Orgulho e Ressentimento
A vitória de Xanti durara pouco. Sua mãe chegou a cumprir pena prisional pelo golpe, mas se converteu ao islamismo e pouco tempo depois, sendo uma mulher ainda muito bonita (Xanti reconhecia isso apenas no fundo sem admiti-lo jamais pra si mesmo), conseguiu se tornar a terceira, e favorita esposa de um empresário riquíssimo. Com isso, seu velho sonho se realizara, adentrara a elite econômica da sociedade.
Enquanto isso, a vida dele não ia bem. Seu único sucesso relativo estava nos estudos, a que se dedicara com afinco, mas não conseguia se estabilizar em nenhum emprego, passando a, por muito tempo, viver apenas da herança que ia sendo consumida numa velocidade preocupante por uma inflação descontrolada. Também não ia bem em sua vida afetiva e social.
Um dia, sua mãe o chamou. Ele recusou mas ela insistiu, e acabaram se encontrando numa empresa de informática sob controle de seu marido onde ela assumira um posto de chefia. Encontrá-la não foi nada fácil. Toda a mágoa passada veio a tona, e ele tentou se concentrar nos relances que após um certo tempo, revendo vídeos antigos, conseguiu reavivar em sua memória dos poucos bons momentos em que tivera com ela ainda na primeira infância.
Surpreendentemente, ela estava muito mudada para melhor em todos os aspectos. Tratamentos de beleza caros, que antes lhe seriam inacessíveis, lhe garantiram uma beleza formidável, e ela se mostrou amável e firmemente interessada em fazer alguma coisa para melhorar sua relação. Dissera que se arrependera de tudo o que fizera, que encontrara um novo modo de vida, e queria recompensar o filho pelos anos de negligência oferecendo-o um bom emprego na empresa que chefiava. Admitiu que mesmo tendo certeza de que fora ele que roubara o dinheiro, o perdoava e se achava merecedora do revés, sendo seu filho apenas um veículo nas mãos divinas para que aprendesse uma lição de vida.
Mas Xanti não era do tipo que abandonava facilmente o passado. Sentiu seu orgulho ferido. Não duvidava da sinceridade dela, mas não queria dever-lhe coisa alguma. O máximo que pôde fazer foi não ser rude ao recusar a proposta, e insistir que não acreditava que pudessem recuperar uma relação que na verdade jamais existiu.
Ela lamentou e não insistiu muito, mas aceitou a decisão do filho garantindo que, caso ele mudasse de idéia, a proposta ainda estaria de pé.
Sentiu-se bem por ter resistido e não ter se vendido, embora admitisse que o fizera mais por ressentimento do que por virtude. Mas sua situação não melhorou. Embora tenha conseguido, após finalizar seus estudos, uma função numa empresa de Inteligência Artificial num cargo que exigia presença diária, visto que lidava com conteúdos por demais sigilosos para serem transmitidos, e embora tenha tido bons resultados nesse emprego, aprendido muito e tido algum reconhecimento, isso não compensou a derrocada financeira.
Vendeu o apartamento onde morou toda a vida, onde tinha muitas boas lembranças de sua vida com seu pai, tentando se convencer, por outro lado, que se afastava das lembranças ruins. Passou a morar numa casa mais afastada e menor, embora graciosa, mas que se tornou tão caótica quanto seus próprios sentimentos, que o impediam de ter amizades duradouras e tinham o estranho resultado de começar relacionamentos afetivos muito bem, com namoradas profundamente apaixonadas, mas que pouco depois se desiludiam.
Uma crise financeira ainda pior afetou não só a vida dele, mas a de todos os que não pertenciam a elite. Investimentos impensados corroeram-lhe por completo as finanças e quando tudo parecia não poder piorar, perdeu seu emprego devido a questões que nada tinham a ver com sua competência.
Conseguiu, com alguma sorte e possivelmente alguma influência remota de sua mãe que ele preferia repudiar, um emprego com um salário até melhor. Mas embora fosse num dos maiores laboratórios de IA do mundo, que já estava em vias de produzir a primeira e rudimentar simulação de consciência realmente convincente, não se sentiu realizado, visto que ficou encalhado em funções subalternas e monótonas.
Para piorar, fora condenado pelo uso de softwares ilegais em seu projeto acadêmico final num processo que também vitimou centenas de outros estudantes e profissionais do ramo, e a multa corróia a maior parte de seu salário.
Mudou de cidade aproveitando uma oportunidade de remanejamento de funcionários de sua empresa, onde o custo de vida era menor e a vida mais tranquila. E por um tempo teve alguma paz. Foi então que recebeu o comunicado que de a oferta de congelamento que fora oferecida a seu pai podia ser herdada, em consideração pelos veteranos de guerra.
No começo não gostava da idéia. A incerteza sobre o que aconteceria no futuro e o preconceito com a idéia de ter o corpo congelado a temperaturas abaixo de -250 graus o faziam até mesmo ter pesadelos. Sabia que muitos das criogenados haviam morrido ou não haviam sido descongeladas por terem sido constatadas dificuldades imprevistas no processo de reanimação. Sabia também que um dos motivos de ter sido agraciado com a oferta era que muitas empresas estavam precisando de cobaias para experiências na tentativa de superar problema graves com a tecnologia criogênica. As primeiras pessoas que haviam sido congeladas, inclusive o famoso Dr. Algleison, nunca haviam sido trazidas de volta, devido ao temor de que o processo primitivo trouxesse dificuldades intransponíveis.
Mesmo assim, estudou a proposta e com o tempo foi ficando menos receoso, começando a considerar a possibilidade e passando a cumprir as exigências para que o processo fosse concretizado, embora no fundo ainda não achasse que teria coragem de faze-lo.
Mas o mundo não melhorava. A crise global se acentuava e havia sinais de uma nova guerra. Para piorar ficara sabendo que uma tardia e minuciosa investigação nos arquivos militares de sua cidade anterior concluíra a ocorrência de um uso irregular de uma armadura com sistema de camuflagem, conforme o avisara o mesmo amigo de seu pai que lhe viabilizara o uso da indumentária. Este amigo já se precavera para evitar ser descoberto, mas não era impossível, ainda que pouco provável, que de algum modo chegassem a Xanti. Se isso acontecesse, seguramente seria preso.
E então, nesse ínterim, sua mãe o chamou novamente para insistir na proposta, prometendo-lhe até mesmo um cargo de chefia.
Interiormente se detestou por ser tão orgulhoso a ponto de não abrir mão do ressentimento e recusar obstinadamente. Ela, que estava ainda mais bonita e de certo havia sido beneficiada com um inovador processo de rejuvenescimento que prometia lhe estender a vida, (tais pessoas já começavam a ser chamadas de imortais), chegou a quase implorar, mas diante da irredutibilidade teimosa do filho perdeu a paciência, e passou da benevolência à ameaça.
Disse-lhe que as empresas de seu marido, e outras nas quais ele tinha influência, controlavam praticamente todas as possibilidades de emprego que ele poderia ter, e que se insistisse em ser orgulhoso ela poderia conseguir sua demissão e garantir que nunca mais conseguisse emprego novamente.
Foi nesse momento que ele subitamente passou a levar a proposta do congelamento a sério, e num golpe de mestre retrucou-lhe dizendo. Então você pode me impedir de trabalhar em todas as empresas do país não é mesmo? Mas poderá fazê-lo daqui a 200 anos?
A cara de estupefação dela deu a ele uma enorme satisfação.
As Anfitriãs
Acordou subitamente. Estava sentado numa cadeira num ambiente quase totalmente escuro. Estava sem sua armadura, apenas com a veste simples que usava por baixo. Mal seus olhos entraram em foco para distinguir outra cadeira a sua frente, uma forte luz surgiu de uma abertura súbita, onde pôde vislumbrar uma silhueta feminina.
Uma mulher atlética muito atraente, embora praticamente sem seios, cabelos curtos e em uma veste justa, se aproximou em passos lentos e sentou-se à frente dele. Fitou-lhe em tom misterioso e falou. Seja bem vindo Sr. Xanti. Eu sou Vemdamini, sou uma Mente Artificial à serviço do VEMDAN permanentemente instalada neste corpo ginóide. E esta é Garinei Hira, também uma MA que cuida da segurança desta estação. Só então percebeu a enorme tetrahumana ao lado dele. Cinzenta, como era típico, olhos completamente negros e um tanto maiores que o normal, que apresentavam uma expressão agressiva.
Quero antes de tudo me desculpar pela brutalidade do evento que lhe trouxe até este local. Continuou Vemdamini. Mas posso lhe garantir que não teríamos lançado mão de recursos tão drásticos se não tivéssemos um motivo da maior importância.
Finalmente saindo de um estado de torpor, ele conseguiu dizer alguma coisa. Vocês estão usando tecnologias gravitacionais proibidas!
Sim Sr. Xanti, e devemos solicitar encarecidamente que entenda nossos propósitos e não nos denuncie ao SISTEMA.
Tarde demais. Minhas MAs de certo já o fizeram.
Esperamos que não. Tomamos providências para evitar que aconteça.
E por quanto tempo acham que o SISTEMA não irá concluir que estão escondendo alguma coisa?
Tempo suficiente para que tomemos outras e definitivas providências.
A tetrahumana caminhou à volta dele, num misto de curiosidade e postura ameaçadora.
Parece que estamos numa situação pior do que eu pensava.
Senhor Xanti. Sabemos que não gosta do SISTEMA. Que veio para cá para fugir de sua influência. Então esperamos que simpatize com a idéia de que trabalhamos numa alternativa existencial que pode tornar o SISTEMA dispensável.
Estou ouvindo.
O único real motivo que justifica a existência do SISTEMA é a segurança da civilização. Mas a humanidade está em extinção e nos são tiradas uma série de possibilidades. Pretendemos oferecer é uma alternativa onde teremos mais liberdade, mas com o mesmo grau de segurança que o SISTEMA pode oferecer. E para isso, é crucial desenvolvermos tecnologias de controle gravitacional.
Vocês querem criar um outro tipo de SISTEMA?!
Basicamente.
E que liberdades seriam essas?
Em primeiro lugar, os direitos existenciais. Queremos que aqueles que desejem cessar sua existência tenham esse direito, e que os que querem experimentar novas formas de existência tenham possibilidades inteiramente novas, como acesso irrestrito à informação, desenvolvimento científico e exploração espacial sem interferências.
Ou seja, a mesmíssima coisa que todo e qualquer crítico do SISTEMA quer. Inclusive eu. Exceto essa de poder deixar de existir.
É importante. Com isso nos livraríamos de uma série de ameaças, como o Inexistencialismo.
Mas as alas mais radicais dos Inexistencialistas não querem apenas deixar de existir, mas sim aniquilar todo o universo!
Serão lhes oferecidas soluções onde podem simular esse feito, bem como alterações de conteúdo cerebral em níveis nunca tentados.
Jamais aceitariam.
Os que persistirem no erro devem ser eliminados. Não é isso mesmo que eles querem? Com o benefício que deixam de ameaçar os que preferem existir.
Bem. Isso implicaria em matar um bocado de gente. Mas esse não é problema. O que quero saber é como esperam que o SISTEMA aceite essa proposta.
Trabalhamos numa alternativa que pode isolar este planeta e mantê-lo a salvo do SISTEMA, enquanto desenvolvemos a tecnologia de controle gravitônico que nos permitirá sobrepujá-lo.
Não sejam ingênuas. Ao menor sinal disso o SISTEMA ativaria o GRADIVIND e os destruiria em segundos!
O SISTEMA não pode ativar o GRADIVIND sozinho, isso tem que ser feito por um número mínimo de pessoas que convoquem a Deusa da Gravidade.
Não tente me fazer de idiota! Isso se aplica somente a ameaças externas. Qualquer alteração direta na malha gravitônica será sentida imediatamente e nesse caso o GRADIVIND é acionado automaticamente! A Divindade Gravitacional desintegraria esse planeta num estalar de dedos se achasse isso necessário.
Temos meios de prevenir isso.
O quê?! Aqui, no VEMDAN? Em DENSEN?! Ou mesmo em todo o NERUS?! Impossível! Não poderiam competir com os recursos que o GRADIVIND pode controlar. A Divindade Gravitacional tem sob seu controle dois outros planetas jovianos e o próprio Sol. Vocês não teriam a menor chance mesmo que já tivessem um sistema gravitônico alternativo em plena operação.
Vemdamini pareceu demonstrar impaciência. E Garinei não apenas parecia. Ela tomou a palavra, num tom de voz claramente inumano.
Sr Xanti. Sabemos dos perigos em enfrentar o GRADIVIND. E é por isso mesmo que estamos... Pedindo! A sua cooperação.
Digamos que consigam. É impossível dois sistemas de controle diferentes manipularem a malha gravitônica. O SISTEMA seria destruído. Todos os backups dos cérebros móveis se perderiam. Pessoas poderiam morrer definitivamente. E as MAs no mínimo perderiam consistência mental. Muitas morreriam... "Kethi poderia morrer." Pensou.
Podemos backupear as MAs numa infinidade de sistemas alternativos enquanto assumimos a malha gravit...
Querem parar de insultar minha inteligência! Ele perdeu a paciência. Sem um backup intacto na subestrutura gravitônica as mentes artificiais se desagregam. Cada sistema de informação desenvolveria uma existência em separado e perderiam sua conexão original. Isso é equivalente a morrer! Vocês mesmas estariam condenadas!
