Ele entrou e se sentou no banco traseiro da limusine, sozinho e apreensivo, tentando controlar os pensamentos e a expectativa durante a viagem. Olhando pela janela, o Sol se pondo pareceu simbolizar algo importante em sua vida, como o encerramento de um capítulo, pensamento que embora não tivesse um motivo objetivo claro, o perturbou. Apenas fôra chamado à casa de sua chefe. A grande dona da empresa, a exótica e ultra recatada Senhorita Van Pel. A vira umas poucas vezes, em reuniões após o expediente que sempre começavam e terminavam tarde. Ou nas poucas festas de confraternização dos funcionários. Era uma mulher muito branca e inegavelmente bonita, embora tão discreta que era difícil observar melhor, quase sempre usando largos óculos escuros e um amplo chapéu, ostentando sempre vestidos largos que cobriam quase completamente seu corpo, inclusive as mãos, que sempre usavam luvas. Falava tão pouco que a maioria jamais ouvira sua voz, visto se comunicar quase sempre indiretamente, por meio de seus funcionários mais chegados, em especial seu mordomo pessoal que sempre a acompanhava, ou seu motorista particular, que era quem agora conduzia o carro no banco da frente, inacessível devido ao vidro e a distância alongada do veículo. Não era casada, nem tinha filhos, nem parentes conhecidos. Com tudo isso, estórias discretas proliferavam pelos corredores, algumas bizarras, sobre o histórico daquela mulher, chamada por vezes de bruxa, feiticeira, vampira, ninfa, súcubo ou qualquer outra coisa sobrenatural. E ele agora, mais do nunca, entendia o misto de fascínio e repulsa que muitos tinham por ela. Mesmo tendo um rosto lindo, quase não tinha expressão, embora o sorriso que frequentemente apresentava fosse simpático, mas tão monótono que chegava a ser incômodo. Nas poucas fotos e filmagens em que aparecia, tinha praticamente sempre o mesmo semblante. Assim, agora que finalmente fôra chamado à casa dela, sentiu de forma mais profunda aquilo que alguns já disseram. A sensação de ser atraído para a teia de uma viúva negra. Um encontro que pode até ser excitante, mas da qual você não sairá vivo, e mesmo sabendo disso, ao qual não resistirá aceitar. Sim. Porque ela o convidou de modo muito gentil e delicado, como em geral fazia, mas ao mesmo tempo com uma espécie de força subjacente que tornava o convite numa espécie de ordem irresistível. E não poderia dizer que tinha algo a ver com qualquer medo de retaliação profissional. Na verdade, ele estava a ponto de pedir demissão. Nos últimos anos trabalhara de forma dedicada e sem grandes problemas, realizando vendas muito lucrativas, conseguindo uma ascensão na carreira que surpreendera a ele próprio. Com o dinheiro e experiência acumuladas já tinha planos para mudança de vida. Pretendia pedir sua namorada, que já conhecera há quase um ano, em noivado, e fizera contatos com outra empresa que embora não lhe oferecesse um salário maior, ficava mais próxima da casa que acabara de herdar de sua avó. Na intenção de noivado estava o pivô da preocupação. Nas poucas vezes que encontrara a misteriosa chefe, ela sempre o olhou de forma estranha. Seus olhos, cujas córneas eram impressionantemente brancas contrastando com o castanho claríssimo das íris, pareciam fitá-lo de forma tão profunda que ele continuava com a sensação de estar sendo devorado por seu olhar mesmo quando ela colocava os óculos. O que frequentemente fazia até mesmo em ambientes pouco iluminados. Era impossível não achar que ela tinha um interesse pessoal nele, especialmente pelo modo como, a cada um dos poucos encontros, se aproximava cada vez mais e dirigia-lhe cada vez mais atenção, alternando aquele olhar penetrante e sorriso enigmático, e um modo de falar frio, mas ao mesmo tempo envolvente, com momentos de longo silêncio e aparente distração, quando parecia fitar o vazio. Sofreria ele algum tipo de assédio sexual? Sua namorada não havia gostado das poucas ocasiões onde conhecera a chefe. E nem tanto por ciúmes, mas uma apreensão que confessava ser inexplicável, como se tivesse um mau pressentimento. Por isso ele não dissera a ela que iria visitar a casa da dona da empresa, embora tal visita já estivesse marcada com uma semana de antecedência. Deveria ter dito? Não conseguia decidir, e a cada esquina virada, a cada via cruzada, cada telefone público que avistava, sentia mais e mais que deveria tê-lo feito antes ao mesmo tempo que crescia o medo e a expectativa. E a sensação de que não teria uma segunda chance. Deveria pedir para o motorista parar no próximo orelhão que visse? E ao mesmo tempo, sentia a curiosa sensação de alívio ao não avistar qualquer telefone na limusine, o que lhe deixaria sem justificativa para não ligar. Se a senhorita Van Pel decidisse seduzi-lo, deveria se esquivar? Ou seguir o conselho dos homens mais experientes de que não se deve recusar a investida de uma mulher, especialmente em posição de poder, pois elas costumam ser extremamente vingativas, e ser mais seguro manter um discreto e breve romance do que fazer a afronta de uma rejeição? Ou isso não passava de uma desculpa esfarrapada para justificar a infidelidade? Podia ser demitido. Não se importaria. Podia ameaçá-la com um processo caso fosse vítima de assédio. Mas alguma coisa dentro dele lhe dizia que ela era suficientemente influente para que qualquer atitude que pudesse a desagradar deveria ser seriamente ponderada. Além do fato de sua beleza ser tentadora. E então, se deu conta de que estava chegando. O carro já adentrava pelo mais famoso setor de mansões da cidade, e ele sabia que a propriedade dela era uma das primeiras, das mais antigas, e das maiores. A limusine entrou por um amplo portão, vigiado por dois seguranças armados, que interrompia um monótono e infindável muro de pedras, ainda mais sinistro naquele cair da noite escura. Mas a viagem ainda demorou um pouco, visto que a casa sequer era avistável da entrada. Somente depois de contornar uma pequena floresta, por um caminho sem qualquer iluminação, finalmente o veículo chegou ao pátio frontal da casa, que não era grande como ele esperava. Aliás, para alguém no nível financeiro dela, surpreendentemente pequena, apesar dos dois andares. O conhecido mordomo veio atendê-lo, abrindo a porta. Era um senhor de idade, de ao menos uns 70 anos, embora ainda muito disposto, ágil e empertigado. Finamente vestido com roupas bastante demodé. Mas embora sempre tivesse sido muito amigável e simpático, algo na expressão dele tornou a experiência ainda mais estranha, perdendo apenas para o fato que assim que passou pela entrada, logo se deu conta de que rumavam para uma escada descendente e que a casa era bem maior do que ele pensava, pois tinha amplas instalações