Na escuridão...

... uma pequena luz se acende. E em seguida outra, e mais outras. Logo, uma pequena constelação de pontos de cores distintas poderia ser fascinante, se ali houvesse alguém passível de fascínio, e que pudesse sobreviver à baixa temperatura. Havia ali quem suportasse o frio, mas como ter certeza se um computador, por mais avançado que fosse, poderia estar fascinado?

O sistema estava em plena atividade, e o cenário todo se iluminou, embora não houvesse quem se beneficiasse disso. Tudo ia no automático, seguindo uma antiga programação. Um enorme cilindro metálico emergiu inclinado do solo. Fumegando, embora fosse de frio. Um jogo intrincado de mecanismos operava, fazendo parecer que um quebra cabeças ia sendo desmontado, até que uma densa nuvem de névoa branca escapou, brusca e sonoramente, e em contraste se dissipando lenta e silenciosamente, deixando entrever outro cilindro, menor, branco, que nascia daquele como se fosse o caroço de um fruto.

Diversos sons locais seriam facilmente reconhecidos como de maquinários complexos operando segura e precisamente, executando uma função que, por outro lado, poucos leigos reconheceriam. De explícito, somente o robusto braço mecânico que pegou o cilindro, ainda gelado e fumegante, encaixando-o noutro cilindro, de vidro, conectado a uma miríade de equipamentos.

Uma dezena de braços menores, finos e delicados, se posicionou em pares ao longo do gelo cilíndrico, e feixes de luz quentíssimos abriram orifícios perfeitos por onde foram inseridas delgadas mangueiras. Então uma onda de calor intenso percorreu toda a estrutura, e em poucos e impressionantes instantes não havia mais um cilindro sólido, e sim líquido, embora não fosse constituído de água, e sim de um composto cujo ponto de fusão permanecia muito inferior a zero graus Celsius.

Era porém ainda mais transparente, incrivelmente cristalino, permitindo que se distinguisse o que parecia uma estátua em forma de homem, perfurada pelas delicadas mangueiras e apoiada por um cuidadoso sistema de suporte que evidenciava grande preocupação com a fragilidade.

A temperatura se elevava, embora ainda abaixo do ponto de congelamento da água, e poder-se-ia notar uma mudança de cor na peculiar estrutura. Não era uma estátua, e sim um corpo humano, congelado há muito tempo, e antes que todo o gelo em suas veias derretesse, milhões de nanomáquinas foram injetadas pelas mangueiras, abrindo caminho no sangue solidificado e produzindo inúmeros reparos no organismo.

Quando a temperatura do líquido já estava harmonizada com a temperatura vital de um corpo humano, um tubo de respiração já estava conectado ao rosto, penetrando pulmões e estômago adentro, realizando também, por meio de nanotecnologias, funções restauradoras sem as quais o descongelamento de um organismo tão complexo seria letal. Afinal, o corpo humano é a estrutura mais complexa em todo o universo conhecido.

A parte mais delicada vinha agora. Era preciso não apenas reativar o cérebro, mas adaptá-lo a novas circunstâncias. Uma operação tão invasiva quanto uma lobotomia foi realizada, atingindo também bulbo e cerebelo, restaurando-os e protegendo-os com novas intervenções que seriam por completo misteriosas mesmo para os melhores neurocirurgiões da época em que este homem fora congelado.

Então, aos poucos, o coração voltou a bater, com a ajuda de precisos estímulos elétricos, os pulmões voltaram a funcionar, o sangue voltou a circular. A tecnologia de descongelamento, inacessível na época em que o corpo fora colocado em criogenia, era agora totalmente ultrapassada, bem como a que, em seu tempo, não conseguira consertar sua coluna vertebral, outrora danificada a ponto da paraplegia, que agora tinha restaurada o pleno controle das pernas com a facilidade comparável a de uma simples injeção.

Mais micro intervenções foram feitas por todo o corpo, restaurando a musculatura principalmente das pernas. Estímulos nervosos foram artificialmente induzidos e hormônios foram devidamente injetados e circulados, em conjunto com outras substâncias quase inconcebíveis à época deste representante do passado.

Finalmente, uma suave música foi tocada, e uma agradável voz completava o convite para o despertar para uma nova vida.

- Seja bem vindo senhor. Muito bom dia.

O homem teve como única reação mover os olhos sob as pálpebras.

- Está tudo bem senhor. Não se preocupe.

As pálpebras se abriram com dificuldade.

- Seu descongelamento foi realizado com perfeita segurança.

Muito lentamente, discretos movimentos surgiram por todos os membros.

- A estrutura nervosa de sua coluna lombar foi completamente restaurada, o senhor já pode mexer as pernas.

E depois de mais algum tempo finalmente ele estava acordado, ainda olhando para o cenário à sua volta, com estranheza tão sutil que aparentava indiferença. Se sentou tão devagar que foi possível emitir longos bocejos antes que estivesse ereto, olhando para a cama em que se encontrava.

Estava sozinho, cercado de equipamentos que o faziam se sentir um organismo estranho num mundo tecnológico, ainda que a cama fosse muito aconchegante e a temperatura ambiente ideal.

Demorou para mexer as pernas, ainda vítima da incredulidade de que pudesse estar fisicamente curado. Ergueu os braços, percebendo suas duas tatuagens, não apenas intactas, mas até mesmo mais nítidas que antes. Sempre que as via, uma pequena odisséia mental passava pela sua cabeça. Primeiro, sofria pela lembrança que elas traziam, e uma pequena parte dele quase se amaldiçoava por se submeter a tão dolorosa penitência. Segundo, se sentia nobre e corajoso por ter força de vontade para encará-las, prestando tributo às pessoas que elas representavam.

Olhou para cima, e então, suave mas intensamente, tudo lhe voltou a mente.

- Há alguém aí? – Disse, subitamente se impressionando pela força de sua voz, e pelo fato de ser a primeira coisa que dizia após... Quanto tempo? Teriam se completado mais ou menos de 50 anos?

- Não senhor. O que lhe fala é o sistema zelador dessa estação, programado para despertá-lo no momento apropriado. Não há outra pessoa por aqui.

- Em que ano estamos?

- É uma resposta complexa senhor. O sistema de contagem do tempo e as condições astronômicas mudaram radicalmente desde seu congelamento. O senhor quer mesmo saber a resposta?

- Como? – Ficou surpreso. – Mas é claro que quero!

- Advirto que essa informação pode ser perturbadora. O senhor foi despertado muito tempo depois do máximo previsto.

Ele se ajeitou na cama, e finalmente teve coragem de se levantar. Decepcionado por não ter com quem compartilhar aquele momento. Mas quando seus pés tocaram o chão, e ele se sentiu em pé novamente, com facilidade que parecia apagar por completo seus últimos anos de cadeira de rodas, quase se esqueceu da pergunta.

- O senhor está preparado para saber a resposta?

Ainda frustrado por não ter para quem olhar, ficou observando ao redor, procurando a origem do som que parecia vir de toda parte. – Sim. Por favor. Pode me dizer.

- Não foi possível despertá-lo após os 50 anos previstos. A tecnologia ainda não havia sido plenamente desenvolvida. Foram necessários mais 131 anos para que os recursos necessários se tornassem plenamente confiáveis, embora ainda muito dispendiosos. Uma inesperada crise econômica se abateu sobre a sociedade, tornando difícil realizar o despertar do senhor e dos demais 7.237 seres que estavam congelados na época. Diversas prioridades tiveram que ser revistas, e somente após mais 59 anos o grupo que incluía o senhor estava pronto para passar pelo procedimento. Infelizmente, uma tragédia de grandes proporções se abateu sobre o planeta, tornando o procedimento inviável. Como mantê-los em criogenia ainda era menos oneroso do que o processo de despertar, graças a novas tecnologias de geração de energia e de refrigeração, seu grupo foi mantido no estado de animação suspensa por um período equivalente a mais 85 dos anos de sua época. Finalmente, as condições técnicas e econômicas estavam favoráveis, mas surgiram questões filosóficas e novas mentalidades que se opunham ao processo, visto que as pessoas de seu grupo seriam descongeladas numa época muito menos aprazível do que quando foram congeladas, o que contrariava seus expectativas. Mais 124 anos se passaram até que houvesse consenso sobre a adequabilidade do descongelamento, no entanto, os primeiros a serem despertados logo apresentaram diversos problemas de adaptação, inclusive suicídios. Novos estudos foram desenvolvidos, mas foram interrompidos por outra crise de vastas proporções, que praticamente inviabilizou a civilização. Quase todos os criogenados terminaram sendo destruídos numa catástrofe inesperada, e os restantes foram separados e enviados para instalações distintas. No seu caso, houve 3 mudanças de localização até o estabelecimento definitivo nesta base, sem previsão para o descongelamento. Muito posteriormente, efeitos colaterais de uma outra crise incluíram distorções na estrutura do tempo, tornando impossível mensurar com precisão quantos anos a mais teriam decorrido após esse processo. Mas os imprevistos podem ser contados em séculos. A melhor estimativa que posso apresentar agora, é que o senhor foi enfim despertado num período de tempo aproximadamente equivalente a 5 mil anos à frente da época em que foi congelado.