Vemdamini fez um gesto para que a colega se afastasse. E demonstrando nítida impaciência, insistiu. Senhor Xanti. Tudo o que pedimos é que nos dê um tempo para completarmos nossas pesquisas e finalizarmos nossa alternativa. Não estamos falando na destruição do SISTEMA como um todo, mas de um modo inteiramente novo de gerir o Sistema Solar.
Senhora Vemdamini... E eu estou falando que criar uma sistema gravitônico alternativo só poderia ter dois resultados. Ou a ativação do GRADIVIND e a destruição de vocês, ou a destruição do SISTEMA!
Ela ergueu a cabeça, fechou os olhos e suspirou. E olhando novamente para ele, perdeu qualquer resquício de polidez. O que você pensa que sabe sobre isso!? Você é apenas um analista medíocre de MAs, e está falando com entidades que estudam e produzem MAs há séculos antes de você...
Podia ser verdade, mas ela própria hesitou pela má escolha da analogia, que ele, mesmo ficando intrigado com parte do que ela disse, não deixou passar o desleixo. E vocês estão falando com alguém que trabalhava com inteligência artificial 4 mil anos antes de vocês pensarem em existir!
Garinai arregalou os olhos, se curvou ante ele, mas a companheira lhe pediu calma, e se esforçou para se acalmar. Enquanto ele ficou perturbado por ouvi-la dizer que eram produtoras de MAs.
Tudo bem Senhor Xanti... Vamos recomeçar. Estamos pedindo sua ajuda. Não coloque o SISTEMA contra nós!
Seria verdade? O VEMDAN, além de armas, também tinha experiência avançada na produção de MAs? Poderiam ajudá-lo a controlar Kethi? Convencê-la a se livrar de certa idéia fixa? Ou prevenir uma coisa ainda pior que...
Parou de pensar. E ante o olhar insistente das anfitriãs, se lembrou de toda a situação.
Bem. Posso fingir que esqueci que além de violadoras de leis do SISTEMA vocês me perseguiram, me sequestraram e usaram em mim uma arma sensorial. Então ele se levantou, alisando a roupa que tinha. Então vocês podem devolver a minha armadura, e eu sairei por aquela porta onde vocês deixarão uma nave me esperando para me levar de volta a KOLARA. E quando eu chegar lá e constatar que está tudo bem com as minhas MAs, vou CONSIDERAR... Seu pedido.
E deu-lhes as costas caminhando para a porta aberta, até se dar conta de que havia uma outra porta do lado oposto, mais discreta. E enquanto passava por Vemdamini, ainda sentada. A ouviu dizer. Infelizmente não podemos permitir que parta. No que ele respondeu prontamente. Felizmente, não podem me impedir. E chegou até a outra porta, tateando o painel de controle.
Não abria, então ele colocou a dedo no orifício de detecção de DNA. Ele o identificaria e, se houvesse um mínimo de integração e sanidade naquele VEMDAN, teria que obedecer-lhe, uma vez que MAs não podiam, salvo em casos excepcionais, restringir humanos. Mas notou que o sistema de trava estava desconectado de qualquer Infosfera.
Vemdamini chegou ao seu lado e apelou. Sr. Xanti... Temos recursos inigualáveis para gerenciar MAs. Sabemos que gosta muito da sua MA, Kethi... Mas que tem seus problemas com ela. Então farei apenas uma pergunta: Não gostaria de resolvê-los?
Por mais inverossímil que parecesse, o simples pensamento era tentador. Poderia colocar algum juízo em Kethi no que se referia a certas insistências? Poderia livrá-la da idéia obstinada de ter um corpo?
Mas 4 mil anos não foram suficientes para tornar Xanti menos teimoso. Preferiu retaliar, ainda indignado pela sua abdução. E eu farei só uma pergunta: Vai abrir essa porta ou eu terei que arrombá-la?
Ela nada fez, e ele então pôs as mãos na porta e a forçou a abrir, deslizando-a para dentro da parede, saindo por um corredor.
Esperarei até que mude de idéia Senhor Xanti! Gritou Vemdamini. Não há como sair daqui!
Esperarei que devolvam minha armadura! Ele respondeu sem olhar para trás.
Vemdamini virou-se para uma furiosa Garinei. Ele é difícil. Eu desisto. Dê-lhe um tempo para ver se muda de idéia e, como provavelmente não mudará, faça do seu jeito. A tetrahumana apenas franziu as quase inexistentes sobrancelhas.
A Destruição do SISTEMA...
...era uma idéia que não lhe agrava. Gostava sim, de se ver livre dele, mas admitia seu valor para a estabilidade da civilização. Mesmo uma ausência temporária poderia ser catastrófica, ainda que fosse de imediato substituído por outro equivalente. O risco era enorme, em especial para as MAs. Sabia que uma interrupção na malha gravitônica causaria em todas as Mentes que não tivessem um cérebro o problema da Meta-Continuidade Mental, isto é, a interrupção tornava impossível saber se a mente que haveria depois seria de fato contínua a que havia antes.
Ela poderia achar que sim, ter todas as memórias e experiências da anterior e uma subjetividade genuína. Mas essa anterior poderia ter desaparecido para sempre. Era como você sumir, morrer, mas um outro ser cópia continuar existindo achando que é você, enquanto o você original mergulhava na inexistência.
Ele fugia da civilização. Fugia do SISTEMA, mas apenas de sua influência mais direta. Não de sua proteção que se estendia um tanto além de suas regras mais rígidas. Proteção que ao menos em parte se aplicava ali. Ele sabia o que estava fazendo, sabia que não podiam detê-lo sem causar uma infração ainda mais grave que poderia provocar uma retaliação do SISTEMA antes mesmo do que todos esperavam.
Andava por um corredor que tinha várias portas laterais, mas ele seguiu até o final e desceu por uma escada que dava num saguão. Alguns estranhos maquinários pareciam expostos como se fossem relíquias num museu. Ele os ignorou e rumou para uma porta frontal que, pelo que deduzia da arquitetura, devia levar a algum lugar mais relevante. Não andava totalmente desorientado, o ambiente tinha certa familiaridade com o da base KOLARA.
A porta estava fechada, mas desta vez se comunicava com o sistema central. Usou o dedo e anunciou sua identificação de DNA, o sistema obedeceu e abriu a porta. Passou por um corredor com as laterais de vidro, de um lado dando para uma planície desértica açoitada por ventos. O céu estava mais escuro e a noite se aproximava. Como muitos outros satélites, DENSEN coincidia sua rotação com sua translação em torno de NERUS, que durava cerca de 203 horas, de modo que onde ficava KOLARA era difícil avistar o planeta, mas ali era possível ver nitidamente o luminoso anel.
Do outro lado do corredor havia, estranhamente, uma bela cachoeira desaguando num lago artificial. Convidativo. E ele ficou pensando porque aquilo era mantido se não havia mais ninguém ali além das MAs ginóides. Ou será que elas apreciavam os prazeres corpóreos?
Esqueceu o assunto. A porta a frente também lhe obedeceu, mas ele saiu num corredor transversal que, para um lado, dava em uma porta de acesso a cachoeira, e do outro lado a porta não abriu. Fora desconectada do servidor central, e como a porta por onde entrou se fechou, entendeu que tentavam aprisioná-lo.
A porta também era bem maior e mais pesada que a anterior que ele forçou. Não cederia a não ser a um tremendo esforço que ele não estava disposto a fazer para não perder a compostura. Preferia uma atitude mais estilosa. Com a unha, forçou o meio da testa até abrir uma fenda vertical na pele, e entre uma pequena calosidade que faria parecer que tinha um terceiro olho, surgiu um ponto escuro, que brilhou e emitiu um raio vermelho que atingiu a porta.
O LASER cerebral. Todos os cérebros móveis humanos tinham um. Os das MAs não podiam ter, exceto se não fossem terminais, e sim contivessem toda a Mente Artificial desconectada de qualquer outro sistema. O raio foi cortando a parte da porta onde havia a trava, e então ela cedeu facilmente a um empurrão. Tomou nota mental de que deveria acrescentar uma lente de saída para o LASER no capacete de sua próxima armadura. Ficou até menos convicto de recuperá-la depois de se dar conta desse problema.
Avançou adiante e como esperava, sentia que rumava para o hangar onde de certo haveria naves. Descia uma escada quando, vindo subitamente do alto, Garinei caiu à sua frente. O impacto no solo após um enorme salto que ele não percebera de onde veio lhe assustou. Mas não se intimidou. Veio devolver minha armadura?
Não posso permitir que se vá! Garinei disse num tom agastado e nada amigável.
Você não pode me impedir.
Não estamos sob jurisdição direta do SISTEMA. As regras aqui são relaxadas, e eu posso sim conter você! Antes, ligeiramente agachada, agigantou-se expondo seu enorme corpo tetrahumano em toda sua magnitude. As longuíssimas pernas em 4 segmentos, os equivalentes a coxas e pernas, ligados por joelhos não muito diferentes dos humanos, mas se articulavam num outro joelho, dobrado ao contrário, num segumento tão longo quanto os outros, que terminava num também comprido pé com 3 dedos que se apoiavam firmemente no solo.
Os braços abertos eram mais parecidos com braços humanos comuns, embora também anormalmente compridos e com mãos de 7 dedos, dois eram polegares em lados opostos. Outros corpos tetrahumanos costumavam ter caudas, asas ou mesmo membros extras, mas mesmo sem tudo isso, Garinei impressionava. Tinha quase o dobro da estatura dele
Mesmo assim ele avançou, na esperança de que ela apenas tentasse assustá-lo. Saia da minha frente! Ela ficou imóvel e ele tentou contorná-la. Foi então que ela o agarrou e jogou, fazendo-o cair e deslizar alguns metros até bater na escada.
Como espera me sobrepujar usando um corpo normal? Disse movendo-se sinuosamente, antevendo uma possível tentativa de que ele usasse o LASER cerebral. Normalmente o sistema bloqueava o uso do LASER diretamente contra outras pessoas, mas provavelmente ali, ainda mais sob aquela condição de interferência, e ainda mais sendo uma ginóide com MA provavelmente terminal, era bem possível que a restrição não se aplicasse. De fato, nenhum dos dois sabia se seria possível.
Mas ele nem quis saber, preferiu fazer algo que não fazia há muito tempo.
Só que esse aqui, minha cara... Disse se armando numa pose que imitava a dela, e subitamente suas pernas se alongaram. Não é um corpo normal! Então, além das pernas ficarem mais compridas, seus pés também se alongaram gerando um terceiro segmento não tão grande quanto o dela, mas o suficiente para deixá-lo quase da sua altura.
Seu braços também se alongaram um pouco, mas o mais impressionante foi que de cada punho saiu uma comprida e afiada protuberância. Uma enorme garra de material orgânico de alta resistência que outrora usava para desmontar equipamentos.
Aproveitou a perplexidade dela e atacou furando-lhe numa das pernas. Ela gritou e recuou, mas numa reação rápida conseguiu segurar os pulsos dele. Estava realmente espantada. Corpos de aparência humana mas capazes de assumir outras configurações eram raríssimos, em parte por serem geralmente proibidos pelo SISTEMA. Mais estranho ainda que não tivessem detectado essas anomalias quando removeram sua armada e escanearam superficialmente seu corpo.
Ele se deitou de costas no chão e a puxou, e com as pernas a empurrou para cima, mas ela não soltou-lhe os pulsos, caindo também de costas no chão. Puxando-lhe bruscamente os braços, ele conseguiu libertar um, então se agarrou numa saliência do solo, se levantou e puxando pelo outro braço começou a girá-la até arremessá-la longe.
Ele pensou que ela desistiria e partiu em direção ao hangar, mas para sua surpresa ela reagiu incrivelmente rápido e o atingiu por trás, jogando-o no chão. Ele se virou e num golpe imprevisto raspou a têmpora do enorme crânio da tetrahumana. Que recuou para trás. Seus seios, que de tão minúsculos eram imperceptíveis, inflaram, a veste se abriu e dos mamilos ela disparou uma nuvem de gás branco.
Arma biológica típica das tetrahumanas, que poderia também ser ácido, espuma ou mesmo líquidos inflamáveis. Mas ele sequer entendeu o que era. Neurotoxina? Gás lacrimogêneo? Não soube, apenas ficou irritado e desorientado e ela lhe acertou com chutes certeiros na cabeça. Ele caiu para trás mas num rolamento se levantou justo quanto ela estava quase em cima dele. Num golpe direto, finalmente a acertou em cheio. A garra atingiu-a diretamente no meio do tórax, furando a veste e atravessando até sair do lago oposto, vertendo um sangue escuro e cinzento.
Puxou a garra de volta e num golpe duplo, com as duas convergindo na mesma direção, atingiu-lhe as vértebras do pescoço, rompendo-as, e com um esforço adicional similar ao movimento de uma tesoura, decaptou a ginóide. Sua cabeça caiu para trás.
Escapada
Ela não tinha cérebro móvel, apenas um terminal que de imediato parou de funcionar. A MA foi imediatamente restaurada aos sistemas informáticos presentes, o que sempre fazia imediatamente após qualquer dano severo do corpo.
Xanti jamais tomaria atitude tão drástica contra uma pessoa real. Só o fez porque, para todos os efeitos, ela era pouco mais que um robô de controle remoto. O problema é que nada impedia que rapidamente ela ressurgisse em outro corpo ou que virtualmente começasse a ser mais agressiva, atacando todos os sistemas à sua volta.