subterrâneas. A medida que o acompanhava pelos corredores, se atreveu a falar. - Senhor Bertoni... Desculpe perguntar mas... Poderia me dizer qual seria o motivo pelo qual a Senhora Ludmilla quer me ver? Ele respondeu primeiramente com um pigarro, depois um sorriso. E então finalmente falou, abafando o som de uma bela melodia do piano que vinha de longe, o que quase fez o apreensivo visitante pedir que Bertoni se abstivesse de responder. - Senhor Denilson, eu diria que ela tem uma proposta para lhe fazer. E sinceramente acho que é algo irrecusável. Mas posso garantir que o senhor será livre para decidir sem qualquer risco de uma retaliação, se é o que lhe preocupa. - Seria o cargo de gerência na loja matriz? - Arriscou, esperançoso de que tal proposta fosse puramente profissional. Mas a resposta do mordomo não o tranquilizou. - Esteja certo que é bem mais que isso. Continuaram andando, enquanto o som do segundo movimento da Sonata No 8 de Bethoveen, a Pathétique, aumentava. Mesmo apreciando a boa música, a curiosidade e expectativa ainda o levariam a perguntar outra coisa se de repente não tivessem chegado diante da uma ampla porta fechada, a qual Bertoni bateu suavemente, e a diminuição do ritmo e volume da música parecia ter sido entendida por ele como uma autorização para abrir e convidar Denilson a entrar. Era uma sala bem iluminada, com papéis de parede azul. Ao canto o piano de cauda, um Steinway & Sons, que custaria bem mais que um ano de seu salário mesmo que fosse comprá-lo usado (ele fizera a venda de um há pouco mais de um ano), onde a Senhora Ludmilla executava os momentos finais do segundo movimento da sonata. Foi a primeira vez que ele viu as mãos dela nuas, e tão brancas que pareciam anêmicas, contrastando com o tecido de seda preta das mangas da camisa. Foi também a primeira vez que a viu sem o chapéu, além de sem os óculos, e chegou a ficar quase indignado em como ela poderia manter escondidos cabelos tão bonitos e sedosos, profundamente negros e ligeiramente reluzentes, exatamente como o vestido. Ela finalizou a música, que executara com perfeição, dando uma longa pausa. Tocaria ela agora o Terceiro Movimento? Seriam ao menos cinco minutos a mais, o que o deixou apreensivo não porque não apreciasse música erudita. Pelo contrário. Afinal, trabalhava numa loja de instrumentos musicais, e tinha formação em música, embora em outro instrumento. A apreensão seria devido ao fato de que teria que amargar mais tempo de expectativa. Mas não ocorreu, após uma longa pausa de olhos fechados, como se estivesse em transe, ela finalmente se virou para ele lentamente, e mais bela do que nunca, embora também mais perturbadoramente misteriosa, disse: - Boa noite Denil... Obrigada por atender o meu convite. Ela o chamou pelo apelido comum, embora só utilizado pelos mais íntimos, mas ele pouco se importou com o que isso sugeria, pois a voz dela aumentou ainda mais a sensação de surrealidade quase arrepiante da situação, pelo modo suave, mas curiosamente espectral com que soou. - Sente-se por favor. E me desculpe ser tão misteriosa. Sinto muito que você esteja se sentido tão nervoso. Ele se sentou no canto de um confortável sofá de três lugares, e ela se sentou no canto oposto, para alívio dele, deixando uma ampla distância entre seus corpos. Vestia-se quase totalmente de preto, num estilo que parecia diretamente saído da virada dos séculos XIX e XX. Cruzou as pernas, e ele pôde ver os pés dela, descalços, tornozelos nus, e tão brancos quanto as mãos ou o rosto. O silêncio descontrolado dele não a surpreendeu, e com muita calma, ainda que não o acalmasse, ela continuou. - Eu vou ser bem direta Denilson. E espero que não o assuste. Mas entenda que não tenho intenção alguma de lhe fazer mal e respeitarei qualquer que seja a sua decisão. Mas eu pretendo lhe contar algo que a grande maioria das pessoas jamais soube, embora desconfie, e portanto considere isso um privilégio. Devo enfatizar que nada, absolutamente nada do que eu disser aqui, pode ser comentado com quem quer que seja. Nem mesmo com sua futura noiva. Aliás... especialmente com ela. Um calafrio o percorreu dos pés à cabeça. Primeiro pelo fato dela saber que ele pretendia noivar, algo que só comentara com um único colega de trabalho, que por sinal fora convidado para aquele mesmo local semanas antes. Nem mesmo sua namorada sabia. E depois pelo fato de que o que ela dissera sugeria justo o que ele vinha desconfiando. - O que eu vou fazer agora, Denil, é algo equivalente a lhe pedir em casamento, porém, muito mais sério e profundo. É um pacto, no qual convidarei você a ficar comigo pelo resto de sua vida, e também o tornará dono da Vampel Instrumentos Musicais. E antes que pergunte, vou lhe adiantar que eu estudei muito você. Na realidade, desde quando trabalhava na loja de seus pais. Eu já o havia visto há quase nove anos atrás, quando se apresentou no festival de música de formatura do Terceiro Ano, e deste então nunca mais perdi você de vista. Eu fiz questão de mandar convidá-lo para uma de minhas lojas, mantendo-o por perto e investigando sua vida. Eu já sei tudo sobre você, e não preciso lhe perguntar mais nada além da pergunta que lhe farei ao final de nossa conversa. Portanto, o que quero fazer agora é me abrir para as suas perguntas, porque é justo que me conheça também. Então, Denil... Denilson. Por favor, pergunte tudo, sem medo, e eu lhe responderei. E ela colocou a mão sobre a dele, fria, embora macia e tão lisa que parecia seda. Algo constrangedor veio à mente dele, uma pergunta idiota, estúpida, mas que ele não conseguiu segurar, e então, como se sua boca escapasse de seu controle, fez uma pergunta que ninguém em sã consciência faria, de tão grosseira que soava. - Senhora... Ludmilla... Me desculpe mas... Quem... O quê é você?! Mas para seu completo alívio, e surpresa, ela sorriu e respondeu prontamente. - Eu sou aquilo que você chamaria de vampira. | |