Por um instante ele chegou a perder a atenção no discurso, mas logo recuperava todo o conteúdo, e após mil coisas passarem por sua cabeça, a única coisa que conseguiu dizer foi: – Cinco... Mil... Anos?

- Sim senhor. Lamento informá-lo disso.

Na verdade, não era algo que ele de fato lamentasse. Sabia que despertaria numa outra época, e embora esperasse encontrar algumas pessoas que conhecera ainda vivas, não se importava tanto. Na verdade, pensara muito que isso poderia acontecer. Se imaginava despertando duas, 3, até 10 vezes depois do tempo previsto. Achava até agradável a idéia de deixar aquele velho mundo ainda mais para trás. Mas mesmo assim, ficou chocado pelo tempo enfim decorrido.

- Eu estava previsto para ser despertado em no máximo 50 anos, mas fui despertado em... Cinco mil!?

- Minhas sinceras condolências senhor.

- E... Por que não há alguém aqui? O que aconteceu com a humanidade. Ela... A raça humana ainda... Existe?

- Relativamente sim senhor, mas o mundo atual é completamente diferente das projeções futuras de sua época. Este planeta já teve 23 bilhões de habitantes, atualmente, tem menos de 4 milhões, geograficamente espalhados por todo o globo e outros astros próximos.

- Quatro milhões?! Somente 4 milhões de habitantes?! Mas o quê?! O que aconteceu?!

- Infelizmente senhor, não temos mais tempo. O principal motivo de seu procedimento de despertar ter ocorrido agora é que se não o fosse, provavelmente não mais seria possível. Esta instalação será inevitavelmente destruída em menos de uma hora, e é urgente que se afaste daqui até uma distância segura.

Então, ao longe e ao alto, uma porta se abriu, deixando entrever uma luminosidade forte.

- Lamento muito não poder ajudá-lo mais. O senhor precisa partir. Espero que o que já fiz seja suficiente. Seu corpo foi restaurado e aperfeiçoado, e é agora cerca de 10 vezes mais saudável, forte e resistente que originalmente. Fique calmo enquanto a Veste se adapta ao seu corpo. Não se preocupe.

Um líquido escuro veio se arrastando até ele, um tanto amedrontador, mas ante a insistência da voz, ficou quieto enquanto ele subia por seu corpo, o envolvendo até assumir a forma de uma vestimenta justa que só não lhe cobriu o rosto. Era muito confortável e muito bonita, e só então se deu conta do quanto seu físico fora remodelado.

O computador ainda lhe deu breves instruções do funcionamento das roupas. Com isso conseguiu despir as mãos, fazendo o líquido escuro se recolher e se depositar em seus punhos. Depois ajustou a coloração e a textura, assumindo um tom de azul ligeiramente metálico, após variar em diversas outras cores.

- Sinto muitíssimo não poder fornecer-lhe um veículo, um abrigo, ou melhores informações. Bem como abandoná-lo na floresta. Mas saiba que o local é seguro, não havendo animais perigosos e sempre repleto de frutos comestíveis e saudáveis. As aeronaves que se aproximam para destruir essa estação não irão importunar o senhor, e é recomendável que se afaste ao menos por dois kms. Após a destruição, não será útil que o senhor retorne, nada restará. Por favor. Apresse-se. Adeus e Boa sorte.

Sentiu com muita intensidade o tom de urgência, e se dirigiu à porta aberta. Chegando lá se deparou com uma curiosa ante-sala, com dois quadros notáveis, um de um mapa irreconhecível, outro de uma estranha "mulher", meio alienígena, ao mesmo tempo atraente e incômoda. Sabia que devia examinar melhor o mapa, mas só conseguia olhar para o quadro perturbador da criatura de aparência feminina, que só não lhe capturara mais a atenção porque uma ampla porta se abriu deixando à vista o mundo. Ao longe, belas montanhas rochosas, abaixo, uma vasta e magnífica floresta.

Um tipo de alarme começou a soar, e a voz insistiu para que partisse. Ele o fez, saltando para o ar livre de um dia ensolarado, embora menos claro do que deveria, e de temperatura amena. Mesmo assim seus olhos foram cobertos por um visor escuro, que lhe impediu de ficar ofuscado.

Ficou espantado com sua força e vigor físico, bem como com sua roupa. Começou a descer ladeira abaixo, percebendo que também estava numa montanha. Olhando para trás, viu a porta se fechar e não deixar vestígio algum da existência da base. Continuou a descer deixando uma montanha em nada diferente de outras que compunham a cordilheira.

Empolgado com seu desempenho, correu, muito mais do que jamais fora capaz, e estaria correndo mesmo que não houvesse sido estimulado com a ameaça de um grande perigo, pois a sensação era maravilhosa. Dava saltos enormes e pousava no chão com suavidade. Chegando na floresta reduziu o passo, mas também não era muito difícil avançar por entre as altas e frondosas árvores.

Estava intrigado pelo fato de ser capaz de se mover tão rápido por um cenário desconhecido quando se desequilibrou e caiu rolando, mas antes que pudesse se machucar, a Veste envolveu sua cabeça com um capacete justo que absorvia qualquer impacto, bem como suas luvas reapareceram, prevenindo escoriações nas mãos. Ambas, porém, se recolheram assim que ele estava seguro.

Mesmo assim se levantou um pouco dolorido, e foi andando num ritmo mais lento, começando a dar sinais de cansaço. Enfim chegou num enorme lago que interrompeu seu avanço. Olhou para trás, mas as árvores impediam a vista da montanha. Apelou então a uma grande formação rochosa, que não só lhe elevou vários metros como ainda ficava de frente para árvores menores, permitindo então que avistasse entre as árvores mais distantes a montanha que deixara para trás, justo no momento que uma luz intensa ocorreu, só não o ofuscando graças ao ajuste instantâneo da opacidade dos óculos.

O tremor e o deslocamento de ar lhe desequilibraram, e ele caiu na água, por sorte, profunda, e antes que sua cabeça mergulhasse, foi novamente envolvida pelo capacete da Veste. O susto lhe fez nadar desesperadamente até a superfície e subir de volta nas pedras. Mas logo notou que praticamente não estava molhado. A Veste parecia impermeável.

Enfim desceu para uma pequena praia rochosa e se sentou. Bebeu a água, que parecia limpa e pura. Depois se levantou e caminhou ao redor do lago até encontrar uma árvore repleta de frutos amarelados que eram capturados por pitorescos macacos, que se afastaram ao vê-lo, sumindo de vista. Teve que subir nos galhos para pegar uma delas, de lá de cima pode ver que simplesmente sumira o topo da montanha onde ele estava. Seguramente, a base fora por completo desintegrada. O computador falava sério.

A fruta parecia limpa, mesmo assim preferiu lavá-lo no lago, e teve uma grata surpresa ao prová-la. Era deliciosa, de sabor similar a uma pêra, embora a árvore fosse bem diferente. Gostou tanto que comeu 3 em seguida e depois passou a caminhar floresta adentro.

Ocasionalmente via um animal pequeno, e de fato não percebera nada que parecesse ameaçador. Mais adiante viu cachos de uma pequena fruta vermelha, mais uma vez ao alto de uma árvore. Pensou um pouco sobre a estranha combinação de árvores grandes, do tipo bem vertical com galhos pequenos, e frutas que em seu tempo eram mais encontradas em árvores menores e mais amplas.

Após alguma dificuldade alcançou o cacho. As frutinhas não eram tão saborosas quando as “pêras” que comera antes, mesmo assim eram perfeitamente aprazíveis. Comeu várias, até que percebeu que chovia. Por prudência preferiu jogar um cacho no chão e descer da árvore, mas no galho molhado acabou se desequilibrou e caindo de mau jeito.

Massageava as costas doloridas com o impacto, quando a chuva subitamente aumentou de intensidade e logo a Veste o cobria por completo, mas preferiu remover o capacete e liberar as mãos, sentindo a água revigorante dos céus. Fez a maior parte da roupa se recolher, deixando os braços e o peito nu, e se ajoelhou numa pedra à beira do lago, como numa posição de prostração religiosa.

Então viu novamente as tatuagens. Curiosamente, as gotas corriam pelas imagens como se fossem as lágrimas da criança e da mulher que estavam desenhadas.

E mais uma vez ele reviveu o passado.

Cinco mil anos antes...

... a mulher e a menina estavam em fotos separadas. Uma aparentava uns 30 anos, a outra uns 3. O casal que olhava as imagens tentava expressar sua simpatia. O rapaz, de piercings e tatuagens diversas, declarou. – É claro que podemos fazer. – A moça concordou com um movimento de cabeça, tentando sorrir de modo acolhedor e piedoso.

Ele jamais pensara em fazer tatuagens, mas ali estava um bom motivo. Posicionou-se conforme o casal de tatuadores orientou, deixando a cadeira de rodas entre duas mesas. O rapaz pegou a foto da mulher, a moça pegou a foto da menina, e o homem tinha seus cotovelos apoiados, braços deitados nas mesas e as palmas das mãos para cima.