Correu em direção à diversas naves estacionadas. Suas pernas retornando ao estado normal a cada passo, mas as garras continuaram ejetadas. As naves, apesar do design, não eram essencialmente diferentes das que conhecia. A maioria era automática, sequer tendo acomodações para uma pessoa. Mas após procurar um pouco achou uma ideal. Um pequeno transporte de alta velocidade capaz de levar uns 4 ou 5 passageiros dependendo do tamanho.
Ficou feliz por ainda não ter retraído as garras, pois elas demoravam para entrar e no meio do processo era difícil ejetá-las de volta. Ele as usou para forçar a porta que subitamente havia sido remotamente fechada.
Entrou e sabia que os sistemas já haviam sido bloqueados. Mas era um problema, geralmente, fácil de resolver. Mais uma vez acessou um terminal onde poderia colocar o dedo para identificação de DNA, com alguma dificuldade visto que a garra demorava a dolorosamente se recolher.
Embora tenha lhe reconhecido, o sistema não lhe concedeu o controle da nave. Mas ele sabia o que fazer. Chegou a um painel discreto e removeu a tampa. Por sorte a outra garra ainda estava ejetada, e com ela foi removendo uma série de placas, travas e obstáculos até chegar numa em finíssimas placas de material transparente. Era simples questão de trocar a primeira pela última, invertendo o sistema operacional neutralizando o bloqueio.
Assentou-se na cadeira e numa série de toques ativou os sistemas de navegação. O comando de voz estava disponível. Leve-me para a base KOLARA, dentro da GRID. Uma voz estranha pediu sua identificação. Ele disse o nome e se declarou como um humano. Seu cérebro móvel foi sondado e a nave aceitou seu comando. Um zumbido anunciou a ativação dos motores.
A repulsão magnética ergueu a nave sobre o solo metálico. Os propulsores, movidos a hidrogênio que era capturado da própria atmosfera e condensado, foram subitamente ativados, e a nave começou a ganhar velocidade.
O sistema de bordo anunciou que a porta frontal do hangar se recusava a abrir e sugeriu abortar a decolagem. Ele insistiu que ela acelerasse o máximo possível rumo a porta fechada.
Atenção administradores desse hangar. Sou um humano com cérebro móvel cidadão da comunidade espacial e embaixador da humanidade em DENSEN. E estou rumando à máxima velocidade em direção a uma colisão direta com a porta de saída.
Teve que cancelar alguns sistemas de segurança que tentaram deter a nave automaticamente, e então esta acelerou ainda mais, numa arrancada vertiginosa. Avançava velozmente pelo hangar, cada vez mais perto da porta que não se movia. Até que, faltando apenas algumas dezenas de metros, ela se abriu subitamente. As MAs do VEMDAN não cometeriam o erro de deixá-lo colidir violentamente contra a porta. Ele sabia que teriam que abrir.
A nave ganhou os céus escuros, acelerando e em menos de um minuto o local de onde fugira já estava fora de seu alcance visual. Ativou a telecomunicação em praticamente todos os canais abertos. Pensou um pouco e então convocou a segunda entidade que lhe veio à mente. Janitor da base KOLARA! Janitor! Pode me ouvir? Tentou novamente, verificando um meio de burlar a interferência eletromagnética que o bloqueava.
Com um aperto no coração, falou novamente. Kethi! Kethi pode me ouvir!? Nada. O bloqueio era total.
Então percebeu um súbito baque na velocidade da nave, que teve parte do seu sistema de propulsão desligado. Não entendeu como, mas de algum modo conseguiram reestabelecer certo grau de controle remoto sobre a nave. Se não capaz de fazê-la voltar, ao menos capaz de impedir que atingisse velocidade supersônica.
Havia algum protocolo quanto a isso? Ele se perguntou. Então percebeu que outras naves vinham ao seu encalço.
Voltou para o painel das placas transparentes tentando entender como puderam sobrescrever seu comando, e embora parecesse que não conseguiriam fazer nada além daquilo, não entendia como fora possível travar os propulsores de alta potência e não conseguiu reativá-los de jeito algum.
Passou-lhe pela cabeça a idéia nauseante de ter que abandonar o corpo e fugir apenas com seu cérebro. Todos os humanos podiam, a qualquer momento, ejetar o cérebro móvel da cabeça e voar como uma mini nave, transportando tudo o que realmente interessava, e podendo posteriormente adentrar um novo corpo, embora algumas pessoas preferissem permanecer indefinidamente apenas em seus cérebros flutuantes.
O problema é que sempre detestara a idéia. Nunca se acostumou à realidade perturbadora de um cérebro que mudava de corpo. Preferia se submeter a incômodas intervenções corpóreas, como as que lhe permitiram as pernas tetrahumanas e as garras, do que fazer o processo imensamente mais simples de produzir um novo corpo e transferir o cérebro para ele.
Mas talvez fosse a única opção. Um disparo passou ao lado de sua nave, causando uma deslocamento de ar súbito. As duas naves perseguidoras estavam quase na sua trilha de vácuo, e mais ao longe outras se aproximavam. Se saísse no cérebro móvel voaria à baixa velocidade, mas todo e qualquer tipo de ataque estaria proibido e enquadrado na máxima restrição possível. Atacar um cérebro móvel diretamente demandaria retaliação severíssima do SISTEMA, mesmo que este estivesse possivelmente bloqueado no momento, poderia detectar o ataque imediatamente, devido as recursos de proteção privilegiados dos Cérebros Móveis, e então derrubar o bloqueio, e de certo poria ao fim do VEMDAN.
Dissessem o que quisessem os detratores do SISTEMA, mas ele garantia que a vida de um único cérebro humano valesse mais que tudo na Lua de DENSEN.
Não se atreveriam a atacá-lo. Mas outro disparo da outra nave, passando pelo lado oposto, resultou em advertência ainda mais incômoda. Estavam, provavelmente, tentando convencer a Inteligência Artificial da nave, que não era uma Mente, a liberar o acesso por controle remoto, usando como protocolo-argumento a ameaça de destruição.
Quando outras naves se aproximavam e começavam a cercá-lo, ele estava a ponto de desistir e iniciar o desagradável procedimento de abandonar o corpo. Quando de repente as duas naves que vinham logo atrás foram pulverizadas por um intenso raio amarelo que veio de cima. E subitamente sua nave recuperou os propulsores de alta potência e acelerou bruscamente outra vez.
Observou num visor a assinatura digital que controlava a nave, um gráfico ilustrava um tipo de sistema operacional comum, e reconheceu de imediato quando aquele padrão azulado pálido da IA da nave foi substituído pelo inconfundível padrão amarelado de sua MA.
Xanti! Meu amor! Sou eu! Estou aqui! Assumi o controle da nave!
Kethi. Sua amada Kethi. Sabia que cedo ou tarde ela apareceria, e um dos motivos de sua pressa em fugir de suas captoras era evitar que ela enfim fosse resgatá-lo usando força total. Podia ter feito. Mas isso implicaria numa luta virtual entre Mentes Artificiais. Uma situação na qual ele ficava completamente perdido e não saberia como ajudá-la.
Conflitos entre MAs eram perigosos. Havia meios de, virtualmente, uma causar sérios danos na outra. Não suportava a idéia de que Kethi fosse... "Ferida". Isto é. Tivesse partes de sua mente, memórias, capacidades etc, afetados por algum tipo de ataque. Era difícil para um humano, mesmo um especialista na área, compreender como se dava esse processo subjetivo de combate entre MAs, mas era fato que algumas poderiam ser destruídas no processo.
A nave ganhou distância, mas as perseguidoras também aceleraram e começaram a disparar em algo ao alto. Subitamente diversas outras naves surgiram de outras direções, todas convergindo para ele, e só então viu uma aeronave muito maior passar sobre ele, disparando raios que variam os céus desintegrando as naves inimigas.
Por um momento ficaram a sós. A nave maior deu meia volta e se aproximou ficando logo atrás dele. Cobrindo sua retaguarda.
Está tudo sob controle meu amor. Não se preocupe. Nada vai te ferir.
Kethi... Ficou constrangido. Estivera naquela encrenca por ter brigado e fugido dela. Como iria se desculpar?
Tenho que recuar! Outra frota está se aproximando e terei que usar uma medida drástica para detê-la.
Sua nave subitamente se inclinou para cima numa manobra que não fazia muito sentido imediato. A nave grande praticamente freou no ar, ficando quilômetros para trás e então explodiu.
Uma explosão nuclear. Devastadora, que além de atingir praticamente todas as naves inimigas, gerou uma onde de choque de desnorteou as poucas que sobraram. Mas o pulso eletromagnético atingiu a nave dele também. Que oscilou e perdeu altura, mas ficou estável. Kethi fora capaz de prever as consequências da explosão e a nave planou sem impulsão na descendente, por alguns segundos, até que os sistemas voltaram.
Resolvido. Vamos pra casa. Então a nave acelerou novamente e logo se aproximou de outra, um pouco maior, que a recebeu envolvendo-a dentro de si. E então acelerou ainda mais, logo atingido velocidade hipersônica.
Ele ficou um tempo pensando no que dizer. Kethi eu... Não sei o que dizer. Eu... Você venceu de novo. Como sempre. Eu...
Depois conversamos. Tenho que me concentrar aqui. Respondeu em tom magoado e com uma desculpa incabível. Podia fazer o que estivesse fazendo muito bem e conversar com ele sem problemas.
Mas sabia o que o silêncio dela significava. E o respeitou.
GriDVEnC
Seja bem vindo de volta Senhor Xanti. Peço que me perdoe por não poder ajudá-lo. Minha presença é restrita à GRID. Mas como vemos, Kethi foi perfeitamente capaz fazê-lo.
Tudo bem Janitor. Kethi sabe cuidar de mim.
O fato dela nada ter dito o autorizou a continuar se dirigindo a ele. Mas a qualquer momento vai me dar uma enorme bronca. Ou pior... Ficar muda.
A nave adentrou o hangar, pousando suavemente. Um corpo tetrahumano ginóide, diferente do que antes Kethi usara, o recebeu. Ele o olhou desconfiado, e ela o olhou zangada.
Kethi... Me perdoe mas acabei de decapitar uma tetrahumana, e ver outra agora me olhando com a mesma cara não é exatamente o que eu esperava.
Ela falou numa tonalidade diferente da voz normal etérea, mas ainda assim reconhecível. Eu sei. Eu invadi o sistema de segurança do VEMDAN e vi a cena gravada. Você foi bem violento.
Você sabe que não sou um santo. Disse caminhando, enquanto ela veio atrás dele.
Tudo bem. Você destruiu um corpo e eu destruí a mente dela.
Ele estacou, chocado. Virou-se para ela. Kethi! Você fez isso?! Ainda mais enfurecida, ela desmentiu. Claro que não seu bobo! Nunca faria isso, só a pus para dormir! E saiu andando rumo a outro corredor, que levaria à sala onde o corpo seria guardado, e onde ficava a matriz de fabricação de entidades biológicas que poderia, entre outras coisas, produzir um outro corpo para ele em questão de dias, ou mesmo horas.
A voz onipresente dela retornou, enquanto ele caminhava. Vou sumir com essa nave. E ele viu num monitor a imagem da nave que ele roubara decolando e sendo mandada embora. Não confio em deixá-la aqui dentro. E gostaria muito de devolvê-la ao VEMDAN com uma bomba de antimatéria dentro!
Calma Kethi.
Não me peça calma depois de tudo o que passei! Depois que pegaram você eu os persegui. Tomei o controle de outra nave e embarquei com meu corpo nela. Tentei deter a nave que raptou você mas eles me atingiram com um disparo de satélite que me desintegrou. Enviei outras naves, mas subitamente você desapareceu! Não sei como! O Janitor também não sabe. Devem ter alguma tecnologia nova de ocultamento. Demorou para conseguir localizar a base onde você estava e ainda mais para quebrar as defesas informáticas. Ainda mais com aquela confusão de MAs... Quando consegui acesso ao controle interno de ambiente você já estava roubando a nave. Foi ainda mais difícil quebrar o sistema de segurança para assumir o controle dela. Eu não confio nesse VEMDAN! Não duvido que poderiam machucar você e isso me deixou irada! Eu não sei como você pôde...
Eu te amo Kethi.
Ela silenciou.
Ele entrou num recinto aconchegante com uma piscina de água aquecida, tirou a roupa e entrou na água, relaxando.
Muito bem Janitor. Conte-me você o que aconteceu, ou Kethi vai fazê-lo misturando-o com um sermão. Mas evidentemente ela estava ali. Providenciou que um pequeno robô trouxesse uma garrafa de tônico revigorante e começava a preparar-lhe sua refeição. Outro robô aplicava um raio invisível em um de seus hematomas, que ia aos poucos desaparecendo.
Perfeitamente senhor, e a situação é muitíssimo mais complexa do que me parecia. Assim que me comunicou a fraude do VEMDAN, a camada de interferência eletromagnética em torno do planeta se intensificou, bloqueando as comunicações externas. O VEMDAN me contatou implorando que eu desistisse de denunciá-lo, mas eu exigi entrar em contato com o senhor primeiro. Sem resposta, tentei assumir o controle de satélites de comunicação, mas o VEMDAN os destruiu, e agora controla todos os satélites em torno do planeta. Finalmente o próprio SISTEMA penetrou na nuvem de interferência e requisitando informações sobre o que acontecia. Eu e o VEMDAN nos explicamos.
