Sobrevoando...
… o rio, ele se sentia livre. Deixara para trás os problemas, as dores, as preocupações. Sem as exigências da carne, sem o peso do corpo, sem o tormento da gravidade. Somente a liberdade de sobrevoar um cenário paradisíaco. O rio, a cachoeira, a floresta.
Então viu a casa, a prisão luxuosa onde vivera os últimos dias, e voava para ela. Adentrou o mesmo quarto onde há pouco tempo havia adentrado com seu corpo. Corpos! Havia vários! A maioria em cilindros escuros, mas os poucos cilindros que estavam transparentes sugeriam que os demais deveriam ter o mesmo conteúdo.
Voou para cima de um dos cilindros, que se abriu, e mergulhou no líquido. Viu uma cabeça, com cabelos se mexendo imersos no fluído denso, se abrir ao meio, revelando o interior vazio de um crânio com algumas pequenas conexões biônicas. Entrou, e tudo escureceu.
Então começou a sentir novamente. Frio, calor, uma inspiração brusca, o coração batendo. Tinha mãos, tinha braços, e começou a se mexer. Abriu os olhos e tudo estava embaçado, mas reconheceu o local, reconheceu as criaturas. Dir-Zá e Ei-Kis.
Vieram à tona irracionalidades que há décadas não lhe perturbavam. Fora criado sob uma certa pressão religiosa, no orfanato onde vivia com muitas outras crianças. Jamais reclamaria do lugar. Teve muita sorte, tinha tutores carinhosos, amigos fiéis, mãos amigas. Mas tinha também orações, ficções, e ameaças metafísicas. Não tanto dos adultos, mas principalmente de seus irmãos de criação.
Estava no inferno? Prisioneiro de demônios sem alma? Com olhos enormes, pés inumanos, seios que cuspiam espuma pegajosa, e onde uma delas até tinha cauda? Não era o inferno um lugar onde não poderia mais morrer? Ele não pediu para voltar! Queria ter morrido! Mas agora era evidente que também tinha um cérebro flutuante, que saiu de seu corpo e entrara em outro. Certamente uma das adaptações que o computador que o descongelara fizera. Mas ele não foi informado! Não autorizou!
A razão voltou, e pensou por um instante. Por que não? Se a humanidade tinha atingido tal grau de desenvolvimento, porque não o usaria para derrotar a morte? Ou ao menos para dificultá-la!?
A visão ainda era borrada, mal distinguia suas tatuagens, mas foi ajudado a se levantar. Sentia-se mais forte. Maior. Parece que haviam lhe dado um corpo mais avantajado, e isso, longe de agradá-lo, lhe deixou ainda mais estranho, perdido num mar de sentimentos desconexos, contraditórios. Seu corpo era tudo o que tinha naquele novo mundo. A única coisa sua. Além da Veste que lhe fora inicialmente dada e se colava intimamente a ele. Agora estava nu, e começou a tocar a cabeça, sentindo os cabelos úmidos e oleosos, e os sulcos no crânio que ainda formigavam, como se alguns últimos ajustes ainda estivessem sendo feitos.
Então tudo voltara. O mal fadado passeio. O ataque aéreo. A cabeça de Dir-Zá explodindo e a aterrorizante visão de um cérebro sendo colocado no crânio de um novo corpo, que lhe ressuscitara temores infantis e instintivos, tremores primitivos e ancestrais. Mas se pudesse ter feito isso com sua mulher e filha, não o teria feito? Sentia agora que se comportara de um modo irracional, conseguindo conter uma pressão psíquica ainda terrível, que teimava em voltar a ferver e arrebatar-lhe qualquer bom senso. Só precisava se acalmar, só precisava volta a si, voltar-se a elas.
E com a visão mais nítida, olhou para suas tatuagens.
O que viu não poderia ser pior. Não poderia haver nada com maior capacidade de fazer explodir nele não somente aquela mesma pulsão primitiva que acabara de abafar. E ainda pior, não conseguiria imaginar, em nenhum outro momento de sua vida, que uma simples visão seria capaz de trazer a tona um sentimento tão abrasador. Não mais o medo, não mais o terror. E sim a fúria. O ódio!
- Onde estão elas?!
Dir-Zá não pareceu entender, ainda sem conseguir controlar com perfeição seu novo corpo, e espantada pela reação inédita de sua pequena criatura protegida.
- O que vocês fizeram!?!?
Ei-Kis se pôs à frente da companheira, ansiosa para, pela primeira vez, defendê-la daquele estranho ser que sua amiga insistia em querer cuidar. Ele estava furioso, possesso, desfigurado.
- ME DEVOLVAM!!!
Dir-Zá seria perfeitamente capaz de se defender daquele estranho e inesperado comportamento, mas estava chocada. Durante todo aquele tempo, seu adorável mascote ancestral havia se comportado excelentemente, muito melhor que qualquer outro que já tivera. Como podia estar tão alterado? Sabia que eram comum alterações de percepção e comportamento após uma mudança de corpo, mas aquilo não era normal! Como podia ficar tão transtornado apenas pela alteração de imagens na pele que podiam ser refeitas facilmente a qualquer momento?
Ele voltou a olhar para as tatuagens, que não eram mais de sua esposa e filha, mas sim de suas captoras. Em um braço a imagem de Dir-Zá, e no outro, muito pior, a de Ei-Kis. Totalmente dominado pela cólera, avançou contra elas. Dir-Zá simplesmente deu as costas, correndo por uma porta afora para corrigir o erro o mais rápido possível, e Ei-Kis bloqueou a passagem dele.
E então, toda a revolta contida subiu à tona e uma só vez. O olhar medonho e pervertido daquela criatura lhe fez lembrar da constante hostilidade, da insistente tensão, de todas as ameaças veladas, e toda a força desses sentimentos o fizeram avançar e empurrá-la para o lado com uma força que jamais usara em sua vida. Ela reagiu, agarrando-lhe o braço e impedindo seu avanço rumo à porta por onde Dir-Zá saiu. E ele agiu como seria de se esperar nesse estado, virou-se de volta e com o outro braço desferiu um soco no rosto dela que só não lhe deixou totalmente surpreso por sua nova e estupenda força, porque estava irracional demais para sequer pensar no assunto.
O impacto fez ela recuar, ele continuou encarando, por um momento sentindo o sabor de dar à aquela monstruosidade o que ela merecia. Então a esqueceu, dando-lhe as costas, e o que aconteceu então foi muito rápido.
Num instante Ei-Kis estava à sua frente de novo, e com uma das pernas lhe deu um chute que não lhe ofendeu pelo impacto, e sim pelo impulso, que o jogou longe. Ele se levantou rápido, e o tecido da Veste dela se abriu na região dos seios, expondo-os. Eles se incharam, e então dois jatos de líquido foram lançados nos pés de Ielg, cada qual atingindo o alvo com precisão espantosa.
A substância, no primeiro instante, era viscosa, e ele escorregou caindo de costas, mas logo ela se expandia e colava tudo num ritmo alucinante, e a espuma, em pouquíssimos segundos, envolveu seus tornozelos grudando-os no chão. Ele nunca saberia se teria naquele momento sangue frio suficiente para não tentar libertar as pernas com as mãos, o que provavelmente lhes deixaria presas também, porque logo Ei-Kis estava acima dele.
Descalça, ela agarrou suas mãos com os pés, envolvendo cada pulso com o fortíssimo dedo do calcanhar, e usando todo o peso do corpo “pregou” seus braços abertos e estendidos no chão com uma violência e firmeza que a própria espuma aderente jamais poderia. Ela temia seus dentes, achava que ele, assim como um animal, os usaria assim que pudesse, e então enrolou sua garganta com a cauda, dando várias voltas.
Empurrando seu pescoço contra o solo, ela fez súbita pressão e por um instante o estrangulou, quase fazendo-o desmaiar, mas logo aliviou, esperando que servisse de aviso. Então se curvou sobre ele, fazendo questão de mostrar que sequer usara os braços, aproximando sua cabeça e olhando-o com fúria homicida. Com uma mão agarrou-lhe os cabelos, e com a outra ergueu o braço com os dedos apontados e enrijecidos, ameaçando golpeá-lo, e com a língua exposta, enorme como ele nunca havia visto, deixou escorrer uma gota que o atingiu num olho causando ardência imediata.
Então Dir-Zá apareceu, aos gritos, e a impediu. Surpresa Ei-Kis resistiu, se recusando a soltá-lo. Houve uma breve luta entre elas, que discutiam sonoramente de um modo que provavelmente seria indecifrável mesmo para quem soubesse a língua. Ela terminou por soltar-lhe os braços, mas manteve o pescoço enrolado na cauda, ainda que sem apertá-lo. Ielg tentou se soltar, e estava conseguindo, quando num movimento brusco dela, aparentemente acidental, sua pélvis caiu sobre seu rosto, batendo sua cabeça no chão violentamente. E ele apagou.
O Diálogo...
…que deveria ter tido há muito tempo com Dir-Zá, e que sempre adiava, incluía questionar o sentido de manter-lhe em constantes algemas, visto que não tinha a menor intenção de fugir. Era curioso como justo depois de tudo o que aconteceu, ele estivesse livre delas.