O casal começou o trabalho, tatuando as imagens nas partes internas dos braços, próximos à articulação. O rapaz preparando o desenho da mulher no braço esquerdo, e moça preparando o desenho da menina no braço direito, e o homem não demorou a sentir a dor das perfurações.

Depois de um tempo, o rapaz, ainda muito cauteloso, perguntou. – Desculpe me intrometer mas... Se importaria de nos contar o que aconteceu?

- Não! – Respondeu subitamente, assustando a si próprio, e tentando ser mais calmo ao completar. – Não me importo. Na verdade, me ajuda a enfrentar a... Dor. – Ele disse “dor” como se conseguisse expressar o duplo sentido do termo. Da dor psicológica passada, embora ainda presente, e da dor física daquele momento.

- Foi tudo muito rápido. Voltando do reveillon na casa dos pais dela. – Ele começou a contar demonstrando profunda gravidade, fez uma pausa, e então voltou a falar com determinação. – Eu estava bem. Não sei direito o que aconteceu. Chovia, e de repente o carro da outra faixa entrou na contra mão. Demorei pra desviar e ele me atingiu na traseira. O carro rodopiou na pista molhada. Caímos no barranco. Capotamos várias vezes...

... E não me lembro de mais nada. Quando acordei já estava no hospital... Ela ia fazer 4 anos na semana seguinte.

Continuou falando sobre a família, aparentemente disperso, mas notou que a moça estava chorando. Ela tentou disfarçar como se estivesse pegando ar pra falar. – Quando uma coisa assim... Tão ruim, acontece, pode ser uma boa idéia mudar de vida, de visual. Uma prima minha perdeu o marido e, disse que ter cortado e pintado o cabelo de um jeito totalmente diferente ajuda a superar. Sabe como é... Você se olha no espelho e tem uma nova imagem, ajuda a esquecer o passado.

- Eu não quero esquecê-las.

- Ah... Claro que não! Não foi isso que eu quis dizer.

- Eu entendo. E garanto que é difícil alguém mudar de vida mais do que eu. Eu tenho um currículo que ajudou, mas penso que minha situação foi o principal motivo por ter sido escolhido no Projeto CRIOGENAR.

Os tatuadores estacaram e se entreolharam, o rapaz, animado, perguntou. – Você é o cara que vai ser congelado para ser acordado só daqui a 50 anos?!

- Eu mesmo.

- Caramba. Bem que achei que te conhecia de algum lugar. Te vi numa revista, eu acho. Só que não li sua estória. – O clima depressivo melhorou bastante. O rapaz continuou. – Olha! Escolheram o cara certo. Tenho certeza de que quando você acordar vai se moleza consertar sua coluna. Pôxa... Temos uma celebridade e não sabíamos!

A moça também sorria, embora tentando disfarçar um certo constrangimento. Perguntou. – Mas... Você não tem medo de... Sei lá. Ter pesadelos enquanto dorme.

- Vou estar congelado a menos de 200 graus negativos. Tudo pára. Inclusive o cérebro.

- Eu sei mas... E como fica seu espírito? Vi uma vez um filme onde o corpo espiritual da pessoa congelada ficava vagando... Como um fantasma. E além do mais... Nossa! Eu acredito em reencarnação. Sabe? Não sei se é uma boa interromper o ciclo natural das coisas.

- Ah... Eu não acredito em nada disso. Só sei que... Já era um pesadelo acordar todo dia e olhar... Para as coisas delas. Eu mudei de casa, não tive coragem de me desfazer dos brinquedos, nem das esculturas que minha esposa fazia. Tentei prosseguir. Mas não posso nem andar. Eu perdi tudo! Sabia? Tudo... Achei que a melhor coisa é deixar tudo pra trás. Quando eu acordar espero estar num novo mundo. Mais fácil de superar... Mas por outro lado, não quero me esquecer delas.

A moça se entristeceu de novo. – Entendo. - E voltou sua atenção para a tatuagem. – Tá doendo?

- Tá! – Ele então soltou uma careta.

- Quer descansar um pouco? – Perguntou o rapaz. - Também podemos usar uma anestesia.

- Não... Eu quero que doa. – E então abaixou a cabeça, chorando discretamente, misturando a dor física com a psicológica, se punindo, mais uma vez, por se considerar culpado pela tragédia que lhe roubara a felicidade.

Na Floresta do Futuro...

... chovia muito. Mas a Veste isolava por completo o corpo, e era fácil se acomodar e dormir entre as árvores. Não queria saber há quanto tempo estava lá, e estava gostando da sensação de isolamento.

De dia caminhava, cruzando rios, mergulhando em lagos e subindo em árvores para colher frutos, que sempre estavam altos. Todos eram saborosos e satisfaziam, e com isso ele pensava que poderia viver ali para sempre. Sem preocupações, sem compromissos, sem horários e burocracias infames.

A natureza era espetacular. O céu tinha cores diferentes das que ele conhecia. Até o azul parecia mais suave. Talvez fossem as nuvens constantes. À noite era imprevisível. As vezes podia ver um céu profundamente estrelado, com estrelas que pareciam imensas, e com uma via láctea extremamente mais nítida. Era como se houvesse mini luas, e ele pensava que deviam ser estações espaciais, pois as vezes se moviam rápido.

Não achou a Lua, talvez fosse a fase Nova, ou talvez alguma coisa tivesse acontecido. O computador falara numa catástrofe. Talvez a Lua tenha se afastado da Terra, ou sido destruída, tendo sobrado aqueles pequenos pedaços.

As vezes tinha a impressão de que havia uma imensa mancha escura no céu próxima ao horizonte, por trás das montanhas, pois parecia estar sem nuvens, mas completamente escuro. Era difícil saber com tamanha frequência de chuva e dias nublados. Mas o Sol aparecia todos os dias por algum período. Brilhando mais fraco do que ele achava que devia, mas ainda assim aquecendo.

Pensara se não poderia ter recebido algum tipo de sistema de comunicação ou orientação. O que haveria de equivalente a um NetPhone? Ou um simples GPS? Mas ao pensar nisso lembrava de contas telefônicas e aborrecimentos com as operadoras, e terminava por se sentir melhor por ser deixado em paz.

Estava porém munido de estupenda tecnologia. A Veste era incrivelmente versátil. Não foi difícil aprender a controlá-la, fazendo o “tecido” assumir comportamento líquido e se mover, encurtando mangas, criando luvas, envolvendo ou descobrindo os pés, e similares, com uma precisão impressionante. Era possível variar amplamente as tonalidades, embora em tons escuros. Conseguia conservar a temperatura do corpo com perfeição sem qualquer tipo de incômodo, e somente após bastante tempo ele percebera que o ambiente era muito mais frio do que aparentava.

Pensou que não era apenas a tecnologia da veste, mas que também a adaptação de seu corpo incluíra alterações para melhor se adequar à temperatura ambiente. A geada era evidente nos horários mais frios da noite e no começo da manhã, e ao menos pensava avistar em pontos mais distantes e calmos de um dos rios, que formava pequenas lagoas, uma aparente camada de gelo fino, embora sempre que conseguisse chegar ao local o Sol já estivesse forte demais para coexistir com congelamento. E mesmo assim, ainda quando estava semi vestido, o frio não incomodava. O que mais havia sido alterado em seu corpo? Respirava ele o mesmo ar de antigamente?

Apesar da tranqüilidade e breve sensação de paraíso, o passado o perseguia. Imaginava como sua esposa e filha adorariam aquele lugar. Ficava imaginando a criança brincando na água, subindo nas árvores, saboreando as frutas. Pensava nas coisas que sua esposa diria sobre aquele lugar, no quanto refletiria sobre o que acontecera à humanidade. Em certos momentos pensava tanto nelas que agia como se estivessem ali, até que dando-se conta disso, preferiu se concentrar na idéia de que eles estavam vivas, ainda que irremediavelmente no passado. Era como se na verdade a tragédia tivesse sido apenas um pesadelo, que na verdade ele vira sua filha crescer e se casar. Até imaginou os aborrecimentos típicos da adolescência. Ao menos, essa auto ilusão ainda era melhor que entrar em depressão e desejar deixar de existir, como fizera tantas vezes.

Parava para olhar as tatuagens com mais freqüência do que sua razão aconselhava, e a melhor forma de combater isso era estabelecer alguma ocupação. Por isso, definiu uma meta. Atravessaria a floresta até as montanhas mais ao longe, que lhe impediam a visão do horizonte, e onde uma se pronunciava em especial. Subiria até seu topo, confiante em sua nova condição física, e de lá olharia até onde pudesse. Precisava conhecer melhor seu novo mundo.

Ocasionalmente cruzava com animais interessantes, como esquilos, macacos, roedores diversos, alguns enormes, felinos e caninos. Todos pareciam inofensivos. Havia no entanto poucos pássaros. Até agora nada de revoadas ou esquadrilhas. Apenas poucas aves isoladas, voando bem alto, e nunca pôde reparar bem em alguma delas.

Por isso tinha dúvidas toda vez que avistava algo que parecia uma aeronave. Não foram poucas vezes, mas em geral voavam muito alto e tinham movimentos muito estranhos. Só tinha certeza quando avistava algumas cruzando o céu noturno. A não ser que houvesse também aves luminosas.