E o que aconteceu?
O SISTEMA autorizou que o senhor decidisse o que fazer.
Eu?! Mas por quê?! Não é simples motivo de intervenção?
Não tão simples senhor. Descobri recentemente que o VEMDAN tem autorização para fazer pesquisas de cunho gravitacional em grau restrito, por isso a simples denúncia não foi efetiva. Argumentei que o uso extrapolou as possibilidades previstas por essa autorização, mas ainda me resta comprová-lo definitivamente. Como, apesar do sequestro, nada de grave foi feito com o senhor e já está de volta à salvo, caberá então que sugira que punição o VEMDAN deverá receber.
Mas o VEMDAN está fazendo muito mais do que pesquisas em grau restrito! Ele me confessou abertamente que pretende instituir manipulação gravitônica primária e instituir um novo SISTEMA!
O quê?! Pretendem invadir o SISTEMA e controlar o GRADIVIND?!
É insano! Eu sei, mas por favor Janitor, me corrija se eu estou errado. Uma manipulação independente e direta bem sucedida da malha gravitônica destruiria o SISTEMA? Ou é possível fazê-lo sem maiores danos?
Não senhor. Qualquer oscilação direta na malha gravitônica, que não seja resultante de alguma manipulação indireta ou muito sutil, como a que o VEMDAN vem fazendo, causaria acionamento imediato do GRADIVIND e destruição instantânea da fonte de tal oscilação. Caso contrário, a oscilação se espalharia como uma onda crescente perturbando e zerando a malha gravitônica, destruindo praticamente toda a base fundamental sobre a qual o SISTEMA opera.
E entre outras coisas, isso destruiria as cópias de segurança dos cérebros móveis, não é mesmo?
Exatamente. Bem como a continuidade de todas as MAs que não estivessem por completo armazenadas num cérebro espelho.
Seria uma catástrofe sem precedentes! Esse VEMDAN é absolutamente irresponsável!
A não ser que não pretendam usar o mesmo fundamento do sistema GRADIVIND.
O quê?! Como assim?!
Como deve saber senhor, o termo 'GRADIVIND' deriva da leitura associativa entre signos similares que interpreta algarismos em escrita ancestral como fonemas em linguagem extinta.
O Janitor se referia ao fato de que a palavra 'GRADIVIND' tinha quase 5 mil anos, e era apenas uma leitura forçada da Equação Gravitônica "Gr=4DiVInD", cujos termos nenhuma pessoa ou mente artificial estava autorizada a saber, sendo informação completamente restrita.
É claro que ele sabe!
Mas o VEMDAN alega que está desenvolvendo uma nova Equação Gravitônica.
Tanto Xanti quanto Kethi, ficaram atônitos.
Assim, em tese, o VEMDAN não estaria violando quaisquer regras do SISTEMA caso não utilizasse a Equação Gravitônica tradicional, pois passaria a operar numa espécie de frequência dimensional específica que não iria interferir diretamente no GRADIVIND.
Mas isso não faz o menor sentido. Janitor, a dificuldade e exclusividade da Equação Gravitônica deriva do fato desta ser a única capaz de permitir o controle da malha gravitacional do universo. Se isso fosse possível de uma outra forma, como então em mil anos de pesquisa espacial intensa ninguém mais sequer cogitou essa possibilidade?
Eu realmente não sei se isso é possível Kethi, mas o fato é que o SISTEMA aceitou o argumento do VEMDAN.
Talvez exatamente pelo fato de que não apenas ninguém sabe os termos da equação, mas como ninguém sabe coisa alguma sobre gravitônica. Nem as MAs. Que eu saiba, em todo o Sistema Solar a ignorância forçada sobre o assunto é simplesmente total. Ninguém pode saber. Ou há exeções?
Não!
Não tenho essa informação senhor.
O VEMDAN revelou algum detalhe dessa suposta equação?
Na verdade revelou a equação inteira.
E flutuando no ar, surgiu a fórmula Gr=iDVEnC.
Neste caso, a Instante Gravitônica 'Gr' seria definida não pelo quádruplo de dimensões que transportam a influência gravitacional, mas por uma única Dimensão em especial, 'iD', capaz de fazê-lo de forma condensada, multiplicada pela raiz quadrada de uma quantificação de Energia, 'En', que seria resultante de uma sutil dissipação pela invertida de reação à expansão espacial. Ao passo que o 'C' seria algum tipo de constante de natureza desconhecida. O problema consiste, evidentemente, em saber quais são o termos.
Mas então toda essa confusão foi por nada? Porque o VEMDAN não comunicou isso antes e preveniu problemas? Por que utilizar tecnologia gravitacional irregular nas experiências de combate?
Creio que aproveitou-se dessa tecnologia para forçar minhas defesas ao máximo, me obrigando a revelar armas que nunca mostrei a ninguém.
Que armas?
Na realidade praticamente nada sobrou. Tive que apelar para recursos que jamais havia tido a oportunidade de testar. Só me restou uma única tecnologia de destruição que o VEMDAN ainda desconhece.
Vamos voltar ao que interessa. E é... Por que... Eles me falaram de uma alternativa ao SISTEMA? Será possível que dois SISTEMAS distintos operem simultaneamente.
Não tenho como saber senhor. De qualquer modo, permanecemos num impasse. Caberá ao senhor decidir pelo cancelamento das atividades do VEMDAN ou mesmo sua completa eliminação. Mas, encarecidamente senhor, pelo que leve em consideração o fato de que eu também corro risco de ser eliminado, até porque minha função aqui perderia o sentido. Ademais, se o SISTEMA concluir que essa iniciativa de equação gravitônica do VEMDAN não for digna do risco, poderá decidir encerrar não só as MAs nativas do planeta bem como quem mais tiver acesso ainda que superficial a tal informação.
O que inclui a mim.
Exatamente Kethi
Xanti ficou bastante irritado. Janitor. Neste caso não deveria ter revelado essa informação a Kethi. A mim, o máximo que o SISTEMA pode fazer é apagar minha memória, mas e a ela?
De jeito nenhum! Não me esconda informações!
Janitor, eu não tolero a hipótese de colocar Kethi em risco.
Quer parar de se ficar me protegendo! Sou eu que tenho que proteger você!
Sinto muito senhor. Não era minha intenção. Mas penso que ela estaria automaticamente incluída na lista de MAs elimináveis, uma vez que seu padrão mental básico foi criado pelo VEMDAN.
O quê?! Xanti levantou da banheira. Mas eu conheço Kethi há décadas! Ela foi criada na Estação Sagitário 11!
Sagitário 12!
Sim. Mas a tecnologia lógica de base foi criada pelo VEMDAN.
Mas... Então não foi da... Se deu conta de algo que nunca percebera antes. A origem secreta dos códigos fonte de muitas MAs, especialmente as mais recentes, dos últimos 300 anos, e mais sofisticadas, como a própria Kethi. Ele conhecia as diretrizes básicas, os padrões normais, bem como as representações visuais típicas que identificavam famílias de MAs, mas além de ser impossível vislumbrar o código todo (uma vastidão infindável e incompreensível de símbolos aparentemente caóticos), ainda havia muitas restrições quanto a procedência. Então por isso que a fonte era secreta! Eu nunca podia saber de onde vinham certas...
Uau... É verdade. E por isso foi tão fácil adentrar os sistemas do VEMDAN, pois ele reconheceu meu padrão.
Não disse que tinha sido difícil?
Difícil foi suportar aquela situação! E neutralizar a tal Garinei Hira, bem como depois resistir à tentativa de retomada do controle da nave e... Ver todas aquelas MAs... Com corpos... Tantas recém chegadas que podem ter o que eu... Mas... Eu estava sendo dramática está bem?! E realmente, o meu padrão mental é compatível com o das outras MAs do VEMDAN.
Trabalho com isso há séculos e nunca tinha ouvido falar de produção de MAs em qualquer outro planeta além do extinto Marte. Nem na Terra isso tem sido feito desde a Guerra Espacial. Em NERUS então... Por que ninguém sabe disso? Para mim tudo isso era desenvolvido no espaço!
De fato não é uma informação acessível senhor. Embora o VEMDAN seja o produtor primário, houve várias transferências sucessivas de tecnologia para órgãos e empresas diferentes, e ademais o VEMDAN era especializado nisso há mais de 350 anos. É herdeiro direto da tradição tecnológica de produção de MAs que, entre outras coisas, foi usada no Modo de Segurança Mental do GRADIVIND. Hoje sua especialidade, como acabamos de descobrir, é outra. A minha sempre foi desenvolvimento de armas.
Pela Deusa GRADIVIND... Então, se for verdade, eles tem tudo. Tecnologia gravitônica, uma equação própria para implementar um novo SISTEMA, e conhecimento necessário para produzir uma MA superavançada para funcionar como uma alternativa à Divindade Gravitacional.
Sim. Tudo se encaixa. Está localizado ao lado de um planeta joviano com bastante energia utilizável, e onde o alcance do SISTEMA é menos eficaz.
Podemos estar diante de uma revolução.
Decisão
Estava agora em seu quarto, a sós, o que significava estar com Kethi. Não sabia mais o que era viver sem a companhia constante dela. Fôra, em grande parte, um dos motivos de sua impaciência quando estava na base do VEMDAN. Estar só. Sem ela. E sentia-se ainda mais culpado por ter conseguido se afastar dela verdadeiramente.
Cabia a ele dizer se o VEMDAN poderia continuar com suas experiências ou se tudo seria encerrado de uma vez. Mas na primeira hipótese, surgia a possibilidade de uma reviravolta na história que corria o risco de ser catastrófica, pondo em risco as MAs. E na segunda, poderia ser ainda mais inevitável.
Kethi estava em perigo.
Tudo estava confuso. Não sabia bem o que fazer a respeito da situação geral. Nem o Janitor sabia. Era difícil confiar num coletivo de MAs, pois era isso que era o VEMDAN, depois de tudo o que este fez. Mas talvez fosse ainda pior confiar no SISTEMA.
Precisava ter em mente, dizia a si mesmo, que o SISTEMA não é inteligente. Não só não é uma MA como sequer é uma IA. E sim apenas um algoritmo puro, extremamente complexo, mas ainda assim um autômato, incapaz de qualquer discernimento mais sutil e acessível mediante uma série de procedimentos rigidamente controlados, assim como a tudo controlava de forma rígida. Como se uma sistema legal inteiro não tivesse juízes, nem qualquer outro operador humano, mas somente as leis formais implementadas diretamente por um programa que, por mais sofisticado que fosse, ainda assim era absolutamente insensível aos apelos que não estivessem claramente de acordo com sua programação.
Ele jamais seria capaz de compreender a sutileza da situação e entender que Kethi deveria ser poupada.
Uma vez ativado seu modo mais ostensivo, a que muitos chamavam de GRADIVIND apesar da distinção ser tão confusa quando o da santíssima trindade, surgia uma IA legítima, capaz de tomar decisões mais complexas e movimentar um gigantesco poder, capaz de mover planetas. Embora ainda assim aquém da profundidade e subjetividade humanas. Somente ativado o modo mais emergencial de segurança, era que entrava em ação uma legítima MA, conhecida como Deusa da Gravidade, Divindade Gravitacional ou mesmo Deusa GRADIVIND. Um nome que as tetrahumanas terrestres não se atreviam a pronunciar, bem como muitos da comunidade espacial.
Se já era difícil saber exatamente o que era o GRADIVIND, se ele englobava o SISTEMA e a Deusa, ou alguma outra combinação estranha, pior ainda seria se atrever a prever o que poderia vir a ser o tal GRIDVENCE. Seria um SISTEMA mais sofisticado, com Inteligência embutida, ou com Mente já plenamente ativa? Ou seguiria o modelo do GRADIVIND e teria mente apenas numa função em forma de divindade que raramente entrava em ação?
Diante de tudo isso, de tantas dúvidas, só sabia de uma coisa. Tinha que proteger Kethi.
Por isso, após fazer sua refeição e enquanto pequenos robôs com longos braços mecânicos faziam-lhe últimas sondagens e curativos, ficou sem ação quando ela disse. Seria tão mais fácil fazer isso se eu tivesse um corpo.
E a não reação dele a estimulou.
Humano.
Silêncio.
Por favor... Eu te imploro... Me deixe tocar você...
E ela simplesmente começou a chorar.
Me perdoe não ter te obedecido mas... Eu não pude resistir. Foi minha única chance. A única vez que pude fazê-lo. Por favor meu amado. Me deixe ser uma mulher. Tocar você... Amar você de um jeito... Ao ver... Todas aquelas MAs no VEMDAN... Uma comunidade. Tantas delas com corpos... Eu as odiei ainda mais por terem o que eu não posso ter! E pensar que elas tocaram em você! ELAS PUDERAM TOCAR EM VOCÊ!!! Elas puderam tocar em você...
Profundamente consternado, não teve coragem de sequer repreendê-la por "simular" um choro soluçante.
Kethi...
Ela respondeu apenas chorando mais baixo.
Kethi... Por favor, me desculpe. Eu... Não suporto a idéia de te magoar e... Não aguento mais te ver sofrer.
E então tomou a decisão, mesmo sentindo que reverberava uma mágoa profunda de dentro de seu ser. Um trauma.
