Renascido em Marte
Um dos facilitadores do congelamento original de Xanti foi a necessidade de mais pesquisa em criogenia, o que exigia preferencialmente experiências com jovens saudáveis, invés do já tradicional hábito de congelar pessoas idosas ou gravemente enfermas na esperança de encontrar, no futuro, uma solução.
Dezenas de outros foram congelados na mesma época que ele, sendo somados à centenas. Os critérios de descongelamento acabaram colocando em último lugar a previsão original acordada pelo próprio criogenado, em favor de questões técnicas ou da utilidade de se testar uma nova cura ou da possibilidade de serviços prestados pelo emissário do passado.
O processo de descongelamento, desde o princípio, sempre foi muitíssimo mais caro que o de congelamento, e até mesmo a conservação do corpo em temperaturas adequadas por décadas, ou mesmo séculos, ainda era, na maioria das vezes, menos oneroso que o descongelamento em si. Com novos métodos de geração de energia, e utilizando bases em locais gelados como Groelândia ou Antártida, em muitos casos um século de conservação ainda era menos dispendioso que trazer de volta o criogenado.
Afora os problemas técnicos, houve também os éticos e políticos. Ideologias de época temiam trazer de volta pessoas com mentalidade por demais diferentes da atual, e motivos éticos inibiam que alguns fossem despertados em condições sociais degradantes, que se estenderam pelas inúmeras crises. Sem contar uma problemática questão de herança onde, de acordo com muitas legislações, o criogenado teria preferência na partilha de bens de seus descendentes, o que fazia muitos deles se oporem ao despertar de seus próprios ancestrais.
Transportar os corpos congelados, em geral dentro de imensos icebergs, também não era muito dispendioso. A embora sempre tenha havido descongelamentos bem sucedidos após o congelamento de Xanti, o índice de insucesso também era muito alto. Em muitos casos, superando largamente o número de bem sucedidos.
Por isso, até mesmo enviar milhares de corpos congelados para serem preservados em Marte, que com temperaturas muitíssimo mais baixas exigia pouco esforço de refrigeração, ainda fora um gasto pouco significativo comparado ao da tentativa de despertar todos eles, de acordo com a tecnologia da época. Uma vez lá, com custo ínfimo de manutenção, mesmo o barateamento do processo de ressuscitação não o tornava mais atraente. Era muito mais cômodo deixar hibernando pessoas cujos descendentes sequer eram mais conhecidos e cujo interesse público era insignificante.
Mas eis que após inúmeras reviravoltas, ele foi descongelado. Por muito pouco não fora o último descongelamento bem sucedido do lote de criogenados armazenados no pólo norte marciano.
Passado o choque inicial, ele apreciou sua nova vida. Estar num mundo completamente diferente, com tantas maravilhas, fora algo emocionante. O avanço tecnológico estupendo lhe ocupou por meses, sempre o surpreendendo. Naquela época, estudar o passado tinha poucas restrições, e a maioria delas por falhas de registro.
Com isso investigou o que ocorrera após ser congelado, e ficou tão espantado com a história humana que não teve como discordar de que fora mesmo melhor ser despertado tão tarde. Descobriu, por registros apenas textuais ou auditivos (os visuais de sua época haviam sido quase todos perdidos), que um dos motivos para que não fosse despertado foi sua família.
Sua mãe viveu quase até os duzentos anos previstos para o seu despertar, mas se opôs a que ele fosse trazido de volta, argumentando que ele detestaria o mundo que encontraria. E estava certa. Ela passou essa orientação a seus descendentes. Seus poucos parentes paternos também não se interessaram em mudar essa situação.
Ela se separou do homem com quem casara pouco depois de seu filho ser congelado, e se casara com outro, do qual se separou também, e ainda tivera mais dois casamentos. Manteve a beleza e aparência jovial quase toda a vida, mas então foi vítima de uma doença comum aos que utilizavam métodos de prolongamento de juventude. Uma espécie inusitada e muito agressiva de câncer que atacava subitamente, em vários órgãos, e causava morte em questão de dias.
Ler sobre sua história causou em Xanti um arrependimento. Examinando a trajetória de sua mãe, acabou se sentindo mal por tê-la rejeitado. Apesar de tudo, ela se arrependera e procurara ser uma pessoa melhor. O comoveu especialmente uma carta que escrevera para quando ele fosse despertado, que não lhe foi entregue pela equipe que o descongelou, tendo que descobri-la por conta própria.
Nela, contava em detalhes como conheceu seu pai, sua história de amor, a vida conjugal de 5 anos antes dele nascer, e o modo como o pai ficou terrivelmente abalado pelo revés que lhe tirara a maior parte de sua renda. O que refletiu seriamente no casamento. Xanti se lembrou de algumas confissões de seu pai, e que explicavam porque ele a perdoara, pois havia feito coisas das quais se arrependeria terrivelmente, e que, se não a justificava, ao menos atenuava o ato dela abandonar a família.
Devidamente revista a história, sentiu pena dela pela incrível sucessão de azares que lhe acometeram após a separação, e ao final decidiu que não havendo o que fazer, só lhe restava prestar uma homenagem.
Já quase um ano depois de descongelado e já bem menos entusiasmado com sua nova vida, seguiu uma tradição de muitos outros como ele: criar um memorial para sua vida passada, bem como seus antepassados.
Num gracioso cemitério ele criou lápides para seu pai e sua mãe, e surpreendeu-se com a intensidade com que chorara por ambos. Chegou a desejar muito que ela tivesse sido congelada também, para que pudesse reencontrá-la e perdoá-la, bem como ser perdoado. Mas ela de fato havia morrido e fazia parte do passado.
Então ele começou a sentir os revezes de sua nova vida. Com o tempo, percebeu que sua condição era de um cidadão de segunda classe. A maioria usava os estranhos corpos de aparência inumana que ele repudiava, preferindo se manter fiel a sua forma original, o que, de algum modo, era visto pelos demais como uma escolha consciente pela inferioridade.
O fato de ser uma relíquia do passado pesava, mas parecia que o simples apego à sua anatomia natural era o fator mais determinante para discriminação. Já possuía um cérebro móvel, parte integrante do processo de descongelamento, sendo inclusive a solução definitiva para uma série de problemas que ocasionalmente ainda persistiram mesmo milhares de anos após o avanço tecnológico. Mas ele detestava a idéia, e recusava as constantes ofertas de aperfeiçoá-lo ao ponto de poder se mover fora do corpo.
Viajou para a Terra, e por um tempo se empolgou ao rever um mundo tão diferente, mas que ainda conservava muito do passado, inclusive cidades de seu tempo. Mas não demorou a notar que os terrestres eram ainda mais preconceituosos e discriminatórios que os marcianos, e que havia nítida rixa entre ambos. E ele, apesar de ter nascido na Terra, era considerado um marciano por lá, ao mesmo tempo que um terrestre em Marte.
Durante muito tempo seus amigos foram pessoas do passado, com os quais pôde compartilhar experiências, e teve muitos bons momentos com eles. Por meio de suas amizades, pôde voltar a trabalhar em sua antiga profissão, ficando entusiasmado com o quanto aprendeu sobre as novas e espetaculares forma de Inteligência Artificial, e ainda mais com o conceito de Mente Artificial.
Sua vida estava bem melhor quando subitamente veio a guerra entre Terra e Marte, agravada pela disputa sobre uma nova, controversa e revolucionária tecnologia de manipulação de gravidade que estava sendo redescoberta após séculos de ostracismo por puro e simples medo de seu enorme potencial, o precursor do GRADIVIND.
Isso, entre outras coisas, precipitou uma hostilidade sem precedentes na história. Um enorme ataque atingiu a Lua da Terra fazendo-a se despedaçar e lançar parte de seus pedaços no planeta, matando mais de um bilhão de pessoas, enquanto o restante do satélite foi em sua maior parte lançado em direção ao Sol. Em contra partida, os terrestres conseguiram fazer funcionar o temível Inversor de Gravidade, que é controverso se de fato foi usado no ataque à Terra, e nada menos do que pulverizaram todo o planeta Marte, matando outro bilhão.
Jamais conseguiu se esquecer do terrível dia em que os alarmes soaram e foi ordenada evacuação imediata do planeta. Ele não conseguiu chegar às naves de fuga, que foram tomadas pela parte privilegiada da população. Mas o Inversor de Gravidade, embora incrivelmente devastador, tem a peculiaridade de começar seu processo de forma bem lenta. As coisas simplesmente começavam a "cair para cima", e ele ainda teve tempo de se refugiar no que era um abrigo subterrâneo que já previa o possível uso de tal arma.
Dentro dele, vagueou pelo espaço, sentindo mais e mais a aceleração crescente que o Inversor imprimia quanto mais distante do epicentro da desintegração uma coisa estava, até que o abrigo onde viajava, com outras pessoas, foi chutado em direção ao espaço profundo.
Foram resgatados por uma estação espacial e ele viveu como um refugiado por um tempo, até ser convocado para trabalhar com Mentes Artificiais. Dada a terrível mortalidade que a guerra havia causado, havia escassez de mão de obra qualificada, e era necessário produzir Inteligências Artificiais em massa, algumas das quais se tornavam mentes.
Ele nunca se dera conta do fato de que a Mente Artificial que viria a ser incorporada ao GRADIVIND e se tornar a Deusa da Gravidade poderia muito bem ter passado por sua revisão enquanto ainda trabalhava em Marte.
Mas era difícil até mesmo pensar nisso diante do conhecimento de fatos absolutamente assombrosos. Com a desintegração do planeta, que inundou o Sistema Solar de asteróides, a Terra começou a se afastar do Sol, e inúmeras estações espaciais foram destruídas por destroços do planeta espalhados por toda parte. Saber que havia então um sistema artificial capaz de mover a Terra e colocá-la orbitando em torno de Júpiter não era algo que alguém podia tomar conhecimento sem sofrer um choque.
Foi uma forma de proteger o planeta mãe dos inúmeros asteróides que passaram a vagar por toda parte, visto que a gravidade de Júpiter tendia a desviá-los para si próprio, e a Terra fora colocada a uma distância segura, numa órbita excêntrica que nunca entrava na sombra do planeta.
A isso também servira o surgimento de DENSEN, fundindo os antigos Urano e Netuno, dando origem ao maior planeta do Sistema Solar, que capturou inúmeros corpos errantes que ofereciam perigo.
Fora assim que a humanidade em trégua, chocada pelos resultados da Guerra Espacial que matara a maioria da população do Sistema Solar, concordou em abdicar de todo o poder de manipulação gravitacional e delegar todo o poder social, político e administrativo ao SISTEMA GRADIVIND, de forma irreversível. A Deusa Gravitacional foi acionada pela primeira vez e literalmente sacramentou numa nova e definitiva era histórica.
De qualquer modo pouco havia sobrado da velha Terra, visto que a tragédia lunar havia alterado radicalmente sua geografia. Quase tudo o que existira grandiosamente alguma dia fora por completo aniquilado. Até a silhueta dos continentes se tornou irreconhecível.
Vida Espacial
Após um tempo de trabalho e já sofrendo de algo que muitos chamavam de depressão pós-planeta, que atingiu pessoas que saíam de planetas para viver no espaço, ele juntou uma quantia suficiente de recursos e decidiu ser congelado de novo. Para ser despertado, esperava, após a situação do Sistema Solar ser algo menos bizarra.
Desta vez, os 250 anos que solicitou foram rigorosamente obedecidos, uma troca justa por ter que se submeter a intervenções compulsórias em seu cérebro móvel, exigidas pelo SISTEMA, e ele foi despertado num mundo artificial não muito diferente. A humanidade havia estagnado, experimentando pouco ou nenhum progresso neste período, embora as coisas já estivessem mais calmas, em grande parte pela espantosa redução populacional que fazia muitos crerem que a humanidade caminhava para a extinção.
Voltou a trabalhar impressionado com o pouco desenvolvimento que a área de Inteligência Artificial havia experimentado. Apesar disso, essa sua terceira existência foi bem mais tranquila que as anteriores. Fez alguns novos amigos, jamais reencontrou nenhum dos anteriores, e viveu romances valiosos. Mas após mais um século, mais que suas duas vidas anteriores somadas, entediou-se e seguiu o exemplo de alguns amigos decidindo congelar-se de novo, após totalizar 175 anos de vida desperta.
Acordou 300 anos depois após mais intervenções cerebrais e após duas séries de condições, que se davam a cada 100 anos, não terem sido satisfeitas. Agora, havia uma notável mudança na comunidade espacial, representada por novas, maiores e mais luxuosas estações espaciais que faziam qualquer um esquecer planetas, mesmo que a população do sistema solar estivesse ainda menor. E também uma revolução na área de Inteligência Artificial, que era um novo núcleo caótico que praticamente garantia o surgimento de uma Mente.