Acordou no seu quarto, ainda estava nu, mas havia uma Veste ao seu lado. Vestiu-a, e embora ainda não fosse do tipo mais abrangente, era melhor do que as que normalmente usava. Tentou não olhar para as tatuagens. Não sabia se suportaria ver o rosto de suas captoras novamente, no lugar de sua família, mas quando se olhou no espelho, percebeu que elas haviam voltado. Sua esposa e sua filha estavam de volta, nos mesmos lugares, embora houvesse sutis diferenças de posição, proporção e opacidade, o que deixava claro que haviam sido colocadas novamente.
Sentiu-se muito mal. Houvera então um mal entendido? Bastaria então ter pedido com educação e seria atendido? Dir-Zá deve ter saído daquela sala exatamente para tomar alguma providência a respeito, mas ao ficar sozinho com Ei-Kis, perdeu todo o auto controle. Envergonhando-se do que acontecera, foi ao banheiro, bebeu água, comeu frutas, e ficou sentado na cama, com seu novo corpo, imaginando como poderia se desculpar com Dir-Zá, mas ao mesmo tempo um tanto satisfeito por ter enfrentado Ei-Kis, mesmo que tivesse levado a pior. O simples fato de tê-la atingido em cheio soava como uma vitória, mas ao mesmo tempo se entristecia pelo que Dir-Zá acharia disso, e também ao mesmo tempo que se satisfazia por mostrar que Ei-Kis pretendia mesmo trucidá-lo se pudesse, o que possivelmente faria Dir-Zá tomar alguma atitude.
Será que elas haviam brigado seriamente? O simples fato de ter suas tatuagens de volta e estar sem as algemas lhe dava uma sensação de que vencera no jogo psicológico entre os três, mas antes que pudesse pensar mais, a porta se abriu.
Dir-Zá entrou, bastante serena, com sua típica coloração prateada, deixando claro que o processo de trocar de corpo também foi estressante para ela. A porta se fechou e ela se aproximou, e se abaixou perante ele, junto à cama. E então, para sua notável surpresa, começou a falar no idioma que cada vez mais ele aprendia, mas que mesmo assim surpreendentemente parecia muito mais claro, e que, ainda mais interessante, tinha algumas lacunas preenchidas com nada menos do que língua portuguesa!
- Ielg... Eu não quis desrespeitá-las... Foi um engano... Pensei que elas eram suas antigas parceiras. Não sabia que eram divindades.
- Hã... Como? Divindades? O quê… O que está falando?
- Elas não são… Deusas?
- Não... Elas são... Eram... Minhas...
Não havia termos para que pudesse descrever a relação de esposa e filha. Tentou fazer analogias com o que conhecia, tentando fazer com que a relação entre ele e Dir-Zá servisse de comparação para uma relação marido e esposa, mas se sentia cada vez mais constrangido. Nada parecia funcionar. Até que a própria Dir-Zá conseguiu clarear o assunto.
- Você quer dizer... Que vocês tinham uma relação sexuada? Macho e fêmea? Como os animais?
- É... Sim! Como a espécie humana de meu tempo!
- E quer dizer então que... Essa pequenina era o resultado dessa relação sexuada? Uma cria?
- S-sim.
- Quê? … Mas isso é incrível! Eu nunca pensei que...
Ela estava sendo sincera. Estava mesmo fascinada! Ele reconhecia isso. Por incrível que pareça, não conversaram sobre aquilo durante todo o tempo que ele esteve ali, e ficava imaginando como isso podia ter acontecido.
- Então você é um macho!? É capaz de gerar vida, se tiver uma fêmea de sua espécie, de forma natural?
- Sim! Claro. Eu... Tentei falar sobre isso! Porque nunca conversamos antes?
- Não podíamos. Esse assunto é proibido.
- !... E agora? Podemos?
- Agora as condições estão diferentes. - Ela respondeu um tanto constrangida.
- Elas... Eram minha “família”! É, como se fosse uma união, como você e Ei-Kis, só que com capacidade de se reproduzir. Era a regra no meu tempo. Mas elas... Elas morreram. Num acidente...
- Os cérebros foram destruídos, ou vocês não podiam colocá-los em outro corpo?
- Ambos! Nem sonhávamos com essa tecnologia! Em geral, quando acontecia algo como o que aconteceu com você naquele ataque, ou comigo, naquela queda... Era o fim!
- Quando você foi congelado?
- É difícil dizer... Mas o computador que me despertou estimou que foi há 5 mil anos atrás!
- Cinco mil?! Que tipo de ano? De quantos dias?
- 365! Ou 366 a cada quatro, quero dizer... 4 anos são 1461 dias. Mas não sei se esses dias tinham o mesmo tempo dos daqui. É aproximado.
- Então... Você é de uma época muito anterior às novas Formações! Antes da reprodução artificial se tornar padrão.
- Certamente. Já havia… Algumas formas de inseminação artificial, clonagem de animais, já se falava em gestação em ventres artificiais mas... Praticamente toda a espécie humana se reproduzia normalmente. Quero dizer, sexuadamente!
- Cometi um erro terrível. Sinto muito. Não irá acontecer de novo. E... É. É tão estranho mas... De uma certa forma, pensando bem, é tão... Parece tão natural. Tão... Familiar.
Dir-Zá estava profundamente emotiva, começou a tocar-lhe e acariciar-lhe a cabeça, como fazia com frequência com Ei-Kis, principalmente quando esta ficava nervosa. Na verdade era como uma massagem na caixa craniana, como se quisesse acariciar o cérebro. Além disso, aquelas criaturas, mesmo sem sobrancelhas, rugas ou outras peculiaridades faciais, conseguiam ser muitíssimo mais expressivas que os humanos antigos, mesmo tendo um rosto tão liso e por vezes quase metálico. Ela parecia querer ouvi-lo mais, querer entender o que significavam realmente aquelas tatuagens, ao mesmo tempo que parecia ter compreendido perfeitamente aquela idéia de família, reconhecendo que não poderia ter sido de outra forma em tempos tão longínquos. Quase sentia-se tola por parecer tão surpresa, já havia estudado sobre aquilo, mas fora há muito tempo.
- Então você fez isso, para homenageá-las?
- E para lembrar delas! Para nunca esquecer o que eu fiz a elas!
- O que você fez a elas? Não foi um acidente?
Ele começou a chorar, um comportamento estranho, sabia, para aqueles seres que aparentemente sequer tinham fossas lacrimais, embora tivessem uma eficiente lubrificação ocular. Sua voz saía difícil, e era estranho ter que desabafar só agora, para uma criatura que sequer entenderia a maior parte do que ele diria, mas ele tinha que dizer a alguém. Cansado de dizer só a si mesmo.
- Eu… Foi um acidente… Foi uma imprudência. Uma estupidez! Foi uma época tão ruim. Eu estava tão... Cansado, nervoso. Estava com tanta raiva por que as coisas, pela primeira vez na minha vida, não estavam indo bem. Com tantas aulas pra dar no primeiro turno, madrugando naquele maldito horário de verão! Cansado da chacota e das críticas por causa daquela maldita piada da Equação Gravitônica! As festas de fim de ano foram horríveis! A família dela nunca aprovou nosso casamento! Imagine! Casar com um nerd órfão!
Dir-Zá, evidentemente, não podia entender tudo. Ele sabia disso. Mas era uma criatura tão inteligente, tão sensível, que era capaz de, talvez, ver mais fundo nos sentimentos dele do que um humano qualquer veria. Aliás, por que negar-lhe a qualidade de humanidade?
- Vínhamos de uma festa de passagem de ano. Tinha sido insuportável! Até meus sogros que não entendiam absolutamente nada de ciência vieram me aborrecer com a droga da Gravitônica! Com o horário de verão, tínhamos duas meias-noites. Comemoramos a falsa, e fomos correndo comemorar a verdadeira na casa dos outros avôs dela... Meu Deus! Que chuva infernal! Implorei para não irmos! Mas o único prudente ali era eu! Fomos nós 3, e a mãe dela, que não parava de me provocar! Queriam que eu corresse! Naquela pista encharcada... Eu estava num... Veículo terrestre. Havia muitos naquele tempo, e não eram muito seguros. Parei num retorno, não dava para avançar, muitos carros cruzando rápido, e elas me pressionando! “Já está quase na hora”! “Vamos nos atrasar!” “Dá pra ir agora!” “Anda!” “Vai!” “Eu já teria ido há muito tempo!” “Por que você não foi!?” MAS NÃO DAVA PRA IR!!!
Dir-Zá se comoveu, e puxou a cabeça dele para seu ventre, tentando desesperadamente consolá-lo.
- Eu sempre fui... Muito cuidadoso. Minha esposa sempre me apressava, ela corria muito. Eu não. Ela sempre reclamava que eu dirigia devagar demais, com cuidado demais. As vezes me recriminava porque demorávamos mais do que ela queria. E eu sempre sorria pra ela e dizia “Mas nós chegamos com segurança.” E realmente chegávamos. Eu nunca tinha tido um acidente. Nem uma multa! Mas naquele dia... Com ela aborrecida do meu lado, de cara fechada, minha sogra atrás de mim falando sem parar... Ela não teve nenhum arranhão. E a minha... A minha lindinha chorando! Chorando tão alto! Ela estava sendo tão manhosa... Eu só queria calá-las! Dar um susto nelas! Entrar de qualquer jeito e queria que buzinassem, freassem, que abrissem a janela e nos xingassem! E aí eu perguntaria “Era isso que vocês queriam?!” Então eu entrei... Assim que me apressaram de novo. Assim que disseram “Vai!” Eu fui... Arranquei, e sabia que ia acontecer alguma coisa...