Quando chegou ao fim da floresta, se deparando com os pés das montanhas, finalmente se deu conta de uma problema na Veste. Ela não tinha bolsos nem nada que pudesse ser usado como uma sacola. Apenas espaços apertados para objetos pequenos e finos, como cartões, ou tubos do tamanho de canetas. Por isso improvisou uma sacola costurando ramos e cipós diversos que encontrara na floresta, e os abastecera com algumas das frutas que, por sinal, eram surpreendentemente duráveis.

As montanhas só continham vegetação na base, se tornando estéreis mais acima, e as observando teve a sensação de que haveria algo diferente atrás delas.

Se despediu da floresta, e partiu para o novo capítulo de sua aventura.

A Escalada...

… foi menos fácil do que ele pensava, mas isso não foi um problema, pois o desafio maior terminou por lhe revelar mais sobre suas capacidades físicas. Em vários momentos teve que se agarrar a formações de rocha pontudas e inóspitas, mas as luvas da Veste protegeram eficientemente as mãos.

Ao fim do dia, a floresta já devia estar uns mil metros abaixo quando ele, exausto, parou para comer algumas frutas. Por sorte não chovera, mas nuvens continuavam tomando grande parte do céu, impedindo de observar como queria uma estranha forma no horizonte, como uma gigantesca cúpula. Mas os primeiros pingos o obrigaram a se mover para um local mais discreto, e terminou por se abrigar numa pequena caverna e esperar o pior da chuva passar. Acabou adormecendo.

No dia seguinte continuou, e percebeu que não calculara bem o tamanho do desafio. Havia muito ainda por subir, e o piso molhado não ajudava. Mesmo assim prosseguiu contornando a montanha, passando enfim por cima da muralha rochosa que separava a floresta do outro local que ele acabara de descobrir.

Era um enorme vale, com outro imenso lago, totalmente cercado por montanhas anormalmente ígremes. A formação não parecia natural. As montanhas, que vistas do outro lado pareciam apenas muito juntas umas das outras, agora se uniam numa espécie de imensa parede circular que envolvia todo o vale a perder de vista, e a descida era quase vertical.

Do lado oposto havia uma montanha tão parecida com o Monte Fuji que ele considerou seriamente a possibilidade de estar no Japão, mas sua atenção foi capturada por um fato muito mais curioso. Aparentemente bem no meio do vale, havia uma estranha nuvem mais baixa que a camada de nuvens normal. Era pequena, concentrada num ponto, parecia se agitar, como se emanasse de um vidro de gelo seco, mas curiosamente permanecia fixa no ar, apesar do vento que corria.

Intrigado com o fenômeno, se aproximou mais da beirada, com muito cuidado, tentando encontrar um ponto melhor de observação, quando de súbito o piso molhado cobrou seu preço. Escorregou ladeira abaixo. A Veste automaticamente protegeu a cabeça e ele deslizou quicando nas formações rochosas. Foi muita sorte que o ângulo de descida fosse um pouco menos brusco que o da maior parte, mas de qualquer modo foi impossível se segurar. Após dezenas de metros começou a escorregar numa parede suavemente inclinada de rochas arenosas, que serviram como um imenso tobogã que o levava mais e mais para baixo.

Quando finalmente parou de cair, pensou que havia quebrado metade de seus ossos, e não conseguia se mover, atormentado pelo pensamento de ter mais uma vez fraturado a espinha, já tendo visões de sua velha cadeira de rodas. Desmaiou e delirou por alguns instantes, mas depois se levantou. Tirou o capacete o olhou para a montanha de onde caíra, que não parecia mais uma montanha, mas sim uma parede.

Confirmou que até onde a vista alcançava, estava completamente cercado por uma formação rochosa impossível de escalar. Era como cair numa armadilha. Não via meio algum de retornar a sua já estimada floresta. Por sorte, a sua frente o vale era tão convidativo quanto. Uma enorme planície verde, entremeada de ponto amarelos, flores ou frutos, ele não podia discernir. E o lago, imenso, completava o cenário.

Seguiu para a água, tão boa quanto todas as que experimentara até então. Tirou quase toda a roupa e jogou a água fria sobre as contusões que sofrera. Por sorte não havia arranhados nem sangramentos, mas tudo doía muito.

Então se dirigiu a uma frondosa árvore baixa, uma das poucas do local, onde se deitou na sombra. Havia frutos pequeninos e amarelados nos arbustos rasteiros, e ele já estava tão acostumado à qualidade das frutas de seu novo mundo que os comeu sem medo. Não eram dos mais apetitosos, mas pareciam seguros e revigorantes.

Finalmente se deitou sob a árvore e ficou olhando para cima, por entre as folhagens, e pode notar claramente que a estranha nuvem continuava lá. Parada, fixa, desafiando sua imaginação.

Ciência Para O Futuro,

... a maior revista de divulgação científica nacional, traz nesta edição uma reportagem exclusiva e antecipada sobre o homem que foi escolhido pelo Projeto Criogenar para ser nosso primeiro cidadão congelado, com previsão de ser despertado daqui a 50 anos. Veja reportagem na página 27.

...

Passagem para o futuro

O que você faria se pudesse viajar para o futuro? Por enquanto máquinas do tempo ainda não são possíveis, mas isso não impede que um homem esteja prestes a viajar daqui para meio século à frente, ou ao menos é assim que ele, segundo os cientistas, vivenciará seu congelamento. O escolhido, que ainda não teve seu nome divulgado, deverá ser conhecido na próxima Segunda-Feira, quando a Universidade Distrital fará a cerimônia oficial de homenagem a nosso primeiro criogenado.

Sabe-se que é um professor universitário, e que dentre os motivos que levaram a sua escolha está uma tragédia pessoal que lhe custou a integridade física permanentemente, mas cuja condição os cientistas esperam ser reversível no futuro. Ciência Para O Futuro apresenta em primeira mão trechos de entrevistas que só serão publicadas em nossa próxima edição mensal, mas que vêm despertando tanto interesse que conseguiram superar as restrições que envolvem o assunto.

São 3 entrevistas, uma com o próprio homem que irá para o futuro, por telefone, que embora também prefira não ter seu nome revelado no momento, terminou por fornecer informações suficientes para que se possa deduzir sua identidade com quase total segurança. Mesmo assim, respeitamos o pedido da Universidade e do Projeto Criogenar para não citar nossas conclusões a respeito.

Segue agora um trecho da entrevista com o reitor Edmundo Sales Reignhald, que nos atendeu em seu gabinete na Universidade Distrital.

CPOF: Por que nossa Universidade Distrital foi escolhida pela Criogenar para a parceria nessa experiência?

Dr. Reignhald: Há vários fatores. Os mais óbvios são a localização e a disponibilidade de nosso Campus, que conta com galerias rochosas adequadas à instalação do complexo de Criogenia para seres vivos, e nossos novos reatores nucleares, que embora ainda sejam experimentais, permitirão um suprimento seguro e constante de energia. Mas o que quero destacar é que contamos com os melhores especialistas do país em Termodinâmica e Engenharia eletrônica, além do fato de 3 dos membros fundadores da Criogenar terem sido formados por nós.

CPOF: Como o senhor responde às críticas de que nossa Universidade Distrital não possui experiência no descongelamento de seres vivos?

Dr. Reignhald: Na verdade quase ninguém tem experiência, exceto a relativa a animais pecilotérmicos. Com animais de sangue quente a situação é muito diferente, e todas as pesquisas do mundo estão praticamente no mesmo nível. Ademais, é impossível prever o que acontecerá nos próximos anos, e não vejo motivo para que daqui a algumas décadas estejamos menos preparados que outras instituições que ainda hoje têm graves problemas para ressuscitar ratos. Acho que temos um bom prazo pela frente. (Risos.)

CPOF: É verdade que os novos métodos foram desenvolvidos pelo fato dos anteriores terem sido considerados inadequados?

Dr. Reignhald: Sim. Antigamente era realizado um congelamento essencialmente simples, e o maior inconveniente disto é que a água contida no sangue se expande causando diversos danos ao organismo. Nosso método atual inclui um nível seguro de desidratação para minimizar o problema e a administração de substâncias que contém o crescimento desmedido do gelo. Penso que muitos, se não todos os corpos humanos congelados até agora possam estar seriamente comprometidos. É provável que tenhamos perdido Walt Disney para sempre.

CPOF: Que mensagem ou pergunta o senhor enviaria para o futuro?

Dr. Reignhald: Humm... Difícil. Perguntaria: Por favor, que diabos é a Gravidade?

CPOF: Qual o problema com a gravidade? O que tem de especial?

Dr. Reignhald: Apenas que não sabemos o que é. Continua desafiando nosso entendimento e sempre foi assim. Não é curioso que a força mais onipresente do universo tenha passado desapercebida por quase toda a história? Aristóteles já falava sobre um tipo de atração que puxava as coisas para o centro do mundo, ele também sabia que a Terra não era plana, mas depois dele ninguém parece ter dado atenção ao assunto. Cair sempre pareceu uma coisa natural e ninguém jamais pensara no porquê. Nunca tivemos um deus da gravidade, ou melhor, mais provavelmente uma deusa, visto que a gravidade tenderia a ser associada à terra, que sempre foi vista como algo feminino.