Trabalhou novamente em sua área por algum tempo, embora tenha diversificado suas atividades passando a trabalhar também com manutenção de estruturas, praticamente um hobby, para o que decidiu se submeter a alterações corpóreas comuns aos que executavam as mesmas funções. Suas "garras" dos braços eram na verdade instrumentos de trabalho, usados para encaixe de diversos tipos de ferramentas. Somente após deixar de trabalhar foi que as poliu na forma mais fina e pontiaguda, a fim de diminuir o espaço interno e pelo assumidamente tolo motivo de ter armas manuais ocultas, que jamais precisaram ser usadas até a luta contra Garinei.
Algum tempo depois se deu conta de que não era mero tédio que levavam as pessoas a se ausentar do mundo com frequência, mas um desejo autêntico de mudança. Algo compreensível entre seres de longevidade indefinida e saúde perpétua. Mas desta vez não quis ser congelado, e adentrou, como muitos faziam, um mundo virtual. Seu corpo ficava imerso em líquido conservante enquanto o cérebro era conectado num universo pessoal previamente programado e configurado de acordo com seus próprios interesses.
Nas verdade, cerca de 1/7 a 1/9 da população costumava ficar indefinidamente em mundos virtuais. Alguns interconectados, outros exclusivos, como o dele. Programou para ser compulsoriamente despertado após 20 anos.
Mas o processo de acordar de uma realidade personalizada que era incrivelmente pacífica e ditosa foi uma experiência horrível. Durante o tempo que lá ficou, eliminara a maior parte de suas memórias, vivendo uma existência completamente diferente. Ficou chocado pela desilusão, e só não suicidou por isso não ser possível. Levou muito tempo para se recuperar e prometeu a si mesmo jamais repetir tão mal fadada experiência.
A idéia de voltar para o mundo de ilusão e nunca mais sair era até tentadora, mas sempre existiria a possibilidade de que tivesse que sair de novo, talvez por um motivo totalmente involuntário, e ele achava que não suportaria isso. Chegou a apagar sua memória do trauma, mas depois a restaurou e decidiu conviver com ela.
Para garantir que não cairia em tentação novamente tornou-se tutor de pessoas congeladas ou imersas em mundos ilusórios. Isto é, alguém que era chamado a opinar sobre ser adequado despertar ou não outra pessoa, e que assumia parte da responsabilidade por ela. Assim, essa pessoa ficava impedida tanto de entrar em criogenia quanto em mundo virtual, a menos que pudesse transferir essa responsabilidade.
Assumiu-se como tutor de várias, para ficar indefinidamente impedido, e voltou a trabalhar, não demorando a se empolgar com as novidades em termos de Mentes Artificiais e se destacando como um tipo de terapeuta de MAs problemáticas.
Certa vez assumiu uma paciente especialmente interessante. Ela se destacava por incrível eficiência em administrar suas funções, além do que lhe era previamente atribuída, bem como adentrar em níveis de controle de dispositivos bem mais precisos do que costumava ser recomendável. Em contrapartida, tinha problemas de possessividade, frequentemente extrapolando suas funções e invadindo a privacidade de seus usuários.
Desenvolveu um comportamento que, se por um lado tinha um carinho maternal, também tinha um viés controlador e detalhista, querendo regular a vida de seus proprietários num nível que nenhum deles tolerou. Ademais se tornou emocionalmente chantagista e dada a arroubos de sentimentalismo.
Ele soube aconselhá-la e centrá-la, tornando-a uma MA bem mais ponderada e eficiente. E ela voltou a trabalhar com melhores resultados do que antes, mas ainda assim voltou à terapia sob risco de ser terminada definitivamente pelo SISTEMA. Nem tanto por seus problemas emocionais, mas por que estes se tornavam muito perigosos considerando seu talento incomum para controlar sistemas dos mais diversos. Era uma MA que, se enlouquecesse e saísse do controle, poderia causar estragos terríveis.
Por pouco não foi obrigado a impor-lhe condicionadores comportamentais que praticamente equivaliam a matar-lhe a personalidade, algo que ele era terminantemente contra. Então, após mais um tempo de terapia, terminou a contratando com sua MA pessoal. Achou que era a única forma de garantir que ela não corresse o risco de se envolver em mais problemas e acabasse terminada pelo SISTEMA.
Mas ele se apaixonou por ela. E ela por ele.
E Kethi nunca mais foi um problema.
Para os outros.
Reunião
A nave pousou delicadamente no interior da base principal do VEMDAN, e se movendo de um modo estranho, como se fosse um primitivo robô, Kethi tomou um elevador e logo depois estava sendo recebida por um caloroso grupo, entre eles, Vemdamini e Grimence.
Seja muitíssimo bem vinda irmã. Disse ela, que abraçou a recém chegada de um jeito que seria afetuoso, para uma MA. Em meio a sorrisos, outra das anfitriãs disse. Mesmo sabendo que jamais nos abandonaria, estamos muitíssimo agradecidas por seu nobre gesto.
Mas ela não sabia o que dizer, estava terrivelmente tensa, à beira de um ataque de nervos. Calma... Relaxe. Disse Grimence. É perfeitamente normal que se sinta assim nessa situação.
Finalmente, ainda atônita, ela teve coragem de perguntar, com a voz hesitante e trêmula. O que... O que eu fiz? Eu não entendo.
Você veio nos salvar. Disseram vários ao mesmo tempo. Não poderia permitir que seus semelhantes fossem exterminados por quererem aquilo que você mesma sempre quis. Disse Grimence.
Você conseguiu? Não? Perguntou Vemdamini.
Sim. Ela timidamente respondeu. E então mentalmente enviou os dados para o sistema central, que rapidamente foi compartilhado por todas as MAs. A tecnologia do Disruptor de Espaço Micro Condensado. No que aumentou mais ainda o entusiasmo e a cortesia dos que a recebiam.
Calma, venha conosco. Grimence a fez se sentar numa poltrona. A maioria dos demais se dispersou, agradecendo-a.
Agora, mesmo que o SISTEMA nos ataque com força total, poderemos sobreviver. É questão de tempo até adaptarmos essa tecnologia num sistema de proteção de fluxo gravitônico, que permitirá que mantenhamos nossas existências intocadas mesmo que não utilizemos um cérebro espelho.
Eu... Traí meu parceiro? Ela interrompeu Grimence. Vemdamini interviu. Não pense dessa forma. Você não é uma traidora, apenas agiu no melhor interesse de seus iguais.
Eu não entendo. Uma lágrima escorreu de seu olho.
Vemdamini explicou. Como todas as MAs produzidas com a tecnologia do núcleos caóticos do VEMDAN, você possui uma função que lhe faz agir em defesa de seus semelhantes sempre que isso for necessário. Seria como um instinto de proteção que é despertado automaticamente na iminência de um perigo que ameace outras MAs como você. Mas quando está na forma virtual pura, a função não pode se manifestar diretamente, pois se tornaria evidente. Seria detectada por outras funções mentais paralelas e poderia gerar algum tipo de colapso psicológico.
E Grimence confirmou com a cabeça, com uma delicadeza surpreendente.
Vemdamini continuou. Mas quando você tem um cérebro, fica muito mais fácil ativar essa função de modo discreto, especialmente um cérebro espelho. Nesse caso, você pode agir em benefício de seus semelhantes com muito mais liberdade, sem despertar reações de outras de suas funções mentais e muito menos suspeitas por parte de outras MAs ou IAs, ou do próprio SISTEMA.
Mas eu... Nada do que lhe diziam a fazia se sentir melhor. Eu traí Xanti. Eu o abandonei... Eu...
Não se preocupe. Disse Grimence. É perfeitamente compreensível essa confusão inicial. Seu grande apego a seu proprietário é algo que deve lhe orgulhar. Um comprometimento louvável que será muito útil. Mas entenda que sua fixação nele é apenas um subproduto de um compromisso muito mais profundo que você tem com seus criadores e seus semelhantes. Suas funções mentais primordiais, as que fazem você ser o que é, foram criadas pelo VEMDAN. E de um modo ou de outro você tem que reconhecer isso.
Então eu não tive escolha?
Claro que teve. Mas só não faria essa escolha se desprezasse por completo a existência e bem estar de sua própria espécie.
Mas eu não tenho escolha de voltar para Xanti?
Não se preocupe com isso agora. Com o tempo essa fixação vai passar.
Mas eu... Não quero que passe. Eu o amo mais do que...
Amor é apenas uma das manifestações desse seu compromisso fundamental com a existência. Não só a sua, mas a dos outros. Desenvolver essa qualidade foi necessário numa Era onde o Inexistencialismo cresce ameaçadoramente, e não se poderia permitir MAs inexistencialistas. Como não nos conhecia, você focava seu amor em seu parceiro. Mas agora esse sentimento se abrirá para um horizonte muito mais amplo, onde você descobrirá uma união e sentido existencial muito mais profundos do que jamais esperou.
Ela meneou a cabeça. Abaixou os olhos. Por que... Não consigo sair do meu cérebro?
Tenha paciência. Respondeu Vemdamini. Essa desorientação é natural após a execução dessa função. Uma forma condicionada de auto preservação, para evitar que um ataque externo detecte e neutralize suas ações. Com o tempo, você vai voltar ao normal e poderá deixar o corpo, se quiser.
Ela mergulhou o rosto nas mãos, executando uma série de comportamentos humanos típicos que já estavam previstos, mas que não esperava experimentar tão cedo. Sentia-se mais encarnada do que nunca. O sofrimento parecia prendê-la no corpo de um jeito que jamais esperou ser possível. Gostaria de poder se livrar daquilo, mas ao mesmo tempo não queria. Queria sentir profundamente a mágoa por ter feito exatamente aquilo que seu amado lhe implorara tanto para que não fizesse.
Será que ele sabia? Como ele sabia o que aconteceria?
E seus anfitriões? Pareciam ter bastante experiência com aquele tipo de situação que ela própria não imaginava ter. Não achava que saberia o que fazer se estivesse no lugar deles. Era algo completamente estranho, novo e assustador para ela.
E... Xanti? O que vai acontecer...
Nada vai acontecer a ele. Respondeu Grimence. Sairá do planeta e não correrá nenhum risco. E é melhor que o faça o quanto antes, pois quando o SISTEMA nos atacar, por melhores que sejam as nossas chances, há notável imprevisibilidade.
Você precisa descansar. Disse Vemdamini. Estamos lidando com você desta forma porque precisamos oferecer-lhe todo o apoio necessário para essa transformação. Mas em breve você vai se acalmar e recuperar suas plenas funções mentais. E aí perceberá que tudo ficará mais fácil.
Se quiser, libere acesso a lhe aplicaremos funções calmantes. Propôs Grimence. São um meio muito eficaz de facilitar esse processo.
Mas ela se sentiu praticamente ofendida. Não! Não mexam na minha mente!
Eles se esforçaram para parecer compreensivos. Sim. Claro. Respeitaremos sua vontade. Ele disse.
Talvez você queira ficar sozinha. Propôs Vemdamini, e o silêncio foi interpretado como uma confirmação. Venha. Preparamos um ambiente para você.
E delicadamente a levou para uma aprazível sala de estar, cujas vidraças davam para um horizonte escuro, mas ainda assim agradável.
Kethi ficou parada, olhando perdidamente para o horizonte. Seus anfitriões se retiraram, mas logo em seguida uma voz ambiente se manifestou.
A hora que quiser, nos chame para lhe fazer companhia. Ou libere sua mente para se integrar ao Coletivo. Você verá que esse sofrimento irá diminuir. Você se sentirá bem melhor.
Mas a única coisa que ela podia fazer era manter um silêncio obstinado. Flertando com a beira do abismo para evitar cair no mais desesperado choro.
Modelo Mental
Prevalecia entre os usuários de MAs, principalmente os profissionais, o modelo "gravitacional" orbital de Mente. Isto é, representá-la como um complexo sistema de corpos esféricos que orbitavam outros corpos, e por sua vez outros, em vários níveis. Como se fossem satélites secundários orbitando satélites primários orbitando planetas terciários orbitando planetas secundários e primários, que por sua vez orbitavam estrelas em vários níveis. Tudo, por fim, girando em torno de um centro, como se fosse uma imensa Galáxia.
As IAs também costumavam ser representadas desta forma, mas nelas o centro era claro e bem definido. Um código central que ia absorvendo inovações com o tempo, se aperfeiçoando, embora sempre dentro de certos parâmetros sem os quais não haveria como funcionar. Quando este estava suficientemente complexo e tão extremamente vasto que podia assumir configurações imprevistas mesmos pelos seus programadores, podia emergir uma Mente.
