A Lua Cheia, quase a pino, brilhava com intensidade incomum ofuscando a maior parte das estrelas, tingindo o negrume da água com miríades de pontos de reflexão radiantes. Poucas nuvens, tornadas luminosas pelo luar, emanavam um tom mágico. Ou melhor, emanariam, se houvesse alguém para ver a magia e a radiância da magnífica cena. Pois na quietude noturna do alto mar ao norte do Caribe e a Leste da América do Norte, não havia um único ser humano num raio de centenas de quilômetros, reinando uma calmaria incomum para o Atlântico. Então, de forma catastrófica, a participação humana se fez presente. Se a vida marinha pudesse fazê-lo como nós, descreveria primeiro o som, de início, distante, vindo das alturas. Depois a luz amarelada. Poderia, talvez, pensar se tratar de um meteoro, até que, mais perto, e com o aumento do rugido das turbinas, notaria ser uma aeronave, não das maiores, caindo, em chamas. Atingiu a água numa inclinação de 20 a 25 graus, após as desesperadas tentativas do piloto em aumentar a elevação na intuito de realizar um pouso de emergência sobre o mar. Mas o jatinho impactou primeiro com o bico, rotacionando enquanto dividia as águas, até cair invertido, e ainda girar mais uma vez, terminando, por fim, a repousar na posição correta, embora com a fuselagem em frangalhos, e rapidamente começar a afundar. Não totalmente. Destroços de variados tamanhos ainda resistiram ao chamado das profundezas, ardendo em chamas, cada vez menores, erguidas sobre o combustível disperso nas águas. Neste exótico cenário, como um renascimento, uma mulher irrompeu à superfície entre as chamas, num belo contraste de pele branca e cabelos negros. Alguns a comparariam a uma sereia. — Denil! Denil!? DENILSON!?! — Em desespero, seu olhar super sensível vasculha o horizonte acima da água, então mergulha, com muito maior dificuldade de visualizar na escuridão submersa, mas ainda assim, capaz de ver onde ser humano algum conseguiria. Emergindo e submergindo, chamava o nome de seu marido, até que o ouviu. — AQUI ONDE?! — — Aqui... — disse a voz fraca, do outro lado dos persistentes destroços, seguida por engasgo, mas ela ouviu, e nadou rapidamente em sua direção tendo que mergulhar para passar por baixo da única faixa de fogo que ainda queimaria por alguns segundos. Denilson se agarrava a um pedaço de plástico que integrava uma das divisórias internas da aeronave, e que não flutuaria por muito tempo. Ludmilla finalmente o alcançou e o abraçou. — Calma... Eu tô vivo... Eu tô vivo...— Pareceu desmaiar por um momento, enquanto ela o segurava junto ao corpo observando a placa de plástico subindo e descendo na água, cada vez menos subindo, e cada vez mais descendo. Com súbita força recuperada, ele tossiu mais uma vez e perguntou. — Cadê o bote!? Eu consegui abrir o maldito lacre! Tenho certeza! Ela pensou por uns instante, e se lembrou de ter visto algo no fundo enquanto procurava por seu marido. Avistou ao longe um último pedaço da fuselagem ainda flutuando. — Você aguenta... — Aguento! Vai logo! Ela mergulhou e ele nadou rumo ao pedaço flutuante, ignorando uma dor na perna que consideraria inviabilizante se estivesse numa situação normal. Sua esposa, vários metros abaixo, procurava, sabendo que achar aquele bote seria a única forma de sobreviverem. Ainda podia avistar alguns pedaços da aeronave graças a débil luz do fogo que desafiava a escuridão. Mergulhou mais fundo. Qual seria a profundidade ali? Qualquer que fosse, seguramente seria muito maior do que jamais mergulhara antes. Já atingira o fundo de rios onde mesmo a luz do meio dia não conseguia penetrar, mas aquilo era totalmente diferente. Sempre detestou a água do mar, e mergulhara poucas vezes nela. E mesmo sendo capaz de passar várias horas sem respirar, e sabendo que poderia mergulhar muito mais e ficar segura, ainda assim havia muito tempo que não tinha tanto medo. Mesmo que ela fosse capaz de sobreviver na imensidão do oceano, seu amado não o podia. Tinha que achar o bote! Olhou para cima, e Denilson estava, por enquanto, seguro agarrado ao pedaço de fuselagem. Então o fogo se apagou, e por um segundo ela temeu que