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Denilson não duvidou. Nem por um segundo. Sempre acreditou que vampiros existissem, embora não acreditasse nas bobagens que os tablóides e programas de TV sensacionalistas diziam. Fazia todo o sentido, explicava muita coisa. Não só a pele incrivelmente branca ou o fato de que ninguém parecia tê-la visto de dia, e nem mesmo comendo o que quer que fosse além do aparente vinho tinto que só ela bebia nas festas, servido cuidadosamente pelo Senhor Bertoni. Na verdade, o único ponto dissonante era justamente a obviedade da semelhança do nome dela, que apesar de ser Van Pel, era tão confundido com Vampel que ela própria decidiu aceitar o parônimo colocando-o na empresa. Era, como se dizia abertamente entre os funcionários, uma piada interna. E o fato explicaria porque ela permanecia tão jovem apesar de que, pelas referências mais remotas, já deveria ter ao menos uns 50 anos, bem como explicaria que estranho poder de persuasão ela possuía a ponto de fazer qualquer um obedecê-la de imediato ante um pedido polido e de aparência quase suplicante, mesmo por parte de pessoas que não faziam ideia de quem ela era. Ele já havia testemunhado isso. Explicaria também a casa ser maior em baixo do que acima da terra, e porque a mão dela, que continuava sobre a dele, era tão fria. Mas o principal motivo era que explicava toda a sensação perturbadora que qualquer um tinha perto dela. Algo que não parecia crível de um ponto de vista comum. Havia algo mais nela, algo que fazia mesmo a mais cética e incrédula pessoa sentir arrepios e ter no mínimo sonhos estranhos, se não pesadelos, após conhecê-la. Denilson ainda estava perplexo demais para coordenar devidamente os pensamentos em palavras, e Ludmilla não parecia nem surpresa, muito menos decepcionada. Ele foi fazendo as perguntas de modo confuso, como se ainda resistisse à entrar em definitivo naquele estranho mundo. Tentando não ser grosseiro, ele delicadamente retirou sua mão esquerda debaixo da dela, para levá-la, junto com a direita, à cabeça, onde ficaram por um momento massageando o couro cabeludo e cobrindo os olhos, até que ele finalmente a encarou, ainda que brevemente, visto ser difícil fitar seu penetrante olhar, repousando as mãos nos joelhos. A mão direita dela, por outro lado, não saiu em momento algum do local onde estivera tocando na dele. - Então... vampiros... existem? - Essa palavra surgiu da junção de um antigo termo eslavo que pronucia-se upir, com o preposição holandesa van, então, van upir, que virou o alemão vampir, o francês vampire, assim por diante. E sim, existe algo que pode ser entendido como... vampiros, mas, é claro, não do jeito que a os filmes e das lendas sugere. - Desculpe a pergunta mas... - Sentiu-se idiota, embora fosse uma pergunta delicada para se fazer a uma mulher, naquele caso seria perfeitamente compreensível. - Qual sua idade? - Exatamente eu não posso te dizer porque eu realmente não sei. É certo que tenho mais de 500 anos, pois me lembro de minha vida na selva, correndo livre pela mata escura das noites, me escondendo embaixo da terra de dia, bem antes de ouvir falar da chegada dos colonizadores europeus. Quando conheci o primeiro português, o Brasil já havia sido descoberto há 28 anos, e tenho certeza de ser mais velha que isso. Mas não faço a menor ideia de quando nasci, e quando fui transformada numa Lamianoctis, que é como nos chamamos. Todas as minhas memórias vem depois disso. - Então... a senhora foi... mordida por um... um vampiro e... - Até onde sei, fui. É a única forma natural de se criar lamianoctis. Só não sei quando nem como isso aconteceu, assim como não me lembro da maior parte de minha vida. E assim como a maioria das pessoas não se lembra de todos os dias de sua vida, especialmente da infância. São memórias demais para guardar, e eu retenho apenas as mais marcantes. - E existem outros... Muitos outros que... - Não muitos. Faço parte da Irmandade Mundial de lamianoctis. Lamianoctis é termo em latim que significa... entidade noturna. Somos, atualmente, menos de mil em todo o mundo, e temos regras muito rígidas de comportamento. Não somos violentos, não matamos pessoas. Podemos sobreviver de sangue animal e de sangue humano descartado. Os laboratórios de exames jogam fora mais do que conseguiríamos beber, não é problema que o sangue esteja contaminado com a maioria das doenças, nem mesmo AIDS. - Há outros por aqui? - Não. Há outros no Brasil, mas bem poucos, e nenhum por perto, a maioria vive na Europa. Insisto. Não há o que temer, os poucos lamianoctis que violam a regra máxima de não atacar seres humanos são presos e encarcerados por décadas, as vezes séculos. Não sei de caso algum ocorrido no Brasil desde antes de seus pais nascerem. - Então você nunca mordeu ninguém? - Já sim! Várias vezes, mas muito antes de ser descoberta pela Irmandade. E como eu era uma desgarrada, que pouco sabia sobre minha verdadeira natureza, fui perdoada, amparada e educada. E isso já faz mais de 170 anos. Ludmilla Van Pel não é meu nome desde sempre. Ludmilla eu escolhi quando entrei na Irmandade, e embora o tenha mudado várias vezes, tive o prazer de há 32 anos atrás, quando mudei novamente de identidade, utilizá-lo de novo. Mas Van Pel me foi concedido pela Irmandade, que acha que fui transformada por um de seus antigos membros chamado Urien Van Pel. Se acha estranho eu ter nomeado a empresa com uma versão inglesada desse nome holandês, entenda que no começo eu mesma não sabia como escrevê-lo! Nunca me incomodou que a maioria das pessoas me chame de Vampel. E sim, Urien Van Pel é o principal responsável pela origem da palavra vampiro, ele foi o van upir que se rebelou contra a irmandade, há uns 600 anos, fugiu da Europa, vagou pelas américas, gerou lamianoctis nos Estados Unidos, peregrinou pela América Central, e embora eu não tenha nenhum conhecimento direto disso, seus restos mortais foram encontrados aqui no Brasil pela irmandade, datados na provável época de minha conversão. Por isso, sou considerada, para todos os efeitos, uma Van Pel. - E você vai... Você pretende me transformar? Pela primeira vez ele a viu assumir uma expressão diferente, de piedade, quase maternal, mesmo que não pudesse olhar diretamente em seus olhos por mais que alguns segundos sem fugir do contado visual tão direto. Por sorte, desta vez ela mesmo desviou o olhar como se visse algo invisível no ar. - Não... Não... -Dito quase na forma de súplica, como um lamento, um pedido de desculpas, e tentando acalmá-lo, ela levou a mão ao rosto dele, voltando a fitá-lo, e prosseguiu. - Não é tão simples, e eu não sei como fazer. Em geral quando uma pessoa é mordida por um de nós, se for sugado pouco sangue, nada acontece. Se for sugado demais a pessoa morre. É preciso um meio termo muito delicado e difícil de acertar para que comece a transformação, que é um processo longo e doloroso, extremamente doloroso, e que na maioria das vezes não funciona. Eu jamais teria coragem de fazer isso com você... ou com qualquer pessoa novamente... Da última, e única vez que tentei, foi horrível, durou semanas de sofrimento desesperador e no final ele... morreu. Ela parou, e parecia que deixaria cair uma lágrima. Vê-la fechar os olhos era um alívio para ele, que podia descansar da tensão de ter que sustentar um contato visual tão intenso, como se os olhos dela brilhassem, o hipnotizassem. Depois ela se recompôs e prosseguiu se esforçando para mudar para um tom menos trágico. O toque