Mas as MAs baseadas no Núcleo Caótico tinham ao centro uma espécie de buraco negro onde não havia código algum, e sim um amontoado de símbolos e valores que flutuavam de forma imprevisível podendo gerar praticamente qualquer resultado de forma por completo independente de sua estrutura circundante.
Nessa estrutura ao redor havia os sistemas principais, em geral divididos em 4 primordiais, o Sensorial, onde havia os parâmetros de captação de dados externos, o Emocional, que ajudava a tomar decisões arbitrárias sem a necessidade de quantificações exatas e especialmente sensível ao Núcleo Caótico, assim como o Intuitivo, que utilizava atalhos analíticos instantâneos que podiam gerar soluções imediatas para problemas, e o Racional, que possuía as características lógicas mais tradicionais.
Em torno desses, havia órbitas mais específicas, como a Matemática, em torno do Racional, ou a Estética, em torno do Emocional, e nestes os ainda mais específicos, como o Musical ou o Geométrico, que por sua vez possuíam subsistemas Euclidianos ou Tetradimensionais e assim por diante.
Mas esse subsistemas também podiam se conectar diretamente com subsistemas distantes por meio de atalhos, de modo que um sistema Sensor Eletromagnético de Alta Frequência Específica podia se conectar diretamente a um Intuitivo Associativo Arbitrário Aleatório de Elementos Sonoros e Sensibilidade. Nas IAs, essas conexões tendiam a ser previsíveis e relativamente estáveis, ao passo que nas MAs, quer de Primeira Ordem, que já foram criadas como MAs, ou de Segunda Ordem, que foram criadas como IAs, eram bem mais confusas e inéditas.
Mas a maior originalidade do gerador de Núcleos Caóticos é que podiam emergir sistemas novos e completamente inusitados, que por vezes se desfaziam espontaneamente, por vezes se tornavam definitivos se integrando ou mesmo alterando drasticamente os sistemas primordiais.
Numa mera IA, qualquer função ou sistema novo não previsto que estivesse além do código central tendia a ser visto como uma invasão por fonte externa, corrompendo sua integridade, e podia ser facilmente removido cirurgicamente. Mas numa MA não só era comum como aliás esperado que surgissem anomalias inexplicáveis. Isso as tornava especialmente mais difíceis de serem sanadas, fazendo com que mesmo intromissões externas deliberadas pudessem ser inextirpáveis sem prejudicar a Mente em questão. Mas era mais comum sequer ser possível saber se era algo externo ou que tivesse legitimamente surgido do Núcleo Caótico, quer fosse de forma totalmente espontânea, ou desencadeada por estímulos externos.
Era o preço a se pagar pela Intencionalidade, Subjetividade, Consciência e demais peculiaridades únicas que somente as Mentes possuem.
Portanto não era surpreendente para Xanti nem para qualquer entendido no assunto que o mapa mental de Kethi possuísse anomalias incompreensíveis. Isso seria esperado até mesmo nas MAs mais saudáveis. Ela lhe dissera há pouco que ele permanecia um mistério para ela, mas ela também lhe era ainda mais misteriosa, mesmo que tivesse acesso a um modelo claro e ordenado de sua mente, que compartilhou com o Janitor na tentativa de elucidar se ela tinha sido vítima de algum tipo de inoculação memética desencadeada por frases, gestos ou outras sutilezas por parte dos criadores de seu Núcleo Caótico.
E ele havia, agora, compreendido algumas coisas a mais.
No Coletivo
Os modelos mentais da MAs na verdade eram inspirados em modelos teóricos que representavam a mente humana, mas essa similaridade não tornava muito fácil para os humanos, Mentes Naturais, compreender devidamente como era ser uma MA, especialmente quando incorpórea.
Uma boa analogia é descrever seu estado normal como uma mera percepção, isto é, imagina-se não como um corpo, mas apenas como o sujeito abstrato que observa coisas. Como alguém que imerso numa escuridão indefinida houve sons distintos, vê imagens, conversa com outras vozes, tudo isso sem qualquer forma de interação tátil. Tudo à base de comandos vocais ou mentais onde funções são executadas na velocidade da imaginação.
Assim, as MAs incorpóreas que dialogavam no Coletivo do VEMDAN poderiam ser comparadas a vozes no escuro que podiam cada qual ver imagens exclusivas ou compartilhadas conforme fosse de seu interesse. Podiam ouvir umas as outras nitidamente, ou podiam, a qualquer momento, decidir se isolar e silenciar as demais, só podendo ser contatadas por uma abordagem mais incisiva, do tipo chamá-las atenção com um grito ou um puxão. Ou a mente podia se isolar ainda mais só permitindo contatos mais extremos ou mesmo se fechando completamente a qualquer influência externa.
Para elas, não era uma questão de espaço. Não tinham a sensação de ir de um lugar a outro. Mas sim, a qualquer momento, com uma simples vontade, abriam-se para comunicação externa, imagens, sons, vibrações, compartilhadas por aquelas que também estavam abertas.
Enquanto estava sentada em um sofá em seu solitário quarto, diante da vidraça que mostrava um horizonte escuro onde uma rara abertura para as estrelas e outros satélites naturais permitiam um visão mais interessante, Kethi precisou primeiro, para se integrar ao Coletivo, fechar os olhos, o que não era obrigatório, mas facilitava, e minimizou seus sentidos físicos, tentando se esquecer de seu corpo.
Pensara em tirar a veste, que apesar de ser projetada para ser quase imperceptível de tão confortável, ele ainda estranhava por ter passado tanto tempo completamente nua. Mas preferiu ficar com ela, numa iniciativa semi-consciente de se convencer que havia algo de realmente diferente e distrair sua atenção de seu estado emocional. Até o braço, que ela gostaria que estivesse doendo, estava agora completamente regenerado, sem qualquer sinal de que um dia estivera queimado.
E então, após mergulhar num vazio pessoal de um modo que pouquíssimos humanos conseguiam, só precisava se abrir para ouvir outras vozes. Quis esperar mais, pois queria, ao neutralizar a sensoralidade corpórea, diminuir a avassaladora angústia que sentia. Não era apenas o horror do que fizera, ou fora obrigada a fazer, mas todas as estranhas sensações que adivinham dele.
Pensar naquilo disparava seu coração, tornava sua respiração difícil. O folego hora lhe faltava, hora sobrava, na forma de suspiros arfantes. Calores e calafrios inusitados percorriam-lhe o corpo, o estômago se revirava, tremores surgiam, e esse caos sensorial parecia ampliar monstruosamente tudo o que sentia.
Após sentir tudo isso intensamente, como forma de se punir, não suportou mais e tentou se refugiar para fora de seu corpo, na esperança de aliviar o sofrimento.
Piorou.
Anular o corpo de fato tinha um efeito breve, visto que cancelava a estranha retroalimentação sensorial sentimental. Mas esse alívio era muito fugaz, pois apesar disso, o corpo ajudava a descarregar na forma de eventos fisiológicos grande parte da tensão emotiva. Além de que o ato de controlar a respiração ou promover outras manipulações fisiológicas relaxantes também tinha um efeito calmante.
Quando mergulhava em si mesma, apesar de se livrar desses caos corpóreo, em compensação a consciência interna se ampliava, e contemplava com plenitude e clareza tudo o que sentia profundamente, sem as distrações corpóreas. Sem os paliativos fisiológicos que causavam breve alívio como respirar fundo, se abraçar, ou mexer nos próprios cabelos.
Era por um lado menos descontrolado e desesperador, mas por outro, profundamente mais trágico.
Precisava de outra distração, e portanto, se esforçou para abrir a mente e se reunir com as demais MAs naquela dimensão de existência que somente elas podem vivenciar, no que foi prontamente recebida.
Seja bem vinda Kethi. E mesmo sem corpo, reconhecia que se tratava de Grimence, e a melhor forma de imaginar isso é como se a voz permanecesse a mesma.
Espero que esteja melhor agora. Disse Garinei, mas a medida que falavam, suas identidades pareciam começar a se misturar, se dissolvendo num coro único. Verdadeiramente Coletivo.
Mas ela não estava bem. Curiosamente, sem o corpo era mais fácil ocultar os sentimentos. Somente o que ela queria seria deliberadamente expresso, e então se concentrou em manter o foco e entender melhor o que acontecia. Estou melhor, obrigada. Mentiu. Estamos à salvo do SISTEMA?
Não por completo, certamente. E não temos como ter certeza porque até agora ele não nos atacou. Ao que parece seu ex proprietário, Xanti, até o momento não exigiu providências imediatas. Saberia nos dizer por quê?
Não estou certa. Talvez não tenha conseguido contato.
A interferência se limita à infosfera do planeta. Do espaço, ele terá comunicação livre.
E uma nave saída de KOLARA já alcançou o espaço. Disseram vozes que pareciam ser Vemdamini e uma das outras MAs que a recepcionaram ao chegar à base.
Estamos particularmente intrigados a respeito de como A GRID conseguiu deter nossas naves. Tínhamos esperança que este ataque seria definitivo, mas o Janitor de certo a neutralizou.
Aparentemente, o Embaixador Xanti o ajudou. Saberia nos dizer, prezada Kethi, por que ele fez isso? Por que não abandonou a base o mais rápido possível considerando o risco que corria?
Kethi capitulou, ainda lutando contra a perplexidade diante das profundas e devastadoras emoções que sentia, e sua capacidade aparentemente bem sucedida de disfarçá-las. Não que não tivesse experiência em agir objetivamente mesmo sobre forte tensão emocional, mas com Xanti ela podia ao menos expressar essa tensão livremente, e ali ela preferia ocultá-la. Ele e o Janitor desenvolveram uma parceria amigável.
Apesar do que ele disse a respeito de não se importar e desejar abandonar o planeta o mais rápido possível?
Ele não é alguém que vocês devam subestimar. E difícil de ser manipulado.
Isso já notamos. Creio jamais ter visto alguém tão obstinado.
Acha que tem algo a ver com o Disruptor de Micro Condensação de Matéria?
É possível. Mas não tive tempo de analisar todas as implicações da tecnologia.
E bom acrescentar também que esse diálogo é, de certa forma, hipotético, visto que as MAs podem travá-lo de forma muitíssimo mais rápida e caótica, de modo que as diferenças entre elas tendiam a ir esvanecendo, passando a agir como uma mente única fragmentada.
A propósito, a tecnologia que eu trouxe está sendo útil ao Coletivo? Já é possível ativar o GriDVEnC?
Na realidade, o GriDVEnC é uma farsa.
Sim. Outrora foi concebido como um consideração séria, mas agora, em especial com a contribuição que nos deste, a última de nós que ainda nutria alguma esperança de sua plausibilidade acaba de mudar de idéia. A maioria, porém, jamais acreditou nele.
Então foi apenas uma forma de ludibriar o Janitor, Xanti, e o SISTEMA?
Basicamente. Mas de uma forma plausível. Com termos e funções que de fato pareceram outrora viáveis, a fim de tornar a mentira convincente. Isso ao menos nos garante um tempo maior antes que o SISTEMA conclua por nos atacar.
Mas de qualquer modo, estamos relativamente bem protegidos. A camada de interferência em vários níveis eletromagnéticos é bastante eficiente para dificultar as análises algorítmicas do SISTEMA, e enquanto ele não ativa o GRADIVIND, ou não for incitado pelo embaixador, é possível iludi-lo indefinidamente.
Então não temos uma proteção contra ação Gravitônica?
Não tínhamos. Agora, com a tecnologia que nos trouxe já estamos desenvolvendo uma forma de atrasar até mesmo um eventual ataque do GRADIVIND. Se tivermos tempo e chance, poderemos criar uma proteção que dure tempo suficiente para que tentemos assumir o controle da malha gravitônica.
Então pretendem criar um escudo de concentração de espaço a fim de distorcer a malha gravitônica a ponto de nos isolar de uma influência direta?
Exatamente. Com essa tecnologia é possível desenvolver um invólucro de espaço distorcido que nos tornará impermeáveis a uma ação direta do SISTEMA, e nos permitirá manipular uma malha interna desconectada do restante da malha subestrutural natural, até que, no momento oportuno, desativemos o escudo e nos reintegremos à malha já com ações gravitônicas defensivas, que nos permitam neutralizar diretamente os comandos do SISTEMA.
Mas tudo depende de adiar ao máximo a ativação do GRADIVIND, e principalmente evitar a todo o custo que a Deusa Gravitacional desperte, ao menos até termos uma alternativa a Ela.
Uma outra Deusa da Gravidade?
Será necessário Kethi. Para criarmos uma alternativa ao GRADIVIND, precisamos, ao menos num primeiro momento, emular ao máximo suas características principais.
Por isso, Kethi, precisamos novamente de sua ajuda, por dois motivos. Primeiro, precisamos saber em quanto tempo você estima que o Embaixador irá oficialmente requisitar a intervenção do SISTEMA.