ficaria ainda mais difícil achar o que procurava. Precisou parar, se acalmar, tentar ouvir, ver. Seu coração, que vibrava de modo quase imperceptível, acelerou, elevando o tom ao nível de um zumbido quase elétrico. Então sua visão se adaptou, e a luz da Lua pareceu penetrar subitamente nas profundezas assim que suas pupilas decidiram não mais se ajustar ao padrão da iluminação amarelada que há pouco ainda emanava das chamas. Visualizar com muito mais nitidez a cena da tragédia lhe deu esperanças. Pôde ver uma turbina sumindo de vista, um pedaço do leme ainda equalizando as forças da gravidade e do empuxo, e então outro pedaço ainda maior, e seguramente muito mais pesado, mas que resistia com ainda mais ímpeto, parecendo lutar para subir. Mergulhou mais, e pela experiência achava que já devia estar a uns 30 metros de profundidade, mais do que estava acostumada. Percebeu, finalmente, a vida marinha, primeiro na forma de um cardume de peixes, que mais sentiu do que viu. Depois na forma de algo bem maior, que embora também não tenha visto, de algum modo ouvira. Lá estava o bote salva-vidas, inflado pela metade. Durante a queda, Denilson conseguira alcançar a caixa, ler as parcas instruções em figuras externas que não pareciam adaptadas para situações de desespero, e iniciar precariamente alguns procedimentos mesmo que estivessem praticamente flutuando dentro da aeronave a despencar. Então tivera que desistir, se sentar num dos bancos assumindo a posição mais recomendada para o impacto. Ela voltava da cabine, e não conseguiu chegar perto dele. E veio o impacto. O avião girando em torno deles em pedaços cada vez mais separados, ela sendo jogada para um lado, ele para outro. A parte que inflara estava segurando o pedaço da aeronave que já estaria perdido se tivesse apenas o mar abaixo de si, mas de algum modo a outra parte, mais delicada, onde ficavam os itens de sobrevivência, continuava empacotada. E o pior, podia ouvir as bolhas de ar que brotavam de um furo na parte inflada. Teve alguma dificuldade para conseguir separar as duas partes, até que de repente o bote disparou para cima como que quisesse fugir dela ao mesmo tempo que o pedaço da fuselagem fez o mesmo no sentido contrário. Mesmo vazando, o bote subiu tão rápido que ela teve que se esforçar para acompanhá-lo, e de repente irrompeu na superfície para alívio de Denilson. Chegaram juntos a ele, se agarrando a borda macia e subindo, caindo na pequena piscina dentro da base emborrachada. Então ele viu a corda do segundo estágio, e a puxou, inflando-a instantaneamente. Percebeu o vazamento e pós mão sobre ele. Ao seu lado, com uma simples troca de olhares, Van Pel entendeu o que fazer. Abriu um fecho e vasculhou nos vários itens que encontrou uma lata de spray e uma caixa com pedaços de borracha. Disparou o spray na área furada de onde Denilson acabara de tirar um pedaço de metal, e selaram com a borracha, soprando mais spray por cima. Impressionante, o resultado foi rápido. E se lembrou que o amigo de quem alugara o avião havia se queixado de gastar tanto dinheiro com aquele novo bote salva vidas tão mais caro que o padrão. Ainda tiveram trabalho para tirar a água do interior, e para achar o mecanismo que injetava mais ar compensando o que fora perdido. Até que, finalmente, descansaram, bebendo a água da garrafa do compartimento de víveres. Denilson ignorando seus múltiplos arranhões, mas começando a sentir a perna. Ludmilla se dando conta de que também não estava intacta. E finalmente olharam a impressionante Lua acima, tão bela que por um instante quase os fez pensar estarem numa situação não catastrófica. — O que... aconteceu? — Ele não soube dizer. - Meu Deus! Cadê ele!? — Denilson finamente se lembrou do piloto. — Morreu. Foi a primeira coisa que eu vi. Ele... — E pelo modo como silenciou, Denil entendeu que não precisava ouvir. — Parece que houve uma anormalidade no piloto automático, ele corrigiu o curso manualmente, mas avisaram pelo rádio de que tinha que se afastar da rota devido a presença de exercícios militares. E corrigiu, parecia tudo bem mas, de repente, alguma coisa explodiu sem nenhum aviso. Ele não tinha uma explicação. — Onde estamos? — Mal saímos do Caribe. — Perto das Bermudas? — Acho que não. Ele se levantou e finalmente olhou para fora. Não havia mais sinal do que sobrara do avião. Só o vazio, para todo o lado. O mar espantosamente calmo. Belo. O céu límpido, e a Lua brilhando tanto que... — Milla!? — Ele olhou pra ela. Se dando conta do problema. — Como vamos te proteger do Sol?! | |