CPOF: O senhor diz isso devido a tal teoria gravitônica do Dr...

Dr. Reignhald: Prefiro não falar sobre isso agora.

O Vale...

...era também muito agradável. Sentiu falta da floresta no começo, mas depois começou a se sentir melhor ali. Se recuperara rapidamente, surpreendendo-se com seu vigor físico, e pode excursionar longamente pelo local, confirmando a má notícia de que tudo parecia absolutamente cercado, mas também a boa notícia de que havia muitos frutos rasteiros comestíveis, com a vantagem de serem fáceis de coletar.

Passou a mergulhar no lago com freqüência, vendo alguns peixes e pequenos patos muito parecidos com os de seu tempo. Passou-lhe pela cabeça capturá-los para quebrar o jejum de carne, mas depois se recriminou pela idéia de introduzir essa nova forma de predatismo. Nunca fora vegetariano, mas também nunca fizera questão de comer animais mortos.

Mas, afora lembrar de sua família, seu maior passatempo continuava a ser pensar sobre a estranha nuvem acima, que permanecia fixa no céu e por alguns momentos deixava entrevar algo ainda mais curioso. Era como se fosse na verdade uma aeronave, como um dirigível, emanando nuvens da vapor em torno de si, que ocasionalmente deixavam de ocultar-lhe devidamente.

Também teve mais tempo para observar o céu, que era livre de árvores, embora as montanhas cortassem a visão do horizonte. Até agora não havia sinal de Lua, mas já havia contado ao menos 4 satélites grandes diferentes, mini-luas, como passou a chamar. E o estrelado do céu continuava a apresentar o estranho fenômeno de parecer explícito num momento, e ausente em outros, o que não parecia ser explicado pelas nuvens de chuva. E além do mais havia o intrigante fenômeno da faixa de estrelas que era bem mais nítida que a faixa da própria Via-Láctea, como se a Terra tivesse agora um anel repleto de pequeninos satélites, suposição que ele só não confiava porque a faixa não parecia devidamente alinhada com o planeta, embora só a tivesse observado poucas vezes devido às nuvens.

De fato, o céu passava a maior parte do tempo encoberto, mas não numa camada homogênea de branco, e sim de diversos níveis que apresentavam colorações diferentes dependendo da hora do dia. Também avistava ocasionais pássaros distantes e evidentes aeronaves. Jamais alguma delas deu sinal de se importar com sua presença, e ele ficou imaginando que deviam ser automáticas, cumprindo funções de rotina, embora na maioria das vezes só as visse indo numa única direção.

Começou a se sentir culpado por estar naquele paraíso. Não se achava merecedor. Queria ter sua família ali, e ficava imaginando sua menina apontando as pequenas luas, e sua esposa mergulhando na água. Ela adorava nadar! Olhando mais uma vez para as tatuagens, que agora ficavam a maior parte do tempo descobertas, sentia-se tolo por ficar se sabotando sentimentalmente. Tentava se convencer constantemente de que não fora culpado pela tragédia, mas a única forma de fugir daquele sentimento era voltar a se preocupar com outras coisas, mesmo porque ele esperava encontrar trabalho quando acordasse. Esperava encontrar uma academia com uma ciência bem mais avançada, que ele demoraria muito mais tempo para aprender, se ocupando, dando trabalho à mente, evitando que o ócio o fizesse reviver a tristeza e os pensamentos suicidas de outrora.

Pensara agora que por algum motivo o descongelamento de pessoas criogenadas foi considerado inadequado, a ponto de até mesmo preferirem destruir as estações e eliminar os seres do passado. No entanto o computador parecia muito confiante de que ele estaria seguro se saísse da base. Talvez houvesse disposição para eliminar os congelados apenas enquanto inconscientes.

Sentiu falta de respostas por um instante. Um pena não poder contar mais com o computador, que por sinal falava seu idioma perfeitamente bem. Mas isso não seria estranho vindo de um sistema tão avançado, que provavelmente tinha acesso a vastos bancos de dados. Estranho era não poder dispor de sistema algum de acesso a informação naquele momento num mundo onde computadores inimagináveis para sua época deveriam caber numa gota d’água.

Tentou pensar menos no assunto, e voltou a refletir sobre a nuvem que estava acima de si, passando a elaborar um plano para alcançá-la. Mais interessante do que tentar escalar as muralhas de pedra à sua volta seria construir algum tipo de planador, pois havia algumas plantas que secretavam um tipo de algodão, o que só não lhe chamara a atenção antes devido a sua Veste tornar desnecessária qualquer preocupação com roupas.

Localizara no lago um tipo de bambu mais leve e resistente que o de sua época, e começou a tentar improvisar um tipo de asa delta. Levou poucos dias para conseguir uma armação satisfatória, amarrada com cipós que trançou com uma mistura de fios do algodão e trepadeiras delgadas. Mas logo percebeu que embora pudesse fazer cordas muito boas, não conseguia fazer um tecido eficiente que permitisse cobrir a asa, pois ficava pesado demais. Tentou várias abordagens e nenhuma foi eficiente.

Se lembrou que a humanidade demorara tanto para dominar o vôo não apenas devido a falta de um melhor cálculo peso e área de sustentação, mas também devido a falta de materiais que fossem suficientemente leves e resistentes. Por mais inteligente que fosse, Leonardo da Vinci não poderia ter produzido uma asa delta mesmo que tivesse o projeto perfeito de uma.

Com isso voltou a pensar na possibilidade de escalar as muralhas, mas embora tivesse cordas, não tinha pinos. Não via chance de conseguir metais ou outros materiais tão resistentes, e por fim terminou por se render à preguiça e voltou a curtir seu merecido descanso. Nada lhe faltava. As frutas eram ótimas, a Veste fantástica, a água boa. Havia onde dormir e muito lugar para explorar, mesmo dentro de um vale fechado. E por vários dias se esqueceu de seus traumas e voltou à contemplação.

Se surpreendeu com uma descoberta tardia ainda mais impressionante. Sua Veste lhe permitia respirar em baixo d´água. Filtrava o líquido e extraía o oxigênio de forma direta, e com isso pôde explorar as profundezas do lago. Foi isso que lhe permitiu um estupendo achado.

Havia percebido uma estranha formação ao fundo, e aproveitou o Sol do meio dia para investigá-la. Qual não foi sua surpresa ao perceber exatamente um tipo de planador muito parecido com uma asa delta! Estava lá, submerso, com um estranho esqueleto como piloto. Teve um bocado de trabalho, usando várias cordas e abusando de suas forças, mas conseguiu libertar a maior parte da ossada e o veículo, e trazê-los para a superfície.

O esqueleto não era humano. Devia ter uns 2,5m de altura e tinha pernas muitíssimo longas, que constituíam mais da metade da dimensão vertical. Os pés também eram muito compridos, sem dedos, exceto pelo calcanhar que parecia ter nada menos que um longo dedo traseiro que se articulava para baixo como um “salto”. A bacia também parecia desproporcionalmente larga em relação ao tórax, que tinha a curiosidade de possuir projeções frontais nas costelas, na altura do peito, quase simulando “seios de osso”. O formato do crânio também parecia anormalmente alongado e ovóide, e parecia não ter cavidades dentárias. Mas era difícil examinar melhor, porque a parte de cima estava totalmente arrancada, como se o cérebro houvesse sido extraído. Infelizmente não sabia o suficiente de anatomia para permitir deduções mais seguras, desconsiderando a impressão de que o esqueleto fosse feminino.

Se concentrou na asa delta. Estava destruída. Sua armação não era de metal. Parecia plástico, mas estava quebrada em diversos pontos, o que inviabilizava a sustentação. O tecido também tinha vários rasgos e lembrava seda, embora mais resistente. Teve um grande trabalho para desmontá-la, pois o tecido parecia estranhamente fundido com a armação.

Apesar de tudo conseguiu criar uma primitiva agulha, além de outras ferramentas, com parte dos ossos do esqueleto, que por sinal era surpreendentemente resistente, e com o passar dos dias, debaixo de muita chuva, conseguiu costurar o tecido em sua antiga armação de bambu, reforçando algumas partes com pedaços da armação de plástico.

Aproveitou integralmente o suporte para o piloto, e pensou que embora a envergadura da asa delta fosse menor, isso poderia ser compensado pelo fato de ele próprio ser menor e provavelmente mais leve que o piloto morto.

Finalmente aprontou o veículo e realizou alguns testes. Esperou então o dia ideal. Sem chuva, e de poucos ventos.

O Vôo...

...inicial foi surpreendentemente tranquilo. Esperava uma dificuldade maior, um risco maior, mas conseguira decolar de um desfiladeiro no sopé das muralhas, embora somente após várias tentativas. Favorecido por uma brisa ascendente, conseguiu ganhar altura, e aos poucos foi tomando coragem e subindo mais e mais.