Então ele se ergueu e olhou para Dir-Zá, e por um momento sentiu o quanto era surreal que tivesse guardado aquilo por tanto tempo, sem poder confessá-lo até mesmo aos seus melhores amigos. E agora, estivesse contando a uma criatura de um tempo e cultura tão diferentes que era impossível que entendesse metade do que ele dizia.
- Mas eu juro que nunca pensei que aquele cara ia se assustar tanto! Que o carro dele ia desgovernar tanto! Que o meu ia patinar! E eu tentei... Mas não consegui evitar... E por causa... Por causa de uma noite ruim. Por causa de uma briga tola... Por causa da minha impaciência e minha fraqueza...
Eu nunca vou me perdoar. Tive tanto ódio de mim que... Queria ser punido! Queria que pensassem que eu estava bêbado! Queria ser preso! Mas eu só tinha bebido meia taça de frisante! E eu... A meu... Por quê? POR QUÊ?!?!
E então sentiu que ela o entendia, com uma sensibilidade capaz de apreender suas emoções que compensava qualquer deficiência em compreender as razões. E ele se agachou, e encostou sua cabeça no ventre dela, que o acariciou de novo. E chorou.
E depois de um tempo, se sentiu melhor. Bem melhor. E se sentiu ligado à ela de uma forma estranha. Com uma intimidade, um carinho que era no mínimo exótico, levando em conta ser uma criatura que não podia sequer beijá-lo sem fazer sua pele arder.
Mais tarde,
…Ei-Kis e Dir-Zá conversavam no corredor, e pela primeira vez o faziam num tom, volume e idioma que ele poderia entender, não fosse o fato de usarem tantas construções e termos mais sofisticados. E havia algo ainda mais diferente. Era uma discussão, mas uma discussão amena, inclusive da parte de Ei-Kis. Dir-Zá, aparentemente conseguia convencê-la de algo, com muito tato e delicadeza, num gesto típico de intimidade que incluía além de apalpar as cabeças, bater suavemente as testas uma na outra. Até que, pela primeira vez, Ielg viu a couraça psicológica de seu desafeto ser quebrada. E de longe, ela olhou para ele, com uma expressão que finalmente não apresentava raiva ou desprezo. Foi breve, mas significativo.
Isso não impediu que quando ela viesse em sua direção sentisse um arrepio. Não era medo. Ele jamais tivera medo dela realmente, exceto talvez nos primeiros dias quando ainda tinha receio das duas. Mas um incômodo de ainda não saber exatamente como lidar com o fato de que ela poderia vir com uma abordagem diferente, uma vez que tinha uma coloração ineditamente prateada, denotando receptividade. E se ela lhe pedisse desculpas? Só de pensar nisso sentia raiva! Preferia que ela fosse ríspida como sempre.
Mas ela apenas passou por ele, e para sua surpresa, rumo à entrada do quarto delas, que ele nunca tivera acesso, e o convidou para entrar. Ele hesitou, mas ante a confirmação de Dir-Zá, finalmente se dirigiu à estranha porta transparente, mas que só revelava escuridão. Atravessou-a como se ela não existisse e cruzou rumo a um ambiente onde teve que caminhar às cegas por alguns segundos, até que, subitamente, tudo se iluminou.
Ele sempre imaginou que aquilo era principalmente o quarto delas. Um aposento onde dormissem ou fizessem outras coisas, e tivessem alguns equipamentos para dirigir as batalhas. Se sentiu um idiota por não ter imaginado antes o que, e como, de fato deveria ser.
A sala de comando. Imensa, muitíssimo maior do que ele pensava. Repleta de painéis e imagens flutuantes, e equipamentos engenhosos com funções enigmáticas. Viu de imediato vastos hologramas do planeta, com mapas detalhados de tudo o que acontecia. Viu gráficos e listas que representavam as armadas que elas gerenciavam, e as fábricas que montavam suas frotas. Era dali que elas controlavam as batalhas, e monitoravam tudo o mais que ocorria.
Viu de imediato imagens de várias partes do planeta, reproduzidas em perfeição tão nítida que só não pareciam reais porque apresentavam uma obrigatória transparência. Havia também imagens de diversas outras aliadas com as quais elas conversavam como se estivessem na mesma sala. No momento ocorriam ao menos 5 batalhas em pontos distintos do planeta, e era impressionante o quanto elas podiam manter tudo aquilo sob constante vigilância ao mesmo tempo que, fora da sala, pareciam levar uma vida doméstica pacata.
Na verdade, não era bem uma sala de comando ou controle. Era mais uma galeria, repleta do que pareciam ser janelas para diversas partes do mundo. Era como um museu onde cada canto exibisse um filme, ou uma galeria de acesso onde em cada parte, um portal se abrisse para locais totalmente diferentes. Poderia ficar ali, apenas observando aqueles incríveis cenários holográficos, por um dia inteiro sem se cansar.
Mas Dir-Zá, ao se aproximar dele, disse-lhe que não era objetivo mostrá-lo aquilo, mas sim conduzi-lo a um acesso mais versátil de informações, e ele entrou num cômodo menor, cilíndrico e mais reservado, onde ao centro havia, abaixo, um buraco contendo uma esfera vítrea, e o mesmo acima, que então geraram uma imagem que ele só conhecia numa versão muito mais modesta.
Ouviu então Dir-Zá explicar que estava dando a ele o acesso livre àquilo que chamavam genericamente por um nome que só poderia ser traduzido como “O SISTEMA”, e que devido às alterações nas condições, não mais havia motivo para impedi-lo de explorar melhor o que de fato estava acontecendo. Segundo ela, desde que haviam saído para o mal fadado encontro, uma situação incomum se dera, tão incomum que tinha resultado num raro ataque a uma nave com passageiros, que era algo normalmente proibido pelo SISTEMA, e então uma espécie de crise havia sido iniciada, com a revelação de informações que estavam deixando vários “clãs” do planeta em estado de alerta.
A crise na verdade havia sido iniciada bem antes, e na verdade envolvia as circunstâncias de seu descongelamento, e o ataque à base onde fora despertado. No entanto, somente agora, com a entrada de várias forças em jogo, a situação começava a tomar proporções planetárias. Dir-Zá insistiu que ele estudasse o que pudesse sobre tudo, porque talvez poderia ajudar a de fato entender o que estava acontecendo, e também para que compreendesse porque elas haviam se comportado de modo tão misterioso em relação a ele.
Ielg sentiu um súbito incentivo, embora temesse se decepcionar novamente. Seria a terceira vez que teria contato com um outro nível de informação. A primeira, na cidade flutuante, acabara frustrada pela barreira idiomática, a segunda, já em sua prisão, fora dificultada pelas incompreensíveis regras que tudo restringiam.
Tentou então não se empolgar demais, mas à medida que foi finalmente tomando contato com o que tinha em mãos, começou a desvendar um mundo tão novo e espantoso, que sentia que tudo o que aprendera em sua vida acadêmica parecia verdadeiramente pequeno.
O SISTEMA,
…no entanto, era a chave. Demorou para entender seu conceito, mas achava que havia enfim descoberto o ponto de partida para que tudo começasse a fazer sentido. Tratava-se de algo que até podia ter um ancestral primitivo na antiga Internet, mas numa relação mais análoga à que interligava o surgimento dos primeiros hominídeos à era espacial.
O SISTEMA era, a princípio, uma Infosfera que integrava não apenas os computadores e sistemas de comunicação planetário, mas na verdade bilhões de vastas estruturas informáticas em todo o sistema estelar, e que era em tese indestrutível. Mesmo que todas as unidades de informação em toda a parte fossem destruídas, O SISTEMA continuaria operante, visto estar de certo modo holisticamente embrenhado em praticamente qualquer tipo de dispositivo minimamente avançado, bem como, de certo modo, ecoando indefinidamente em subcamadas da própria infra estrutura da matéria.
O SISTEMA também não era um meio passivo de comunicação, e sim na verdade aquilo que poderia ser chamado de o Governo, o Estado, o próprio sistema jurídico. Todos os princípios, códigos, regras e forças da civilização provinham dele, que as executava automaticamente tendo poder total sobre todos. Era por completo impessoal, autônomo e soberano, eliminando então qualquer forma de governo exercido por indivíduos. De certa forma, não deixava de ser uma espécie de anarquia, visto que as regras do Sistema eram percebidas como se fossem tão espontâneas quanto as próprias leis da natureza.
Aquele estado de coisas, aquela Super Estrutura, vinha sendo mantida totalmente inalterada, inclusive sem qualquer alteração de conjuntura, há no mínimo uns 300 ou 400 anos, segundo o que podia estimar dos “anos” daquele planeta, e sob sua diligência a humanidade vinha se mantendo relativamente tranquila e estável.
Evidentemente, o principal objetivo e razão de existir do SISTEMA era a preservação da civilização, o que incluía a manutenção de todos os recursos materiais e garantias dos cidadãos, dando o máximo de liberdade individual possível que não atentasse contra a segurança do SISTEMA em si. E dentre as leis que o regiam havia uma que simplesmente proibia, na maioria dos casos, o perscrutamento do passado, especialmente o mais distante, inclusive, claro, seus idiomas. De fato, o conhecimento sobre a cultura dos primórdios da civilização, o que incluía o tempo de Ielg, era rigidamente controlado, sendo considerado extremamente perigoso, e só podendo ser concedido sob condições especiais. Por sorte o SISTEMA permitiu, em seu caso, que fizesse uso de idiomas de seu tempo para acelerar seu aprendizado dos idiomas atuais.