dela, no entanto, havia conseguido um notável efeito calmante nele. Lamentou quando ela recolheu a mão e a juntou com a outra, as pontas de cada dedo tocando no seu devido par. - Somos muito diferentes das crenças a nosso respeito Denil. São poucos os que tem experiência, conhecimento e autorização da Irmandade para transformar alguém, e ela é muitíssimo exigentes com as condições. Se eu quisesse... Se você quisesse ser transformado, teríamos que nos casar primeiro, e depois de algum tempo fazer a solicitação à Irmandade, verificar se é possível. Mas mesmo que seja, sinceramente, eu não recomendo. Não somos imortais, apenas vivemos mais tempo. E na verdade, quando falo em 500 anos, entenda como 250, porque quando dormimos é como se o tempo parasse, raramente sonhamos, e na verdade só existimos mesmo nas noites, os dias para nós, em todos os sentidos, não existem. E como se fossem pulados. De qualquer modo os mais velhos de nós envelhecem sim. Nunca chegamos a mil anos. Não temos os incríveis super poderes que se lê nos livros e se vê no cinema. Somos mais fortes e resistentes sim, mas isso não compensa não poder se expor ao Sol. Denilson respirou fundo. - Então... a ideia é que nos casemos como, num casamento normal? - Sim. E após um tempo eu terei que simular minha morte. Você herdará tudo, e após mais alguns anos se casará com uma prima minha distante, que na realidade serei eu. Não se preocupe. Tenho advogados especializados que farão tudo transcorrer sem problemas. - E depois? - Nada mudará. Espero que tudo isso já tenha ocorrido em menos de 10 anos. Nosso convívio pessoal não será afetado. Permaneceremos... juntos. O modo como ela disse soou profundo, e estranho. Como se já tivessem uma intimidade que ele não fazia ideia de onde ela tirava. A mão direita dela, desta vez, repousou sobre o ombro esquerdo dele. E mão esquerda sobre seu joelho. - Senhora Van Pel... isso é muito... complicado. - Eu sei. Não achei que você reagiria diferente. Você terá tempo para pensar. Sei que tem uma namorada e que pretende noivar, mas também sei que você não está seguro dessa decisão. Não sabe se ela é realmente quem você gostaria que fosse. Mas eu sei. Não é. Não precisa acreditar em mim agora. - Por que acha que me conhece tão bem? Mais uma vez ela recolheu as mãos, desta vez juntando as palmas. - Uma das vantagens, talvez a única, de se viver muito tempo, é ter a oportunidade de conhecer as coisas. Reconhecer os padrões. Após um tempo, tudo fica tão recorrente, até mesmo tedioso, que se torna previsível. Muitas coisas em você são típicas de personalidades específicas, que podem facilmente ser previstas quando se reconhece o padrão. Mas ainda assim há algo único. Há algo em você que o torna diferente de qualquer outro homem, e é justamente esse algo que me faz conhecer você melhor do que pode imaginar. Ele já estava quase acostumado ao perpétuo clima de mistério, e começava a manter seu olhar no dela por mais tempo, desafiando sua aura penetrante e profunda por um período cada vez maior. - E o que pode ser isso? - Por que já nos conhecemos antes, há muito tempo atrás, e eu quero você de volta. | |
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Denilson acabava de ter outra reativação do senso de perplexidade que já começava a se atenuar. O que poderia significar aquilo? - Você, evidentemente, não tem como se lembrar. Mas eu sim. Eu te conheci em sua outra vida, e o conheço o suficiente para saber que você acredita em algo do tipo... reencarnação. Sim. Ele acreditava. Embora tivesse sido criado católico, sempre tivera uma influência espírita, tanto kardecista quanto umbandista, algo que conflitara com sua antiga vocação religiosa que o levara a pensar em se ordenar padre, mas reencarnação era uma das crenças na qual ele depositava, se não confiança, ao menos esperança. - Existe mesmo reencarnação? - Sinceramente... eu não sei. Mas se há algo que ao longo dos séculos é difícil não aprender é que muitas pessoas tem comportamentos parecidos demais para serem pura coincidência. Falo de pessoas separadas por centenas de anos, sem qualquer ligação sanguínea, nem mesmo contextos de criação similares, que no entanto agem de formas simplesmente idênticas. Posso atestar isso porque uma das coisas que me lembro muito bem são das pessoas que seguem um determinado padrão. E igual a você só conheci outros dois homens. O primeiro nasceu dois séculos e meio antes de você, o segundo morreu 63 anos antes de você nascer. E eu não tenho a menor dúvida de que todos vocês são o mesmo. O homem que eu amei desde o começo, e que sempre esteve comigo. Ela finalmente se moveu no sofá, passando a se sentar no banco do meio, bem próxima a ele, e levou as duas mãos ao seu rosto. Frias, mas ainda assim agradáveis. Notável é que ela sabia com perfeição o momento certo e o modo de tocá-lo, pois apesar dele ficar um tanto acuado, mesmo aquilo parecia perfeitamente calculado para ir quebrando sua resistência. Ele se deu conta, de repente, que estava completamente a mercê dela. Que ela poderia fazer o que quisesse e ele seria incapaz de reagir. - Numa noite, em 1752, eu me lembro muito bem, eu havia acabado de acordar. Havia dormido no fundo de um rio. Posso passar o dia inteiro sem respirar enquanto durmo. Naquele tempo eu vivia errante, na floresta, as vezes passava em alguma cidade. E naquela noite tinha havido uma horrível batalha onde um vilarejo inteiro de mamulucos tupinambás havia sido incendiado, onde hoje é o sul da Bahia. Eu estava com fome, e tive a sorte de encontrar uma pessoa recém morta, com o sangue ainda quente, com o qual me alimentei. Então ouvi uma criança chorando. Tinha apenas sete anos, e havia perdido a família inteira, e agora se escondia dos homens que queriam pegá-lo. Eu tive pena. Nunca tinha visto um kurumin numa situação como aquela, e então, quando vi homens armados, brancos, cafuzos e pataxós, se aproximando, e vi o desespero nos olhos daquele menino, eu o tomei nos braços e fugi. Fomos perseguidos até que fomos encurralados. Normalmente eu escaparia fácil, mas não dava para correr muito com ele nos braços. Foi a primeira e única vez que lutei contra vários adversários, cinco ao todo, e matei todos, e me tornei a protetora do menino. Caçava à noite no mato e deixava comida para ele. As vezes roubava roupas e outras coisas nas cidades, tudo para ele. Eu só andava nua. E assim eu o vi crescendo, e se tornar um homem, e fui ficando mais e mais apaixonada... Ela fez uma pausa, recolheu aos mãos sobre as pernas, e olhou para baixo, em profundo pesar. E se pela última vez houve algum alívio quando ela deixou de olhar diretamente para ele, por outro lado a ausência de suas mãos foi dramaticamente sentida.
