A Divindade da Gravidade...

...não era mera superstição. Correspondia a um fato real, ocorrido durante a guerra espacial quando o Sistema GRADIVIND foi ativado. Alguns membros da reunião, dos poucos que não demonstraram maior afetação ao tema, ajudaram Ielg a compor o quadro. Para melhor administrar o GRADIVIND, provavelmente, O SISTEMA ou seus criadores decidiram esconder e condicionar seu ativamento, possivelmente para evitar que fosse utilizado sem um bom motivo.

De um modo diferente, o que o Dr. Ítalo falara fazia sentido. Havia uma parceria entre O SISTEMA e a população, e possivelmente uma das formas mais eficientes de garantir que a civilização manteria as prerrogativas de emergência em ordem, era imprimir no imaginário cultural um sistema psicossocial de segurança. O SISTEMA não poderia ativar por si próprio o GRADIVIND sem que os usuários, a população, administrasse as “instruções” de inicialização, que incluíam recitar o nome da deusa “Gradivind”, palavra de um idioma antigo, já esquecido, e então declamar uma oração, como uma senha. E mais, isso deveria ser feito por uma quantidade mínima de usuários, e ou de vezes.

Aparentemente, Voltaire estava parcialmente certo. Se Deus não existia, então foi preciso inventá-lo!

Tudo passava a fazer sentido. Provavelmente, uma vez ativado, o GRADIVIND assumiria o controle da situação, instaurando um tipo de modo de segurança. Mas se conseguissem penetrar na rede gravitacional, talvez os inexistencialistas fossem capazes de assumir o controle da Deusa Gravitacional, e com seus poderes virtualmente ilimitados, poderiam simplesmente aniquilar todo o Sistema Solar.

Ele não podia permitir isso. Não viajara 5 mil anos para o futuro para ver tudo ser reduzido a nada, e muito menos para ser usado para esse fim. Nem mais se importava em quem estava certo ou não a respeito das questões culturais ou filosóficas mais complexas, o fato é que não se permitiria ser um mero objeto de uma trama calculista. Poderia até, numa outra e totalmente diferente situação, concordar com os inexistencialistas, mas agora era sua obrigação pessoal frustrar-lhes deliberadamente os planos. Só havia uma coisa a fazer, ativar o GRADIVIND primeiro, o que protegeria a rede gravitacional do SISTEMA. Ou seja, era preciso invocar a Deusa Gravitacional.

Alguns de seus novos companheiros também lhe ajudaram a entender que problema de fato ocorria. Durante muitos séculos certas ordens místicas guardaram conhecimentos sobre o passado restritos pelo SISTEMA, à moda antiga, isto é, imersas em rituais, simbolismos, mitos e lendas, que compunham autênticas religiões. Havia grupos de sacerdotes que, entre outras coisas, detinham o segredo da oração de invocação da deusa GRADIVIND. No entanto, com o tempo, com a paz perpétua, com a insistente segurança e estabilidade, ameaçada no máximo em aspectos secundários e em contextos limitados, terminaram por minar as bases psicossociais que sustentavam aquelas tradições religiosas, de modo que com o abandono de seus mitos e ritos, a chave para o acesso do Sistema GRADIVIND acabou se perdendo.

Era provável que em algum lugar alguém ainda tivesse essa informação, guardada em recursos não acessíveis por redes de comunicação. Mas até agora ninguém se manifestara a respeito, e mais e mais as notícias se espalhavam e diversas naves começavam a deixar o planeta, por precaução. Ielg sabia onde estava a solução, no entanto, esbarrava agora em outro problema que não conseguia compreender.

- Mas é tão simples! Só precisamos ir até a cidade flutuante! Eu estive lá por meses! Eu mesmo guardei o cristal que tem a oração! Sei exatamente onde está!

- Não é nada simples Ielg. Nossas naves não podem ira lá!- Comentou Dir-Zá. E outra tetrahumana completou. - Não nos arriscamos a ir até aquele lugar. É um local terrível, amaldiçoado! Muito perigoso!

- Aahh... Não é possível que estejam se arriscando à completa destruição por... bobagens... - Sem acreditar no que ouviu, preferiu não discutir e propor uma solução simples. - Mas está bem. Me arranjem um planador que eu vou!

- Também não é tão simples! - Interrompeu Dir-Zá. - Nessa época do ano os ventos são muito mais traiçoeiros do que no tempo em que você esteve lá. Não vai conseguir se aproximar!

- Use um corpo com asas! - Sugeriu uma outra tetrahumana, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia e simples a fazer. Mas só de imaginar isso Ielg sentiu seu estômago virar. A idéia de ter uma configuração corpórea estranha como essa era simplesmente insuportável. Sentia um calafrio, um pânico só de pensar nisso. Havia se impressionado demais com a Psicologia Corporal reichiana para desconsiderar a certeza de que ter um corpo alienígena traria anomalias imprevisíveis à sua mente. E nem precisou dizer, suas expressões deixaram isso claro.