Deve-se notar que não era sua primeira vez. Já havia voado de asa delta antes, embora só o fizesse sozinho em uma única ocasião e tivesse pouca experiência. Teria no máximo umas 3 horas de vôo, a maior parte delas em dupla, com um instrutor.

Mesmo assim conseguiu fazer um bom trabalho, subindo até o ponto em que lhe seria possível transpor a muralha. Mas a estranha nuvem no meio do vale capturava sua curiosidade e além disso, havia uma vantagem em termos de segurança, pois se lá caísse, o faria na água.

Assim, resistiu ao impulso de escapar do vale e decidiu se aproximar da “nave” oculta em nuvens. Os ventos dificultaram e demorou mais do que esperava. Foi difícil manobrar e conseguir subir acima da altitude da nuvem, supunha ele, uns 1.500m. Procurou não pensar no perigo que podia estar correndo. Daquela altura, mesmo na água, uma queda seria fatal, e por um momento as nuvens que se formaram lhe deram um estranho e imprudente conforto ao nublar sua visão do imenso lago abaixo.

Finalmente chegou perto da nuvem artificial, uns 200m acima dela, justo no momento em que uma oscilação da névoa lhe revelou que suas suspeitas se confirmavam. Era uma estrutura artificial, uma espécie de nave, fixa por “âncoras” invisíveis que a mantinham numa posição estável. Se aproximou mais e então percebeu que somente a parte inferior era de fato permanentemente encoberta. Acima da estrutura não eram projetadas névoas, e pode vislumbrar aquilo que só poderia ser descrito como uma Laputa (Laputáh), a cidade voadora das Viagens de Gulliver.

Tomou coragem e finalmente sobrevoou a cidade diretamente e apenas a uns poucos metros das estruturas mais altas, onde percebeu que o ar era calmo, e então entendeu que havia um estranho vórtice em torno da ilha aérea, que dificultara sua aproximação, mas no olho do “furacão”, era calmaria.

Não havia sinal de habitantes. Embora aparentasse haver habitações com parca vegetação tomando as estruturas artificiais num claro sinal de abandono. Havia também pássaros e até animais terrestres perambulando pelo que, apesar disso, era completamente quieto. Como um túmulo.

Tomado de uma sensação de surrealidade, decidiu pousar no local, o que só foi difícil devido a sua própria imperícia. Precisou de várias tentativas para enfim se aproximar do solo no ponto mais próximo da beirada, e ir reduzindo a velocidade e pisando no chão firme até parar.

Estava então solucionada parte do mistério. E se sentiu feliz em, pela primeira vez, ser mais que um mero “passivo” das condições naturais, passando a determinar seu próprio destino e, pelo seu próprio esforço, transpor os limites de sua condição.

Laputa...

…era, na obra mais famosa de Jonatham Swift, uma cidade voadora onde habitava uma avançada civilização. Num desenho japonês do fim do século XX, foi reinventada com uma tecnologia ainda mais avançada, e seu estado lhe lembrou a situação que agora ele encontrava.

Definitivamente o local parecia abandonado há décadas, talvez séculos, e a vegetação só não era mais onipresente porque àquela altitude, como mostravam as montanhas, não havia condições para maior desenvolvimento. Havia ruas de pedra, casas em formato hemisférico, torres cilíndricas e toda sorte de estrutura. E toda a cidade, diferente de qualquer aeronave, era surpreendentemente estável. Era possível se esquecer que se estava flutuando a mais de um km de altitude.

Tudo, porém, era inerte, com o silêncio só cortado por movimentos ocasionais de pássaros e pequeninos esquilos e roedores que não pareciam ter muito o que comer. Investigou o local com muito cuidado, temendo ser, a qualquer momento, surpreendido por alguma recepção hostil, imaginando a sinistra silhueta daquele esqueleto. Mas tudo estava de fato abandonado. A maior parte das casas trancada, mas dos prédios maiores, muitos estavam abertos, e ele encontrou muita, muitíssima, coisa para investigar.

Contrariando suas expectativas, não viu sinais evidentes de tecnologia avançada. Encontrara artefatos em metal e plástico que pareciam até antiquados, embora na maioria das vezes suas funções fossem misteriosas. Encontrou também “livros”, todos de plástico e perfeitamente conservados, mas que muitas vezes tinham imagens que saltavam das páginas, como holografias, algumas das quais animadas.

Ficou fascinado com as incríveis amostras de cidades, mapas, objetos, do espaço e de diversas criaturas mostradas entre textos de caracteres completamente indecifráveis, embora em alguns poucos casos houvesse pequenos trechos escritos em letras similares às das escritas de seu tempo, em geral misturando alfabetos latinos, cirílicos e ideogramas muito similares aos coreanos e chineses, mas nada que pudesse de fato entender.

Vasculhou vários locais sem encontrar sinais de dispositivos elétricos ou eletrônicos, nem nada que lembrasse vídeo, mas pouco se importou, pois havia muito o que pesquisar, incluindo globos terrestres que pareciam mostrar um tipo de “evolução” da geografia do planeta, que se fosse aquela representada num globo maior que parecia ocupar uma posição de destaque, estava bastante diferente da de 5 mil anos atrás, por motivos que, geologicamente, ele não podia adivinhar.

Encontrou também representações de outros planetas, alguns claramente familiares, do sistema solar, outros completamente desconhecidos, e entre a profusão de globos não conseguia discernir se eles representavam o nosso, ou outros sistemas planetários.

Alguns pequenos artefatos cilíndricos, com cristais acoplados, quando devidamente posicionados em relação à luz, projetavam belas imagens nas superfícies brancas, ou mesmo em pleno ar, numa tecnologia que definitivamente estava além da de seu tempo. No entanto evitou tirar conclusões, pois entre as imagens que poderiam estar mostrando informações úteis e factuais, havia muitas que pareciam mostrar estórias de fantasia, de modo análogo, pensou ele, ao que uma biblioteca particular poderia misturar livros de história com contos de fadas ou ficção científica.

Enfim, tinha material para pensar por toda uma vida, mas toda a rica informação que encontrou, todos os estranhíssimos objetos e livros que passou a ter acesso, ainda que sem entender devidamente seu conteúdo, e todas as possibilidades que passou a experimentar, foram ofuscadas quando seus olhos se depararam com algo fora da cidade flutuante.

De repente, pela janela, viu algo absolutamente espantoso. Num primeiro momento interpretou como sendo algum outro artefato em ação, talvez projetando imagens, mas ao sair para o ar livre, terminou por confirmar aquilo que seus olhos viam, mas sua mente ainda tentava recusar. Finalmente tinha uma visão nítida do horizonte, acima das montanhas, sem a obstrução da floresta, e num raro momento de ausência completa de nuvens.

E o que via poderia subverter por completo tudo o que ele estivera considerando, até mesmo, talvez, o que o computador lhe dissera.

Não podia estar na Terra!

Pois à sua frente, tomando quase todo o horizonte, logo atrás do “vulcão” que parecia o Monte Fuji, havia o topo de um gigantesco planeta joviano, similar a Júpiter ou Saturno, e então finalmente se deu conta de que estava em uma lua! Que na verdade seu novo mundo orbitava um mundo maior. Que tinha até mesmo um belíssimo anel que ligeiramente inclinado, subindo céu acima, se perdia na claridade do dia, mas que enfim se revelava como a falsa via láctea que tanto o havia intrigado.

Trecho de Entrevista...

…com o Dr. A (que preferiu ter seu nome não divulgado enquanto não houver uma confirmação oficial).

CPOF: Qual a sua formação?

Dr. A: Me formei em Física e tenho me pós graduado sempre em Física de Partículas. Mas minhas áreas de interesse sempre foram muito variadas, abrangendo Filosofia da Natureza, Linguística e Teoria da Informação.

CPOF: Que idiomas você fala?

Dr. A: Não muito. Só sou fluente em Português, Espanhol e Inglês. Sei ler em Alemão e tenho noções de Russo.

CPOF: Acredita que sua formação foi o fator mais determinante para sua escolha entre tantos outros candidatos qualificados?

Dr. A: Sinceramente não. Acho que minha estória pessoal e minha condição física pesaram muito no processo. Mas não me sinto menos qualificado ou merecedor por isso. Além do mais, quero muito participar disso. Sempre desejei viajar para o futuro, ver uma nova época surgir de repente.

CPOF: O senhor se considera um bom representante de nossa época.

Dr. A: ...Bem... Acredito que represento bem os dilemas de nossa época. Nossa situação tão aparentemente avançada, e ao mesmo tempo tão cheia de problemas.

CPOF: O que quer dizer?

Dr. A: Bem... Muitos não acreditavam que fosse chegar onde cheguei, e eu mesmo me surpreendo. Mas no entanto não me considero um gênio por isso. Acho mesmo que apenas estive nos lugares certos nas horas certas, assim como nos lugares errados no momento errado. E essa história de sucesso e tragédia me trouxe até aqui. Acho que conheço bem a situação histórica do momento, e conheço bastante cultura geral e cultura pop. Passo muito tempo na universidade e estudo muito seriamente, mas também passo bastante tempo vendo filmes e assistindo TV. Não sei... Acho que sou um exemplo de contradição.