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"Milla"... Ele ainda não se acostumara a ideia de que teria que abandonar esse apelido. Há anos estava decidido que o próximo primeiro nome dela seria Ariana. A chamaria de "Ari", ou "Ana"? Já haviam falado dessa suposta prima distante que morava na Europa para os familiares dele e os demais conhecidos. Após se casarem haviam combinado a simulação da morte de Ludmilla para 2009 ou 2010, mas a epidemia de súcubos no Brasil precipitara a ascensão de um governo militar ao poder, e a uma severa investigação e repressão a qualquer coisa que fosse considerada ligada ao sobrenatural, ocultismo ou religiões pagãs. A admissão aberta da realidade das criaturas, que popularmente passaram a ser chamadas "sucúbias", fomentou ampla crença em vasta gama de entidades, sendo "vampiros" dos menos incríveis. Tal quadro os convenceu que era melhor antecipar o procedimento que implicaria na saída do Brasil, e assim, ao final de 2006, a comunidade do Triângulo Mineiro se viu chocada pela notícia do trágico falecimento da Senhora Ludmilla Van Pel, aos 53 anos, vítima de um tipo raro de câncer que já a afligia há anos. Por trágica contingência, chorar no falso velório foi muito mais fácil do que Denilson gostaria, pois há menos de um ano havia falecido o Senhor Bertoni, o mais antigo integrante do autêntico feudo da "Casa Van Pel". Bertoni, que era neto de Brasílio, a suposta encarnação anterior de Denilson segundo a crença de sua esposa, se tornou uma espécie de sogro, e devido à impossibilidade de sua família o acompanhar no mundo da Sociedade Lamianoctis, que integrava a Irmandade constituída exclusivamente pelos próprios lamianoctis, aos humanos vinculados a eles, Bertoni foi também um mentor, praticamente um pai, em sua viagem por aquele novo mundo. Seu falecimento o chocou mais do que esperaria, e ele foi sepultado numa cerimônia pequena, discreta, visto ser seu círculo social praticamente os demais integrantes da Casa Van Pel, empregados fiéis que acompanhavam sua senhora por uma vida inteira, por vezes descendentes dos empregados das identidades anteriores da Senhora Van Pel. Não tendo superado ainda a perda, Denilson se viu, de repente, pela primeira vez abandonado, enquanto sua esposa literalmente dormia no caixão, sob proteção de vasta cobertura que neutralizava por completo a luz solar. Ela foi enterrada em seu próprio terreno, ao lado do túmulo de Teresa Xavier Van Pel, identidade dada como morta em 1967, e todo o velório se deu no mesmo ambiente em torno do sepulcro. Após a cerimônia, à noite, Denilson facilmente foi pelo tunel subterrâneo que ligava a casa ao ponto onde o caixão foi descido, e encontrou sua esposa. A parte mais difícil foi dividir a atenção entre ela e seus familiares que, solidários, ficaram na casa por quase a noite inteira. — Eu sabia que tinha alguma coisa errada nessa estória. — sussurara uma das tias de Denilson, para suas irmãs e primas, num dos cantos da sala onde foi oferecido o jantar. — Essa mulher só podia mesmo estar doente, branca desse jeito, parece que nunca pegou um Sol! — Não parecia. — disse a mãe de Denilson. — Bem conservada demais. Com 53 anos e...