- Percebeu Ielg? - Perguntou-lhe Dir-Zá. - Notou como você se sentiu ultrajado agora? Entenda que é algo bem pior que sentimos ante a idéia de ir até aquela cidade! Tente nos entender.

- De qualquer modo ele não conseguiria usar um corpo com asas, nem mesmo com um programa neural implantado ele poderia aprender a voar tão rápido. - Completou um dos extraterrestres. E enquanto diversas discussões locais surgiam, Dir-Zá e alguns dos humanos como ele tentavam lhe explicar a situação. Os porquês de tamanha reticência com relação ao Vale e a Cidade Flutuante. O principal motivo era que ocorria não apenas interferência eletromagnética, mas também gravitônica, o que significa que ali era um dos poucos lugares onde o SISTEMA não podia agir. Não podia proteger uma pessoa, e onde até mesmo a segurança do cérebro ficava em risco. Em suma. Um dos poucos locais onde a morte à moda antiga estava em liberdade!

Começando a entender melhor os diversos pormenores do problema, Ielg tentava pensar em alguma solução quando finalmente Ei-Kis falou, em voz não muito alta, mas que silenciou a todos.

- Eu vou levá-lo. Tenho um excelente corpo alado guardado que não uso há algum tempo.

Ielg a olhou de cima a baixo. Impressionado. Por um momento relevou todos os problemas que tivera com Ei-Kis, como se não passassem de birras de criança mimada. E logo outras tetrahumanas se voluntariaram para ajudar, inclusive uma que já estava com longas asas. Ao que parecia, a bravura não havia sido eliminada da humanidade, e como sempre, ao menos na versão prudente, era virtude de uma minoria. Não demorou a notar também que havia algo em comum às voluntárias, e que pessoas como Ei-Kis eram o que havia de mais próximo ao conceito de guerreiras.

Não só isso. Entendia melhor aquela cultura agora. Nem todas eram de fato supersticiosas. Em conversas mais particulares, alguns não tinham problemas em ouvir e pronunciar o nome GRADIVIND, embora, estranhamente, todos, mesmo os aparentemente mais científicos e menos supersticiosos, insistiam em dizer que a Deusa da Gravidade não era algo que pudesse ser descrito como uma mera função do SISTEMA, um programa, ou coisa que o valha. A sensação que passavam é que a deusa era estranhamente “real”! Num sentido que ele ainda não se atrevia a imaginar.

Dir-Zá ficou preocupadíssima. Não só Ielg como Ei-Kis, sua “família”, se arriscariam, e queria ir também, mas sua companheira foi taxativa. Ela não tinha o perfil adequado a isso. Era a sábia, a intelectual, a romântica, a amiga, e por isso mesmo, à sua maneira, Ei-Kis a amava, o que deixou bem claro. Mas para uma empreitada de tamanho perigo, ela não preenchia o perfil necessário.

E o homem do passado ficou ainda mais surpreso quando seu antigo desafeto afirmou que, por outro lado, Ielg já lhe provara definitivamente que era alguém com quem poderia contar numa missão perigosa.

De Volta à Laputa...

...onde tudo começou. Contemplou Ielg ao avistar, ainda de longe, a misteriosa cidade flutuante. Ali ele começara verdadeiramente sua jornada científica sobre o novo mundo. Ali ele dera os primeiros passos numa nova compreensão, em sua própria Quinta Formação intelectual.

Uma nave os trouxera até os domínios do clã Zá-Kis, onde Ei-Kis trocou de corpo. Outra nave os levara até um limiar seguro do Vale, e ela agora carregava Ielg, segurando pelos ombros com os dedos dos pés, enquanto ruflava suas poderosas asas sobrevoando o lago. Ao seu lado, 3 outras tetrahumanas faziam a escolta, e outras estavam a caminho. Ao longe, diversas naves flutuavam ao redor do Vale, prontas para disparar ao sinal de qualquer problema, e Dir-Zá havia desaparecido após abraçar efusivamente seus companheiros, e dizer que iria buscar uma forma direta de ajudar.

Ielg admitiu que realmente teria sido muito difícil chegar à Laputa com o planador. Os ventos agora não circulavam em torno da cidade voadora, mas sim sopravam de forma caótica, em diversas direções, gerando vários mini ciclones que tornavam o trabalho alado de suas companheiras, principalmente Ei-Kis, bastante difícil. As outras “abriram caminho” pelo ar, tentando barrar as ventanias para que a dupla principal alcançasse seu objetivo, mas a situação se tornava cada vez mais inóspita. Já cansada, Ei-Kis pediu, com gestos lançados ao alto, a uma nave no espaço que abrisse uma trilha de vácuo, e pouco depois um formidável raio disparado das alturas gerou uma onda de choque que abriu caminho entre as nuvens, gerou chicotes de ar e atingiu o lago levantando uma enorme coluna de água fervente.