- Naquela época eu já sabia mais ou menos o que eu era. Ainda não sabia ler, mas tinha ouvido falar que podia fazê-lo igual a mim. Por isso quando ele tinha 31 anos, decidi que era hora de fazê-lo como eu, para... Eu pensava, passarmos a eternidade juntos. Sabia que era delicado. Eu já havia mordido pessoas antes e sabia que tinha que beber o sangue dele o suficiente para ele ficar à beira da morte, e então dar o meu próprio sangue para ele beber. No começo pensei que tinha dado certo, ele resistiu e começou a passar por transformações. Eram horrivelmente dolorosas e ele sofreu muito. Mas resistia, muito além do que qualquer homem normal aguentaria.
Mas não deu certo. Denilson não via lágrimas, mas de algum modo ele sabia que ela estava chorando. Havia um modo de falar e uma linguagem corporal inconfundível. - Foram 11 dias de agonia. Procurei pajés e físicos, mas nada puderam fazer. Não importava o quanto de sangue, ou de outras coisas eu lhe desse. Ele chegou a ficar pálido, e começou a ficar sensível ao Sol, mas foi piorando, até que enfim, para meu desespero, mas também alívio, Juliano finalmente morreu, em 1776. Só muito depois eu aprenderia que não tive a menor chance de conseguir convertê-lo. Então ela olhou novamente para ele, subitamente passando a respirar, e só então Denil se deu conta de que ela frequentemente prendia a respiração por vários minutos, e que seu hálito era fresco, doce, mas frio. - Foi a única vez que eu quis morrer. E depois de enterrá-lo, eu saí de meu esconderijo numa caverna e em plena luz do dia corri para o Sol. Mas não suportei a dor. Me refugiri e passei os próximos dias embaixo do leito de rios para me recuperar. Não saia nem de noite. Bebia o sangue dos peixes ou jacarés que conseguia pegar. Ainda tentei me matar depois mas... Se para as pessoas normais já é difícil, para nós é pior ainda. Segui com minha vida. Me recuperei. Fui em frente. Fui descoberta pela Irmandade. Ganhei meu novo nome, até que em 1849, eu o encontrei de novo. - Em... Outra vida? - Outro homem. Brasílio, desta vez um jovem branco de boa família que estudava teologia e pretendia ser padre. Músico talentoso. Juliano era também. E assim que o vi... Não era pela aparência, mas algo difícil de explicar. O jeito como se movia, como falava. Me aproximei, numa noite chuvosa. Nessa época eu já estava... civilizada. Sabia me vestir e me portar como uma dama da sociedade. E tinha amigos. Nós conversamos, e em poucas horas, me apaixonei. Ele era em tudo igual a Juliano. Não pelas coisas que falava, mas pelo modo como via o mundo. Brasílio era um rapaz culto e instruído, mas apesar da total diferença de contexto, era sem sombra de dúvida meu amado Juliano. Eu já havia tentando achar homens como ele antes, conheci centenas, mas nenhum jamais chegou perto. Convenci Brasílio a largar tudo e vir viver comigo. Ele conheceu meu segredo, e também se apaixonou. E por sorte, alguma coisa nas crenças dele ainda resistiu, de modo que ele nunca quis ser convertido, e sempre teve uma certa hesitação em sua consciência devido a sua religiosidade, Juliano também tinha, mas ele nunca saiu do meu lado. Brasílio viveu até os 82 anos, e durante todo o tempo em que estivemos juntos foram, junto com o tempo que havia passado com sua vida anterior, os melhores anos de minha vida. Ela pareceu hesitar antes de continuar, mas quando o fez, pareceu emendar a fala de um modo mais contínuo, eliminando as pausas, como se não quisesse dar a ele tempo de fazer perguntas. - Depois que ele morreu, não me desesperei porque, no fundo, sabia que iria encontrá-lo de novo. E além do mais ele deixou parte dele comigo, uma filha, que também deixou parte dela. Foi a mãe de Bertoni. Mas apesar dele ter algumas características do avó. Nunca foi realmente parecido com ele. E agora... Denilson... eu estou certa que encontrei ele de novo. Que encontrei você de novo! Eu não sei se isso é reencarnação, ou se a natureza ocasionalmente está apenas espelhando suas novas criaturas nas suas melhores obras. Alguns estudiosos lamianoctis chegam a dizer que são ondas cerebrais que ficam reverberando infinitamente em alguma dimensão da natureza até encontrarem um novo cérebro tão parecido com o que as emitiu no passado, que elas são captadas de volta. O fato, é que eu não tenho a menor dúvida de que é você. Denilson hesitou alguns segundos, e então tomou fôlego antes de perguntar. - Espere... O Bertoni é seu neto? E de imediato ele percebeu que era uma pergunta problemática, pois a mudança no semblante dela foi inequívoca, passando de uma expressão de esperança e alegria para uma de seriedade e lamentação. Embora ele continuasse nervoso, parte dele já lhe dizia que estava diante de uma oportunidade maravilhosa, ainda que um tanto sombria em muitos aspectos. Mas ao mesmo tempo achava que alguma coisa desagradável deveria vir acompanhada de uma proposta que pareceria, num primeiro momento, tão boa. Riqueza, conforto, uma parceira meiga e linda, e sobrenatural... O que poderia haver de errado? Foi então que ela disse. - Não. Infelizmente não. E é justamente sobre isso que temos que conversar agora. | |
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- Esse é o principal motivo, Denil, pelo qual você precisa de tempo para pensar. Ciente de todas as consequências. Posso garantir que seus problemas financeiros estarão acabados, que você terá um propósito de vida sem igual e conhecerá coisas que a maioria da humanidade jamais saberá. E esteja certa de que meu amor por você é incondicional. No entanto, há coisas que eu não posso fazer. Infelizmente eu não sou realmente uma mulher.
A pausa dramática não ajudou ele a relaxar. Ela continuou. - Eu não posso ter filhos...