CPOF: O senhor acredita em Deus?

Dr. A: Não sei. Acho que não, ainda mais agora... Lembro que, uma vez, por um breve momento em que me peguei rezando, quer dizer... Meio que apelando para algum tipo de poder superior que no fundo não acreditava, eu só pedi uma única coisa.

CPOF: O quê?

Dr. A: Eu nunca me achei no direito de pedir nada por que, apesar de tudo, minha vida foi boa. Nunca conheci meus pais, mas tive ótimos amigos, e não tinha inveja de muitos colegas na escola que tinham pais deploráveis. Enfrentei muitas dificuldades na vida, mas sempre achei que elas eram passageiras, e então, nunca achei necessário apelar para o sobrenatural, até que... Bem. Um dia eu pensei que só havia uma coisa que pediria, que eu pedi, a uma divindade, pois de resto eu não precisaria, ou enfrentaria tudo sem nada a temer. Quer dizer, qualquer coisa ruim que me aconteça, eu posso encarar. Mas...

CPOF: O que o senhor pediu para que não lhe acontecesse?

Dr. A: Eu pedi apenas que jamais tivesse que passar pela experiência horrível de perder uma criança.

O Planeta Gasoso...

...em torno do qual aquele mundo girava se parecia com Júpiter, mas era impossível ter certeza, mesmo porque só via uma parte dele, cerca de 1/3 sobre o horizonte, e assim não podia conferir se havia a famosa mancha vermelha, que aliás podia nem sequer mais existir. Agora mais do que nunca ele estava confuso sobre tudo. O computador mencionara mudança de locais do complexo de criogenia, que outrora fora no Campus de sua Universidade, mas nada sugeria que tal mudança tivesse sido interplanetária.

A “biblioteca” de que dispunha também pouco ajudava, pois se já parecia difícil saber o que era informação histórica e o que deveria ser fantasia, agora, mesmo se tudo fosse histórico, não havia como saber se era relativo a história da Terra ou daquele satélite em especial.

Algumas imagens sugeriam que aquele mundo era habitado há muitíssimo tempo, milênios, a julgar por um sistema que tudo indicava ser um tipo de grande calendário. Mas então isso significava que o tal mundo não poderia de modo algum ser em nosso sistema solar. Entendia o suficiente de tecnologia espacial e astrofísica para saber que seria impossível colonizar um satélite em Júpiter, ou Saturno, principalmente devido a terraformação para torná-lo habitável, há mais de 4 mil anos atrás. Ou a Terra havia tido um estupendo salto tecnológico, ou havia sido visitada por extraterrestres.

Essa última hipótese agora parecia um pouco mais atraente a julgar pelas estranhas imagens de seres vagamente humanos que observara. Mas para sua total incompreensão, essas imagens quase sempre pareciam associadas a seres nitidamente humanos. Notara em mais de um livro gradações de seres, como se evoluíssem através das eras de modo artificial, onde humanos como o de seu tempo iam se tornando por vezes maiores, por vezes menores, e cada vez mais distintos, e então terminando em seres inacreditáveis em termos evolutivos.

Em outras imagens era nítido que parecia haver contraposição entre espécies distintas, e até a sugestão de que alguns fossem mesmo extraterrestres. No entanto, por outro lado, pareciam humanos demais para isso, ao mesmo tempo eram humanos de menos para terem evoluído na Terra. Ou teria a engenharia genética deliberadamente criado autênticas perversões anatômicas tais como humanos absurdamente grandes ou incrivelmente pequenos, ou que as vezes mais lembravam animais fantásticos?

Nada achava que permitisse conectar a história daquele mundo com a do seu. Havia algumas aparentes referências à sua época, como por exemplo, um quase inconfundível mapa mundi do século XX, inclusive com a divisão política, bem como uma retratação bastante sugestiva das missões Apolo à Lua. Mas boa parte delas estava lamentavelmente misturada a fantasias, como o astronauta que fincava a bandeira americana com a ajuda de um alienígena.

De qualquer modo, a estória espacial parecia de fato importante, visto que permitira alcançar aquele mundo, mas não conseguia chegar a nenhuma conclusão apesar das inúmeras fontes de que dispunha ali, principalmente porque não conseguia decifrar coisa alguma, e com tudo isso, quase estava se arrependendo de ter alcançado aquela cidade voadora, uma vez que isso tirara seu sossego. Se ao menos o mundo estivesse completamente desabitado, não teria com que se preocupar, mas o computador dissera que havia 4 milhões de habitantes, dos quais muitos certamente tinham acesso a tecnologias avançadas, a julgar pelas naves que avistara.

Só havia uma coisa a fazer. Deu início a uma séria catalogação e discriminação de conteúdo. Preparou um plano de estudos e se convenceu de que dedicaria a vida inteira, se preciso fosse, para tentar desvendar aqueles idiomas, bem como terminar de explorar aquela cidade flutuante, que ainda tinha locais de difícil acesso aos quais ele ainda não visitara.

Nem Todos...

…estão satisfeitos com a escolha da Universidade Distrital e do Projeto Criogenar para o nosso primeiro homem congelado. O biólogo Ferdinand Silveira crítica a escolha por seus critérios subjetivos e pessoais, e pela falta de uma qualificação adequada do escolhido. Nesta terceira entrevista Ciência Para O Futuro trás uma das vozes que considera a empreitada Criogenar um equívoco.

CPOF: Em que sentido o senhor acha que a escolha foi inadequada?

Silveira: Principalmente por sua área de atuação. A Física de Partículas tem enfrentado temíveis mudanças de paradigma recentemente, e corre o risco de ser reformulada por completo. Acho muito difícil que daqui a 50 anos o selecionado tenha algo a contribuir, pois é quase certo que a idéia de natureza, especialmente a subatômica, será bem diferente. Isso se não reformularem totalmente o modelo atômico! Como ele poderá ser útil então?

CPOF: O senhor acredita que a escolha se deu por critérios pessoais?

Silveira: Sem dúvida. Todos nos sensibilizamos por nosso colega, e é compreensível que ele queria deixar tudo para trás e fugir para o futuro. Quem não gostaria? Mas se esse for o critério, tenho certeza que podemos encontrar pessoas com situações muito mais trágicas. O famoso Professor Maurício perdeu a família inteira e todos os amigos quando o avião que trazia seus pais caiu em cima de sua casa no dia do seu aniversário, justamente quando ele saiu para buscá-los no aeroporto. Ele perdeu tudo! Casa, amigos e parentes, todos reunidos num só local! Até hoje a indenização não saiu e ele é um grande biólogo! Estava inscrito entre os candidatos, mas nem sequer passou na triagem inicial! Até hoje ninguém me explicou por quê!

CPOF: O senhor acredita então que a Biologia é uma área mais adequada que a Física para a pessoa que irá para o futuro?

Silveira: Certamente. Diferente de qualquer área da física, a biologia, especialmente a evolutiva, não corre risco algum de revisão imediata, principalmente com a recente descoberta dos Mutagênicos Transversos capazes de acelerar a evolução de modos imprevistos. Dificilmente esse paradigma sofrerá qualquer abalo sério nos próximos 50 anos assim como não sofreu nos últimos 200. Um biólogo certamente teria mais a contribuir.

CPOF: Mas o escolhido também tem especializações em outras áreas além de Física de Partículas.

Silveira: Sim, mas são áreas submetidas aos mesmos problemas. Teoria da Informação é atualmente uma colcha de retalhos onde os departamentos de Filosofia Analítica e Psicologia Cognitiva da Universidade Distrital têm travado uma batalha secreta nos corredores que tem se arrastado por anos, e as vezes é tão hostil que quase baixa o nível. Sem contar o pessoal da Memética que já está craque em refutar sistematicamente todos os artigos que eles publicam. E em que Linguística poderia contribuir? Aliás, essa é outra crítica que faço ao professor selecionado. A formação dele é multi facetada. Ele não é um especialista. Na realidade ele é mais conhecido por um artigo chamado “Gravitônica” que fez um enorme sucesso no seminário do ano retrasado em Estocolmo, mas é quase ficção científica, como ele mesmo admite. Ele não tem formação para elaborar uma nova teoria gravitacional, e ele próprio também já admitiu isso. E Filosofia da Natureza então... Poupe-me!

CPOF: O senhor acha que o episódio do abaixo assinado contra o ensino de Teoria da Informação em Biologia no ensino médio depõe contra ele?

Silveira: Penso que ele foi completamente irresponsável em se abster na questão. Era óbvio que não passava de um subterfúgio para empurrar Design Inteligente na biologia do ensino médio, e Design Inteligente é só outro nome para Criacionismo! Ao não admitir isso, deu força aos fundamentalistas religiosos que se disfarçam de cientistas.

CPOF: O senhor se inscreveu entre os candidatos ao congelamento?

Silveira: Sim. Mas nunca achei que tivesse chance.

Mas as críticas do Dr. Ferdinand Silveira incomodaram os responsáveis pelo projeto. O reitor Edmundo Sales Reignhald fez questão de responder aos comentários, que considerou equivocados e injustos.