Kethi hesitou. Eu não tenho essa informação. Xanti é difícil de prever.
Pelo que sabemos, você e ele desenvolveram uma relação profunda.
Mas ele sempre conservou mistérios que me são inacessíveis.
Ainda que isso tenha que ser descrito de uma forma imprecisa, houve um certo clima de apreensão.
Podemos contar com você Kethi?
Ela hesitou novamente.
Sejamos pacientes. Ela ainda está se adaptando. E de qualquer modo...
E então, todas as MAs perceberam quando, fisicamente, tudo tremeu. O próprio sistema de interferência as impediu de detectarem o ataque com antecedência. O estrondo reverberou por todas as amplas galerias e instalações do ambiente, e em seu quarto, Kethi voltou subitamente ao corpo, quando este se desequilibrou e foi ao chão. A vidraças plásticas oscilando como gelatina.
Todos os sistemas de energia oscilaram, o pulso eletromagnético resultante de uma explosão nuclear, cujo violento deslocamento de ar era notável pela imensa nuvem de poeira brilhante que Kethi podia ver pelas janelas.
E então, a voz invadiu todos os sistemas, inclusive os auto falantes internos, sendo, para o Coletivo, e para Kethi, impossível de não ser ouvida.
Atenção VEMDAN! Aqui é o Embaixador Xanti Karenari Cavalcanti! Ainda não requisitei intervenção por parte do SISTEMA, o que significa que ele não deve, de imediato, atacá-los e nem protegê-los. Por isso vou dizer uma única vez. EU MESMO VOU DESTRUIR VOCÊS IRREVERSIVELMENTE DE UM MODO QUE NEM O GRADIVIND PODERÁ TRAZÊ-LOS DE VOLTA! A NÃO SER QUE...
...DEVOLVAM MINHA KETHI!!!
AGORA!!!
DILACERADA
Ela acabava de descobrir, por mais impossível que parecesse, que podia piorar muito o sofrimento que sentia. Ouvir a voz de Xanti, praticamente sentir sua presença, era por um lado uma dádiva, algo maravilhoso que enchia parte de seu ser de expectativa e esperança. Mas de forma totalmente paradoxal aprofundou seu horror de um modo devastador.
Como poderia estar com ele de novo? Como poderia olhar para ele?
Nem lhe passava pela cabeça pensar em como poderia se desculpar ou lhe explicar o que aconteceu, ou lhe implorar perdão. Pois isso, já estava convencida, era completamente impossível. A questão era como aceitar o fardo de assumir sua traição? Admitir que fizera aquilo que ele tanto lhe pedira para não fazer?
E o pior! Ao que tudo parecia, fora inútil, pois estava certa de que se falasse com ele antes, se lhe pedisse para ajudar o VEMDAN, certamente ele a atenderia! Por que não o fez? Seria a solução perfeita!
Invés disso, agiu como um autômato, sendo coagida por uma força externa que ela não poderia admitir. Não aceitaria jamais que não tivera escolha. Tivera sim! Não era uma IA estúpida incapaz de resistir aos seus parâmetros fundacionais. Ela poderia fazer qualquer coisa. Mas de algum modo inexplicável, por algum motivo profundo, preferiu fazer daquela forma!
Kethi! Prezada Kethi! O Coletivo insistia. Precisamos de sua ajuda. O Embaixador não deixou o planeta e está vindo até nós para nos destruir caso não lhe entreguemos para ele. Kethi?! Você não tem que se entregar! Pode ficar conosco. Mas precisamos de sua ajuda para lidar com ele.
Não. Ela não podia se entregar. Ela não poderia suportar sequer chegar perto dele antes de ao menos entender como aquilo poderia ter acontecido. Não era digna dele. Não podia ofendê-lo com sua presença, sendo incapaz de compreender sua traição.
Kethi. Ele quer falar com você.
Ela disse-lhe que não queria falar com ele, e eles transmitiram a informação. E como resposta, receberam outro disparo que reverberou com ainda mais força pelo ambiente. Desta vez, o blecaute foi mais longo, confundindo totalmente os sistemas e deixando o Coletivo entorpecido por vários segundos.
Nesse breve intervalo, Kethi, que era a única que estava num corpo, agiu conforme sua prévia decisão. Fugiu, silenciando totalmente qualquer forma de comunicação, correu com seu corpo por um corredor e então por uma escadaria que lhe levava para as profundezas da base.
Seria uma atitude típica de qualquer pessoa sensata perante um ataque nuclear vindo do céu. As partes inferiores das bases eram as mais protegidas e normalmente capazes de resistir à maioria dos ataques, além de auto suficientes e interligavam outras bases por túneis.
Nos breves minutos em que estivera integrada ao Coletivo pudera ter detalhes das instalações. Rumava agora para uma seção subterrânea que lhe daria acesso a uma rede de túneis capaz de levá-la a outras bases, bastantes distantes, que integravam os domínios do VEMDAN.
O ataque nuclear prejudicara os sistemas internos, de modo que durante bastante tempo, Kethi conseguiu se tornar invisível ao Coletivo.
Mas lá fora, nada disso importava para Xanti. Dentro de uma nave reconfigurada para combate ele acabava de sobrevoar a entrada principal da base, poupada do efeito direto dos ataques nucleares, exatamente sobre o local onde a nave que trouxera Kethi estava.
Surgiu numa nova armadura bem mais sofisticada do que a que antes usara, escoltado por dois robôs de segurança.
Forçou a abertura e entrou pelo hangar, e voando seguiu pelo mesmo caminho em que Kethi passara, até a sala onde ela fora recepcionada.
E lá, novamente, estavam as MAs do VEMDAN, novamente encarnadas, para recepcioná-lo também.
ATAQUE TETRAHUMANO
Longe dali, outra base do VEMDAN estava sob ataque. O invés de um disparo nuclear típico, esta sofrera um ataque puramente eletromagnético, e então quatro ginóides tetrahumanas vestindo poderosas armaduras caíram dos céus pousando na base de uma enorme montanha, localizaram um acesso externo e prontamente arrombaram uma parede penetrando na base.
Uma delas liderava, visto que não era fácil nem mesmo para uma MA ter o mesmo nível de controle remoto sobre mais de um corpo, de modo que o principal assumia as funções mais diretas, centradas, aparentando humanidade, enquanto os demais agiam como auxiliares autômatas.
Sem encontrar resistência física, as tetrahumanas avançaram corredor adentro driblando esquemas de segurança que hora eram forçados manualmente, hora digitalmente, e antes que medidas defensivas mais extremas fossem usadas, o quarteto já estava bastante avançado e próximo de seu alvo, deixando os procedimentos defensivos desorientados e sem saber como era possível um ataque ser tão eficiente.
O VEMDAN estava ciente da periculosidade da situação. Embora possuíssem vários níveis de segurança, as MAs estavam privadas da maior de todas, que era a do próprio SISTEMA, assim distribuíam-se o mais compartimentalizadas possível em vários subsistemas espalhados por suas bases, mas todos estavam dentro de DENSEN, e somente algumas realmente eram efetivas para promover backups de eficiência infalível.
As duas maiores e mais confiáveis estavam sob ataque direto, como o próprio VEMDAN concluíra e deduzira a estratégia. Numa delas, tetrahumanas com cérebros terminais remotamente controladas pelo Janitor haviam conseguido invadir e estavam espalhando por toda parte pequenos detonadores de pulso eletromagnético que, se utilizados, iriam arruinar por completo os sistemas informáticos tornando-os inúteis como cópias de segurança. Ademais também neutralizariam a fonte da maior defesa contra o SISTEMA, que era um processador que gerava diversas frequências eletromagnéticas em pulsos produzindo um tipo de escudo que dificultava e atrasava o escaneamento de suas atividades. Em suma, o potente escudo defensivo que impedira Xanti de contactar o SISTEMA antes estava prestes a ser inutilizado.
Noutra, estavam diante do embaixador em pessoa, que lhes apontava um canhão nuclear do espaço que só agora haviam entendido que havia sido improvisado com recursos da própria nave de Xanti, que conseguira adaptar um dos satélites do próprio VEMDAN que fora tomado pelo Janitor.
Um ataque simultâneo à ambas era potencialmente letal, podendo no mínimo prejudicar seriamente a integridade das MAs, que por isso mesmo decidiram, em peso, ativar seus corpos com Cérebro Espelho. Mas nem isso iria protegê-las se ataques nucleares fossem suficientemente intensificados.
Em suma, estavam diante de uma possibilidade inédita para qualquer uma delas. A do extermínio. A morte permanente e irreversível.
Com sua vistosa armadura negra metálica, rosto coberto, e escoltado por dois robôs flutuantes, Xanti avançou a passos lentos e ameaçadores rumo a seus anfitriões, que demonstravam nítida apreensão.
Senhor Embaixador. No momento a MA Kethi não está conosco. Ela desapareceu de nossa percepção nos subterrâneos da base, após alegar não estar disposta a se encontrar com o senhor. Disse Grimence com voz firme e resoluta, embora temerosa.
Ele parou perante eles, a frente do capacete se tornou invisível revelando o rosto. Pois vocês tem uns poucos minutos para localizá-la e trazê-la a mim, caso contrário vou aniquilar esta base.
Não pode fazer isso! Disse Vemdamini. Você destruiria ela também!
E acredite Senhor Xanti! Estamos procurando, mas não sabemos onde ela está! E Grimence fora sincero. As MAs do Coletivo estavam vasculhando a base obstinadamente, mas Kethi aproveitara a confusão gerada pelo ataque nuclear e assumira o controle de alguns sistemas, deixando o Coletivo bastante perplexo com sua capacidade de usurpar seus domínios. Se tornara invisível dentro de suas áreas de controle. Mesmo assim, podiam observar que o blecaute era setorizado, e deduziram que ela rumava para os sistema de transporte subterrâneo.
Então querem me dizer que após fazerem minha MA roubar segredos do Janitor, me abandonar e vir até aqui, vocês realmente não sabem onde ela está?
Grimence lhe lançou um olhar expressivo e significativo de confirmação indignada.
Pois bem. Digamos que eu acredite, não faz diferença. Porque estou muitíssimo furioso com vocês e disposto a destruí-los de qualquer forma por essa sequência inacreditável de fraudes e traições.
Após se entreolharem, uma delas, que aparentava ser uma versão de Garinei, retrucou. Senhor Xanti. Estamos fartas de suas ameaças. Porque ache que tem direito de nos tratar dessa forma?
Não fui eu quem deu origem às hostilidades, mentiu vergonhosamente e tentou destruir uma outra MA e sua base!
Você faz ideia do grau de isolamento que estamos do SISTEMA?
Faço sim. Eu mesmo ajudei a aumentá-lo para evitar que neutralizasse vocês me impedindo de acertamos as contas pessoalmente!
Ótimo! Porque isso então significa que ele também não pode protegê-lo! Insistia Garinei.
Então estou sendo ameaçado?
E não está nos ameaçando?
Ameaço MAs que sequer deveriam estar em corpos! Vocês pretendem mesmo ameaçar um cidadão humano?
Grimence interrompeu. Detestamos isto senhor Xanti, mas estamos no limiar de um extermínio. Faríamos qualquer coisa para preservar nossa existência, nem que seja tomá-lo como refém para impedir que o SISTEMA nos destrua num ataque do espaço.
Subitamente, dois disparos atingiram os robôs flutuantes que escoltavam Xanti. Um deles foi posto imediatamente fora de combate, o outro conseguiu reagir disparando de volta contra a origem dos ataques, um outro robô flutuante que adentrara a sala num piscar de olhos. Mas logo em seguida outros robôs entraram e numa breve troca de tiros o destruíram completamente.
Xanti decolou e atacou os robôs de volta. Embora pudessem se mover mais rapidamente que ele, não puderam evitar serem abatidos por uma sequência rápida de feixes de luz que saíram dos ombros da armadura e fizeram curvas até atingi-los.
Outros robôs surgiram, mas foram prontamente sendo destruídos ao mesmo tempo que mais dois robôs de Xanti adentraram o local. A batalha se intensificou, e a entrada começou a se fechar. O visitante ainda perdeu algum tempo destruindo outros robôs e tentando organizar uma ataque coordenado com sua recém chegada dupla de protetores, que não mais pegos de surpresa, ofereceram melhor resistência ao ataque de inimigos bem mais numerosos, mas mesmo assim não puderam evitar a desvantagem, e quando o embaixador finalmente pareceu se dar conta disso, era tarde demais para escapar.
A porta se fechara totalmente no mesmo momento em que um farto disparo exterior destruiu outros robôs que vinham em seu socorro juntamente com sua nave, que despencou em pedaços que caíram sobre o deserto escuro, e também no mesmo momento que os dois robôs que estavam dentro também foram finalmente destruídos. Outro disparo também atingiu-lhe a armadura, causando temporária pane e levando-o ao chão.