Ative o Edificador de Corpos.
Ela silenciou imediatamente.
O... O quê?
O programa de edição de corpos Kethi. Vamos projetar um pra você.
Você... Jura?
Sim. Você já sofreu demais. Eu também mas... De qualquer modo, é a única forma de garantir a sua proteção. Construir um corpo com Cérebro Espelho, e copiar toda a sua mente nele. Assim, se o pior acontecer, se o SISTEMA, ou o VEMDAN, estragarem tudo, você estará segura. Não posso perder você. Seria como... Perder uma parte de mim... Não. Seria como me perder. Você tem razão. Eu e você somos um só.
Ela voltou a chorar, mas desta vez num tom completamente diferente. Fez um nítido suspense, e após algum tempo, surgiu no ar o programa de construção.
Dentro de um cilindro transparente, havia uma malha difusa com uma forma vagamente humana, feminina, e parâmetros numéricos.
Vou fazer o corpo mais lindo que você...
Espere. Eu vou decidir como será.
Tem que ser um que você goste. Não tenha medo de se apaixonar por mim!
Eu já sou completamente apaixonado por você Kethi. Isso não é óbvio?
Então vamos refletir isso no meu corpo. E então ela fez surgir uma mulher linda, que o deixou encantado. O único problema era exatamente ser bonita demais.
Kethi... Preciso te dizer uma coisa.
Sim meu amor.
Eu já te disse... Quer dizer. Não, eu nunca te disse mas... Eu tenho um problema com o feminino.
E acha que eu não sei?
Ele riu. É claro que você sabe. Mas me deixe contar.
Sim. Sou toda sua.
Eu tenho uma resistência quanto ao... Excesso de beleza.
Humm... É mesmo inédito. Você nunca me disse isso. Mas pelo que conheço de você, estou bem certa que isso tem a ver com a sua mãe.
Talvez, mas não é só isso. É que as mulheres bonitas demais, no meu tempo, podiam se dar ao luxo de ter menos qualidades. Você, Kethi, sempre me encantou sem corpo algum, pela sua mente, que é coisa mais maravilhosa que eu já conheci. E eu quero que continue assim. Não quero que o foco de meu fascínio deixe de ser sua... Alma... E passe a ser seu corpo. Não quero que nada rivalize com a pessoa maravilhosa que você é.
Ooouhh...
E eu. Tive algumas namoradas e... Me apaixonei por algumas mulheres. E sempre me senti tão vulnerável à beleza! A simples forma, sem conteúdo algum, apenas a aparência externa, me arrebatavam. Me torturavam. Era horrível não tê-las! Sempre achei que nós... Homens, somos tão frágeis a isso. Um simples vislumbre de beleza física estonteante e nossa mente nubla, perde a força de vontade, delira.
Entendo, meu amor... Eu te entendo. Mas isso é porque essas mulheres que você via nunca te aceitaram, e as que você teve como namoradas, como você mesmo disse, nunca foram deslumbrantes. Porque eu não posso ser? Serei toda sua!
Ele se sentou na cama, enquanto a imagem flutuante do programa se aproximava. Deu um meio sorriso, enigmático. Sim mas... Isso me lembraria de minha condição antiga. Tão vulnerável... Tão... Patética! Uma mulher para se apaixonar por um homem precisa conhecer algo sobre ele. Tem que haver algum conteúdo que a atraia. Sempre senti vergonha de não ser da mesma forma, de ser tão facilmente arrebatado pela forma pura. Mesmo... Mesmo depois que fui descongelado, em Marte, isso não mudou muito. Somente após a guerra espacial as coisas ficaram diferentes. Toda a qualquer mulher pode ter o corpo que quiser e então podem se tornar o sonho de seus amados. Mas mesmo assim, eu nunca me livrei dessa sensação de ofuscamento pela beleza. É como... Um Sol queimando os olhos... O tempo todo. Não... Eu prefiro algo... Mais calmo. Que me faça sentir que você é uma pessoa pela qual me apaixonei por ser o que é, e não pela aparência.
Ela fez um silêncio enigmático. Sim. Eu entendo. E subitamente mudou o tom melancólico para um som satírico. Que tal esta? E surgiu uma mulher feia.
Não exagere!
Ela riu. Desculpe. E agora? Surgiu uma mulher bela, mas de aparência mais comum. É suportável pra você?
Começou bem. Alongue um pouco as pernas. Menos... Assim. A forma das batatas podia ser mais... Isso. Calma nem tanto! Assim. Só um pouquinho mais alta. E ele mesmo deslizou a mão determinando a altura do modelo, bem como esculpiu algumas curvas, várias vezes seguidas, demorando a se decidir.
Deixe-me ajudar. E como ele já esperava, Kethi sabia o que o agradava, por isso teve que ser mais insistente e diminuir o nível de beleza. Então chegaram ao rosto. Ele selecionou alguns modelos prévios e os misturou, chegando a um resultado que mantinha uma aparência simpática, cativante, inteligente e amável, bela, mas não excessiva.
Tem certeza que está bom?
Tenho. Está perfeito.
Ela parecia incrédula e insistiu na pergunta. Ele insistiu na resposta. Por favor Kethi. Confie em mim. O aparência fará pouca diferença para você, e muita para mim. E ela preferiu nada dizer. Deu os toques finais, tipo e cor dos cabelos, por fim, com um ar suspirante e deslumbrado, concluiu. Meu corpo... Eu adorei.
Quanto tempo de construção?
Tenho dúvidas quanto a eficiência dos equipamentos deste laboratório, mas estimo 52 horas. E vou logo avisando.
O quê?
Não vai ser exatamente desse jeito.
Hã?! E o que nos combinamos?!
Calma. Não vou fazer alterações drásticas. Só quero que... Haja alguma surpresa. Eu quero que seja um momento muito especial, uma coisa que... Oohh Xanti... Será meu primeiro corpo humano! Tem que ser algo... Especial pra mim também. Eu quero te surpreender, e posso garantir que o que quer que eu faça, você vai gostar!
Ele pensou. Não queria quebrar o clima tão amável. Está bem. Mas se você exagerar, teremos que fazer outro.
Claro meu amor. Eu prometo. Vai ser do seu agrado. Eu juro... Uma coisa nunca vai mudar. Poderemos estar em dois corpos separados, mas continuaremos sendo, sempre, um só. Eu e você.
A Surpresa
Era noite, que durava 151,5 horas, e nada havia mudado. As batalhas acabaram, o VEMDAN estava completamente absorto em seus projetos e o Janitor tentava descobrir alguma coisa sobre eles. Xanti decidira esperar para tomar qualquer medida, que podiam ir desde nada fazer até mandar destruir o VEMDAN completamente.
O Janitor até tentara contar a eles sobre uma desconfiança de que o VEMDAN há muito tempo cobiçava um tipo especial de Arma de Distorção de Espaço que vinha sendo desenvolvida na GRID há algum anos, e que era de certo o mais complexo, delicado e valioso projeto que ele tinha, que jamais tivera sequer a chance de testar. Mas a futura mulher estava tão eufórica que não foi possível se concentrar em qualquer outra coisa.
Após caminhar um bocado pela estação sob músicas belamente cantadas por Kethi, ele a ouviu dizer precisava silenciar e sumir por algumas horas. O corpo ficara pronto e ela se preparava para a devida instalação da mente. Diferente de um Cérebro Terminal, o Cérebro Espelho precisa de um processo mais lento e delicado de gravação de conteúdo, e um processo ainda mais complexo de sincronização e adaptação com o próprio corpo.
Como ela queria fazer-lhe uma surpresa, não quis que ele visse, e ele ficou um tanto ansioso nas longas horas de espera.
O visual do quarto estava diferente. Mais amarelado como o resto da base. Uma iluminação mais sutil embora mais natural. Kethi preparara o cenário acolhedor com um quê romântico um tanto quanto antiquado. Numa era onde dos poucos mais de 4 milhões de humanos apenas uma minoria ainda usava corpos típicos da época de Xanti, e mesmo entre esses os que tinham alguma vida sexual era uma minoria menor ainda, aquele momento soava um tanto místico. Como uma cerimônia de ritual religioso de tradições antiquíssimas há muito esquecidas.
Então, a voz veio. Estou aqui. Levante-se, vá para o meio do quarto e feche os olhos.
Ele obedeceu, e ficou no local indicado. Vestia apenas finos tecidos, previamente escolhidos por ela, sentindo as variações de temperatura que em geral as vestes mais sofisticadas disfarçavam. Mas tudo nele parecia mais atento. Os sons pareciam mais nítidos, os odores, até mesmo o chão sob seus pés.
Estou aqui. Pode olhar. E a voz, apesar de ser a mesmíssima, veio desta vez de um local fixo, ao invés de toda parte. O que por si só o deixou nervoso.
Então, após um suspense, ele finalmente abriu os olhos.
E o que viu não poderia ser mais perturbador.
Ela havia trapaceado, e muito! Pois o corpo que usava era totalmente diferente do combinado, e incomensuravelmente mais belo.
Ele tonteou, ficou paralisado, um calafrio enorme percorreu-lhe todo o corpo e sentiu o sangue descer da cabeça.
O corpo que ela produzira chegava a, num primeiro momento, assustar, de tão maravilhoso, e tudo o que ele disse sobre não querer ser ofuscado pela beleza havia sido ignorado. Era aquele tipo de aparência que assombrava, humilhava, quase massacrava os sentidos. Cada detalhe ínfimo perfeitamente calculado para causar os mais diversos tipos de arrebatamento.
Completamente nua, ela veio caminhando lentamente, o olhar penetrante fixo nele, a respiração forte, ansiosa. Parou a distância em que ainda podia ser vista por inteira. Aquela aparência seria inviável no tempo dele, por mais que a estética corporal já estivesse avançada. Havia curvas impossíveis ali, algumas, num primeiro momento, perturbadoras, mas que logo em seguida causavam a sensação de deslumbramento mais intensa que ele já havia experimentado. Tudo nas proporções perfeitas, ela soubera extrair, do fundo de seus sonhos, disposições que ele próprio não sabia sequer que existiam.
Racionalmente, uma grande parte dele sabia que tinha obrigação de protestar, de se enfurecer, de fazê-la se arrepender por ter feito exatamente aquilo que ele pediu que não fizesse. Mas aquela beleza delirante o esmagava, entorpecia seus sentidos, travava-lhe a voz e o deixava completamente indefeso, fazendo essa parte consciente e indignada diminuir de tamanho rapidamente.
Pior de tudo. De alguma forma profundamente angustiante algo nela lhe lembrava sua mãe, mas não haveria como ela saber disso, pois não havia nenhum registro dela em parte alguma. Kethi tinha sido capaz de adivinhar até isso. E agora, aquela parte dele que teve um breve ímpeto de se agigantar e reagir com justa indignação estava reduzida a um mísero eco impotente, esvanecendo-se cada vez mais.
Você acha que pode me enganar? Não pode. Não pode mentir pra mim. Eu conheço você. A cada frase que dizia, a cada movimento que fazia alterando o projeto, eu podia ver o que você queria evitar, do que queria fugir. Você tinha medo de ficar vulnerável a mim, que eu pudesse possuir sua mente de um jeito que nunca fiz antes. E ela então se aproximou, apenas 2cm mais baixa do que ele. Você não pode fugir de mim. E finalmente o tocou.
Então foi a vez dela paralisar. O toque, finalmente o tocava, com um corpo humano feminino, tocando diretamente a pele dele, o que de imediato a deixou quase tão descontrolada quando ele próprio já estava a mercê dela, incapaz de reagir ante sua presença avassaladora.
Xanti... Porque demorou tanto? E ela, aos poucos e com cuidado cerimonial, o foi abraçando, firme, e então o último resquício de resistência que ele tinha desintegrou-se. Ela conseguira seu sonhado intento. Arrebatar-lhe os sentidos, dominar sua vontade, anular sua razão. O beijou, ela também quase enlouquecendo, fazendo um esforço enorme para não ir muito rápido, visto que estava totalmente no comando.
Finalmente, ele esboçou uma reação. Kethi... Você é... Terrível... E ela o empurrou para a cama, mas por horas, a única coisa que fizeram foi se abraçarem, e se tocarem suavemente. Embora todas as funções sexuais deles fossem plenamente funcionais, e por mais que a dele estivesse inativa há muitos anos, simplesmente estar juntos bastou.
Foi intensamente pleno.
E ele sabia que nada mais seria como antes.
O Sonho Realizado
Se já estava difícil pensar antes, agora era por completo impossível.
Por dias, não foram capazes de desgrudar um do outro, sequer de desviarem os olhares.
E permaneceram em infindáveis preliminares, que demoravam horas para passarem para o próximo nível.
Paravam, se detinham, esperavam, conversavam de um modo que nunca fizeram antes. Havia toda uma cerimônia, quase mística, que antecedia cada nível mais íntimo de contato.
Há muito ele havia sublimado sua sexualidade, direcionando o potencial erótico para coisas mais avançadas. Seu amor platônico por Kethi lhe bastava, o satisfazia plenamente, vivia quase em estado de santidade, embora sempre admitindo mais um esforço sincero que uma natureza beatífica, e dizer "não sou um santo" virara chavão pessoal. Mas agora a sexualidade se condensava novamente, rumo ao mais primitivo ritual amoroso.
Chegara o momento. No que ele fez questão de entoar da forma mais poética que conseguiu.