Graças a isso aprendeu que todos tinham acesso ao SISTEMA, mas somente nos termos dele próprio, o que para a grande maioria dos seres era plenamente satisfatório. O SISTEMA permitia, por exemplo, que um imenso “videogame” compartilhado por milhões de “clãs” fosse utilizado ao máximo, o que era a razão de existir de muitos deles, desde que jamais degenerasse para a destruição de patrimônios pessoais vitais e nem pusesse em risco a vida dos envolvidos, nem causasse danos a biosfera do planeta. Por isso todos os combates eram travados por robôs, com armas tão potentes que desintegravam os oponentes sem deixar vestígios, usando tecnologias não poluentes e restringidos também por algumas regras adicionais que prevenissem insatisfações muito grandes. Mas, por outro lado, O SISTEMA reagiria de imediato a um simples incêndio florestal, ou uma única fatalidade, paralisando todas as forças envolvidas e, se necessário, punindo infratores com a suspensão temporária de alguns de seus recursos tecnológicos.
Vale lembrar que, no entanto, a destruição de um corpo não era considerada uma fatalidade, a não ser que houvesse um dano direto ao cérebro. Embora ataques a corpos fossem restritos em outros níveis, como por exemplo, o que Dir-Zá sofrera, e que levara a imediata punição das adversárias que juravam inocência. Motivo pelo qual eles estavam agora relativamente tranquilos, sem sofrer novos ataques.
Um cérebro ser destruído, o que era a fatalidade em si, era uma violação gravíssima ao SISTEMA, podendo resultar inclusive numa punição que removia os cérebros dos infratores mantendo-os presos num sistema de realidade virtual por um tempo definido, conectando seus cérebros, literalmente, numa “cuba”. Essas simulações não eram apenas punitivas, mas também terapêuticas, podendo ser usadas para sanar problemas psicológicos, e com frequência, com a própria autorização da pessoa, podiam ser manipuladas suas memórias e criadas verdadeiras viagens mentais com vista a mudar comportamentos, induzindo reavaliações existenciais e completas transformações de sentimentos e atitudes, embora quanto maior fosse a invasividade do procedimento, exigisse maior consciência e autorização prévia e expressa do próprio indivíduo.
De qualquer modo, mortes definitivas, isto é, a destruição irreversível de uma pessoa, era algo que não acontecia há muito tempo, mesmo porque os cérebros gozavam de um tipo de tecnologia de conservação, integralmente manipulada pelo SISTEMA, que os tornava quase indestrutíveis.
Primeiro, eram revestidos com um invólucro constituído pelo material mais resistente conhecido, capaz de suportar mais de 15 mil graus de temperatura, isolando o calor e impedindo-o de atingir a massa encefálica, bem como resistir aos mais severos impactos, campos eletromagnéticos, vibrações e toda sorte de injúria. O material do invólucro era restrito, só podendo ser utilizado para esse fim e tendo sua aplicação proibida em qualquer outra situação, o que consistiria numa violação ao SISTEMA passível de punição.
Ademais, outros recursos integrados embutidos na própria massa neural permitiam uma poderosa conservação e restauração das estruturas neurológicas, de modo que danos cerebrais como aneurismas, derrames ou qualquer tipo de mazela sináptica fossem evitadas ou revertidas, visto que havia um backup constante dos conteúdos, não apenas em memórias holográficas incorporadas no invólucro protetor, como no próprio SISTEMA, que podiam ser a qualquer momento recuperados. Assim, mesmo um improvável dano cerebral que causasse perda de memória, capacidades ou habilidades, era prontamente sanado. Tudo isso, claro, era gerenciado pelo próprio SISTEMA, embora este permitisse e incentivasse também a cooperação e colaboração dos cidadãos.
Assim, a civilização era constituída, há quase um milênio, de pessoas que na verdade eram meros cérebros em invólucros flutuantes, nascidos em geral por clonagem ou geração artificial direta, que podiam mudar de corpo de acordo com a situação. Saber disso inclusive trouxe um grande alívio a Ielg, pois soube que os seres pequenos que avistara no encontro, que lhes pareceram de uma casta inferior de cidadãos, na verdade eram ocupados por cérebros que podiam sair de seus corpos e ocupar outros, dos tipos maiores, a qualquer momento, exceto nos casos em que estivessem cumprindo uma punição, e que havia vários outros motivos pelos quais algumas pessoas decidiam usar corpos como aqueles e até se submeter a situações aparentemente humilhantes, que incluíam jogos, desafios, apostas, fetiches ou as vezes certas funções que exigissem corpos menores.
Esses cérebros não eram de fato imortais, mas sua longevidade era, na maior parte das vezes, indefinida, embora com as constantes mudanças de corpos e com o desenvolvimento psicológico, a tendência era que as pessoas mudassem tanto ao longo de sua extensa vida que se tornavam praticamente irreconhecíveis em tempos diferentes, às vezes optando, deliberadamente, por esquecer partes inteiras de suas existências e viverem novas experiências.
Ielg não demorou a descobrir que suas companheiras tinham no mínimo o quádruplo de sua idade, na atual “identidade”, e podiam ter muito mais em autênticas vidas passadas deliberadamente esquecidas. Elas também podiam mudar para corpos diferentes. Dir-Zá poderia ter uma cauda como Ei-Kis, ou asas, ou nadadeiras. Mas havia, é claro, as típicas preferências pessoais. E na verdade, ele próprio poderia construir para si um corpo como o delas se quisesse, tal como a própria Dir-Zá já o havia feito, com a parceria do SISTEMA. Mas ele achava a idéia de assumir um corpo inumano simplesmente repugnante.
Foi estudando O SISTEMA que ele também fez uma descoberta não menos espantosa. A que, de fato, estava na Terra! Isso não havia sido deliberadamente dito pelo SISTEMA, mas para ele foi fácil deduzi-lo simplesmente vendo uma animação que mostrava a evolução das terras emersas do planeta. Pôde ver desde a Pangéia até sua época, e então, por processos que ainda não podia descobrir, viu a geografia do planeta mudar, o nível do mar subir consumindo todas as terras baixas, e depois descer devolvendo mais do que antes tomou. Viu a costa oeste da América do Norte afundar em definitivo, a ilha de Madagascar desaparecer, a Oceania mudar tão radicalmente sua forma que logo se tornou irreconhecível, e a água do mar invadir a bacia amazônica com tanta amplitude que praticamente cortou a América do Sul na faixa equatorial.
Percebeu então que, naquele momento, estava numa região equivalente a da antiga China, ou Rússia, era impossível saber, pois a geografia estava tão diferente que nem mesmo o famoso “encaixe” África e América do Sul era mais discernível. Pelo que sabia de geologia, teve certeza de que forças telúricas naturais não seriam capazes de produzir todas aquelas alterações.
Mas, o que levara o planeta a se tornar um satélite de Júpiter era muito mais impressionante. Por motivos ainda ignorados, Marte foi desintegrado, bem como Netuno e Urano haviam se fundido num só planeta, e por algum motivo a Terra fora capturada pelo gigante joviano, que passou a apresentar um anel tão vistoso quanto o de Saturno e que não tinha mais a famosa Mancha Vermelha. Motivos pelo qual, mesmo vendo representações do sistema solar, não conseguira antes reconhecê-lo. Mas tudo isso também estava envolto em diversas restrições típicas de qualquer coisa que investigasse demais o passado.
Passou muitos dias compenetrado com aquele aprendizado e as questões envolvidas, mas por insistência de Dir-Zá começou a estudar o que se chamava de Formações da Humanidade. Ele vivera no milênio final do que se considerava a Primeira, e original, Formação, mas nem mesmo sua filha teria visto de fato a emergência da Segunda, que se deu depois que o modo de reprodução dominante passou a ser em ventres artificiais.
Aparentemente a humanidade deixou de usar a reprodução normal, e não era difícil de imaginar por quê, até que uma catástrofe mundial quase a extinguiu, visto ter inviabilizado a maior parte da tecnologia e encontrado uma civilização fisicamente estéril. Ao que tudo indicava, isso coincidia com uma das crises das quais o computador lhe falara. Depois então a situação se inverteu. A Terceira Formação parecia ser constituída de uma humanidade muito mais fértil, mas com uma curiosa anomalia. As mulheres podiam se reproduzir sozinhas, provavelmente por partenogênese, e nesse caso só geravam meninas. Ao que parecia, o início da vida sexual de uma menina não começava na menstruação, mas sim quando engravidava espontaneamente gerando um clone de si própria, e então podendo realizar fecundação cruzada.
Com isso, evidentemente a população feminina superou a masculina, visto que fecundações cruzadas inter sexo continuavam tendo apenas 50% de possibilidade de gerarem um menino, enquanto a auto fecundação, ou mesmo a fecundação cruzada entre mulheres, que também era possível, tinha 0%. Uma das poucas informações claras e não restritas sobre a Terceira Formação da humanidade era que as mulheres haviam adotado um regime razoavelmente rígido de 3 gestações antes de adotarem métodos de anti concepção. A primeira, produzindo o próprio clone, então uma com um homem e outra com outra mulher, o que evidentemente fazia com que cada geração não pudesse ter mais que 1/6 de meninos.