E... e nós não podemos fazer amor. Ela levou as mãos ao ventre. - Nada aqui funciona. Por um instante, mesmo naquela surrealidade envolvente embora inquestionável, pois algo nele parecia proibir pensar que estivesse diante de alguma brincadeira ou talvez mesmo uma das infames peças que emissoras de TV costumam pregar em desavisados... Ainda assim, ele tinha mesmo a sensação de que tudo era bom demais para ser verdade. Haveria de ter algo errado. E antes que ele perguntasse por que, ela pegou a mão esquerda dele, e depositou sobre o próprio colo, pressionando-a, para que ele sentisse aquilo que deveria ser a batida do coração. Mas não era, embora também não fosse completamente morto e na verdade era a parte mais quente do corpo dela que ele tocava até agora. Ela insistiu em fazê-lo se aproximar mais, e ele hesitou, até que ela se levantou, se aproximou dele e puxou sua cabeça para repousar no colo dela, entre os seios, fazendo-o ouvir seu interior. Realmente, não havia uma batida cardíaca, mas havia algo. Uma espécie de vibração, por um lado quase elétrica, como um motorzinho, mas também lembrava em parte um ronronar de um gato. Era agradável. - Meu coração não bate como o seu. Ele vibra, na verdade bate numa frequência muito mais rápida e discreta. Sem parar... E tem sido assim por meio milênio - Aquilo teve um efeito relaxante em Denilson, que apesar de uma relutância inicial, quase um medo que por pouco não o fez reagir se afastando bruscamente dela, agora começava a achá-la aconchegante, morna, ao menos não tão fria quanto parecia antes. O que antes quase fora um medo desesperador, agora se tornava quase confortável, embora não menos estranho, visto que ainda havia um temor, de uma morte tranquila e aconchegante, mas ainda assim, um temor da morte. Então ela o afastou tomou-lhe as mãos e as colocou acima nos próprios ombros, e movendo-as para baixo, fez ele abrir e descer-lhe o vestido, deixando-a nua, da cintura para cima, revelando seios perfeitos, tão adoráveis que por um momento a ideia de que não pudessem ser tocados foi quase desesperadora. Mas então, como se lesse a mente dele, ela própria tomou-lhe as mãos e os colocou sobre os seios, e então ele percebeu a diferença. Não eram macios como o de uma mulher normal, embora não fossem exatamente duros. Eram muito mais firmes, do tipo que tinha a impressão que sequer balançariam num movimento brusco. - Tudo aqui é diferente. - Ela disse. - Não apenas o coração. Meu sistema digestivo também não funciona da mesma forma, pois todo o sangue que bebo, no máximo um litro por dia, é absorvido pelo meu corpo. Nem uma gota sai. Meus pulmões também são diferentes. Eu preciso respirar, mas posso fazê-lo apenas uma vez a cada hora, ou mesmo passar todo o dia em apneia enquanto durmo. Mas, infelizmente, meu sistema reprodutivo não é apenas diferente. Ele não funciona. Na verdade nem existe mais. E com um olhar trágico ela soltou as mãos dele, vestiu-se de novo. E quase chorosa continuou. - Tudo que posso te dar é carinho, sentimento, amor. Ele se recostou no sofá, e ela se sentou ao lado dele. Mas aquilo que num momento parecia ser um enorme "balde de água fria", lentamente foi dando lugar a um sentimento diferenciado. Sendo um jovem normal, em seus 26 anos, Denilson evidentemente gostava de sexo, apesar de ter demorado a ter sua primeira experiência, com uma namorada anterior, e continuar um tanto tímido. O principal motivo pelo qual seu namoro ia bem era ter tranquilidade para uma relação sexual responsável e saudável, e aliás, passada a primeira fase do relacionamento, sua namorada até se tornara bem mais disposta do que ele. No entanto, foi preciso pouco esforço para conceber a beleza de um relacionamento puramente platônico, ainda que a ideia de passar o resto da vida sem relações sexuais fosse um tanto incômoda mesmo para quem um dia até já tinha pensado em levar uma vida celibatária. Aliás, pegou-se pensando, não deveria ter sido tão difícil para Brasílio, que pretendia ser Padre. E talvez nem mesmo para Juliano considerando que ele provavelmente a via mais como uma figura materna. E então, para sua máxima surpresa, quando Ludmilla falou, ela disse exatamente o que ele havia acabado de pensar, fazendo-o sentir que se ele tivesse formulado tais pensamentos em frases, teria usado provavelmente as mesmíssimas palavras. Mas ela continuou. - Bertoni não é meu neto. Sua mãe foi uma amante que Brasílio teve. Num período de nossa vida mais conturbado. Não foi sua única aventura, e sim uma de poucas... Mas Juliano teve várias. A pausa que se seguiu foi, de todas, a mais dramática possível. Ela parecia ter dificuldade em saber como dizer, e era nítida a pressão emocional que havia por baixo daquele silêncio, que demorou a ser rompido. - Foi o principal motivo pelo qual eu quis convertê-lo. Apesar de não poder lhe dar o que todo homem deseja, ainda assim eu tinha ciúmes. E acertei ao supor que uma vez convertido a sexualidade dele também deixaria de funcionar. Foi também um dos motivos pelo qual eu me senti tão mal após a morte dele, pois sabia que, no fundo, fui motivada pelo egoísmo... Tomando a mão dele, ela voltou a lhe fitar, e dessa vez ele foi capturado pelos profundos olhos dela, e algo assustador ocorreu. A córnea, antes tão perfeitamente branca, ficou avermelhada, subitamente, mas não de um jeito comum, onde poderia-se notar, nos olhos humanos, os finos vasos sanguíneos. Não. No caso dela, era como se a cor surgisse de forma homogênea, por toda a superfície dos globos oculares e inclusive alterando a cor das íris, que pareceram subitamente avermelhadas também. - Brasílio foi muito mais fiel, mas tinha seu limite. Então eu expressamente permiti-lhe algumas aventuras. Ademais, era a melhor forma de protegê-lo de uma onda de ataques de súcubos que houve na época. Então Denilson estacou. - Súcubos?! Também existem... súcubos!? Ludmilla lhe fitou com mais seriedade, os olhos ainda mais vermelhos, como se brilhassem. - Ainda existiam naquela época, poucas mas eram terríveis. Creio que agora estejam extintas. A própria Irmandade relata que há mais de meio século não se tem registro de um ataque súcubo. Então ela mudou sua expressão, suavemente, mas ainda assim um tanto intimidatória. - Eu mesmo matei uma... - Finalmente, agora era ela que estava nervosa. - ...que ousou se aproximar dele. O modo como ela falou foi um tanto assustador, com os olhos intensamente vermelhos. Pareciam brilhar! Mas então, ela desviou o olhar e cobriu