Meu amor, chegou a hora. Você sabe como eu me sinto.
Você me leu nas entrelinhas, e me conhece melhor do que eu próprio.
Eu perdi de novo, minha amada. Você sabe que eu não sou um santo.
Você sabe que durante todo esse tempo, eu estive esperando por você.
Então venha... Venha se deitar comigo, e entender por que eu e você somos um.
E aconteceu.
* * *
E horas depois, passado um longo clímax, veio o relaxamento, e a reflexão. E a primeira preocupação.
E agora? Perguntou ele num sussurro, suave, os olhos perdidos nela, um sorriso extasiado. Como vai ser daqui pra frente?
Assim... E ela tocou seu rosto, mergulhando-o num suspirante e breve êxtase. Pra sempre. E adivinhando os pensamentos dele. Pouco me importa o que o SISTEMA, ou o VEMDAN ou a GRID façam, ou o que aconteça... Só me interessa ficar com você pra sempre.
Ele ficou mais sério, um olhar profundo. Você jura... Fez um suspense. Jura que nunca vai me deixar?
Como eu poderia deixar você? E o abraçou, com um ar de piedade. Eu sei... Muitos casos de MAs que depois que ganham corpos... Mudam. Não suportam a experiência. Mas eu não. E olhou nos seus olhos de novo. Xanti... Eu passei esse últimos 26 anos estudando você, observando cada detalhe de sua vida, de seus sentimentos, pensamentos, e isso tudo... Sempre foi minha razão de existir. Viver por você.
Sim mas... Exatamente por isso. Um dos motivos pelos quais MAs se apegam tanto a seus usuários é que, eles são na verdade o corpo delas. Você sempre teve um corpo Kethi. O meu. E por isso, por esse ser o único canal com o mundo sensorial, é como se elas... Como se você fosse outra parte da minha própria mente.
E sou.
É mas... Isso fazia com que eu fosse algo único e especial porque, só por mim você poder ter um vislumbre do que é sentir o mundo físico. Mas agora, o que eu tenho de especial?
Além de ser a pessoa mais maravilhosa que existe? Além de eu te amar muito mais do que jamais pensei ser possível?
Agora você tem seu próprio corpo.
Não... Você tem o meu corpo. Nós temos um ao outro. Somos um corpo único. E ela o envolveu completamente, puxando-o contra si.
* * *
Mais tarde, quando caminhavam pelo pequeno riacho dentro de seus aposentos, sob a luz de um Sol maximizado pelos painéis e que misturavam o visual real com ornamentos virtuais, ele insistiu no assunto. Eu tenho medo que, se eu antes era tão especial pra você. Agora você veja que não sou. Sou só um homem normal, nada melhor do que qualquer outro. Porque eu mereceria você?
Mas em momento algum ela perdeu o encanto. Ficou de frente para ele. Desculpe... Riu. Eu sabia que isso aconteceria. Que você ficaria assim... Assustado. Eu conheço você, meu amado Xanti... Por isso eu soube fazer, neste corpo, tudo o que estava ao meu alcance para dominar você. E sabe por quê?
Por que?
Pra me certificar que VO-CÊ não vai me deixar. Pois agora não sou mais aquela voz onipresente, capaz de controlar tudo a sua volta. Agora sou só uma mulher bonita. O que eu tenho de especial?
Aahh... Querendo me enganar? Sei que você não está desconectada.
Como sabe?
Porque você vai tocar uma música pra mim. Daquelas que só tocava após brigarmos.
Então, o som ambiente foi ativado, e a música surgiu. Também os painéis mudaram de aparência, o cenário, antes de uma tarde ensolarada nas montanhas, se tornaram uma noite sob o céu de intensas estrelas.
Viu só. Você ainda é a minha Kethi. Capaz de controlar tudo, que cuida de mim.
E sempre serei.
Mas então... Como eu dizia. O que eu tenho de especial agora?
Ela sorriu, maliciosa mas ainda assim ternamente. Você só está assim por causa do meu olhar... Eu o projetei pra te deixar desnorteado. Sonhando, indefeso... Não se preocupe, vai se acostumar. Mas, respondendo a sua pergunta... Tem algo em você que sempre vai ser um mistério pra mim.
O quê?
Alguma coisa aí dentro que você nunca me mostrou, nem nunca vai me mostrar. Mas mais do que tudo, eu queria descobrir. E é por isso que eu vou ficar, pra sempre. Esperando eternamente que você me mostre.
A Gravidade
Você nunca vai se vestir? Brincou ele para sua companheira que saboreava sua primeira refeição. Ela se atrapalhou no processo de mastigar, engolir e rir, até por fim conseguir falar. Não tive vontade. Ainda. Me sinto bem assim.
Poderia ter feito um corpo capaz de metabolizar alimentos mais eficientemente, e comer só a cada 3 ou 4 dias.
Mas quero jantar sempre com você. Abocanhou, meio desajeitada, um pedaço de bolo sintético cujo sabor inequivocamente agradaria qualquer paladar refinado, além de possuir nutrientes, calorias e vitaminas perfeitamente equilibradas.
É... Eu penso muito em mudar isso também. Se eu tivesse coragem de trocar de corpo.
Ela ainda mastigava, e na impaciência em ter que terminar de fazê-lo ou falar mastigando, emitiu a voz pelo sistema do som do ambiente. Mas é tão bom! Nunca imaginei essa sensação... Por um momento fechou os olhos e se deliciou terminando de engolir.
A parte ruim vem depois.
Mais tarde foram caminhar pela estação. Não só pelos ambientes climatizados mais acolhedores, mas também pelos locais mais escuros, menos receptivos, que tinham um clima um tanto industrial, misterioso.
Ela continuava nua, desafiando suas sensações. Ele com uma veste básica, capaz de se adaptar instantaneamente a qualquer temperatura. Observava o caminhar elegante, hora cuidadoso, hora displicente, de sua companheira que ia a frente.
Não está machucando os pés? Podia pelo menos usar isto! E ele ofereceu a ela um par de pequenos cilindros escuros, botas inteligentes, capaz de se amoldar aos pés e assumir praticamente qualquer forma, desde uma confortável sandália até uma inteiriça bota de cano longo.
Ah... Entendi. Ela as calçou e as manipulou, tornando-as sapatos de salto alto, passando a caminhar toda empinada.
Eu não acredito no que estou vendo!
Ela se divertiu um bocado, provocando. Era assim que as mulheres do seu tempo andavam?
Algumas. Mas não vejo isso há... Por que insiste em querer levar meus instintos de volta à idade da pedra?
Por que não?
Saíram numa ampla galeria com vários acessos a laboratórios dos quais a maioria ele jamais visitou, embora tenha examinado seu conteúdo remotamente.
É que... Depois que fui descongelado pela última vez... Após me cansar daquela estranha vida mudando de estação em estação até a Sagitário 12... Em algum momento sublimei por completo minha sexualidade e passei a me sentir muito bem apreciando aspectos mais elevados da existência. Não queria usar um corpo alterado... Você sabe. E tive algumas recaídas mas... Aí conheci você, e minha sublimação foi completa.
Se virou para ele, agora mais alta, graças aos saltos. E eu te trouxe de volta a um estado primitivo.
Não é que não estou gostando. Na verdade, isto está... Não conseguiu completar. Apenas sorriu extasiado. Mas estou impressionado com você.
Passei muito tempo apenas imaginando o que era ter um corpo. Agora estou...
Fascinada. Apaixonada pelo próprio corpo.
Sim mas... Voltou a caminhar, se atrevendo a dar passos mais rápidos, movimento mais ousados. Num momento pulou, e ao voltar ao chão se desequilibrou, caiu, um tanto surpresa. Ele correu para ajudá-la, um pouco assustado, lhe deu a mão e a levantou, e então se deu conta de quão estranhos foram seus sentimentos.
Calma. Não me machuquei. Esse corpo é bem resistente.
Eu sei mas... Me senti... Voltei ao passado. Cavalheiro socorrendo a donzela em perigo! Sabia? Como isso é estranho! Deveria não sentir mais nada disso. Uma relíquia de um passado que não existe mais a não ser... E mesmo assim. Reagi impulsivamente quando te vi cair.
Desculpe te provocar desse jeito. Mas estou um tanto... Eufórica. Acho que é Gravidade.
Caminhavam de mãos dadas. É tudo muito estranho. Mas sinto algo dentro de mim que jamais podia sequer imaginar. Se a mente é feita de elementos gravitacionais, não é de admirar que seja afetada por campos gravitacionais. Isso é... Um tanto inebriante quando se tem um corpo. Não sei como vocês se adaptam.
Ele quis mudar de assunto. Bem. Você não sente frio. Ótimo. Vamos ver se sente calor. E a conduziu para uma sala notavelmente mais quente. A veste dele se adaptou rapidamente, diminuindo a densidade e se tornando um tecido mais fino e poroso, além de começar a brilhar em alguns pontos, dissipando o calor que acumulava.
É bom. O calor é prazeroso.
Está bem quente aqui! Não me incomoda mas eu sei que está.
O principal motivo era uma série de equipamentos luminosos emitindo calor radiante. Cilindros finos envoltos por filamentos brilhantes imersos num tipo de plasma sutil. Muito bonitos, mas perigosos.
Cuidado. Disse ele quando ela se aproximou de um deles, como se fosse tocá-lo.
É só um ionizador. E levou o braço para ainda mais perto, dentro da área de calor.
Kethi! Cuidado!
Ela hesitou, mas depois insistiu.
Você está se queimando! Ele se moveu rápido e puxou-lhe o braço. Ela se assustou, e então se deu conta do que acontecia. Havia uma queimadura de primeiro ou segundo grau em quase toda a área do cotovelo até o pulso.
Kethi! Você... Ele soprou, depois a levou para fora da sala, rumo a uma fonte de água. Não está doendo?
Está mas... É estranho. Incomoda mas... Aaaii! A água fria causou uma reação mais forte. Ele havia introduzido o braço dela num pequeno lago artificial de água corrente. Que estranho. O calor excessivo incomodou mas não doeu muito. A água fria também não deveria incomodar. Mas a mudança brusca de temperatura me causou um... Arrepio. E sorriu.
Droga! Isso está feio! Surgiram algumas bolhas. Mas assim que ela retirou o braço da água, elas começaram a diminuir. A regeneração era bem acelerada. Não deveria ser assim, produzi os tecidos para serem mais resistentes a essas variações. Tenho que fazer algumas correções nesse corpo.
Vamos pro laboratório. Um fluido retificador deve... Não. Espere. Vamos ver o quanto ele regenera espontaneamente. Se demorar muito eu vou.
Você está bem?
Sim. Só um pouco surpresa. Respondeu sorrindo. A dor era pequena demais para tirar-lhe o bom humor.
Ainda muito eufórica, não? Experiência novas...
Tudo é muito novo. Diferente.
Acha que isso pode te mudar? Perguntou em tom sério.
Mudar... Como?
Quero dizer... Posso confiar em você?
Ela se espantou. Mas é claro! Então, olhando bem nos olhos dela, tomou-lhe as mãos, e muito delicadamente, suplicou.
Prometa-me.
O quê?
Que não vai me deixar.
Atônita, ela tentava em vão entender aquela fixação nele. Mas por que eu te deixaria?
Não sei. Nem me importa. Apenas nunca faça.
Ela o acariciou. Jamais. Nunca vou deixar você! Ela tomou o rosto dele nas mãos com firmeza, um tanto espantada, incrédula. Xanti! Confie em mim! Eu não sou a sua mãe! Não vou te deixar! Não soube mais o que dizer, o olhar dele foi de um constrangimento a um relaxamento, e na troca de sentimentos pelos olhos, acabaram desistindo de levar o tema adiante.
Ela desviou o olhar e perguntou mais para si mesma, num sussurro. Por que se preocupa tanto com isso?
Continuaram caminhando até que um som suave solicitou atenção.
Pois não Janitor. Desculpe demorar tanto pra responder.
Lamento interrompê-los senhor. Sei que estão passando por um momento muito especial e Kethi está tendo dificuldades em se concentrar.
Desculpe Janitor. Eu realmente não havia percebido que estava tentando se comunicar comigo.
Entendo. Mas penso que temos uma urgência. O VEMDAN está insistindo numa conferência.
É... Preciso dar minha resposta. Mas sinceramente. A mim pouco importa. Nossa função aqui já foi cumprida é acho melhor sairmos do planeta o quanto antes. Era a melhor forma de proteger Kethi.
Há algumas novidades senhor. Sugiro fazer essa conferência agora.
Sim. Estamos indo.
Conferência
Numa das salas de audiovisual Xanti e Kethi se sentaram. Ela ainda dispersa, e nua exceto pelos pés, examinando a lenta recuperação do braço, e ao mesmo tempo tentando funcionar remotamente, coletando informações sobre as novidades. Xanti apenas pensando em, qualquer que fosse a solicitação, atendê-la e ir embora o mais rápido possível. Não que não gostasse dali. Até que gostava bastante, e poderia ficar por muito mais tempo. Mas não podia mais abusar da sorte que estavam tendo. O SISTEMA poderia tomar uma medida drástica a qualquer momento, e era melhor que estivesse longe quando isso acontecesse. Rumo ao espaço exterior.
Mas ficou bastante surpreso quando a enorme imagem se formou à frente deles, revelando um notável grupo de pessoas. Era como se estivessem fisicamente presentes, dada a perfeição da imagem que contrariamente ao costume, não utilizava transparência com o intuito de se diferenciar claramente de uma presença real.