A Terceira Formação parece ter finalizado com uma espécie de revolução, onde um grupo tentou restaurar a ordem antiga, isto é, fazer a humanidade voltar ao modelo inicial. Essa facção era predominantemente masculina, preocupada com sua progressiva perda de poder na sociedade, agravada pelo fato de que há muito tempo não havia mais grandes diferenças de capacidades físicas e mentais entre os sexos. Mas uma espécie de contra revolução terminou por radicalizar ainda mais essa desigualdade, e não por meio da violência, embora tivesse poder para isso, mas sim por promover uma liberação sexual que dava aos homens mais oportunidades sexuais aprazíveis do que eram capazes de aguentar, eliminando a força motriz, pensou Ielg, que segundo Freud movia a espécie humana, a repressão sexual, de modo que as mulheres terminaram por assumir o controle total da sociedade aprisionando seus homens num tipo de paraíso sexual.
O resultado, como era de se esperar, foi uma progressiva degeneração da parte masculina da humanidade, e sua quase extinção, pois a porcentagem feminina da humanidade continuava a crescer, e isso levou a restaurarem os métodos de reprodução artificial por meio de manipulações genéticas profundas, de modo a aperfeiçoar os indivíduos de ambos os sexos, o que terminou, com o tempo, por eliminar novamente a reprodução sexuada e reinstaurou a reprodução artificial, beneficiada por tecnologias muito superiores que protegiam a humanidade de qualquer nova catástrofe que pudesse por em risco sua segurança.
Foi ao fim da Terceira Formação que surgiu a tecnologia do tornar os cérebros não apenas totalmente independentes do corpo, o que já era feito em escala menor, mas também dotados de um sistema artificial próprio de sustentação e locomoção que lhes permitia agir fora da caixa craniana. Este, e outros motivos, terminaram levando a espécie humana a diversas cisões filosóficas e ideológicas que após muita oposição terminou por se polarizar entre duas frentes, uma representada pela maior parte da Terra, e outra, pela parte minoritária, mas apoiada pela maior parte da população extra terrestre, em especial em Marte e as colônias de Júpiter.
A partir daí, as informações entravam novamente em outro regime de restrição, que tornava muito difícil entender o que havia de fato acontecido. Mas tudo indicava que a destruição de Marte fora resultado de uma guerra. Que espécie de arma poderia fazer isso intrigou Ielg, mas não foi possível achar informação adicional alguma, pois era um dos assuntos mais restritos. Após essa grande catástrofe planetária, a humanidade foi reorganizada na Quarta formação, a atual, e que na verdade já existia por um período de tempo equivalente a quaisquer das duas anteriores.
Além das restrições, havia referências tão confusas que Ielg se sentia como nos tempos da cidade flutuante, sem saber o que era realidade ou o que parecia ficção. Muita coisa sugeria que a bioengenharia aperfeiçoara a troca de corpos e a versatilidade de anatomias distintas para adaptar a humanidade às novas condições ambientais, enquanto a Terra se movia pelo espaço rumo a Júpiter sendo bombardeada por asteróides. Também, ao que tudo indicava, fora só então que viria a ser instituído O SISTEMA, como existia agora. E não havia ficado claro, mas parecia que a humanidade ainda estava ideologicamente dividida, mas a outra parte estava em sua grande maioria fora do planeta.
Parecia que a parte feminina da espécie humana havia decidido manter a ginocracia e só não terminara por virtualmente extinguir os homens porque, de certa forma, ambos os sexos já estavam extintos, restando somente uma identidade assexuada que conservara apenas a aparência de feminilidade. Mas era difícil entender melhor isso ante referências cada vez mais confusas a respeito de uma intervenção divina salvadora que evitara a total destruição da espécie humana por meio de orações em massa a uma Deusa da Gravidade, o que não fazia o menor sentido, visto que religião era um tópico que parecia ter desaparecido ainda no meio da Segunda Formação.
Mas entendera ao menos uma coisa. Dir-Zá havia pensado que ele era proveniente ainda da Terceira Formação, onde pessoas com seu biótipo eram comuns, e a criogenia chegou a ser utilizada em massa por pessoas que não aguentavam as condições de vida de sua época e preferiam fugir para o futuro. Ficara também evidente que o desconhecimento da humanidade atual pelo passado era extremo, de modo que ele não demorou a perceber que em pouco tempo parecia saber mais sobre história do que Dir-Zá e Ei-Kis, e outras de suas aliadas que conheceu por tele presença.
A organização social atual do planeta era um desafio à parte. Ao que parecia o mundo era dividido em grupos pequenos, como se fossem clãs, embora o conceito de parentesco e família fosse radicalmente diferente, visto que a única relação parental era entre os clones e semi-clones, isto é aqueles que tinham seu DNA manipulado a partir de um padrão prévio. No entanto, as amizades e afinidades extra parentais eram muito mais determinantes, devido a interconexão mundial da humanidade, que não reconhecia tipo algum de limite. Esses pequenos clãs, em geral constituídos de poucos indivíduos, detinham vastas propriedades por todo o globo, muitas das quais vivendo nos subterrâneos ou sob o mar, muitas vezes com corpos adaptados para respirar em baixo d’agua salgada. Sua avançada tecnologia havia atingido o tão sonhado nível de auto sustentação e independência. Isto é, capaz de se gerenciar sozinha, promovendo auto manutenção e reposição, embora permanecesse fiel à espécie humana. Por isso, o trabalho se tornara praticamente desnecessário, visto que toda a produção, de qualquer espécie, era automática, e que os meios de produção não tinham proprietários específicos embora pudessem produzir recursos em massa para serem apropriados por quem quisesse. Qualquer pessoa poderia requisitar um território vago e pedir recursos, que estes lhe seriam prontamente entregues, de modo tão livre de qualquer problema de escassez que até a noção de custo parecia ter sido esquecida, passando então a empossá-la e gerenciá-la de acordo com seus próprios fins.
Em síntese, era o paraíso comunista utópico, ou melhor dizendo, anárquico, uma vez que ninguém em especial detinha o poder, exceto O SISTEMA, que não era de fato alguém. Ao que tudo indicava, grupo algum tinha o controle do SISTEMA, que ademais, era completamente impessoal, sequer tendo uma representação em forma de avatar, uma voz ou um símbolo, de modo que se infiltrava em tudo. Havia aqueles que tinham meios de ludibriá-lo, mas isso apenas em pequena escala. A situação era tão opulenta, tão farta e ociosa que a humanidade podia se dar ao luxo de gastar a maior parte de seus recursos em vastas guerras “virtuais” para decidir entre si quem teria direito a tal ou qual território adicional, visto que o SISTEMA em si não reconhecia essas propriedades, exceto aquela mínima necessária para atender todas a necessidades “básicas”, que incluíam diversas formas de luxo e onde o mínimo de espaço territorial considerado saudável era superior, provavelmente, à maior propriedade privada do século XX.
Os clãs se respeitavam por convenções sociais autônomas limitadas, impondo uns aos outros termos e condições de acordo com os resultados das batalhas, e em geral previamente acordados em contratos que não tinham qualquer reconhecimento por parte do SISTEMA. Ou seja, alguém poderia perder uma batalha e ignorar os termos do contrato, pois os adversários não poderiam fazer mais do que destruir sistematicamente suas frotas ou invadir seus territórios adicionais, de modo que fazendo vista grossa, o clã poderia simplesmente ignorar tais consequências e continuar vivendo em paz em sua reserva, sem sequer ver as frotas inimigas. O único prejuízo era o orgulho e as relações sociais.
Isso também denotava outra coisa, que a humanidade, no sentido produtivo, estava estagnada. Parecia haver muito pouca pesquisa e aquisição de novos conhecimentos, embora houvesse espaço para isso desde que não houvesse perspectivas que pusessem em risco O SISTEMA em si, como era exaustivamente repetido. Com isso, o campo parecia aberto a uma nova era de pesquisa e ciência. Ielg, que havia se formado em 4 especialidades: Física, Filosofia da Natureza, Linguística e Teoria da Informação, estava muito feliz, pois poderia partir agora para a sua própria Quinta Formação.
A Quarta Formação,
...todavia, continuava intrigando Ielg. Onde estava a outra parte da humanidade? Porque não havia informação sobre as comunidades extraterrestres? Teriam elas acesso ao SISTEMA, ou este estava restrito ao planeta?
Os “tetrahumanos”, neologismo que Ielg criou para se referir à atual humanidade, ou talvez fosse melhor dizer “as Tetrahumanas”, pareciam plenamente satisfeitas em ignorar detalhes cruciais da história, do próprio funcionamento do SISTEMA e de seus semelhantes extra planetários. Estando mais preocupadas com suas guerras virtuais que, no fundo, não pareciam mais do que um tipo de passatempo.
Era assombroso pensar nisso. Quase inacreditável. Que 5 mil anos no futuro a humanidade estaria quantitativamente tão reduzida, e com qualidade de vida tão exponenciada, que podia se dar ao luxo de viver num planeta paradisíaco e se divertir dando a ele toques de Inferno, como guerras perpétuas e sem sentido, ainda que inofensivas, e formas corporais com frequência grotescas, em alguns casos até mesmo diabólicas. O que Reichi diria disso?