o rosto, respirou fundo, e ficou um tempo quieta. Era surpreendente o modo como ficava imóvel, sem respirar, por tanto tempo, como uma estátua. Quando finalmente ela olhou para ele novamente, seus olhos haviam clareado, e ela voltou ao modo que antes Denilson interpretava como frio, mas agora começava a ver como doce. - Me perdoe... Desculpe assustar você. Acredite, não sou mais capaz de cometer qualquer violência há décadas. Mas são memórias fortes, marcantes, que me levam de volta ao passado... Ele fez uma expressão de compreensão, tentando de algum modo perdoá-la, fazê-la voltar ainda mais ao estado pacífico de antes. Os olhos estavam ficando ainda mais claros à medida que ela se acalmava. Mas a curiosidade o assaltou duramente, e não resistiu a perguntar. - Mas... Eu não entendi, como assim protegê-lo dos ataques... - Súcubos não atacam homens casados, ou homens que tenham uma parceira regular. Elas são repelidas pelo cheiro da mulher que fica impregnado num homem mesmo dias após uma relação sexual. As vítimas são os solteiros, principalmente os jovens. Até mesmo padres e monges podem ser atacados, se tiverem algum impulso sexual ativo não satisfeito. Como eu não posso... fazer isso... Brasílio ficou vulnerável por um tempo. Por sorte, elas só atacam à noite, e eu estava lá quando ela apareceu. E então, dando vistas de que ela tinha recuperado o auto controle, sorriu de modo discreto. - Foi mais difícil do que ter matado aqueles cinco homens que perseguiam Juliano, mas eu consegui. Então o tema mais grave voltou a incomodá-lo. - E a minha vida sexual? E minha noiv... namorada? Por sorte, a resposta dela desta vez foi delicada, um sorriso amigável, e o tom avermelhado dos olhos havia desaparecido por completo. - Calma... Estou te esperando há 89 anos, posso esperar um pouco mais. Como eu disse antes, você terá tempo para pensar, e assim que nos casarmos, você ainda terá liberdade para ter outras mulheres por um tempo. Mas eu conheço você. Não vai durar muito. Acredito que após simular minha morte e nos casarmos de novo, você já terá superado sua sexualidade. Foi um alívio ouvir aquilo, e ele não duvidava que isso acontecesse, mas ao mesmo tempo foi também triste. Não gostava da ideia de mais esse nível de duplicidade e dissimulação em sua vida. Já teria que fingir muitas coisas. Como lidaria com sua família? - São informações demais para você lidar por enquanto. Não está sendo fácil para mim, que gostaria muito de te abraçar agora... Mas você precisa ficar um pouco a sós. - Então ela se levantou, se aproximou do piano e tocou um breve trinado com a mão esquerda, sem sequer se sentar, e quase sem parar enquanto andava para o outro lado da sala, rumo à uma porta no sentido contrário à que por onde ele entrara. Então ela se virou para ele, e com um olhar confuso, que misturava sentimentos, disse com doçura. - Lembre-se. Você é totalmente livre para decidir e respeitarei sua decisão. Bertoni vai lhe acompanhar agora. Até logo Denil. - E se foi porta adentro. E a sensação de surrealidade voltou com força total. Agora que ela saíra da sala, era como se um vazio preenchesse o local tornando tudo mais verossímil, até mais suportável. Como se de repente a fantasia fosse embora e ele tivesse voltado à realidade, onde era mais fácil pensar. No começo a ausência dela fôra, apesar de tudo, incômoda, mas depois se tornou um alívio. E então Bertoni adentrou a sala pela outra porta. - O senhor não tem que responder agora. Respire um pouco. - Disse o homem em tom paternal. - Talvez seja melhor subirmos. Denilson aceitou e prontamente saíram da sala, cruzaram o corredor e estavam de volta à superfície. Lá ele foi convidado a se sentar na varanda. A noite sem Lua e sem nuvens apresentava um céu lindamente estrelado, destacado pela fraca iluminação da propriedade. Não muito longe estava a limusine na qual viera, e o motorista se sentava num banco do jardim, fumando um cigarro. Apontando para ele, Bertoni frisou. - Ele está a disposição para levar o senhor embora, para onde quiser, a qualquer momento. - E então se sentou ao lado dele em cadeiras artesanais em estilo antigo. | |
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- Suponho que você saiba de tudo não é Senhor Bertoni? - Certamente. - Então... você sempre viveu... Quero dizer, você sempre soube ou... - Tive uma vida normal Senhor Denilson, infância comum. Só tomei conhecimento dos fatos ao final da adolescência. Antes eu achava que a Senhorita Van Pel era apenas uma excêntrica. - Conheceu outro vampir... É... Lamia... - Lamianoctis. Sim, conheci um bocado. Acredite-me, você já viu a mais interessante de todos. - E o que devo fazer agora? Não é uma decisão simples! - Claro que não. Então seus pensamentos dispararam. Longe da senhorita Van Pel, sentia uma progressiva mudança de perspectiva. Por um lado, tudo voltava a parecer mais irreal, até mesmo com a sensação de estar sendo vítima de uma enorme brincadeira de mau gosto. Mas ao mesmo tempo quando pensava na seriedade da possibilidade, ela lhe parecia cada vez menos atraente. - Nunca quis ser um deles? - Eu... Bem. Já pensei nisso algumas vezes. Até cheguei a solicitar à Irmandade. Eles são extremamente seletivos e... parece que nem todas as pessoas podem ser transformadas. Parece que existem... predisposições genéticas que favorecem ou impedem. Mas pensando bem... Não acho que eu teria coragem mesmo se pudesse. Hoje mesmo quero ver o Sol nascer, e me agrada pensar que posso fazer algo tão simples que é totalmente impedido para eles. Mas de qualquer modo essa não era a proposta. Primeiro teria que aceitar a situação... o "casamento", como ele relutava em considerar, em si. Só depois essa possibilidade se vislumbraria. Mas até mesmo esse arranjo, mesmo considerando a enorme vantagem econômica, ainda era perturbador. Mesmo havendo uma beleza poética num amor platônico, a ideia de uma vida sem sexo com tão bela companheira soava mais e mais incômoda. Como seria a convivência? Em que tipo de mundo teria que adentrar, e com que pessoas estranhas teria que conviver? E toda aquela estória sobre ser uma espécie de reencarnação dos companheiros dela? Se havia essa realidade transcendente espiritual, a vida perpétua de uma vampira não seria uma aberração? Se havia então uma ordem divina, não seria a senhorita Van Pel realmente uma amaldiçoada? O que aconteceria com sua hipotética alma quando ela finalmente morresse? E se existiam súcubus... Então havia demônios! Houvera então