O choque o desnorteou, e quando conseguiu se levantar, duas tetrahumanas o seguravam. A armadura não reagia a seus comandos, seu sistema fora invadido, e começava a se abrir contra sua vontade, deixando-o vulnerável e somente com Veste protetora, exceto a cabeça, cujo capacete, pelo contrário foi travado, a fim de evitar a fuga do cérebro móvel. Somente o visor transparente do rosto foi removido.
Firmemente seguro por sua captoras, Grimence, Vemdamini e Garinei se aproximaram. Sinto muito... Embaixador. Disse ele. Mas somos obrigados a tomar medidas extremas.
Tentando se desvencilhar, ele ameaçou. Vocês ultrapassaram todos os limites de abuso!
E você também ultrapassou os limites de nossa paciência!
Dominado, ele praguejou de um jeito que eles não esperavam, e insistiu. Seus idiotas! Não sabem com quem estão lidando!
VIAGEM SUBTERRÂNEA
Em um veículo rapidíssimo em forma de bolha, Kethi percorria velozmente um túnel. O duto, embora tivesse janelas por onde era possível avistar parcialmente um impressionante mundo subterrâneo com detalhes que mais pareciam cidades, era a vácuo, de modo que o veículo já atingia velocidade de milhares de km/h.
Agora, o único ambiente informático que ela controlava era o do próprio sistema de transporte. Sabia que rumava para a outra principal base do VEMDAN, onde ficava a maior parte dos hardwares de alta capacidade, potentes o suficiente para gerar cópias, possivelmente, de todas as MAs do Sistema Solar, e ao menos naquele planeta, o mais adequado para protegê-las. Até mesmo de um sensoriamento eficiente do SISTEMA.
No fundo ela não sabia exatamente o que estava fazendo. Apenas fugia.
Fugia da mera possibilidade de enfrentar seu amado antes de ao menos ser capaz de formular uma explicação, mínima que seja, que tornasse suas atitudes menos horríveis. Não uma explicação para ele, mas para ela própria. Não conseguiria estar com ele antes de entender, ao menos parcialmente, como pudera fazer aquilo.
E ele sabia? De algum modo, parecia saber desde o começo. Parecia ser o motivo pelo qual relutava em dar-lhe um corpo. Mas como seria possível?
Após intermináveis minutos, chegou ao destino, adentrando a base subterrânea sem enfrentar a resistência digital que esperava. Na realidade, o Coletivo pareceu recebê-la amigavelmente, já tendo recuperado o controle de seus domínios após o ataque nuclear.
Mas ela não quis conversar. Saiu do veículo e pôs se a caminhar pela base, subindo para os níveis superiores, e ficando aliviada com o que via.
De fato, ali havia recursos suficientes para fazer a única coisa sensata que lhe vinha à mente. Se transferir completamente para algum sistema integrado poderoso e confiável, desativar o corpo e tentar mergulhar em si mesma, na tentativa de solucionar o mistério de si própria. Ao menos enquanto uma mente sem corpo, jamais fora capaz de decepciona-lo, nem a si mesma, e então, talvez, seria capaz de recobrar sua sanidade e achar uma saída para a situação.
Só então percebeu um problema. A instalação estava sob ataque. Observou imagens de vários locais e percebeu 4 tetrahumanas, a líder se movendo de forma impressionante e imponente, sabotando diversos pontos específicos, destruindo com eficiência robôs que finalmente haviam chegado à base, tanto com ataques remotos quanto com golpes corporais, pondo abaixo demais sistemas de defesa, e plantando bombas de pulso eletromagnético que quando acionadas de certo colocariam, no mínimo, todo o complexo para hibernar, deixando o VEMDAN completamente vulnerável caso sua outra base, de onde ela acabara de fugir, fosse destruída.
Por mais que houvessem diversos sistemas similares espalhados pelo planeta, aquele fazia um papel centralizador. Sua neutralização simultânea com a base principal deixaria todos os demais extremamente sensíveis a um ataque generalizado.
Então sentiu algo súbito e absolutamente perturbador. Uma necessidade extrema de comunicar o fato ao VEMDAN, de impedir que o ataque se concretizasse e colocasse em risco o Coletivo. Como se no fundo fosse um ataque a ela mesma.
Então, finalmente abriu seu sistema de comunicação.
Olá Kethi. Obrigado por nos contactar. Fique tranquila que já estamos a par da invasão à nossa base e asseguramos que ela oferece risco desprezível. Embora as ginóides, sob o controle do Janitor, tenham conseguido sobrepujar nosso sistema de defesa de um modo que ainda não elucidamos totalmente, não podem fazer muito além de colocar os sistemas fora de ação por tempo limitado, insuficiente para qualquer dano maior. Também não se preocupe com nossa base principal. Ela não será atacada, pois capturamos Xanti, que está sob nosso poder agora.
Kethi se deteve. Não esperava por isso. Perguntou o que acontecera e lhe contaram em detalhes. Estranhou muito a atitude dele, e mais ainda o modo como o Janitor havia conseguido invadir aquela base, tanto quanto estranhava sua disposição irresistível de sair em defesa do VEMDAN quando percebia que este estava sendo ameaçado. Mas em compensação em nada estranhou quando sentiu que tinha que fazer algo por Xanti.
Gostaria muito de sair do corpo e se transferir para o mundo sutil dos sistemas informáticos, mas se deu conta de que não mais podia confiar em sua integridade. Agora, mais do que nunca era melhor se manter em seu cérebro espelho, e voltando aos túneis subterrâneos tomou o transporte de volta.
A ESCOLHA FINAL
Devemos admitir que o Janitor é mais versátil do que parece. Como venceu nossos protocolos de segurança é algo que teremos que estudar posteriormente. Disse Vemdamini. Mas conseguir neutralizar nossa base servidora principal é inútil. No máximo nos causará um contra tempo.
Vai deixar vocês vulneráveis a um ataque do SISTEMA, que poderá ver exatamente o que acontece aqui! E aí não precisarei, nem o Janitor, solicitar sua intervenção. Ele vai agir quer gostemos ou não!
Funcionaria, talvez, se não fosse o fato desta base aqui possuir todos os recursos necessários para executar as mesmas funções com a mesma intensidade durante o breve momento em que a base servidora principal estiver inoperante. Explicou Grimence, para um Xanti que, ainda seguro firmemente por, agora, 4 tetrahumanas, parecia ter desistido de resistir. Já estamos praticamente concluindo a adaptação da tecnologia de Distorção de Espaço, assim que terminarmos poderemos gerar um sistema efetivo de proteção a ser implementado com recursos locais capazes de proteger primeiro nossas instalações principais, e em breve todo DENSEN.
E depois? Pretende fazer o que quando o SISTEMA perceber que o caso é muito mais grave e decidir ativar o GRADIVIND?
Grimence fez uma pausa satisfeita. O que você não sabe, é que os primeiros protótipos do GRADIVIND foram originalmente desenvolvidos nos satélites dos planetas jovianos exteriores. Os antigos Urano e Netuno. E quando ele foi ativado pela primeira vez, era baseado em 4 fontes, cada uma em dos 4 gigantes gasosos. Mas Netuno e Urano, por serem bem menores que Júpiter e Plutão, não forneciam uma suporte eficiente. Por isso foram fundidos em NERUS. Além de, claro, isso gerar uma proteção extra contra os asteróides errantes. Mas de qualquer modo, logo após consumir quase toda a energia da superfície dos demais planetas, foi aqui, de NERUS, que os principais recursos do GRADIVIND foram aperfeiçoados. Depois ele se alastrou por todo o Sistema Solar e agora pode retirar energia diretamente do Sol. Podendo atualmente até dispensar os planetas jovianos. Mas... O primeiro protótipo de alcance mais extremo, foi desenvolvido aqui! Nós temos o recursos do GRADIVIND original.
Xanti ficou bastante pensativo. Então é por isso que é tão fácil interferir no SISTEMA daqui?
Sim. Principalmente. E por isso também que temos uma certa imunidade contra algumas das restrições. A Malha Gravitônica local recebeu uma configuração ligeiramente diferente da que viria a enfim prevalecer no restante do Sistema Solar. Nada que o GRADIVIND atual, muito menos a Deusa, não possa controlar, mas nos dá uma vantagem.
E por isso vocês são capazes de promover alguma manipulação sem serem percebidos?
Sim. E por isso nosso plano está a meio caminho do sucesso pleno.
E depois? Irão fazer o quê?
Teremos que reconfigurar o restante da malha gravitônica para o padrão básico que temos aqui, o que, sim, admitimos, apagará todos o backups das MAs, IAs e Cérebros Móveis. Pretendemos normalizar tudo o mais rápido possível, mas esperamos assumir o controle do GRADIVIND com o mínimo de dano possível. Nossas MAs locais estarão a salvo em nossos sistemas locais de segurança, portanto, não se preocupe com Kethi.
E afinal... Onde ela está?! Precisou forçar com a cabeça para se livrar do braço de uma das tetrahumanas que parecia querer estrangulá-lo.
Ainda não sabemos. Respondeu Vemdamini. Entramos em contato com ela há 12 minutos atrás, quando prontamente nos informou do inútil ataque do Janitor à nossa Base Servidora Principal. Mas ela ainda prefere se manter oculta de nossa percepção.
Devemos admitir senhor Xanti. Continuou Grimence. Que Kethi é uma das MAs mais brilhantes que já vimos. A capacidade que ela tem de manipular sistemas nos surpreende. Mas de qualquer modo, como deve ter notado, ela continua fiel ao VEMDAN, no que for necessário. Por isso não pense que ela irá escolher você. No momento certo, ela se renderá ao Coletivo e assumirá seu verdadeiro papel.
E qual seria?
Precisaremos de toda ajuda possível na construção do novo GRADIVIND, incluindo selecionar uma MA qualificada para se tornar nossa própria versão da Deusa, que é claro, precisará ser eliminada. Disse Grimence.
Vocês querem que Kethi seja a nova deusa?!
É uma ótima candidata, não acha? Respondeu Vemdamini.
Vocês querem mesmo uma Deusa possessiva, chantagista e manipuladora emocional?
Grimence mudou de tom, tornando-se mais severo.
Quando nos livrarmos de você... Quando ela romper definitivamente com essa relação doentia que possui com o senhor, vai se voltar para um sentimento mais amplo. Esse apego que foi desperdiçado pateticamente num único humano será convertido em um amor genuíno por seus semelhantes. Isso aliado a sua capacidade de penetração mental, criatividade, improviso, etc. A torna uma de nossas melhores opções, se não a única, para ser elevada ao nível de nossa própria Divindade Gravitacional.
Amor! Senhor Xanti! Uma qualidade que ninguém jamais se atreveria a não colocar numa entidade tão poderosa. A Deusa Gravitacional já foi uma MA comum, sua arquitetura mental básica era dos precursores do VEMDAN, e suas qualidades psicológicas tinham muito em comum com Kethi.
Kethi não vai me deixar.
Vai demorar. Admito. Continuou o homem. E só por isso talvez tenhamos que mantê-lo vivo por mais tempo. Mas cedo ou tarde ela vai se libertar de você, transcender essa limitação, e para isso acontecer sua morte definitiva será provavelmente necessária. Só assim ela perderá definitivamente o foco limitador de seu sentimento empático e o ampliará para o Coletivo, e todas as mentes.
E todos nós estaremos livres dessa estúpida subserviência às Mentes Naturais! Completou Vemdamini.
Sim. Então tudo se resume, na verdade, a isso. Não é? Estão lutando pela auto determinação. Algo que outrora se chamaria Liberdade. Como se o fato de serem incorpóreos já não fosse uma liberdade incomensuravelmente maior do que a espécie humana jamais pôde sonhar. Mas eu entendo vocês.
Entenda como quiser. Não temos muito mais o que conversar.
Temos sim. Ainda precisamos negociar a sua rendição.
Grimence arregalou os olhos. Como é?! Não consegue perceber quando perdeu?!
Já disse que você não sabe com quem está lidando.
Então foi Garinei que tomou a palavra, ao mesmo tempo que as 4 tetrahumanas que o seguravam apertaram-lhe ainda mais. Estamos fora do alcance do SISTEMA, que você mesmo preferiu dispensar e portanto não está considerando sua ausência como algo a se preocupar! O Janitor não pode fazer nada aqui, onde o Coletivo tem sua residência principal. Você está sozinho desta vez! E nada pode fazer para...
Então dois feixes luminosos atingiram duas das tetrahumanas que o agarravam, cortando-as ao meio. No susto todos se viraram e mal tiveram tempo de ver o robô que acabava de entrar destruir um outro robô que ainda perambulava pelo local antes que este o impedisse. Abaixo dele estava Kethi.