— suspirou, enxugando sincera lágrima. - Ah meu Deus... Meu filho amava essa mulher de todo o coração... — E desatou a chorar. — Deve ser mesmo aquele tal tratamento pra rejuvescer. Por isso proibiram. — disse uma prima, sobre o insistente boato de que havia uma sociedade secreta que tinha uma verdadeira fonte da juventude da qual se beneficiavam mulheres muito ricas. Embora sempre negado por toda e qualquer referência responsável, tornara-se lenda urbana indelével. — Não fala esse besteira menina! — ralhou outra tia. — Sei lá. — respondeu. - Antes eu também não acreditava, mas depois dessas sucúbias, não duvido de mais nada. — Ah claro. Vai insistir na baboseira de que a Ludmilla era uma vampira né? — Se fosse não tinha morrido né?! — reagiu a moça, acuada, mas sem demonstrar real abandono da recorrente ideia, previamente combatida com a mais simples inversão, de que condições como a de Van Pel eram a origem, e não a prova, das lendas. — Parem com isso! — intimou-as o pai de Denilson, que não teria coragem de lembrar a infame gozação do golpe do baú. Apontou para seu filho, vindo ao longe, lentamente descendo as escadas. - Foi sábia a Dona Vampel. Sem herdeiros, não queria deixar sua fortuna na mão do governo, então... observou seus funcionários, escolheu o melhor, alguém que cuidaria bem da empresa... Foi pragmática, fez até testamento! Quem faz testamento hoje em dia? — encerrou rápido, num sussuro, quando Denil estava mais perto. O abraçou, sincero e atípico, não sorridente como normalmente era, perguntando-lhe como estava. Denil se sentou com eles. — Ah... Eu... Pra ser sincero já estava preparado. Na última visita que fizemos ao médico... dava pra ver na cara dele que... Era meia verdade. De fato, simularam visitas a um famoso oncologista, mesmo nunca divulgadas, mas passíveis de serem descobertas por algum repórter ou paparazzi persistente. Ele comunicou a sua família alguns problemas de saúde da esposa, mas foi propositalmente ambíguo. — A verdade mãe... é que nós já estávamos preparados para essa possibilidade. Ela já sabia da doença antes da gente casar. O pai dele fez o típico sinal de "Não falei?" para as mulheres. — Só que a gente pensava que demoraria mais — Não estava mentindo, a "possibilidade" em questão era a simulação, não a morte, que ele em momento algum mencionou. -Achamos que teríamos mais tempo... Foi... bem antes do que...— omitia, mas não mentia. — Meu filho, por que não disse que era tão grave? — A mãe insistiu. Denilson começou a chorar, uma parte de si se detestando, porque agora não conseguia soar sincero. O que poderia se encaixar na categoria de "grave"? A crise das súcubos? Sim, claro, mas não podia pensar nisso enquanto falava algo vago de forma convincente. O risco do governo os importunar? Ainda mais complicado. Sentindo-se mal por enfim ter que mentir, por não conseguir improvisar algo inteligente e ambíguo para dizer, chorou de verdade, lembrando algumas outras tragédias recentes, e com a voz embargada confessou. — Não queria... verbalizar... Não queria... admitir... — É normal. — disse a tia. - Quando dizemos, fica mais forte, então é normal não falar. Foi que nem meu marido. — E agora filho? — perguntou a mãe. Mais calmo, explicou. - Vou ter que viajar, pra arrumar umas coisas da herança. — Pra onde? — perguntou o pai. — Vários lugares mas... primeiro acho que vou ter que ir pra Islândia. — Onde tem aquela prima dela? A Ariana?— perguntou a mãe, sobre o álibi já semeado. — Sobrinha, distante. A única herdeira além de mim que consta no testamento, ainda nem fez 18 anos. Lembrou-se que seus amigos lhe contaram que sua mãe e suas tias haviam falado antes no assunto, sobre a parente jovem que lhe faziam desejar que tivesse sido ela a casar com o filho, visto ser evidente que Ludmilla não lhe daria netos. — Vai meu filho. Conheça a menina e... — Ficou no ar o "quem sabe vocês se casam." Um plano perfeito. Era isso que esperariam por saber que havia algo de muito tradicional nos modos de Ludmilla e na suposta família pequena mas rica onde sabiam já ter havido casamentos endogâmicos. Pediu licença e se retirou, dizendo querer ficar um pouco a sós, e o pai, único outro homem da família, mais uma vez se sentiu vitorioso. — Viram? Agora ele se casa com outra moça da família, uma parente distante que não teria direito ao resto da herança, e... mantém tudo! Bendita seja a Dona Vampel! Ele nunca pronunciou o sobrenome dela corretamente. | |