Mas uma série de coisas ainda estava por completo obscura. As circunstâncias de seu descongelamento, por exemplo. O abandono da cidade flutuante, que era praticamente ausente nos registros do SISTEMA. A curiosa reação das adversárias do clã Zá-Kis, que era de fato o nome do grupo composto por Dir-Zá e Ei-kis, que elas próprias ainda não haviam compreendido. Era claro, porém, que com tanta fartura material, ociosidade e a falta de uma educação mais consistente, no que o SISTEMA parecia incrivelmente omisso, foi gerado nas tetrahumanas não apenas um estado de ócio e alienação, mas também toda uma série de superstições que, até agora, Ielg não via o menor sentido.
O Vale era um deles, e ainda mais a cidade flutuante, que parecia despertar pânico nas tetrahumanas. Ele agora entendeu que elas não iriam até lá sob hipótese alguma, como se fosse uma cidade assombrada, amaldiçoada, embora não fosse exatamente proibida. Elas recusavam-se a ouvir até mesmo o que ele queria lhes contar sobre o assunto, e parece que coisas similares aconteciam sempre que se tocava em alguns assuntos, como o descongelamento de humanos antigos, antes da Terceira Formação, as viagens espaciais, que pareciam horríveis para elas, e a insistente, estranha e cada vez mais irracional recorrência à tal Deusa da Gravidade.
Com tudo isso. Era difícil saber o que priorizar como pesquisa, e Ielg, que já dominava bem melhor o idioma do SISTEMA, que era um tipo de língua global, estava tentando extrair alguma informação sobre isso quando se deparou com algo espantoso. Um símbolo.
Havia uma vasta quantidade de assuntos reunidos sob o selo que era restrito em níveis mais baixos, mas que agora Ielg podia acessar, visto que quanto mais informação fosse capaz de dominar, mais acesso lhe era permitido, ainda que sob algumas diretrizes. E o símbolo em questão era nada mais nada menos do que a logomarca da Criogenar.
Embora não houvesse referência alguma a essa empresa, parecia que sua logo havia se tornado um símbolo padrão do tema congelamento de seres humanos. Era constituída por uma silhueta antropomórfica na vertical, mas deitada em perspectiva, com os pés para a frente e os braços semi abertos formando uma seta, envolva por linhas de um paralelepípedo que representava um bloco de gelo, e envolta por uma espiral. Um símbolo incrivelmente simples, leve, e que conseguia dizer muita coisa. Uma pessoa congelada era alguém rumando ao futuro, como representava a forma circular que já era frequentemente associada a um tipo de portal.
Abrir o conteúdo sob o símbolo foi uma experiência espantosa para Ielg, visto que subitamente teve acesso a nada menos do que uma imensa lista de todas as pessoas que haviam sido congeladas, e a lista estava em ordem cronológica inversa. Isto é, com as pessoas que foram congeladas mais recentemente primeiro. Recentemente, no entanto, significava quase mil anos, visto que aparentemente ninguém mais fora congelado na Quarta Formação. Mesmo assim parecia haver milhões, uma lista infindável.
Decidiu detalhar mais algumas delas e viu que havia datas do congelamento, e também a de descongelamento, além de imagens e outras informações pessoais. Mas o que mais chamava atenção era o campo que falava sobre o “Critério de Descongelamento”, que dizia que tais e quais pessoas só deveriam ser descongeladas quando tais condições fossem satisfeitas.
Começava a entender melhor as datas e finalmente confirmou que a translação jupiteriana, que equivalia a 12 anos da antiga Terra, era um dos “tipos de anos” falados por Dir-Zá, e que o planeta dava uma volta em torno de Júpiter a cada 50 dias em média, embora isso não fosse tão simples de notar porque sua órbita oblíqua jamais o deixava ficar na sombra. Mesmo assim, havia um outro ano que era mais aproximado ao antigo ano da Terra, que era medido nada menos pela divisão da órbita de Júpiter em 12 partes, curiosamente nomeadas por termos zodiacais.
Com isso, Ielg foi capaz de configurar os dados para apresentarem datas como se seguissem o antigo calendário de sua época, e conseguiu ter uma noção muito melhor da passagem de tempo, perturbada apenas por um período, no começo da Quarta Formação, onde o tempo pura e simplesmente parecia não existir, embora fosse evidente que diversos eventos longos ocorreram. Notou que a maioria das pessoas que foram congeladas já haviam sido descongeladas ou tiveram seus corpos destruídos, e então procurou avidamente o seu próprio registro entre elas. Não encontrou. E não deveria ser difícil ao selecionar a organização por data mais recente de descongelamento.
Então começou a procurar pelas datas mais antigas. Se os cientistas da Criogenar estivessem certos, ele poderia ser o número 1 em termos de possibilidade de descongelamento. No entanto, foi se deparando com mais restrições que diminuíam cada vez mais as informações disponíveis, mas já estava ficando razoavelmente versátil em convencer o SISTEMA a lhe conceder mais acesso. E com isso conseguiu enfim uma lista de pessoas congeladas ainda na Primeira Formação, e que continha como informação adicional apenas a condição de descongelamento. E notou uma coisa muito curiosa. Havia muitas pessoas de sua época, algumas das quais ele tinha quase certeza de ter conhecido, mas na maioria das vezes elas ou haviam morrido, já haviam sido descongeladas há muito tempo, no máximo no início da Terceira Formação, ou suas condições de descongelamento jamais foram satisfeitas. E não era para menos, uma delas queria ser descongelada apenas quando o Islamismo tivesse convertido toda a humanidade!
Mas a maioria das condições de descongelamento eram dadas pelo próprio SISTEMA, que as tratava como um caso de segurança, que era cada vez mais rígida, de modo que encontrava camadas e subcamadas de informação confidencial até que se convenceu que o único motivo de não ser encontrado era que o SISTEMA, além de não saber que ele havia sido descongelado, ainda parecia colocá-lo em listas cada vez mais restritas.
Algumas condições diziam que certas pessoas que tinham conhecimentos potencialmente perigosos só podiam ser descongeladas em tais e quais condições, que muitas vezes incluíam ter que viver em outros planetas e sem acesso a certos tipos de tecnologia, e ele começou a sentir um arrepio ao desconfiar que talvez fosse o caso dele. Por algum motivo fabuloso, o SISTEMA não sabia quem era ele, e já estava quase convencido de que não tinha registro de congelamento quando finalmente se deparou com a mais “negra” de todas as listas. A de pessoas que só deveriam ser descongeladas em situações muito extremas.
Ele conhecia algumas delas, e todas estavam de algum modo envolvidas em pesquisas gravitacionais. Ele se lembrava por ter pesquisado exaustivamente o assunto antes de escrever o mal fadado artigo “Gravitônica”. Outras, ele sabia, não eram cientistas, mas filósofos, e havia até mesmo escritores de ficção científica que, de algum modo ou outro, tinham dito alguma coisa interessante sobre a força gravitacional. Um deles, na verdade, apenas havia estudado Copérnico, Galileu, Newton, Kepler e Einstein a fundo antes de sugerir algumas reflexões sobre o assunto.
Estavam todos na lista negra!
Por algum motivo, conhecimentos sobre a força gravitacional eram considerados do tipo mais perigoso, e mais restrito, e seu sangue gelou quando conseguiu alguma informação sobre uma matemática 30 anos mais nova que ele cujo feito tinha sido, nada mais nada menos, deduzir o segundo termo da Equação Gravitônica!
A Equação Gravitônica! Não podia ser! Como aquilo poderia ser considerado um conhecimento perigoso?! Não passava de uma conjectura filosófica, servia no máximo para ficção científica! Mesmo assim, cientistas sérios passaram os anos subsequentes ao seu congelamento tentando deduzir seus termos?! E o pior, estavam na lista negra por isso, com condições de descongelamento rigorosas!
E então, finalmente, ele conseguiu acesso a uma última informação adicional, e após todo um dia de uma verdadeira mineração de dados, finalmente conseguiu ver uma foto sua, com seu nome, e com uma advertência brilhante em letras garrafais e incandescentes de que ele era o AUTOR DA EQUAÇÃO GRAVITÔNICA!!!
EXTREMAMENTE PERIGOSO! NÍVEL DE RESTRIÇÃO TOTAL!
PARADEIRO DESCONHECIDO.
SEM CONDIÇÃO DE DESCONGELAMENTO!
E quase desmaiou ao ver, em letras ainda mais chamativas, como uma terrível advertência e um alerta máximo, escrito claramente a frase:
NÃO DEVE SER DESCONGELADO SOB HIPÓTESE ALGUMA!!!
A Equação Gravitônica...
…foi o inferno astral de Glei. Um erro de percepção, uma brincadeira de mau gosto que na hora em que foi exposta pareceu ser recebida com bom humor como realmente deveria ser, uma piada. Embora viesse ao final de um tema que foi interessante a todos.
Não conseguia se livrar da lembrança torturante do título de uma reportagem do maior semanário do país, que dizia “Cientista Renomado se Expõe ao Ridículo ao apresentar uma Teoria da Gravidade de Mentirinha”. Ainda que a reportagem tenha sido elogiosa ao falar “o órfão que sobreviveu à mais terrível inundação que o país já viu, é um exemplo de superação” , e discorrer sobre suas conquistas que chamavam mais atenção por sua origem humilde que por suas qualidades intrínsecas.