Dr. Reignhald: Isso me parece muito mais uma intriga interdepartamental. O pessoal da Biologia Evolutiva não sabe perder. É injusto criticar a área em questão porque o que realmente interessa não é a especialização em si, mas sua capacidade inconteste de aprender e dominar novos conteúdos. Ele sempre se destacou pela velocidade em que consegue absorver conhecimento novo. Devido aos problemas da tragédia de sua cidade natal, ele só conseguiu concluir o ensino médio aos 20 anos, e mesmo assim aos 25 já tinha mestrado! Ele sempre foi muito elogiado por sua personalidade e disposição para aprender, e seus artigos sempre foram bem recebidos pela comunidade científica.

CPOF: Mas o artigo "Gravitônica" foi muito criticado pela imprensa especializada, especialmente aquela "Equação" que muitos interpretaram como uma piada de mau gosto.

Dr. Reignhald: É verdade. Ele próprio se arrependeu de tê-lo publicado. Mas isso foi um episódio isolado, e ele mesmo nunca levou o artigo muito a sério, tanto que cedeu a idéia a um jogo de videogame e nunca mais tocou no assunto. Na verdade penso que se não tivesse sido aquela pseudo equação no final, ninguém teria reclamado do artigo, que no geral é pelo menos instigante. Além do mais, a idéia de que a gravidade é apenas a inércia da expansão acelerada do universo nem é exatamente nova, ele apenas teve coragem de formular melhor o raciocínio e publicar num evento acadêmico. E é fato que até agora só Deus sabe o que é a Gravidade.

CPOF: O senhor não se considera ateu?

Dr. Reignhald: Literalmente não. Nunca tive problemas para crer num Deus. O que eu não acredito é no Diabo, que é o que a maioria dessas religiões por aí exigem.

O Solitário Pesquisador...

...passou os próximos dias em idas e vindas na cidade aérea, facilitado pelo fato das chuvas diminuírem. Em geral preferia passar as noites em terra, onde se alimentava e depois subia à cidade fazendo uso de outros planadores que lá encontrara. Vira duas esquadrilhas, muito altas e distantes para serem melhor avaliadas. Uma era composta de poucas aeronaves, menos de uma dezena. Mas outra parecia um enxame. Ambas haviam sobrevoado rumo ao horizonte onde a imagem do planeta se agigantava dia após dia, e isso, somado a constatação em mais de um mapa da existência de uma bela e enorme cidade naquela direção, lhe deram a convicção de que cedo ou tarde viajaria para lá.

Enquanto esse dia não chegava, investigava o máximo que conseguia a pitoresca cidade flutuante. Já podia se dar por satisfeito por constatar, com quase toda certeza, que o que quer que mantivesse a ilha no ar tinha a ver com magnetismo, não apenas pelo que mostravam algumas imagens, como pelo fato dele próprio ter detectado enormes magnetos no fundo da cidade e ter sentido seu efeito com detectores improvisados. Com tubos de metal, examinou as paredes internas do vale, e localizou os pontos para onde os magnetos de Laputa pareciam estar apontados, pois as rochas estavam evidentemente imantadas.

Como aqueles magnetos conseguiam ser tão potentes sem aparentar tipo algum de alimentação elétrica, permanecia um mistério, e mesmo que tivessem, nada explicava como poderiam ter tanta força, de modo que supunha que o magnetismo fosse antes o efeito colateral de algum tipo de procedimento antigravitacional ainda mais enigmático, que ele adoraria desvendar. Mas ao menos eles pareciam explicar a falta de dispositivos eletromagnéticos na cidade, visto que evidentemente havia uma tremenda interferência. Com campos de tal magnitude, qualquer artefato elétrico comum teria seu uso comprometido, mesmo os objetos de metal mais imantável já tinham problemas, sendo abruptamente puxados para o chão em alguns locais da cidade. Por isso, certamente, havia o uso tão maciço de plásticos, vidros e até madeira.

A tecnologia óptica era muitíssimo sofisticada. Pequeninas lentes projetavam imagens espetaculares ao serem transpassadas por um simples raio de luz, e havia “folhas” plásticas capazes de reproduzir dezenas de imagens animadas, trechos de filmes com qualidade surpreendente. Um deles em especial estava particularmente oculto em meio a inúmeros apetrechos que pareciam ter sido escondidos, e lhe chamou atenção por apresentar uma figura que era recorrente em outras imagens, embora sempre de forma indireta e discreta, e que só então ele lembrou já ter visto antes, na base onde fora descongelado, enfeitando a parede da ante sala da qual teve que sair às presas. Era uma “mulher” que aparentava um ar de divindade, aparentemente humana, mas com traços incomuns, como uma cabeça mais alongada a ampliada no topo. Tinha uma “beleza” estranhamente perturbadora, do tipo que parece antipática, quase repulsiva, mas ao mesmo tempo irresistível de se olhar, e quanto mais se observava, mais hipnotizado ficava, embora também incomodado. Havia uma quantidade impressionante de textos acompanhando um modelo tridimensional incrível da mulher, que vestia um longo manto negro, acentuando seu aspecto sinistro e ao mesmo tempo encantador. Era o registro mais extenso que encontrara, e lamentou em especial por não ser capaz de lê-lo, principalmente devido a possuir, em incrível destaque, algo que aparentava ser um pequeno verso, que piscava em vermelho incandescente.

Também encontrou muitos dispositivos manuais engenhosos, como canetas com recursos de desenhar linhas perfeitamente retas, ou réguas capazes de, com facilidade, traçar gráficos de imensa precisão sobre “papéis”onde a qualidade do traço parecia ser de uma sofisticada gráfica, mas que também podiam ser completamente apagados sem deixar vestígios por outras ferramentas. E nada tinha qualquer sinal de uso de tintas. Só ficara frustrado por não ter encontrado telescópios, pois o dispositivo que pensara ser um, após muita insistência e tentativas de uso, se revelara apenas um projetor de imagens que poderia lançar luz ao céu como um holofote, e que ele preferiu não utilizar temendo chamar demasiada atenção, deixando então intocados outros dispositivos similares.

O sistema de enevoamento da estação aérea era um espetáculo. Captava água das nuvens e armazenava em containeres de metal não magnetizável. Sistemas de lentes capturavam e concentravam a luz solar e a enviavam por jogos complexos de espelhos, aquecendo até o ponto de ebulição e depois ejetando-os da parte inferior, onde em contato com o ar frio, e ou por talvez algum outro processo que não desvendara, se convertia numa densa nuvem. Era difícil compreender melhor porque o vôo na parte inferior da cidade era impossível, e ele não encontrou acesso que permitisse maiores investigações.

Nos andares inferiores da cidade achou, após muito trabalho para arrombar as portas, mais esqueletos. Alguns do mesmo tipo do que encontrara no lago, outros bem diferentes, bem menores, até menores do que ele, e aparentemente mais similares aos humanos. Havia também ao menos outros dois tipos, alguns incrivelmente largos, e outros que possuíam caudas e até o que pareciam ser asas. Mas havia algo em comum a todos. Tinham a parte superior do crânio arrancada. Em alguns casos, pôde recuperar os lobos superiores quase intactos, espalhados próximos aos seus prováveis corpos originais. Não parecia ser um tipo de ataque externo, mas como se tivessem sido abertos por dentro.

Contemplar aquelas evidências para quem crescera vendo alienígenas parasitas e extraterresteres que extraíam cérebros na mídia, era arrepiante. Ainda mais quando não encontrava referência alguma sobre isso nos registros que tinha acesso. Um dos motivos pelo qual concluiu que aquela cidade deveria ser muito antiga mesmo nos padrões daquele novo mundo. Talvez fosse uma relíquia abandonada, e a história e a tecnologia, a partir dali, teria avançado muito mais.

Mais perturbador ainda o fato de que muitos dos esqueletos estavam reunidos em torno de uma imagem da mesma mulher misteriosa, como em estado de veneração ou súplica, o que praticamente confirmava que se tratava de um tipo de Deusa. Com tudo isso, sua verve científica havia sido desperta com uma intensidade que há muito não sentia. Finalmente tinha muito para investigar e até se sentia melhor com relação ao trauma da perda de sua família. Trabalhando, achava que podia compensar sua responsabilidade na tragédia, contribuindo de alguma forma com o que quer que fosse.

Decidiu então que era hora de sair do vale, pois embora pudesse tê-lo feito antes, não havia se interessado. Equiparia um planador e se prepararia para viajar rumo ao “monte Fuji”, além do qual devia haver uma imensa cidade, como constava em um dos mapas. Se não tivesse algum bom resultado, viajaria para outros locais, e se nada mais interessante encontrasse, ainda teria muito trabalho em Laputa, para decifrar as enigmáticas escritas que lhe separavam de um melhor entendimento do planeta em que vivia.

E o mais importante. Finalmente se sentia em paz com suas tatuagens, e suas memórias.

Alguns dias depois, após cuidadosos preparos, numa nova e reforçada asa delta partiu da cidade flutuante, rumo ao horizonte, no momento em que o imenso planeta gasoso despontava por entre as nuvens.

Fim da Parte - 1



Marcus Valerio XR
Novembro/Dezembro de 2010
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