Além de Vemdamini, duas tetrahumanas, nenhuma parecia Garinei, embora ela pudesse usar outro corpo. Duas outras tinham aquela figura adrógina indefinida que ficava entre um corpo humano normal e um tetrahumano, mais ao fundo, algumas tinham aparência feminina, e curiosamente um tinha aparência masculina, com longos cabelos brancos e lisos, apesar de jovial e de traços fortes.
Xanti achou bem estranho. Por que diabos uma MA iria querer ter cabelos longos no corpo? Kethi o fizera apenas para agrada-lo, pois sabia que isso era atraente a seus sentidos naturais. Mas porque, contrariamente às outras a exemplo de Vendamini, aquele homem tinha cabelos compridos?
Pelo visto, além de terem aderido à óbvia solução de se precaver de um possível ataque do SISTEMA e tentar preservar as MAs em cérebros espelhos, parecia que já tinham maior experiência corpórea. Só isso explicaria que com o tempo fossem desenvolvidas excentricidades nada pragmáticas. Isso seria, no entanto, mais uma violação das regras do SISTEMA. MAs só poderiam assumir corpos com autorização ou solicitação de proprietários humanos, ou em situações de perigo externo eminente, e não como forma de se proteger contra uma provável providência oficial do próprio SISTEMA.
Algumas poderiam ter corpos desde a época em que havia humanos no planeta, mas ele apostava, e estava certo, que a maioria ali tinha corpos recentes.
Saudações Embaixador Xanti. Disse o homem de cabelos brancos, no que Vendamini confirmou, e acrescentou. Olá Kethi. Vejo que também aderiu a um corpo físico. Congratulações. E espero que não guarde rancores de nosso último e tumultuado contato.
Kethi se limitou a olhar de soslaio.
Pode me chamar de Grimence, e no momento sou seu canal oficial de comunicação com o VEMDAN. Disse o homem em tom cortês embora um tanto petulante, fazendo Xanti desconfiar que eles pensaram que uma figura masculina tivesse melhor chance de um entendimento com ele.
Pois bem senhor Grimence, Vemdamini, o que têm a me solicitar?
Em primeiro lugar senhor Xanti Respondeu o homem. Nós solicitamos saber se tomaste alguma decisão a nosso respeito.
Sim. A de não interferir. Decidi não por o SISTEMA contra vocês, o que é um grande favor considerando o lastimável episódio de meu sequestro, e que não importo com o que quer que estejam pretendendo desde que não destruam o Sistema Solar. Pretendo deixar este planeta o mais breve possível e liberá-los para decidirem seu próprio destino.
No que ficamos imensamente gratos senhor Xanti.
Ele notou que Kethi estava um tanto desnorteada. Olhava todas aquelas MAs encarnadas, em especial Grimence, com uma curiosidade fascinada. Ele tomou a mão dela, delicadamente. E ela pareceu sair de um transe, e sorriu para ele, deixando de dar atenção aos visitantes virtuais.
Infelizmente, senhor Xanti, mesmo sabendo que estamos em débito com o senhor, precisamos solicitar-lhe um último favor.
Diga.
Gostaríamos que interecedesse em prol do compartilhamento, por parte do Janitor, da tecnologia do Disruptor de Espaço Micro Condensado.
Por um instante Xanti ficou se perguntando o que seria aquilo, mas então se lembrou do que o Janitor antes dissera, sobre sua tecnologia mais preciosa. Bem. Se dependesse de mim eu não imporia restrições, mas o Janitor tem seus motivos para preservar esse segredo, e tem autonomia no assunto, e se é sua decisão permanecer assim, eu não irei questioná-lo.
No que muito lhe agradeço senhor.
Mas essa tecnologia é necessária para implementarmos nossos propósitos, sem por em risco a estabilidade originária do SISTEMA.
O... Disruptor de Espaço Micro Condensado é necessário para a implementação do GRIDVENCE?
Grimence e Vemdamini chegaram a quase se entreolhar, e era estranho como aquelas MAs pareciam querer ser o máximo possível fieis à simulação de humanidade em seus corpos antróides, até mesmo com trejeitos e cacoetes nada práticos ou mesmo contraproducentes. De fato senhor Xanti, é absolutamente vital para a implementação de nosso novo sistema.
Mas por quê? O GRADIVIND funciona exclusivamente pela malha gravitônica, não usa distorção de espaço em nível algum. Se querem desenvolver tecnologia similar, não vejo o motivo.
Usaríamos transmissão de conteúdos por rotas alternativas de micro espaço manipulado, e com isso contornamos a maior parte da malha gravitônica, deixando, por isso mesmo, a operacionalidade do GRADIVIND, em especial as backups das mentes, intocados.
Xanti olhou para Kethi, esperando alguma opinião, mas ela parecia dispersa, sem se concentrar no que era dito. Normal em situações como aquela, quando uma MA recém incorporada num cérebro espelho começa a ter experiências novas. Ele fez então um sinal para cortar a transmissão e conversar diretamente com o Janitor.
Teoricamente, faz sentido senhor, mas ao mesmo tempo denota que eles não foram devidamente sinceros ao dizer que estavam desenvolvendo tal tecnologia por conta própria. Se dependem do meu Disruptor, então como estavam tão confiantes na viabilidade de seus planos?
Tem certeza de que ele não são capazes de replicar ao menos parte de sua tecnologia?
Altamente improvável. Porque não a utilizariam então em suas naves de ataque? Seria muito mais eficiente do que os escudos que tem utilizado.
Você insiste em não lhes fornecer a tecnologia? Definitivamente?
Sim senhor. Não devo compartilhar esse segredo de forma alguma.
Muito bem. É o suficiente para mim. Reativou a transmissão.
Senhor Grimence, Vemdamini, Garinei... Se é que está aí. Me desculpe pelo mau jeito. Mas... Bem, com eu disse, não vejo qualquer motivo para contrariar a postura do Janitor nesse sentido, por isso lamento que não possam ter acesso à tecnologia do Disruptor, o que espero não seja um problema para quem parecia tão convincente ao falar de uma alternativa viável ao SISTEMA.
Senhor Xanti... Janitor. Por favor. Iniciou Vemdamini. Estamos diante da possibilidade de que todas as MAs aqui presente sejam eliminadas pelo SISTEMA. Incluindo o próprio Janitor, e incluindo Kethi.
Pedimos encarecidamente que reconsiderem. Completou Grimence.
Entendo que de fato seja uma possibilidade real. Mas se eu fornecer-lhes essa tecnologia será uma probabilidade praticamente total. É completamente contrária às minhas diretrizes fazê-lo, eu seguramente seria penalizado pelo SISTEMA, com certeza quase plena de receber exatamente o destino que na atual situação é apenas possível.
E eu, por me aliar a tal irregularidade, também poderia ser penalizado, e por conseguinte Kethi.
Houve um breve suspense, onde Xanti ficou estranhamente desconfiado de que tinha algo muito errado e dissumulado por trás das intenções do VEMDAN.
Sinto muito. É nossa resposta definitiva.
Então, após um estranho clima de tensão, Vemdamini olhou para Kethi. Kethi... Entenda nossa situação. Faça alguma coisa. Sua sororidade precisa de você.
E então, a imagem desapareceu, deixando o clima ainda mais estranho. O Janitor silenciou, e Xanti não sabia se era mais esquisito a frase em si, ou o olhar de Vemdamini e Grimence.
Xanti se levantou. E Kethi também, meio de súbito. Levou a mão ao braço, cuja a queimadura era quase imperceptível. Mas ela parecia sentí-la mais do que antes. Ele notou que ela parecia nervosa, mas estava por demais confuso e introspectivo para notar que, sem olhar para ele, ela tremia, e discretamente ofegava. E sem dizer nada, nem olhar para trás, ela saiu pelo corredor rumo ao laboratório de corpos.
Xanti então falou, tanto para ela quanto para o Janitor. Estamos indo embora. Comecem os preparativos.
Reviravolta
Ele saiu pelo corredor rumo a seu quarto afim de coletar os poucos itens relevantes que levaria. Seria rápido. Sua nave espacial estava em órbita, enquanto sua aeronave estivera, desde o princípio, pronta para partir a qualquer momento. Seria necessário pouquíssimo para adaptá-la para levar uma passageira a mais, que Kethi de certo providenciaria rapidamente.
Lamento ter que sair assim Janitor. Não é nada pessoal. Gostei bastante da estadia aqui mas acho que é melhor para todos nós. Desde que cheguei tivemos muitos problemas.
Entendo senhor. Gostaria que pudessem ficar mais, mas de fato o VEMDAN não parece ter reagido bem a essa nova situação. Tenho esperança que após partirem, as coisas voltem ao normal.
Kethi. Não perca tempo com o braço. Vai se curar totalmente em poucas horas. Comece já a preparar a nave. Por um momento se esqueceu que desde que ela estava com um corpo, nunca mais havia falado com ela enquanto estava fisicamente só. Estranhou a sensação, e não estranhou que ela demorasse a responder. Kethi. Reative a comunicação ambiente.
Sem resposta.
Janitor, ela está incrivelmente distraída. Chame-a para mim.
Ela não está me respondendo senhor.
Ah Kethi! Ela está até agora desorientada. Me mostre o laboratório.
Uma imagem do local onde eram construídos corpos surgiu à frente dele. Lá estavam armazenados os corpos tetrahumanos que podiam ser usados por ela a qualquer momento, bem como o corpo que originalmente ela deveria estar usando, que só então ele viu. Ah... Aí está o que eu havia projetado. O que o fez notar que tinha sim muitas semelhanças com a versão inicial. Também havia lá, embora ele preferisse não ver, o seu próprio corpo reserva. Era um procedimento padrão em qualquer instalação. O próprio Janitor o havia confeccionado antes mesmo que Xanti chegasse ao planeta, como requeria qualquer protocolo de habitações humanas, por menos que o beneficiário gostasse da idéia.
Kethi?
Ela não está aqui senhor.
E onde está então?
Um momento. Perdi por um instante a posição dela... Aqui está.
Para a surpresa dele, ela estava descendo rumo a uma parte da base que ele havia visitado apenas uma única vez, assim que havia chegado. Mas ainda mais surpreendente era ela estar trajando uma veste completa, preparada inclusive para uso exterior, e que ainda estava finalizando seu ajuste ao corpo. Mas mais estranho de tudo, na verdade, perturbador, era a expressão dela.
Kethi!? Kethi o que está fazendo?!
Ela não o respondeu, sua imagem passou por ele, que solicitou ao Janitor para conectá-lo com ela, para que pudesse ser visto também.
Mas ela se movia rápido, e havia limitações na projeção de imagens, de modo que sempre que a dele aparecia ela já havia passado, o que não o impediu de confirmar o fato terrivelmente inusitado dela apresentar uma expressão estranhíssima, como se estivesse, ao mesmo tempo, prestes a explodir num choro descontrolado, mas se contendo e agindo como que compulsivamente.
Foi arrepiante.
Kethi! KETHI!!!
Ela também não me responde senhor.
A mente dela está...
Ativa nos sistemas sim! Aliás numa intensidade que eu nunca tinha visto antes. Praticamente tomou duas seções inteiras de armazenamento e está neutralizando meu controle sobre alguns dispositivos operacionais da base.
Ele pediu para ver o padrão mental. Um gráfico surgiu com a representação básica de um modelo de MA, uma série de círculos concêntricos onde em alguns orbitavam outras séries de círculos, como uma representação estilizada de um complexo sistema estelar. De imediato percebeu que uma dessas órbitas, onde ficava o parte do subsistema emocional, girava numa velocidade anormal, denotando evidente ansiedade, porém, o fazia em torno de outros subsistemas que representavam outros tipos de emoções.
Ela está tendo uma crise nervosa. Nunca vi isso.
Mas seu sistema de operação de dados está perfeitamente funcional e atuando num nível mais amplo que o de seu controle corporal. E então ele realçou outro ponto orbital e mostrou suas conexões externas, que representavam as funções de controle virtual dela se espalhando por sistemas informáticos diversos.
Então viram ela abrindo um discreto painel e manipulando pequeninas placas transparentes.
Ela está usurpando totalmente meu controle sobre a seção 6 do laboratório de armas.
Impeça-a! Ela enlouqueceu! Ele começou a correr rumo ao local.
Está muito difícil. Desde o começo lhe concedi acesso privilegiado a várias funções da base, e mesmo onde ela tinha acesso limitado, está sendo especialmente eficiente em burlar minhas restrições. Minha melhor defesa seriam exatamente os dispositivos físicos de segurança, mas com um corpo ela pode neutralizá-los também, ao mesmo tempo que libera outras funções e invade ainda mais o meu sistema!
KETHI! EU ESTOU INDO! PARE O QUE ESTIVER FAZENDO!
Estou surpreso senhor. Tenho que admitir que ela é muito mais eficiente do que eu pensava. Acaba de penetrar no sistema de controle de acesso a câmara onde armazeno os protótipos do Disruptor de Micro Condensação de Espaço!
Ele desceu correndo numa escadaria e num salto transpôs um vão invés de contorná-lo. O Janitor ia abrindo antecipadamente as portas até que uma, de repente, não se abriu, levando-o a se chocar com ela.
Perdi o controle dessa seção!