O que mais o revoltava é que o assunto já havia sido levantado em revistas especializadas e gerado uma breve e mínima sensação, logo superada, e que foi mesmo agradável, visto que pela primeira vez seu nome circulou amplamente nos círculos acadêmicos. Mas depois de sua publicação no infame semanário, voltou à tona com um nível de importância que ele jamais pensou que poderia atingir, e com uma predominante negatividade que variava desde conselhos para que isso não se repetisse, até ameaças e exigências de punição. O caso jamais fora levado à qualquer instância administrativa, e a maior parte da comunidade científica ainda considerava apenas um acidente de percurso superável, mas o gosto popular pelo trágico e sua fixação pelo pior causou seu estrago.
Houve cartas ao semanário, protestos acadêmicos oficiais e uma invasão de gozações ao seu site na internet. Piadinhas de corredor passaram do bom humor ao insuportável, e nada tirava-lhe da cabeça que a diminuição de número de alunos no seu curso de extensão mais recorrente tivera a ver com o assunto, embora seus amigos lhe dissessem que foi a coincidência com o início do horário de verão o principal culpado.
Até mesmo o fato de ter cedido a idéia a um jogo de videogame, o que deveria ser um tipo de solução, se tornou mais motivo de piadas, ou mesmo sérias desconfianças, visto que alguns o acusavam de querer fazer sensacionalismo e vender a idéia para a indústria do entretenimento, ganhando dinheiro com isso, como se alguém ganhasse um centavo com algo desse tipo mesmo quando o jogo fizesse um sucesso colossal. A própria revista parecia bem informada sobre o assunto, ao fechar a reportagem com: “No entanto, o Professor Gravitônico parece ser bem mais esperto que seus críticos, visto que já negociou a idéia com a Coneline Interative Games para a realização de um RPG de ficção científica que tem sua idéia como elemento central. Talvez a balança pese ao seu favor, ao transformar um revés acadêmico num sucesso comercial, contrariando a Lei da Gravidade: Tudo que Desce, Sobe.”
Que lhe deu tanta raiva que procurou a foto do jornalista e marcou sua cara para na primeira oportunidade quebrá-la, não apenas pelo mau caratismo como pelo péssimo jornalismo, visto que não havia feito negociação alguma, e ainda por cima finalizando o texto com a ridícula crença de que exista uma tal Lei da Gravidade dizendo que “tudo o que sobe tem que descer!” mostrando sua absoluta ignorância no assunto. E um idiota destes ainda se achava no direito de escarnecer de uma idéia que, por mais despretensiosa que fosse, ainda estava anos luz além de sua tosca capacidade de compreensão.
O mais trágico, porém, foi que ele “deixou o mundo”, partindo para o futuro, sem sequer se considerar um gênio incompreendido que fora ridicularizado no presente para ser aclamado no futuro.
Catatônico.
Era o que melhor descrevia o estado com que Ielg permaneceu por vários minutos, com os olhos vidrados na imagem que flutuava à sua frente. Até que se levantou de súbito, como se tivesse sido espetado por algo, e começou a andar nervosamente. Foi procurar Dir-Zá, e sem pensar, contou tudo o que descobrira.
A reação dela foi morna, parecendo não ter muita clareza das implicações daquilo, mas tentando entender a situação. Conversou com Ei-Kis, que mudara radicalmente de atitude em relação a Ielg, substituindo o desprezo e constante hostilidade pela mais completa indiferença, temperada por ocasionais e muito sutis expressões ligeiramente amigáveis. Um avanço que ao mesmo tempo agradava e decepcionava Ielg, que no fundo ainda desejava entrar em confronto direto com ela novamente, mesmo sabendo que iria se dar mal.
Foi Ei-Kis que conjecturou se não seria esse o motivo do ataque que sofreram, mas logo mudou de idéia. Aquelas tetrahumanas dos clãs adversários, segundo disse, eram burras demais para saber de algo que só poderia ser descoberto debaixo de inúmeras subcamadas de restrição. Supôs também se isso explicaria o ataque à estação de criogenia, mas novamente mudou de opinião afirmando que eram comuns ataques a estações subterrâneas antigas que não fossem protegidas pelo SISTEMA, quando descobertas.
E foi daí que Dir-Zá lembrou que mesmo nesse caso o SISTEMA não permitiria a destruição da estação, pois mesmo no caso dele, continuaria sendo proibido matá-lo, mesmo estando congelado. Assassinato era uma das restrições mais rígidas do SISTEMA, e por isso mesmo a ordem era jamais descongelar, e não eliminar, os criogenados, inclusive tendo que protegê-los se fosse necessário. Na verdade, ela tranquilizou Ielg ao dizer que mesmo que o SISTEMA descobrisse, nada faria contra a integridade dele, visto que o simples fato de ter recebido um módulo cerebral móvel o tornava um cidadão tão intocável quanto qualquer outro.
Mas o SISTEMA poderia bloquear praticamente todo o seu acesso, lembrou Ei-Kis, com uma discreta satisfação. O que para ele, seria uma punição quase tão ruim quanto a morte. Na verdade, a própria abertura maior do SISTEMA era resultante do ataque que sofreram, quando era normal o SISTEMA compensar um grupo concedendo-lhe privilégios de informação, e poderia restringi-las a qualquer momento. Por sorte, Ielg viria a descobrir que o SISTEMA era muito menos onisciente do que parecia.
Além disso, ninguém parecia ter, de fato, medo do SISTEMA. Exceto quem praticasse algum tipo de violação gravíssima. As restrições ao passado eram inócuas a uma população sem muito interesse histórico e plenamente satisfeita em todas as suas necessidades. Não era diferente no seu tempo, pensou Ielg. A maioria das pessoas tinha vasto acesso a internet e todas as suas formidáveis potencialidades, mas só a utilizava para as mais fúteis atividades.
Tentando relaxar do choque de sua última descoberta, ele entendeu que nem só de jogos de guerra viviam as tetrahumanas. Havia também outras formas de entretenimento que ele só não percebera antes porque suas anfitriãs não se interessavam muito por elas, ao menos até pouco tempo. Uma delas era a de lutas corporais, de artes marciais diversas sem armas, que eram travadas em vastos campeonatos por corpos controlados remotamente. Embora a possibilidade de um dano cerebral fosse desprezível, o SISTEMA ainda exigia que as lutas utilizassem um corpo específico para a situação, que deveria ser controlado por um mini cérebro artificial em paridade com o cérebro real, que sequer precisava ser removido do corpo original. Bastava estar conectado a um dispositivo que concedia o acesso remoto ao mesmo tempo que desligava o acesso ao próprio corpo.
Danças e coreografias também era uma atividade comum, assim como música e outras formas de arte, abrangendo uma vasta coleção de hobbies à disposição. Mas nenhuma delas exigia o controle cerebral remoto como as lutas, mesmo aquelas onde o corpo controlado, dependendo da categoria da luta, tinha configurações e dimensões radicalmente diferentes. Havia competições titânicas, marciais ou não, onde as jogadoras manipulavam monstros ou robôs colossais com toda sorte de aparência.
E além de inúmeras outras formas de entretenimento, dentre as quais uma das poucas que chamava mais atenção que os combates por território, eram as de projeções de holografias no céu ou esculturas em nuvens, havia também, surpreendeu-se Ielg, o hobbie da sexualidade. Onde alguns nichos, em geral minoritários e vistos com certo preconceito pela maioria das outras, readaptavam seus corpos com órgãos genitais para relações sexuais visando meramente o prazer, visto continuarem estéreis. Ainda que a reprodução sexuada normal fosse possível e não fosse proibida pelo SISTEMA, parecia inexistir por completo no planeta.
Foi dialogando com uma aliada praticante desta obscura arte que Dir-Zá descobriu uma informação curiosa sobre o ataque que haviam sofrido. O clã Ar-Ji, compostas por Eru-Ar e Zep-Koi-Ji, havia descoberto recentemente que uma movimentação aérea incomum estava ocorrendo uns 4 mil kms na direção onde Ielg fora descongelado, e já vinha ocorrendo a uns 6 ou 7 períodos de rotação do planeta em torno de Júpiter, isto é, mais de um ano, pelas contas antigas, visto que o período de rotação da Terra era de pouco menos de 26 das antigas horas.
Essa movimentação estranha havia enganado a todos os clãs, que sempre as consideraram como movimentos de sondas espiãs adversárias, mas agora, tendo havido uma conferência para apurar o incidente onde o clã Ei-Ur-Lai supostamente atacara as Zá-Kis, causando toda a confusão que tanto aterrorizara Ielg, ficara claro que as tais movimentações de naves não haviam sido feitas por nenhum clã conhecido.
Eru-Ar, que por sinal era a tetrahumana que o homem do passado mais achara parecida com um homem, ainda que muito efeminado, fizera questão de explicar que achava que tais naves desconhecidas estavam procurando bases antigas, principalmente de criogenia, e só demoraram a achar a de Ielg porque a dele ficava próxima demais da área do vale, sobre a qual as naves só sobrevoavam em grandes altitudes, sendo obrigadas a preferencialmente circular ao redor, expondo-se as hostilidades dos clãs que dominavam a área.
Por sua vez Zep-Koi-Ji, que também estava em tele presença incrivelmente “sólida” numa sala onde todos conversavam , estava convencida de que as naves eram de procedência extraterrestre, visto não ter localizado nenhum padrão planetário que se encaixasse naquele design e devido ao rastreamento sempre apontar que elas vinham de muito além do planeta. O que em si não era incomum, visto que muitos clãs enviavam naves do lado oposto do mundo pela estratosfera, só que naquele caso, provinham de uma altitude desnecessária, sendo mais razoável que tivessem base em outro dos satélites de Júpiter ou mesmo numa estação espacial.