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Com o horizonte já clareando, Denilson tentava pela última vez fazer o rádio funcionar. Desistiu, jogando-o no canto. — Não adianta! Já era! — Ludmilla lhe mostrava agora, quando havia mais luz, sua provável localização num mapa. Visto que antes tivera apenas a luz da Lua, intensa, mas ainda assim insuficiente. Havia lanternas no bote, mas elas também não funcionavam. — É. Não tem nada perto. — Ele admitiu. — Mas deixa! Tá quase na hora. Ela olhou pro horizonte, já avermelhado. Era verdade, lá vinha o Sol, aquilo que há meio século ela aprendera a evitar. Ajeitavam as últimas coisas que haviam preparado. Ela ficaria amarrada em baixo do bote, por uma corda presa às alças do bote, passando por baixo, embrulhada dentro de uma lona impermeável. Dormir submersa nada lhe era estranho. O fazia ao menos uma vez por semana, especialmente nas épocas do ano mais secas, uma hábito comum aos lamianoctis. Porém, sempre em água doce, e tratada. Dormir em água marítima nada era recomendável, mas o único local onde ela esperava suportar a luz do Sol era embaixo do bote. Denilson a ajudaria a se embrulhar dentro do saco de lona, já amarrada a uma das alças laterais, o que lhe causaria horrível sensação, ao subir o zíper fechando o pacote enquanto ela lhe sorria, como embrulhando um cadáver. Seria ainda mais incômodo jogá-la na água, vê-la afundar enquanto ele soltava a corda e a conduzia dando a volta por baixo do bote, puxando então pelo lado oposto e amarrando na alça do lado oposto. Sabia que, se necessário, ela poderia facilmente rasgar a lona e se libertar, mesmo assim, aquela experiência foi extremamente perturbadora. Mas era a forma mais segura de evitar ser importunada por animais. Em mais de uma ocasião de sua vida mais antiga, quando ela dormia no fundo de rios, foi mordida por peixes. Reagira, pegando-os e sugando-os ali mesmo. Mas em certa feita teve que fugir. Um bando de piranhas a atacou e não era possível matar todas. Nadara rapidamente sem poder subir, pois o Sol estava quase a pino, e mesmo uma dezenas de metros submersa em água turva ela sentia a pele arder. Foi longo e doloroso evitar subir enquanto fugia das vorazes predadoras, sendo frequentemente ferida. Por sorte, havia um trecho bem encoberto pelas árvores onde ela finalmente saiu das águas, e pôde respirar. Era um alívio tomar ar fresco após meio dia de apnéia seguido por esforço intenso. Tanto que compensava sentir o calor indireto daquilo que para ela era como uma fornalha abrasadora espreitando por cima das árvores. Não recebia um único raio de Sol direto, mas a iluminação refletida era aterrorizante. Sentia a pele irritada como se estivesse no meio de um incêndio. Como se, para uma pessoa normal, o que estivesse à sua volta não fosse um belo dia, mas o inferno tentando cercá-la. Não arriscaria voltar para a água. Cavou um buraco entre as raízes de uma enorme árvore e se enterrou para dormir o resto do dia sem realmente descançar. Foi uma das experiências mais traumáticas que tivera, e se lembrava bem dela. De ficar ali, menos de um metro abaixo do solo, sendo importunada por vermes, temendo ser encontrada por alguém antes do Sol se por, e aterrorizada pela perspectiva de ter tido que se afastar do ponto onde dormira, onde ao cair da noite seria procurada pelos seu protegido adorável, o menino Juliano. Isso fôra bem antes de ser encontrada pela Irmandade Lamianoctis. Provavelmente fôra 1755, data que foi estimada posteriormente. Voltou ao presente. Seu marido olhando para ela, preocupado. Se abraçaram. - Tente dormir. Tente descançar. Eu vou te olhar de vez em quando, ver se tá tudo bem. Assim que o Sol se por... Ela o beijou. Já haviam combinado detalhadamente. Ele mergulharia ocasionalmente, quando a luz solar fosse forte para tornar tudo claro para ele, amarrado ao bote com uma corda na cintura. Então ela se despediu, e carregando a lona mergulhou. Ele podia sentir os movimentos dela lá embaixo, e combinaram de não ir, naquele momento, tentar ajudar. Ainda estava escuro demais, para ele. Finalmente, depois de algum tempo, ela se aquietou. E ele se sentiu sozinho, olhando para o céu cada vez mais azul.
Então viu para o mapa novamente, e só então se deu conta de um fato curioso. Se a estimativa era correta, estavam mais ou menos no meio do Triângulo das Bermudas.