Xanti forçou a porta e entrou numa ampla sala, correndo em disparada para o acesso rumo aos laboratórios de armas. KETHI!!!
Ela entrou no laboratório 6 senhor, mas não consigo ver nada lá dentro. Nunca me aconteceu isso! Enviei alguns robôs mas perdi contato com eles lá dentro também.
É onde fica o Disruptor?
Não exatamente, mas é onde ela pode forçar um acesso aos dados do mesmo. Estou gerando novas camadas de encriptação mas... Ela já está decodificando algumas! Senhor! Ela vai roubar minha tecnologia!
Após forçar mais duas passagens, ele finalmente chegou ao local. Mas... Onde ela está?!
Estou tentando localizá-la senhor...
No Hangar!
Era perto, ele correu noutra direção por um acesso inferior. O Janitor trouxe um elevador que o recebeu, e subiu rapidamente com uma aceleração dolorosa.
Ele saiu bem ao lado de sua nave, que estava lá, intocada, bem ao tempo de ver outra bem menor decolando. A repulsão magnética evidente pelas sutis descargas luminosas do ventre da aeronave.
Não consigo impedi-la senhor. Ela assumiu o controle das portas.
Xanti ainda correu rumo a nave mas a súbita liberação de energia o impediu de avançar mais. A nave seguiu rapidamente pela saída, sumindo no céu, e então a porta se fechou.
KETHI!!!
Ataque Inesperado
Ela nos traiu senhor!
Está indo rumo ao VEMDAN. Ele disse para si mesmo. Ainda está em algum sistema da base?
Não senhor. Acaba de se retirar completamente. Está restrita à nave que roubou. Então a porta do hangar abriu, e o Janitor enviou duas outras naves ao encalço dela.
Xanti correu para sua própria nave. Ela conseguiu a tecnologia do Disruptor?
É impossível dizer. Mas devo pressupor que sim.
Em sua nave particular, Xanti se sentou a frente de um painel onde acessou um mapa mental de Kethi, bem mais completo que o que o Janitor tinha acesso, e repleto de detalhes que a própria Kethi não conhecia. Ela não tinha acesso a eles, somente seu proprietário, o que em si era algo comum, mas não a enorme quantidade de informação adicionada nos últimos instantes até que ela cortou a ligação.
Senhor. Ela está em minha nave mais rápida e tem larga vantagem. Não posso alcançá-la.
Xanti não respondeu, estava absorto manipulando alguns gráficos.
Não posso permitir que minha tecnologia especial caia nas mãos do VEMDAN.
Espere! Deixe-me verificar...
Senhor... Minha única opção é abatê-la!
NÃO!!!
Ela ainda está no alcance de meus canhões nucleares, e é pouco provável que já tenha conseguido transmitir a informação.
Deixe ela ir! Eu vou atrás dela!
É minha última chance senhor!
Xanti se levantou. JANITOR! A mente dela está TODA condensada no cérebro espelho! Ou no máximo naquela nave! Se atirar, e houver algum perturbação gravitônica VOCÊ VAI MATÁ-LA!
Não tenho outra opção senhor!
NÃO ATIRE!!! Ou vai ter a MIM como inimigo!
Ela nos traiu senhor.
Eu sei. E ele voltou a finalizar os últimos retoques do que vinha fazendo.
E me intriga que o senhor não pareça tão surpreso quanto deveria.
Estou te repassando um modelo mental completo dela. Para que compreenda melhor o caso Kethi. É mais complicado do que parece.
Senhor! Tem uma frota se aproximando! É UM ATAQUE!
Os canhões nucleares da GRID começaram a agir. Naves inimigas foram sendo rapidamente desintegradas.
Onde está Kethi!?
Fora do meu alcance. A frota inimiga a está protegendo.
Ela está a salvo?!
Do meu alcance, sim.
Xanti recebeu um visual da frota inimiga se aproximando aos poucos, mas sendo dizimada dos céus com incrível rapidez. Não tinham chance de se aproximar, mas na verdade, não era exatamente necessário que o fizessem. Uma só que conseguiu uma posição mais avançada, lançou um pacote rumo ao solo, já dentro da área da GRID.
Sobre uma das arenas, o pacote se abriu, e uma pequenina frota das temíveis e minúsculas naves emergiu, com seus escudos ativos num nível máximo.
Pode destruí-las?
Sem causar danos à GRID não. Estão sobre instalações delicadas. Terei que abatê-las com os sistemas de defesa convencionais.
Tem controle sobre algum satélite?
Não senhor. E elas estão vindo em nossa direção. O objetivo, eu arrisco dizer, é minha completa destruição. Não sei se posso detê-las.
Xanti já havia saído de sua nave e corria para o laboratório de produção de armaduras. Estou te concedendo acesso direto à minha nave no espaço. Pode usá-la para assumir o controle dos satélites do VEMDAN ou destruí-los. Começou então a preparar uma armadura, e enquanto isso, as mini naves deslizavam lenta e ameaçadoramente sobre as arenas da GRID, insensíveis às armas da defesa.
Estão ainda mais resistentes que da última vez. As torres de combate tentavam de tudo, com o auxílio de naves de defesa e robôs que corriam para tentar deter o avanço das invasoras. Ao que tudo parecia, o VEMDAN havia desenvolvido seu escudo impenetrável a um grau máximo. O Disruptor pode ajudar em alguma coisa? Perguntou enquanto já saía do laboratório em sua armadura. Depende da configuração do campo antigravitacional, que não consigo ler. Dependendo da situação, pode ser inútil, ou mesmo extremamente arriscado.
Mas há leitura de antigravidade? Xanti já estava voando em sua nova armadura, se aproximando da área de combate. Impossível ter certeza, o campo repulsor continua confundindo qualquer forma de sensoriamento.
Abaixo dele, a Arena mais próxima à base KOLARA, num vale profundo cercado por duas cordilheiras, estava imersa num caos de explosões e liberações de energia que ainda assim no máximo retardavam a aproximação das naves. O que era mais eficiente eram as configurações do labirinto, que iam se modificando para obrigá-las a dar voltas, bem como se elevando para tentar forçá-las a subir, permitindo que os canhões nucleares entrassem em ação.
Afaste-se senhor. Não tenho escolha a não ser deflagrar um disparo nuclear, por mais custoso que isso seja.
Xanti recuou mas antes do que pudesse esperar, duas enormes explosões ocorreram. Mas não foram os canhões nucleares os autores, e sim, as vítimas, que foram pulverizados no alto das montanhas.
Estão armadas! Destruíram meus canhões! Estão se aproximando da Arena Subterrânea. É minha última linha de defesa antes de se aproximarem das instalações internas. Mas lá dentro, eu tenho alguns últimos recursos.
Xanti se adiantou, e voou rumo a uma enorme caverna subterrânea que, atravessada, saía logo abaixo do hangar. Lá embaixo a arena tinha grades de defesa em cima e em baixo. Torres emergiram como estalactites e estalagmites, enquanto barreiras iniciais foram sendo erguidas para retardar a aproximação das naves.
Mas elas habilmente se aproximavam e excitavam o escudo, fazendo-o brilhar e emitir um calor intenso, que derretia qualquer estrutura sólida, mesmo que os descalorizadores fossem focados à potência máxima, e assim, com paciência, elas iam adentrando o local.
Através da nave espacial de Xanti, o Janitor conseguira assumir o controle de um satélite orbital, que poderia destruí-las do espaço com uma precisão maior que os canhões de superfície. Mas agora, qualquer disparo reverberaria nas rochas causando danos à base. As grades superior e inferior eram extremamente resistentes, e era difícil prever de que forma o dano se espalharia.
As naves invasoras sequer poderiam tentar usar seu calor intenso para perfurar o solo, visto que a camada de ligas sólidas que se prolongava pelo subterrâneo era de uma espessura proibitiva. Mas era isso mesmo que o Janitor já se preparava para obrigá-las a fazer, a fim de ganhar tempo. Já havia começado a, com os descalorizadores, congelar ao máximo o subsolo.
Janitor. Cesse o ataque. Quero me aproximar delas.
As torres então ficaram inativas, não tendo, até agora, destruído sequer uma das naves.
Finalmente Xanti pôde vê-las em detalhes. Eram apenas 8, não muito diferentes das que ele havia visto anteriormente. Pousou abaixo delas e constatou que desta vez não havia antigravidade ativa, apenas repulsão magnética comum. Também o escudo, livre do ataque, diminuiu de intensidade permitindo que ele pudesse distinguir mais detalhes. Então percebeu algo.
Voou para longe delas, sugerindo que as torres reiniciassem o ataque, o que fizeram de imediato, retardando-as mais uma vez à medida que o escudo se intensificava.
Janitor. Pode usar o Disruptor de Micro Espaço?
As torres não estão equipadas com ele, terei que enviar um robô com o protótipo.
Esse VEMDAN parece decidido a violar todas as regras existentes do SISTEMA! Sabe o que ele está usando na fuselagem nas naves?
Não tenho uma leitura precisa senhor, mesmo com as imagens que está me enviando.
É a mesma liga do invólucro dos cérebros móveis!
Então é isso! Por isso a resistência adicional contra quaisquer resíduos de energia que passe pelo escudo.
Depois dessa, se o SISTEMA não destruir o VEMDAN vou considerar que ele é que merece ser destruído!
O robô portando o protótipo do Disruptor chegou. Infelizmente não posso garantir que será eficiente. Não sem saber exatamente a natureza deste escudo. Ele deverá distorcer o espaço em algum ponto, provavelmente abrindo uma fenda de acesso, mas é difícil conseguir fazer qualquer coisa passar por ela.
Simples. Xanti pousou ao longe. Foque descalorizadores à potência máxima sobre elas.
São inúteis contra o escudo.
Eu sei. O objetivo é atingir a fuselagem assim que o escudo falhar! Descalorizadores penetram por qualquer orifício.
Este protótipo do Disruptor só pode atingir uma nave de cada vez.
Ótimo. Ponha repulsão magnética acima e abaixo ao máximo, e atinja a quinta nave da fila!
Boa idéia! Ele o fez. As naves ficaram a deriva, tendo que desativar a própria repulsão para evitar serem jogadas para um lado ou outro. Como o escudo impedia impulsão iônica, ativaram deflexão gravitacional, inclinando o eixo de atração e passando a "cair para frente", como se o planeta as atraísse obliquamente.
Agora! E então o Disruptor entrou em ação. O efeito era diretamente invisível, mas distorcia a imagem de qualquer coisa pela qual passasse. Ele ia simplesmente condensando o espaço numa esfera cada vez menor, até atingir o escudo, dando a impressão que parte da nave simplesmente encolhia, resultando numa distorção bizarra.
Então, subitamente, inverteu o efeito, passando a alargar o espaço, fazendo a nave parecer inflar. E então inverteu novamente, e de novo, cada vez mais rápido, até começar a "rasgar" o espaço. A matéria e energia, totalmente subordinadas ao espaço, tinham dificuldade de seguir as constantes distorções, e então uma fenda dimensional surgiu.
A nave congelou por um instante, pelo efeito do descalorizador. Sabiam que não seria por muito tempo, ela tinha um gerador de energia extremamente potente. Mas também sabiam que isso não era um problema.
Num instante de segundo, a baixa temperatura fez o escudo oscilar, e então o disruptor atingiu a nave em cheio no momento em que ela ativou a autodestruição.
Contração Máxima na maior área possível!!!
A distorção concentrada no espaço começou a se espalhar rapidamente, muito além da área anterior, começando a engolir as outras naves, e parte das torres. As naves ativaram a auto destruição, mas foi inútil, explodiram violenta mas contidamente. Uma liberação de energia que teria se espalhado quilômetros e penetrado terra adentro foi sugada para um ínfimo ponto, implodindo num frenesi que engoliu até mesmo parte da grade superior e inferior.
Xanti chegou a dizer o momento de parar mas o Janitor já havia entendido. Subitamente, tudo que havia ali simplesmente sumira, como que consumido por um brevíssimo e devorador buraco negro. E ainda assim, o que restou ficou na mais perfeita calmaria.
Maravilhoso Senhor! Incrível como eu não tinha pensado nisso!
Parabéns Janitor. Agora você tem uma gerador de mini buracos negros que não precisa usar força gravitacional diretamente.
Tem razão. E o mais interessante é que o VEMDAN não tem como saber o que aconteceu.
E mesmo que soubesse. Ou desiste de usar tecnologia gravitacional, ou vai ser sempre vulnerável ao Disruptor de Espaço, que desvia a gravidade manipulada a seu favor, provocando o colapso.
Como sabia que a liga de invólucro dos cérebros móveis reagiria de forma tão brusca? Pela estimativa de densidade?
Em parte eu desconfiava disso. Um material tão raro e denso como esse precipita o colapso de matéria induzido pelo Disruptor. Mas de qualquer modo... O que havia a perder?
Foi uma honra compartilhar essa excelente vitória Senhor Xanti.
Ele cruzava a caverna rumo ao hangar, quando o Janitor o lembrou. Senhor. Sugiro então que solicite ao SISTEMA a intervenção sobre o VEMDAN o quanto antes.
Não. Prepare todas as naves de combate que puder e construa uma armadura com as especificações que estou passado.
O que pretende fazer senhor?
Ora... Disse, ao pousar no hangar.
Vou atrás da minha MA!
Fim da Parte - 2
Marcus Valerio XR
Março-Abril de 2014
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