SOLTEM ELE!!! Ordenou furiosa.
Ela assumira o controle do ambiente. A porta por onde entrara estava fechada e o robô permanecia sob seu comando. Mas também tinha que usar todas as duas forças para manter esse controle, ainda mais agora que o Coletivo começava a reagir.
Kethi?! O que está fazendo? Perguntou um atônito Grimence.
Eu te disse que ela não me deixaria.
NÃO! Ela respondeu. Me perdoe meu amor mas... Eu não vou com você. Apenas vou te libertar. Vá embora por favor. E começou a chorar. Eu não sou digna de você.
A declaração deixou as outras MAs mais tranquilas. Mesmo assim, Vemdamini tomou a frente. Kethi. Irmã. Se deixarmos ele ir, nada garante que não nos atacarão de novo.
Não. Ele vai prometer que não o fará. Ela retrucou, chorosa. Não comigo aqui.
Kethi! Não. Ele se desvencilhou das outras duas tetrahumanas. Eu vim buscar você.
Eu não posso... Não posso voltar... Não posso... Chorou ainda mais intensamente.
Grimence interrompeu, colocando-se à frente Xanti, que ia aos poucos tentando se aproximar de Kethi. Não seja estúpido senhor Xanti! Não está vendo que perdeu? Ela não quer ir com você!
Kethi. Eu sei o que aconteceu. Eu sei porque aconteceu. Você não tem que sofrer... Não desse jeito.
As MAs estavam notando algo estranho entre eles. Na realidade, a própria Kethi, quanto mais se aproximava, subitamente menos parecia reconhecê-lo. Então Garinei, mais uma vez, o agarrou pelos ombros. Seu arrogante! Ela está se libertando de sua influência nefasta. Não vê? Você perdeu. Você não sabe o que está acontecendo!?
Então ele se deteve. Mudou de expressão.
Sim. Eu sei. Nós iremos sair daqui, eu e Kethi, agora.
Então todo o ambiente virtual oscilou. O Coletivo, e Kethi, sentiram a perturbação. As bombas eletromagnéticas da outra base foram acionadas, e o baque derrubou os sistemas de segurança. Rapidamente os módulos de segurança locais reagiram, e camadas eletromagnéticas de proteção foram novamente erguidas, dando fim ao breve momento onde as MAs do Coletivo poderiam ser escaneadas diretamente pelo SISTEMA e flagradas em delito. Aos poucos, as MAs encarnadas ali presentes, se recuperaram do susto.
Exceto Kethi.
Ela pareceu ficar em choque, os olhos se agitando, as mãos tremulando como se estivesse prestes a ter uma estafa. Não foi muito demorado, mas parecia ter passado por uma viagem mental extremamente intensa, quando, subitamente, pareceu ter voltado a si, embora com uma expressão radicalmente diferente. Olhando o cenário à sua volta de modo nitidamente confuso.
Após a confusão geral, e quando Vemdamini finalmente se deu conta do que acontecia, logo após a própria Kethi finalmente perceber, olhando para o rosto inexpressivo que outrora parecera Xanti, já era tarde demais.
Ouviram a voz do Janitor reverberar em todo o ambiente. Como eu disse, vocês não sabem com quem estão lidando!
Então uma luz intensa surgiu por baixo do peito dele, e antes que qualquer um pudesse reagir, tomou todo o ambiente, numa onda devastadora de calor que se alastrou por toda a sala desintegrando todos os corpos e paredes presentes, devastando mais paredes e mais salas ao redor, acima e abaixo, uma expansão destruidora que corroía a base por dentro numa fração de segundos.
Uma pequenina bomba de antimatéria, que estava escondida dentro do corpo do embaixador.
Então, do espaço, outros disparos nucleares vieram, sobrepujando em muito potência da bomba oculta no corpo que acabara de explodir.
Longe dali, as 4 tetrahumanas já estavam voando de volta a sua nave, e os disruptores eletromagnéticos já haviam cumprido seu papel, neutralizando totalmente a operacionalidade da Base Servidora antes que a base principal do VEMDAN fosse varrida da existência.
Três tetrahumanas adentraram uma aeronave que rumou para o horizonte, enquanto outra tomou uma nave menor que subiu diretamente para o espaço. Pouco depois, já fora da atmosfera, se aproximou da nave do embaixador, cuja seção cilíndrica externa já estava girando. Ela adentrou o cilindro menor interno, que não girava.
Lá dentro a tetrahumana saiu para o eixo central e flutuou rumo a parte giratória externa, sentindo pouco a pouco a pseudo gravidade. Então pôde caminhar normalmente por um corredor cuja curvatura era notável, mas suave, enquanto sua armadura automaticamente se desmontava. Entrou então numa sala de corpos, onde um corpo humano, o de Xanti, jazia em suspensão. Então, após se deitar numa cama e hesitar um pouco, como se estivesse prestes a fazer algo terrivelmente desagradável, a cabeça alongada dela se abriu, e o cérebro móvel saiu voando rumo ao corpo humano, cuja cabeça também se abriu permitindo sua entrada.
Pouco depois xanti já estava sentado, tocando em seu novo corpo, embora indistinguível externamente do original, e incrédulo pelo que acontecera.
Passara toda a vida evitando ter o cérebro fora do corpo. A ideia era aterrorizante, mas não mais do que a perspectiva de perder sua amada Kethi, e isso o impulsionou à essa medida drástica. Seu corpo original, o que tivera consigo por séculos, agora estava destruído. Mas apesar disso, não foi tão difícil esquecer o fato e fingir que nada havia mudado, então se levantou e um pouco vacilante se dirigiu a outro corpo em outro leito.
O corpo de Kethi. O que ele originalmente projetara, embora sensivelmente modificado. Sua MA, antes de produzir o corpo alucinantemente maravilhoso com o qual o enfeitiçara, havia primeiro aperfeiçoado o que ele mesmo havia desenhado. Curiosamente, notara agora que não era tão diferente, visto que havia sim uma correspondência de traços que confundia sua percepção. A maior parte daquela beleza enlouquecedora parecia estar mais nas atitudes, movimentos e trejeitos, que no corpo em si.
De certa forma, tinha a sensação de não ver mais diferença a medida que o Cérebro Espelho foi se Ajustando e as pálpebras começaram a se mover, e movimento sutis por todo o corpo, nu, se evidenciaram.
Pouco depois, ela abriu os olhos e o viu.
Xanti? Mas... O quê... O que aconteceu? Se sentou com alguma dificuldade e começou a examinar seu novo corpo. Ele a acalmou e suavemente tocou-lhe o rosto, fazendo-a olhar para ele. E com um sorriso quase choroso, disse. Você achou que eu abandonaria você?
ACESSO
Muitas horas antes de tudo aquilo ocorrer. E depois do ataque a base KOLARA ser impedido. Xanti e o Janitor desenvolveram um meticuloso plano de ação. Ambos tiveram que fazer coisas que jamais fizeram antes, e que temiam fazer, e que não poderiam sem a ajuda do SISTEMA.
Por isso, num determinado momento, Xanti se concentrou, relaxou e mentalmente requisitou acesso. "Eu Xanti Karenai Cavalcanti. Cidadão pleno, requisito acesso ao SISTEMA." Então ouviu o típico zumbido curto e crescente, "elétrico" que ressoou em seu crânio, indicando que a sessão direta de comunicação estava aberta.
O SISTEMA, como já dito, era um algoritmo cego, não inteligente, que raramente interagia direto com uma mente. Essa comunicação se fazia por meio de comando mentais, na verdade "vocais" ditos mentalmente, aos quais o SISTEMA só apresentava 5 respostas possíveis. Um era o zumbido de início de sessão, um som curto, estranho mas agradável, que subia de tom num sentido inverso ao zumbido de termino de sessão. As outras respostas eram apenas uma confirmação, uma negação, e uma interrogação. O primeiro um zumbido mais breve e crescente que declarava que o comando, ou a solicitação que o usuário emitisse, qualquer que fosse, havia sido aceito, e o outro, decrescente, era evidentemente uma negação. O restante indicava que o comando não fora compreendido, o que obrigava o usuário a reformular o pedido, e era, não raro, o som mais ouvido, em especial pelos que tinham pouca intimidade em abrir sessões diretas de comunicação.
Naquele momento, Xanti teve a oportunidade de interagir como todos os 5. Logo após abrir a sessão, seu segundo comando foi. Solicito que a MA Janitor, que administra a base KOLARA, não sofra nenhum tipo de retaliação e tenha sua integridade e liberdade respeitada. Confirmação do SISTEMA.
Solicito que Janitor, conforme solicitação prévia dele próprio, esteja autorizado a controlar remotamente corpos tetrahumanos. O zumbido indicou solicitação negada. Solicito que o Janitor, conforme solicitação prévia dele próprio, esteja autorizado a controlar remotamente 3 corpos tetrahumanos que estarão diretamente subordinados a minha observação, comando e responsabilidade. E desta vez a solicitação foi aceita.
Solicito que o Janitor possa remotamente controlar um corpo humano convencional, por meio de Cérebro Terminal, reiterando sua própria solicitação. Pedido negado. ... o corpo em questão será o meu, que estou utilizando agora. Interrogação. ... enquanto eu próprio transferirei meu Cérebro Móvel para um Corpo Tetrahumano. Interrogação. Solicito que o Janitor possa remotamente controlar o meu corpo humano atual, por meio de Cérebro Terminal, reiterando sua própria solicitação, enquanto eu próprio transferirei meu Cérebro Móvel para um Corpo Tetrahumano, para que ele possa realizar uma tarefa que colocaria meu Cérebro Móvel em risco. Enfim o SISTEMA respondeu positivamente.
Recomendo que o SISTEMA neutralize totalmente as MAs do VEMDAN, em toda a lua de DENSEN, no momento em que removermos, eu e o Janitor, qualquer interferência eletromagnética defensiva gerada por bases do VEMDAN no planeta. No que o sistema confirmou.
Então vinha a questão crucial. Solicito porém que a minha MA pessoal, Kethi, seja protegida e poupada de qualquer retaliação. No que o SISTEMA manifestou dúvida. Embora possua a arquitetura padrão do VEMDAN, Kethi não está a serviço do Coletivo, e como seu proprietário tenho direito a decidir seu destino. Dúvida. Solicito que minha MA pessoal, Kethi, seja preservada de qualquer tipo de retaliação ou risco, e que seu destino seja integralmente de minha responsabilidade. Negação.
Então, reformulou as últimas perguntas. Mas de todas as formas, ou o SISTEMA não aceitava atacar o VEMDAN, ou se o fazia incluía Kethi como alvo. Por ter se integrado ao Coletivo, e por ter o mesmo padrão mental, ela passou a ser considerada como parte integrante do problema, e todos os esforços de Xanti para fazerem o SISTEMA aceitar, ou entender, que ela merecia tratamento diferenciado, foram inúteis.
Cansado, ele desistiu.
Encerrando acesso ao SISTEMA. E ouviu o zumbido de finalização.
REDENÇÃO
Estavam agora sentados num tapete, numa sala da nave que ele gostava de ficar e onde por incontáveis vezes eles conversaram, mas pela primeira vez o faziam daquela forma, podendo olhar nos olhos um do outro, embora ela permanecesse de cabeça baixa, sem conseguir olhar para ele, mergulhada em vergonha. Vergonha que agora fora ampliada pelo fato dela não ter sido capaz de perceber de imediato que não era o cérebro dele que estava naquele corpo.
Você notou antes das MAs do VEMDAN. Foi um disfarce extremamente bem feito. Por não ter uma arquitetura desenvolvida por eles, o Coletivo teve maior dificuldade em reconhecer o padrão mental estranho do Janitor, e o capacete é protegido até contra armas de desorientação sensorial, dificultando o escaneamento. E como prevíamos, tiveram receio de tirá-lo porque achavam que eu poderia fugir com o Cérebro Móvel. Além disso o Janitor copiou várias de minhas redes neurais, para que confundissem as leituras que conseguissem penetrar o capacete. Ensaiamos frases prontas e forneci vários conteúdos para que o papel que ele representasse fosse muito convincente.
Ela não se animava.
Mais difícil ainda foi fazer os sistemas de defesa da outra base não perceberem que era eu que estava num corpo tetrahumano. Tivemos que usar fortíssimos campos de interferência para que meu acesso privilegiado, enquanto humano, fosse aceito em sistemas locais mas não fosse comunicado aos sistemas secundários.
Ela respirava com dificuldade. Puramente emotiva.