Lilith, e consequentemente Adão e Eva? Era a guerra espiritual mais real do que ele imaginava? O que lhe estava sendo oferecido? Não seria uma forma ardilosa do Diabo tomar alguém que bem poderia fazer parte da Igreja? Tentou se acalmar pensando que talvez toda a mitologia judaico-cristã poderia ser reinterpretada de outra forma, por um momento querendo afastar o pensamento, mas então imaginou sua família. Não era muito apegado à ela, mas ficava imaginando em como justificar o casamento repentino com sua chefe, uma mulher tão reclusa que jamais participaria de um churrasco de domingo. Como justificaria que não teria filhos com ela se era o principal motivo para não se ordenar como sacerdote? Como lidar com sua namorada, quase noiva? No fundo ele sentia que Van Pel tinha razão. Algo nele sempre lhe disse que aquela não seria sua contraparte ideal. Mas e daí? Os casamentos não eram temporários mesmo? Se casaria com a namorada, adiaria a decisão de ter filhos por uns poucos anos, e se de algum modo não desse certo, separaria! Teria tempo pra pensar. A senhorita Van Pel podia esperar! Então, como se de repente tivesse sido puxado por uma força invisível, se levantou e de sua boca saíram palavras que ele parecia não ter pretendido dizer, de tão repentina que foram. - Sr. Bertoni! Eu preciso ir embora! Por favor! - E saiu quase em disparada rumo à limunsine, o motorista já olhando para ele, tendo ouvido o que disse. Terminou de fumar, olhou para o mordono, e este assentiu com a cabeça. Denilson já estava no banco de trás, ansioso, quando o motorista entrou, deu partida no veículo e logo estava abrindo caminho pela escuridão rumo à estrada. Suando frio, ele só pensava agora em sua namorada. Era como se de repente ela fosse a salvação ante um terror inexplicável que sentira. A Senhorita Van Pel deve tê-lo enfeitiçado por um momento, para que ele se sentisse tão tranquilo naquela situação. Sua formação religiosa, e comuns superstições das quais a maioria das pessoas jamais se livra, afloraram com força total. Lhe acometia a sensação de quase ter vendido sua alma, pactuar com o Diabo. Bateu no vidro à frente pedindo para o motorista abrí-lo, e falou-lhe para rumar para o apartamento de sua futura noiva, que por sorte estava mais próximo que sua casa. Queria muito que o Sol nascesse imediatamente, mas ainda não era sequer perto da meia-noite. Então, o motorista quebrou o gelo. - O senhor está perdendo uma oportunidade fabulosa. Mas ainda assim eu te entendo. - E então subiu o vidro novamente. Denilson ainda teve a tentação de conversar com ele, mas de repente mudou de idéia. Queria sair "daquele mundo" o mais rápido possível. Por sorte o que antes parecera uma eternidade subitamente se encerrou, quando o carro finalmente parou, e ele não esperou o motorista abrir a porta. Saltou fora, disse um constrangido "obrigado" e "boa noite", e como um raio entrou na portaria, o porteiro o conhecia, subiu as escadas e sua namorada, já avisada pelo porteiro, o recebeu. Ele a abraçou trêmulo, e ela percebeu de imediato que havia algo muito errado. O levou para o quarto, se sentaram na cama, e mal ela perguntara, ele, ainda sem fazer ideia do que estava acontecendo em seu interior, começou a chorar. Demoraria para dizer alguma coisa, e queria poder falar toda a verdade, e então veio a súbita percepção de que não conseguiria, que de algum modo o poder daquela mulher ainda estaria nele lhe impedindo de ser totalmente sincero, e dentre outras coisas, talvez fosse o que mais lhe perturbava. Assim como a sensação de que poderia adiar, mas não impedir, o destino inevitável. E somente quando novamente sentiu de volta a ternura que lhe ecoava na memória em algumas das palavras da vampira, conseguiu se acalmar por um momento, por segundos vislumbrando um futuro simultaneamente belo e sombrio, que lhe infligiam uma contraditória sensação de inevitavel felicidade futura após muito sofrimento contra a qual ele não poderia lutar, e sentir que não tinha como fugir disso lhe confortava apenas para sentir como ainda mais trágico o fatídico fim do não iniciado noivado. | |
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Bertoni ainda olhava as estrelas quando sua patroa veio se sentar ao lado dele na varanda, e a perguntou. - Como foi? - Melhor do que eu esperava. - Ela respondeu. - Vai demorar alguns meses para ele se recuperar do susto. Mas considerando o quão incrédulo é o mundo em que ele cresceu, até que sua reação foi bastante compreensível. - E a futura noiva dele? - Um dos motivos pelo qual eu o amo é que ele tenta fazer tudo certo. Quer ser justo. Ele vai tentar, não vai querer causar sofrimento à moça. Mas não vai conseguir. Eu dou no máximo um ano para eles terminarem. E darei mais um para ele se recompor. Ele não voltará ao trabalho amanhã. E quando voltar a pisar na loja será direto para o Departamento Pessoal. Por favor, mande a gerente providenciar logo a demissão dele com carta de recomendação enfática de ótimo profissional e liberação de aviso prévio. - Sim senhora. Então ela ficou olhando para ele. E sorriu. - Agora me lembro que você tem mais similaridade com seu avô do que eu me recordava. Ele gostou de ouvir aquilo, mas não quis deixar transparecer mesmo sabendo que nada podia esconder daquela que tinha como uma segunda mãe. - Então... esperamos ele procurar a senhora de volta? - Seria o ideal mas não creio que ele fará isso em menos de uns três ou quatro anos. Não quero correr riscos, por isso farei um inadvertido contato daqui a dois anos. E o mais importante é que assim que eles romperem, precisamos vigiá-lo. De longe, mas com atenção. Tem havido relatos de novos ataques de súcubos e eu não tolerarei uma delas o importunando de novo. - Não se preocupe senhora. Não se atreverão a vir pra essa cidade com a senhora por aqui. - Não estou tão certa disso. Não há mais nada certo neste fim de milênio. É por isso que preciso tanto do meu amado de volta. Minha única certeza é o amor que sinto por ele. E a dele também, mesmo que agora ainda resista a isso. Estamos condenados a ficar juntos. E disso, nem eu nem ele podemos, e nem queremos, nos livrar. Ela divagou por um instante, e soltou um breve riso. - As pessoas falam tanto em liberdade, mas também falam em destino... Coisas contraditórias. Ninguém quer ser livre quando se é prisioneiro da felicidade. E ficaram a olhar a noite estrelada. Marcus Valerio XROutubro de 2016 a Junho de 2017 |
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