caio, meus vizinhos.

Ela fez um aceno envergonhado para o casal, mas logo foi puxada por Derek, que começou a lhe mostrar a cidade. As pessoas acenavam para eles, sem interromper seus afazeres: cuidar do gado, alimentar as galinhas, regar a plantação, lavar a roupa e esticá-la em esteiras no chão, para que secassem... Parecia que todos tinham algo para fazer, uma tarefa para contribuir com toda a sociedade. Era como se fossem todos uma grande família, como ela jamais vira em nenhum clã dos Fortes.

Derek segurou sua mão e juntos subiram em uma colina verde, de onde podiam ver parte da cidade. Era tão grande que parecia não ter fim. Existiam pessoas do mundo inteiro vivendo ali.

- Vocês não têm medo de serem atacados? – perguntou ela.

- Na verdade, não. – respondeu Derek, depois de um breve momento. - Os seres lá de cima nunca vão encontrar nossas entradas secretas, mas sempre tem alguém vigiando-as. E logo acabarão matando uns aos outros, você verá. – depois a encarou. – Você acha que as criaturas lá de cima são mais do que a gente, que poderiam nos vencer?

Ela refletiu um pouco.

- Não. Eles não são muitos, e estão mesmo sempre atacando um ao outro por sangue e territórios. – ela fez uma pausa. – Na verdade, se tornaram tão animalescos que eles são os Fracos. Vocês são os Fortes.

- E você? – pergunta ele.

- Quero ser Forte. Da maneira correta.

- Acredita que poderá se adaptar com o nosso meio de vida? Eu disse que ficaria responsável por você.

Isso a fez sorrir.

- Fique tranqüilo. – depois, olhou para a cidade ao seu redor, com as pessoas começando a se recolher em seus chalés. Era tudo como um sonho irreal. – Certo instinto guardado aqui dentro me diz que eu estou em casa.

Em uma árvore próxima, um pássaro de penas coloridas começou a cantar, enquanto a cidade adormecia lentamente.

Lavínia não ia mais precisar encarar o escuro. Não mais.

Giovanna Rubbo

Enviado para o Recanto das Letras em 28/02/2011

Contos e Livros Virtuais
de Ficção CIENTÍFICA
e Ficção FANTÁSTICA