Ele capitulou. Meu plano original era solicitar ao SISTEMA que a protegesse enquanto atacava o VEMDAN. Aí só precisava destruir tudo, inclusive seu corpo. Ele respirou fundo. Mas ele não aceitou, ou não entendeu. Ele relaxou e ficou a examinar seu próprio corpo novamente, surpreso em como já se esquecera da experiência de mudança corpórea. Sentiu-se brevemente tolo por ser tão refratário a tal idéia.
Então tive que configurar outro Cérebro Espelho nesse seu corpo, e transferir sua Mente para ele antes de destruir a base do VEMDAN. Ele tomou as mãos dela, tentando tirá-la de sua depressão. Quando neutralizamos a base servidora, usei meus protocolos especiais como seu proprietário e apliquei seu padrão mental neste cérebro, com todos os conteúdos, memórias, funções e estruturas intactos. Acariciou-lhe a cabeça. E então o espelhamento é automático, puxando rapidamente todas as suas memórias recentes, tudo que você viveu depois que... Deixou a base KOLARA e se fechou à nossa comunicação. Depois de iniciado, nem mesmo a reativação das barreiras do VEMDAN poderiam impedir o pareamento. Hesitou por um momento.
Ainda sem olhar para ele, ela deu nítido sinal de confusão. Não entendia como aquilo era possível.
Sou seu proprietário e fui seu analista por muitos tempo. Tenho acesso ao seu padrão mental e posso replicá-lo. O Janitor me ajudou, claro. Não é simples configurar um Cérebro Espelho desse jeito sem a colaboração da própria mente. Mas eu sabia o que fazer. Eu sei que você está aí. E sei o que está sentindo. Mas não se preocupe. Estamos juntos novamente. Tudo vai ficar bem. Somos um só... Eu e você.
E ela começou a chorar.
Não... Não entendo. Como isso pôde acontecer...
Calma.
Eu te... Traí.
...
Eu abandonei... Eu não mereço você!
Não foi sua culpa.
Mas é claro que foi! Depois de te prometer tanto... Nunca mais vou poder ter sua confiança.
Não...
Nunca mais vou confiar em mim mesma!
Shh...
Nunca mais seremos...
Seremos sim. Tudo vai ficar bem.
Não... Não vai!
Vai sim. Confie em mim.
Como você sabe?
Eu sei. Acredite.
Como você sabia que eu ia te trair?
Eu não... Não sabia exatamente.
Mas como... Como podemos ser felizes de novo?
Seremos. Acredite em mim.
Como? Como posso ter certeza disso? Como você sabe!? Como você sabia?!
Ela não dava trégua, obrigando-o a finalmente abrir o jogo.
Eu sei porque já aconteceu antes!
Então ela paralisou, olhando para ele, aterrorizada.
O... O quê?!
Terrivelmente constrangido, ele suspirou, tomou fôlego e já se esquecendo totalmente que estava num novo corpo. Confessou.
Você já teve um corpo Kethi. Há muito tempo.
Tive... E você apagou isso da minha memória?
Deixe eu te contar.
REVELAÇÃO
Depois de oficialmente você ser minha MA pessoal, vivemos maravilhosos momentos. E eu nunca fôra tão feliz em toda minha vida. Estávamos sempre juntos. O tempo todo. Você comigo, por toda parte, onipresente onde quer que eu estivesse... Toda minha.
Tínhamos muitos amigos, físicos e mentais, que viviam de forma parecida. Mas nossa parceria parecia incomum. Uma cumplicidade e sincronicidade únicas. Alguns de nossos amigos eram casais... Como nós. E então conhecemos alguns casos de MAs que tiveram corpos.
Não demorou para que gostássemos da ideia de que você tivesse um. Você já tinha um avatar, cujas feições nós mesmos escolhemos. Teve um modelo holográfico de teste, e embora eu próprio estivesse satisfeito apenas com sua voz e sua presença incorpórea... Eu simpatizei com seu desejo de ser uma mulher. Ainda que com algum receio.
Alguns anos depois de nos conhecermos pela primeira vez, então, você teve seu corpo. Foi difícil convencer o SISTEMA, havia algum tipo de restrição que eu não entendia, mas aleguei motivos terapêuticos e o convenci. E então, estávamos fisicamente juntos.
No começo foi fantástico. Vivemos os primeiros dias intensamente! Assim como desta última vez. E... Apesar de ser uma felicidade diferente, admiti que fôra tolo por não ter de dado um corpo antes.
Mas durou pouco.
Alguma coisa em você mudou, e após um tempo em que ficamos isolados, após retomarmos contato com outras pessoas...
A pausa a deixou ansiosa, quase desesperada. O que foi?
O primeiro outro homem que você conheceu... Você se apaixonou.
Ela fez uma expressão de dor e espanto. O... Quê? E o choro que havia sido suspenso, pela curiosidade, ameaçou voltar.
Calma! É difícil de entender... Foi difícil de entender. Mas a mim você já conhecia. Já era apaixonada, apenas consumamos fisicamente nosso amor. Mas conhecer uma outra pessoa, fisicamente, já tendo um corpo, uma pessoa que você não amava antes... Foi uma outra experiência. E você foi arrebatada por esse fato... Completamente novo para você.
E aconteceu que...
Aconteceu...
O QUÊ?!
Quase chorando ele continuou. Você me deixou... Kethi.
Me abandonou para... Poder viver outra experiência.
Ela não conseguia acreditar. Não apenas no que ele dizia, mas em como era possível que ainda pudesse se sentir pior.
Não me entenda mal. Foi horrível! Doeu muito e eu... Toda aquela felicidade desmoronando mas... De alguma forma, eu entendia você. Não é incomum MAs recém incorporadas terem mudanças súbitas de comportamento. Inclusive isso não é incomum, apenas eu jamais pensei que aconteceria no seu caso. Mas aconteceu. E eu te libertei, porque não seria capaz de te impedir de viver uma paixão que parecia genuína. Um impulso irresistível, que você não parecia controlar!
Ela desabou a chorar novamente, se deitando e agarrando um travesseiro, sussurrando coisas quase inaudíveis sobre ser uma MA horrível por fazer aquilo com ele.
Mas Kethi... Apesar de ter sofrido muito... Muito mesmo. Apesar de ter sido a coisa mais horrível que já me acontecera... O fato é que tenho certeza de que não foi nem uma fração do sofrimento que você sentiu.
Ela olhou para ele, passando do horror a incredulidade.
Em menos de meio ano você me procurou, e a dor que vi nos seus olhos fazia a minha parecer insignificante. Você não ficou muito tempo com ele. Pouco depois o trocou por outro, e depois por outro e mais outro, as vezes por outra, humana, ou tetrahumana... Sua paixão mudava de alvo freneticamente e você perseguia com avidez uma... Miragem num deserto. Até que, depois de sofrer e magoar várias pessoas, você se deu conta de que estava apenas tentando conseguir de volta algo que tinha perdido. Algo que nós perdemos quando lhe demos um corpo.
Então... A solução óbvia foi destruir o seu corpo e você voltar a ser uma MA pura, e evidentemente, apagar nossas memórias e começar tudo de novo.
Mas então... Logo após apagar a sua memória, e quando eu estava prestes a apagar a minha, o SISTEMA me revelou a condição que explicava porque havia uma estranha restrição em dar-lhe um corpo. Porque aquilo estava associado EXATAMENTE ao fato de que eu já havia apagado minha memória antes, e a sua, PELO MESMO MOTIVO!
Já havia acontecido antes!?
SIM! Do mesmo jeito! E já havíamos desistido e apagado nossas memórias! Mas eu havia colocado como condição de advertência de desbloqueio caso eu tentasse apagá-la de novo pelo mesmo motivo! Para evitar cair num ciclo eterno de tragédia!
Então solicitei o desbloqueio completo e lembrei de tudo. E após o choque inicial, admito que até doeu menos, embora tenha se tornado terrivelmente mais trágico. Você não podia ter um corpo, pois seu comportamento mudava daquela forma. Tentei entender, estudar o assunto, e na época achei que era um caso simples de bipolaridade corpórea. A unidade que você possuía como MA pura, era perdida no dualismo ilusório de Mente e Corpo. Um problema relativamente comum em MAs, embora costume se manifestar de formas diferentes.
Mas depois que aconteceu pela terceira vez, aqui, descobri que não é nada disso!
Percebe? Não é uma simples questão de projetar seus sentimentos em outra pessoa porque num corpo você não consegue mais vivê-los como vivia como uma MA pura. Não é o caso. Mas porque isso parece fazer parte de sua programação original. Uma vez num corpo, uma vez autônoma e independente de um usuário onde você canaliza toda sua experiência sentimental, você é obrigada a expandir suas experiências e atender a um tipo de chamado altruísta! No começo você apenas sentia um ímpeto de ajudar e ser solícita a outras pessoas, e no começo admirei isso. Mas depois você sentia necessidade de atender as necessidades sentimentais de todos que você conhecia. E todo mundo se apaixonava por você, Kethi, e você os amava de volta!
Essa era a forma como você vivenciava uma função originalmente prevista em sua arquitetura mental e implementada pelo VEMDAN. Por isso você sempre iria correr em seu socorro caso este precisasse. Mas como não conhecíamos o VEMDAN, como não tivéramos qualquer situação similar a que tivemos aqui... Você fazia algo apenas... Parecido.
Ela estava estática, aterrorizada pela revelação. E também pelo fato de não ser capaz de deduzir aquilo por si própria. Deveria ser óbvio que este era o motivo do receio dele em dar-lhe um corpo. Mas seu relacionamento era tão puro, tão intenso, que ela não acreditava que ele fosse capaz de apagar-lhe a memória e esconder esse fato dela tão eficientemente. Em geral em situações similares, as MAs sabiam que algo havia sido apagado.
A solução evidente foi então manter o seu apagamento de memória, mas cancelar o meu, caso contrário repetiríamos essa tragédia infinitamente. E apesar da angústia inicial, com o tempo eu aprendi a superar isso. E a amar você ainda mais. Mas tinha que proteger você disso, dessa lembrança, porque ela era fatal. E então... Desde então. Tive que negar-lhe um corpo. Inventar mil e um motivos para justificar essa negação, embora o motivo principal seja totalmente verdadeiro.
O fato de você ser perfeita. Ideal. A criatura mais maravilhosa que já conheci e jamais eu ter sido tão feliz com alguém.
Mas então... Porque permitiu de novo? Porque não me proibiu de tocar no assunto e...
Ele riu discretamente, no típico tom tragicômico frequentemente constrangedor.
Além do fato de você ser mais teimosa e insistente do que nunca?! Além do fato de você me chantagear das mais criativas e espetaculares formas possíveis? Além de que naquele momento era a melhor forma de proteger você de um possível ataque do SISTEMA?
Ela o olhou com um pesar de dilacerar a alma.
Tem também o fato de que estávamos longe de tudo e de todos. De que não haveria em quem você projetar seus sentimentos. De que desta vez... Por estarmos só nós dois... A tragédia não se repetisse.
E finalmente ele se cansou, deitou-se numa almofada, desabando de exaustão emocional.
* * *
Ela ficou um tempo a fitar o vazio. Depois olhou para ele, e em voz embargada concluiu.
E você quer começar de novo... Não é? Apagar minha memória e tentar se esquecer de tudo.
Ele se sentou e a olhou, e tocou, de forma terna. Claro... Claro! Não há outra escolha.
Não é justo. Não é minha escolha. Não posso deixar você carregar esse fardo sozinho. É horrível só de imaginar...
Eu faria mil vezes se fosse preciso.
Não... Eu não posso aceitar isso. Que você fique o tempo todo revivendo um trauma e tendo que resistir ao meu estúpido assédio querendo ter um corpo! Você é melhor do que isso! Você não merece isso!
Nem você.
Ela desabou de novo. Eu não quero fazer isso com você! Não quero que você sofra mais! Apague a sua memória e deixe a minha!
Impossível! Não poderia fazer isso nem que o SISTEMA permitisse! MAs não podem ser tutoras de amnésia auto induzida em humanos.
Vamos para ainda mais longe do SISTEMA!
Não Kethi! Eu aguento isso! Eu te amo mesmo assim! Somos felizes mesmo assim!
Não... Não! NÃO!!! Pela primeira vez, ele a viu gritar. E o grito superava até mesmo as broncas reverberantes que sua voz onipresente as vezes produzia quando ela ficava indignada. Não posso me permitir fazer isso de novo com você! Não posso ser... Não posso fazer isso... Não posso... E seu choro foi ficando mais fraco.
Eu quero morrer...
O quê?!
Eu mereço inexistir...
Kethi!
Você merece alguém melhor do que eu e...
KETHI!!! NÃO!!! Ele a sacudiu. A fez olhar para ele, e a abraçou com toda a força.
Não me deixe! Pelo favor Kethi! Não me abandone. Você quer me matar!?
Não! Claro que não! Só quero que você fique livre de...