Por um tempo, os 5, Ielg e suas companheiras e os dois membros do clã Ar-Ji. Conversaram sobre essa estranha situação, sempre lembrando que os extraterrestres, que nada mais eram que outras facções da humanidade, algumas vezes desaprovavam o modo de vida na Terra e buscavam incitar ao caos, rebeldia e desobediência ao SISTEMA. Sua presença não era, de fato, proibida no planeta, mas por algum motivo alguns deles haviam criado situações onde sempre terminavam punidos pelo SISTEMA, além de hostilizados pelos clãs.
Ielg, naturalmente, pensou se por algum motivo eles não estavam à sua procura. Lembrou que o computador o despertou porque sabia que seria encontrado em algum momento, mas também soube que as naves que destruíram a estação e provocaram sua fuga não era do tipo supostamente extraterrestre, e sim de fato do clã Ei-Ur-Lai, como elas próprias assumiram, justificando a destruição da montanha como uma reação a uma suposta violação prévia de outro clã, que teria construído uma fábrica de naves escondida no interior da montanha.
O SISTEMA aparentemente aceitara a justificativa, mesmo que fosse estranho que uma base de criogenia fosse confundida com uma fábrica, visto que não puniu as Ei-Ur-Lai, mas parecera, também, ter sido especialmente rigoroso no incidente do ataque às Zá-Kis, como se tivesse compensado a indulgência. Pois foram punidas com um corte de mais de 50% em sua velocidade de produção de naves por 50 dias, o que para a maioria dos clãs era uma tragédia terrível!
Mas as Ei-Ur-Lai continuavam alegando inocência, e agora diziam que as naves que causaram o incidente na verdade eram cópias das suas, mas não de outro clã adversário que quisesse prejudicá-las, como antes alegaram, mas sim de procedência extraterrestre.
Se algo daquilo era verdade, então Ielg tinha motivos para estar mais e mais preocupado. Teria sido seu despertar resultado de uma ação misteriosa de agentes extraterrestres? Estariam eles tão interessados nele que decidissem até mesmo atentar contra a nave onde estava, ou era o exato contrário? O que eles queriam com um homem de 5 mil anos atrás? Talvez quisessem apenas “resgatá-lo” dos braços de clã Zá-Kis, sabe-se lá com que intenção. Haveria outros humanos antigos entre os extraterrestres?
Ficou por um tempo muito pensativo, introspectivo, e Dir-Zá, que o conhecia cada vez melhor, sugeriu que fosse passear ao ar livre enquanto ela tratava de um outro assunto com Zep-Koi-Ji, que por sinal, era bem parecida com ela. Pediu também que Ei-Kis se ausentasse, embora para realizar um outro favor, ficando então finalmente sozinha com o clã Ar-Ji. Algo pelo qual parecia ansiosa.
O Céu Escureceu...
…quando o planeta entrou atrás do anel de Júpiter. Embora sua órbita nunca lhe permitisse ficar na sombra do planeta gasoso, ficava na sombra do anel, o que tornava os dias um pouco mais frios, ainda que por pouco tempo. Fazendo as devidas contas, Ielg estimava que já vivia há meio ano, uns 180 dias, de sua nova vida, quando finalmente conheceu alguém de seu tempo, por tele presença.
O Dr. Ítalo Marino era um astro físico que havia sido congelado 19 anos após Ielg, também pela Criogenar, e que pareceu ter ficado espantosamente emocionado em saber que o primeiro homem congelado finalmente havia sido despertado, havendo afinidade imediata entre eles. Vivia em condição análoga, com um outro clã, e devido a ser um homem do passado, insistiu veementemente que os dois se encontrassem pessoalmente. Dir-Zá os convidou para visitá-los, mas eles insistiram em se reunir num ponto de encontro equidistante entre os territórios dos dois clãs, e fora das zonas mais agitadas de conflito. Principalmente por que não tinham um bom relacionamento com alguns dos clãs próximos às Zá-Kis.
A princípio Ei-Kis ficou desconfiada, mas num súbito estalo mudou de idéia, ajudando a convencer Dir-Zá a irem ao encontro, e ficando, pela primeira vez, ao lado de Ielg. Ademais, já estava ficando evidente que ele não era, de modo algum, um prisioneiro. No princípio, Dir-Zá deixou que pensasse assim para retê-lo o máximo possível em sua casa, mas a medida que ele ia aprendendo sobre o mundo, e principalmente sobre o SISTEMA, sabia cada vez mais de seus direitos, e a escravidão, ou servidão, eram também infrações. Assim, a única coisa que poderia tê-lo mantido cativo era sua ignorância, a ponto de não saber que até mesmo as algemas que no começo o prendiam não eram de fato um artefato de segurança, mas praticamente um brinquedo engenhoso, usado por alguns praticantes de jogos, e que ele poderia tê-las aberto muito facilmente por um método que só recentemente soubera existir.
Assim, Dir-Zá se conformara que somente um laço afetivo poderia mantê-lo onde estava, e como ela gostava muito dele, queria que ele sentisse o mesmo, e era melhor conceder-lhe o desejo visto que, mais cedo ou mais tarde, ele poderia se sentir violado pelo fato de sentir-se por tanto tempo um prisioneiro, o que só não beirou a um tipo de infração porque tudo fora feito de modo muito sutil. O SISTEMA só se dera conta da existência dele quando teve que mudar de corpo, e parecia ainda não conhecer devidamente os detalhes de seu despertar, mas de qualquer modo ele agora gozava de toda proteção que qualquer humano tinha direito, pelas leis do SISTEMA, inclusive de procurar o seu próprio território e construir seu próprio clã!
Por isso, concordando, embora não gostando, Dir-Zá embarcou com eles numa viagem rumo à zona mais tropical do planeta, deixando para trás florestas que começavam a nevar, sobrevoando o mar e rumando a um arquipélago ensolarado. Ielg aproveitou para observar melhor o sistema de propulsão das naves da pequena frota que os escoltavam, movido a hidrogênio que extraía da própria atmosfera para ativar um pequeno reator de fusão, não radioativo, capaz de gerar energia suficiente para ionizar o ar e soprá-lo com força muito superior aos velhos propulsores de combustível fóssil do passado, deixando apenas uma trilha de vapor d’água.
Realmente, não havia qualquer sistema anti gravitacional em uso, e isso somado às inúmeras restrições do SISTEMA sobre o assunto, tornava a conclusão óbvia e inevitável. Manipulação gravitacional era proibida, e tudo o que pudesse levar à construção de novas tecnologias de tal ordem era restrito. Assim, Ielg ficou ainda mais curioso quando o Dr., ou era melhor deixar esses tolos títulos para trás, quando Ítalo Marino havia ligeiramente tocado no assunto de um dispositivo de levitação sobre o qual não pudera falar mais, já ciente das restrições do SISTEMA.
Imerso em pensamentos, nem percebia a disparidade emocional de suas companheiras. Havia um nítido temor nos olhos de Dir-Zá, um tipo de arrependimento, e ao mesmo tempo uma nítida excitação em Ei-Kis, o que levou as duas a se estranharem por uns momentos.
Teriam se reconciliado não fosse o fato de um impacto devastador atingir a nave, fazendo todos rodopiarem. Perderam altitude, sua escolta começou a ser atacada por uma horda de naves incomuns, mas não chegaram a atingir o mar. Foram pegos por uma nave maior, que os engoliu em pleno ar e em seguida abriu a fuselagem como se ela fosse de papel.
Tudo ocorreu demasiado rápido. Se preparavam para reagir quando uma arma de desorientação sensorial se abateu sobre eles, do mesmo tipo da que, muito tempo atrás, havia atingido Ielg na floresta, só que desta vez o efeito fora bem mais rápido. Quando se recobrou, estava sobre outra nave, tão interiormente transparente quanto a outra, sobrevoando a floresta.
Então algumas pessoas se aproximaram. Não eram tetrahumanas, eram pessoas como ele, de mesma estatura, da mesma aparência, com o biótipo comum de sua época. Uma delas era uma mulher muito bonita e claramente receptiva, o que gerou uma miríade de sentimentos confusos num homem que não via uma, e nem mesmo qualquer outra pessoa como ele, há tanto tempo.
- Nos desculpe pelo mau jeito Dr. Algleison. – Disse ninguém menos que o próprio Ítalo Marino, num perfeito português brasileiro do século XXI. – Queríamos ter feito isso de um jeito menos drástico, mas a situação é urgente.
- Quem... Quem são vocês? – Respondeu Glei, Ielg, um tanto desorientado e defensivo, e surpreso por se sentir como se pertencesse antes à raça tetrahumana. – O que aconteceu com minhas... Com elas? – Não soube como se referir a suas anfitriãs, mas seus interlocutores notaram que ele estava confuso.
- Não se preocupe. – Respondeu Ítalo. – Estão tão bem quanto você. Fique calmo. Só queremos conversar. Somos seus aliados. – E após uma breve pausa, completou com um tom um tanto solene.
- Somos A Quinta Formação!
Fim da Parte - 3
Marcus Valerio XR
Dezembro de 2010 / Janeiro de 2011
WWW.XR.PRO.BR
|