O enjôo lhe impediu de comer, mas tentou ver o lado positivo de que economizaria suprimentos, o que pressupunha o lado negativo de ficarem muito tempo ali. Ficou vigilante, observando o máximo que pôde o infinito horizonte entre dois azuis, vasculhando obsessivamente o céu ciano. Mas o sol abrasador o impedia de fazê-lo por muito tempo, tendo que se proteger sob as lonas onde o calor era quase insuportável. Havia protetor solar, mas mesmo quase sem roupas não resistiu e mergulhou. A água era fria e revigorante, e aproveitou para verificar se sua amada estava bem. Foi prudente e amarrou uma corda de segurança na cintura, e ainda bem que o fez, pois após observar por alguns segundos o "pacote" submerso, devidamente seguro, as águas o afastaram bruscamente do bote e sentiu que teria dificuldade de alcançá-lo sem a corda. Subiu de volta e percebeu que estavam se movendo. Já não fazia ideia de onde tinham caído e do quanto tinham se afastado. Após o mergulho a exaustão o ajudou a dormir, mas a sensação foi de apenas ter piscado os olhos, acordando com o Sol já próximo do horizonte, encoberto por nuvens. A convivência com sua esposa também o fez se acostumar a passar as noites em claro e dormir de dia, bem como despertar assim que a tarde dava lugar ao crepúsculo. Em cerca de um hora ela acordaria, se tivesse dormido como de costume. Costume?! Pensou ser estupidez que aquela situação aceitasse qualquer aplicação desse termo, e procurou se tranquilizar. Mas não conseguiu. Queria mergulhar e vê-la, mas isso poderia precipitar seu despertar, privando-a de um período completo de sono. Mas e se algo tivesse ocorrido? E se esperar algum tempo a mais fosse um erro fatal? Abundaram em sua mente possibilidades de que algo tivesse ocorrido e ela pudesse, nesse exato momento, estar precisando de ajuda: ter sido mordida por algum peixe, se sentir intoxicada pela água salgada, ter até mesmo se soltado do bote! Se preparou para mergulhar, lembrando-se de que ela não era uma criatura invencível como muitos pensariam. Pelo contrário. Malgrado a força física e resistência inegavelmente superior de um lamianoctis em relação aos humanos comuns, e mesmo que Van Pel fosse, dentre os lamianoctis, excepcional em vários aspectos, ainda assim eles possuíam limites e vulnerabilidades claras. Ao contrário do que muitos leigos pensavam, um único tiro na cabeça, por exemplo, costumava ser fatal, e a vulnerabilidade ao Sol por vezes soava como patética. Quando conviveu um pouco mais com lamianoctis, surpreendeu-se de que um inicial sentimento de inferioridade não demorava a se inverter. Como Bertoni já dizia, poder andar diretamente sob o Sol era uma regalia inacessível a eles, quase como um super poder. Já com a corda amarrada, estava prestes a entrar na água, quando de repente ela emergiu por trás dele. O Sol já "mergulhava" no mar por trás de espessas nuvens, mas, metaforicamente, a chegada dela, sorridente e respirando fundo, aliviada, era uma aurora para ele. Já o semblante abatido dela tornava desnecessário perguntar se havia dormindo bem. | |
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Até se casar com Van Pel, tudo que Denilson sabia sobre a Romênia podia ser resumido em Transilvânia e em uns poucos músicos eruditos que procediam de lá ou da Hungria, país com o qual ele frequentemente a confundia. E nem a notável similaridade entre a língua romena e a portuguesa lhe tinha chamado atenção para a fato de serem línguas neolatinas irmãs, apenas um pouco mais distantes que o italiano ou o espanhol. Foi uma grata surpresa a facilidade que sentiu no aprendizado do idioma. Sua própria esposa lhe garantiu que se dominasse o romeno como seu segundo idioma neo latino, teria muito mais facilidade para aprender outros. Mas demorou a conhecer o restante do país, visto que quando lá chegou pela primeira vez, o avião pousou numa área isolada entre montanhas desconhecida pela quase totalidade da população, uma cidade secreta, sem acesso por rodovias, rodeada por montanhas e áreas inacessíveis declaradas como algum tipo de área de preservação e segurança.
F I MMarcus Valerio XRFevereiro de 2019 a ? de 2019 |
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