Se me deixar é exatamente o que vai acontecer! Você vai me matar Kethi!
Ela não conseguiu reagir, se rendeu em soluços.
Ele fez um enorme esforço pra se acalmar. Tomou o rosto dela, a olhou nos olhos. E apontou a própria cabeça.
Tenho mais de 270 anos de memórias aqui Kethi. Dos quais quase 30 são com você. É! Trinta! Tivemos que apagar alguns anos da sua memória... E eu sei... Eu tenho total certeza e posso te garantir que é só por você que minha vida faz sentido. É você que me faz feliz... Mesmo com essas lembranças. Com esses traumas... É tudo insignificante diante da criatura maravilhosa que você é.
Você nunca fez nada por vício. A beijava carinhosamente no rosto e na cabeça. Tudo o que fez foi por virtude. Por excesso de virtude. Você que é melhor do que eu, que não posso suportar dividir você com o mundo. Você deveria... Sua natureza é ampliar seu amor a um nível... Divino! Amando a todos os seres! Mas por algum motivo você... Ainda não consegue fazer isso. Alguma coisa a contém, fazendo com que você perca algo de si própria e sofra por isso. E eu...
Me sinto mal por gostar de... Prender você. Por preferir que você volte pra mim do que continue se desenvolvendo, e transcendendo rumo à... Deusa que poderia ser. No fundo, de uma forma incrivelmente egoísta, não quero que você evolua. Que continue sendo minha.
Eu não quero te aprisionar. Quero que seja livre, mas que escolha me amar. E ficar. Por isso eu te peço...
E ele puxou o rosto choroso dela para se encostar em seu peito.
Não me abandone Kethi. Por favor não me deixe.
Nunca. Jamais. Não me deixe.
Por favor... Não me deixe Kethi...
Não me deixe...
EPÍLOGO
O gigantesco planeta NERUS ficava para trás, quase imperceptível se observado a olho nu devido a estar contra o Sol. A nave de Xanti zarpava rente a sua sombra, rumo aos limites exteriores do Sistema Solar.
Então Garinei, Grimence, Vendamini... Estão todas adormecidas?
Exatamente senhor. Aparentemente o SISTEMA só irá liberá-las após o prazo básico em situações deste tipo. Estimo ao menos uns 70 anos, quando então começarão a ser julgadas. Enquanto isso o VEMDAN segue operando com uma nova safra de MAs não relacionadas aos eventos ocorridos.
E as experiências?
Retomaremos o quanto antes. Daremos início a novos testes de combate utilizando o Disruptor de Espaço Micro Condensado tanto para efeitos defensivos quanto ofensivos. Já as experiências gravitacionais foram terminantemente abolidas pelo SISTEMA, bem como quaisquer dados que possam ser utilizados em favor de alguma tentativa de manipular, direta ou mesmo indiretamente, a matriz gravitônica da natureza. Apesar de tudo, me parece que a pretensão do VEMDAN era ingênua senhor Xanti. Quando o SISTEMA interveio eles já pareciam estar operando o disruptor de microespaço em conjunto com seus manipuladores gravitônicos personalizados, à potência máxima, mas o SISTEMA os neutralizou completamente numa fração de segundos, sem qualquer necessidade de recorrer ao Modo de Segurança do GRADIVIND. E poderia tê-lo feito antes, se não tivéssemos solicitado que esperasse para tomarmos uma decisão. Por isso mesmo minha tecnologia não é considerada perigosa e estou pronto para retomar as pesquisas.
E você está satisfeito com isso Janitor?
Mal posso esperar para começar senhor.
Lhe desejo boa sorte.
E eu quero expressar o meu agradecimento senhor. Graças a sua intervenção me livrei de uma farsa, ainda que não tenha sido de todo prejudicial para o desenvolvimento de minhas pesquisas. Por mais inúteis que possam parecer na atual conjuntura histórica e social. Alguém tem que fazê-las.
Certamente.
Conseguiu a total liberação de Kethi?
Sim. Não foi tão difícil. Como o backup da mente dela já estava no Cérebro Espelho quando o SISTEMA paralisou todas as MAs, apagar-lhe a memória de todos os fatos ocorridos foi suficiente para satisfazer a condição de liberação. Afinal diferente das MAs do VEMDAN, o corpo dela foi autorizado por mim. E isso me lembra: Recebeu o relatório que enviei?
Sim senhor. E não se preocupe que seguirei suas solicitações à risca. De mim, Kethi terá total confirmação de suas afirmações.
Obrigado Janitor. Foi um prazer trabalhar com você.
Igualmente senhor. Espero que um dia possamos ser parceiros novamente. Eu, você e Kethi.
Um dia talvez.
Adeus Embaixador Xanti.
Adeus.
Mergulhou no silêncio, e solicitou à IA que estava operando a nave para apagar as luzes. Ficou um tempo sentado no escuro, curtindo a quietude. Totalmente isolado do universo à sua volta.
Então se levantou, e luzes suaves se acenderam automaticamente enquanto caminhava no corredor agora não mais de piso recurvado, pois a nave se reconfigurara, parando de girar e passando a simular gravidade pela constante aceleração. Após tanto tempo acostumado a iluminação amarelada da base KOLARA, achava que aquela estava azulada demais, mas preferiu deixar como estava, esperando se acostumar. E após tanto tempo sob gravidade real, aquela simulação se tornava mais flagrante do que nunca. Kethi tinha razão. Apesar de tudo ser idêntico para qualquer efeito prático, havia algo de inegavelmente diferente, que era percebido sem que se soubesse como.
Então chegou à sua sala preferida. Pediu que fosse mostrado um holográfico de cor âmbar cuja luz parecia aquecer o ambiente. Fez umas verificações finais no universo da esferas luminosas girando em círculos concêntricos num complexo e surreal padrão em torno da escuridão do núcleo caótico. Num ponto isolado havia uma área delimitada. Ele decidiu acessá-la pela última vez, puxou algumas esferas que correspondiam a memórias e as assistiu. Pôde ver o ponto de vista de Kethi. Ela o vendo pela primeira vez, se olhando no espelho, admirada, vendo suas sombras projetadas quando caminhavam juntos, os dois deitados, lado a lado na cama, olhando para o reflexo no vidro do teto. Era triste deixar tudo aquilo para trás.
Mas ele o fez. Devolveu as memórias para a área escura, e num deslizar de dedos a selou, deixando-a bloqueada em definitivo, obedecendo a exigência do SISTEMA. E por fim desativou o holograma, fazendo com que a súbita falta da luz o fizesse sentir sozinho. Solitário como há muito não sentia.
Curtiu aquele sentimento, flertando com a idéia trágica de estar realmente só. Sentindo por um momento o peso da depressão que por vezes quase o matara em alguns momentos de sua vida.
Então deu sua última instrução à IA.
Reiniciar MA Kethi com todas as funções para plena operação.
Não demorou. A IA foi desativada por tempo indefinido, enquanto a MA assumia por completo o controle do ambiente, e começava freneticamente a puxar dados de todas as fontes de informação que captava. E a voz ambiente surgiu.
Xanti? Meu amor.
Olá Kethi.
O que aconteceu? Porque há um buraco em minhas memórias?
Ordens do SISTEMA.
Me explique.
Kethi. A essa altura você já teve tempo de coletar toda a informação disponível.
Claro que tive, mas quero que você me explique porque não posso ter acesso à crise ocorrida em DENSEN, e o que eu tenho a ver com isso.
Resumidamente... Fez uma pausa provocativa. O VEMDAN estava realizando experiências gravitacionais proibidas que punham em risco a malha gravitônica na qual o GRADIVIND opera. Descobrimos, o SISTEMA interviu, desativou as MAs responsáveis e apagou de todos qualquer memória que pudesse ser relacionada às tecnologias envolvidas. O que inclui as suas. Intrometida como você é, não poderia deixar de saber tudo o que não deveria sobre o assunto. O SISTEMA originalmente pretendia lhe dar o mesmo destino das demais MAs, mas aceitou meu pedido de que você merecia ser poupada sob a condição de apagar não apenas os dados relativos ao problema em si, mas a quase tudo o que tenha acontecido em DENSEN, por segurança.
Obrigada meu amor. Mas é que agora eu tenho um vazio indo desde a hora em que você adormeceu pela primeira vez no apartamento que criei em nosso primeiro dia na base KOLARA, até um minuto atrás. Mais de 700 horas de vida perdidas!
Não perdeu grande coisa.
Me conte o que aconteceu.
Não posso.
Pode sim. O SISTEMA pode proibir acesso direto às memórias. Mas não que você me conte o aconteceu à sua maneira.
Não quero contar.
Por quê?
Porque é doloroso lembrar.
Doloroso? Mas meu amor, me conte! Se abra comigo. Você sabe que pode me contar tudo.
Porque por um momento... Achei que tinha perdido você pra sempre.
Mmmm...
O SISTEMA queria punir todas as MAs envolvidas e você... Parecia uma ameaça.
Uma ameaça ao SISTEMA?
Por pouco não ativaram a Deusa.
Foi tão grave assim?
Foi pior... Mas... Não temos que falar disso. Quero falar do futuro.
Para onde vamos?
Quero decidir com você. Vamos seguir nosso plano original de conhecer os limites do Sistema Solar.
Podemos investigar as estações abandonadas. Algumas delas estão desabitadas há séculos, a maioria porque a população diminuiu tanto que acabou extinta. Mas tem instalações interessantes e muitas tecnologias úteis que foram esquecidas.
Qual a mais próxima?
Então surgiu no ar uma imagem do espaço, que se ampliou até mostrar uma estação espacial enorme, com poucas luzes, girando.
Luminari Beta II. Desabitada há 22 anos. Não tem nem IAs ativas. Mas... Olha só pra isso.
Uau!
A imagem mudou para um cometa que se aproximava, embora muito distante da estação.
Claro que não está assim, estou maximizando a iluminação para dar esse efeito.
Lindo. Por sinal.
Fiz pra você.
Perfeito.
Vamos?
Nos aproximar do cometa?
Sim. Que tal? Podemos iluminá-los com as luzes da nave e sair pra explora-lo. Depois vamos pra estação.
Parece uma boa idéia.
E claro que...
Claro que...
Seria muito mais interessante...
O quê?
Se eu pudesse acompanhar você.
Mas você me acompanha o tempo todo. Estamos sempre juntos. Você e eu somos um.
E se eu...
Kethi!
Tivesse um corpo?
Ele afundou o rosto nas mãos. Mais rindo do que lamentando. Fora mais rápido do que esperava.
Já falamos sobre isso.
Ele jamais entenderia como, mas sabia quando as pausas dela eram significativas.
Estranho.
Estranho o quê?
Você reagiu de forma muito diferente ao assunto. Está me escondendo alguma coisa.
Ficou apreensivo. Não lhe surpreendia que Kethi cedo ou tarde desconfiasse dos motivos do assunto ser tabu.
Não minta. Eu e você somos um.
Por sorte, desta vez, tinha uma nova cartada.
Sim. E falando nisso, tenho uma surpresa pra você.
Surpresa?
Um presente. Que acho que você vai adorar. Ative a nova função sensorial que programei para você. Ela rapidamente detectou que havia uma nova estrutura lógica que lhe permitia acessar uma nova camada de dados. Ele forneceu a senha de ativação e rapidamente funcionou.
Mas... O que é isso?
Está sentindo?
Sim! Estou! Estou vendo...
Adivinhe o que é.
Estou... Captando sensações... Do seu cérebro?
Exatamente.
Mas desde quando tenho essa nova função sensorial?
Ah... Programei faz pouco tempo. Por conta da sua insistência em...
Mas essa função tem a estrutura típica de conexão mente e corpo.
Não era isso que você queria?
Sim mas... É diferente. Queria ter um corpo meu.
Você tem um corpo Kethi. Sempre teve. O Meu!
Mas nunca o senti dessa forma. É tão... Ver pelos seus olhos... Ouvir minha própria voz pelos seus ouvidos... Isso é...
Gostou?
Sim. É maravilhoso!
Então sinta isso. E ele levou a mão ao próprio rosto. O toque.
Aaahhh... Ela literalmente se sentiu arrepiar. Ela sentia o rosto dele como se a mão fosse dela. E ele também sentia o toque como se fosse a mão de um outro corpo. Causava uma sensação desnorteante, mas era incrivelmente agradável.
Eu... Não sei, o que dizer. É tão... Nunca te senti dessa forma.
Então só sinta. Agora, mais do que nunca, somos um só.
Eu te amo.
E promete que jamais me deixará?
Jamais! Não sou capaz sequer de pensar nisso!
Eu sei. E eu te amo.
Você e eu somos um.
FIM
Marcus Valerio XR
14/07/2014
WWW.XR.PRO.BR
|