Então elas aproveitaram a breve calmaria, e a breve corrente favorável que se formou em direção ao rastro do raio, e numa manobra graciosa conseguiram enfim vencer as barreiras aéreas e pousaram no solo firme da cidade flutuadora.

Finalmente ele estava de volta à Laputa. Era como voltar para casa, e ficou tão emocionado que até se esqueceu da tortura que fora o vôo que acabara de enfrentar, e por pouco não o fizera desistir da empreitada. E por falar em tortura, fora essa uma das coisas que ficou sabendo a respeito de porque a cidade flutuante era tão temida. -”Sabe um dos motivos pelo qual ninguém gosta de vir aqui Ielg?” - Perguntou-lhe Ei-Kis, e respondeu. -”É um dos poucos lugares do mundo onde as pessoas ainda podem ser torturadas. Pois o SISTEMA não pode lhe socorrer. Muitos sofreram nesse lugar, e essa história nos assombra até hoje.”

Mesmo enjoando e sentindo frios na espinha com o conturbado vôo, ou talvez exatamente por causa disso, ficou imaginando o quão estranho era pensar que um local como aquele pudesse ter servido a acontecimentos tão vis. E não era só isso. Os cérebros móveis tinham dificuldades de vôo, e não podiam ser automaticamente orientados pelo SISTEMA para um local seguro. Ao se lembrar daqueles esqueletos com a cabeça aberta, pensou então que muitos dos cérebros que escaparam podiam ter perecido definitivamente. Nesse sentido, era inegável que a cidade flutuante era um local sinistro! Feliz ele fora de não saber disso antes, e ter vivido tão tranquilo naquele local, por tanto tempo.

Lá estavam então os 5. O homem do passado e suas 4 enormes companheiras. Havia um padrão regular nos corpos com asas. Eram sempre muito magros e compridos, e mais altos que a média, entre 2,5m e 3m! Principalmente devido as pernas compridíssimas, que compensavam a ocupação dos braços capturando ou pegando objetos com seus fortes dedos, que em alguns casos eram 3! Por sua vez, os braços eram independentes das asas, motivo pelo qual era tão difícil aprender a controlá-los, visto ser um par de membros extras. Podia-se fazer corpos cujas asas fossem evoluções dos próprios braços, que eram bem mais fáceis de controlar. Mas as tetrahumanas preferiam ter os braços livres para manusear objetos quando não estavam voando, e quando o faziam, era fácil ajudar com os braços, segurando nos “pulsos” das asas, dando, de longe, a impressão de que braço e asa eram um único membro.

As asas, enormes, eram pterodátilas, o que somado as cabeças de formato mais aerodinâmicos tornava a aparência daquelas criaturas ainda mais assustadora. Enquanto caminhava rumo ao seu antigo local de estudos onde guardara o cristal com a oração, observou suas aliadas e imaginou que susto não teria se tetrahumanas como elas aparecem ali nos tempos em que ele ainda era um solitário num mundo novo. Outro detalhe tornava suas companheiras ainda mais exóticas. Todas tinham um pequeno cristal na testa, como um terceiro olho, por onde poderiam disparar seus LASERs cerebrais sem ferir-lhes o crânio.

Além dos mais, todas também tinham seus pontudos e protuberantes seios à mostra. E ele nem quis saber o quê eles poderiam disparar. Com tudo isso, se sentiu bastante seguro em ter uma escolta tão impressionante, e resoluto, avançou porta adentro num dos prédios, mas logo sentiu um calafrio ao ver que alguém já visitara o local recentemente. Havia várias portas abertas, e o conteúdo de muitas salas havia sido revistado.

- Estiveram aqui! - Disse Ielg, e todos ficaram em alerta máximo. Chegaram então ao cômodo pretendido por ele, que também havia sido alterado. No entanto, a revista tinha sido pouco invasiva, e Ielg sentiu um enorme alívio ao ver que, numa certa gaveta, num sub compartimento, o objeto que procuravam ainda estava no lugar.

Ele coletou o pequeno cilindro e o colocou numa base sobre a mesa, e ao abrir a janela e deixar a luz entrar, amplificada por um sistema de lentes, a imagem da Deusa GRADIVIND surgiu diante de todos. Algumas de suas companheiras fizeram uma breve reverência, e ele se apressou a rotacionar o cilindro fazendo a vasta quantidade de informações subir sobre a imagem, até por fim chegar ao local desejado.

Sorrisos sinceros e deslumbrados iluminaram o rosto de suas aliadas de uma forma que não combinava com suas aparências um tanto demoníacas. Ei-Kis em especial, deixou transparecer uma expressão linda! Como uma criança fascinada com alguma coisa que acabara de descobrir. Tanto que Ielg ficou desconcertado ao descobrir, de súbito, que gostava dela! Como se de repente lembrasse de outras coisas que não os acontecidos desagradáveis. Por um instante ficou preso numa sensação quase surreal e só saiu quando percebeu que não demoraram a começar a recitar a oração. Ele também conseguia lê-la, ainda que com certa dificuldade, visto que a escrita continha caracteres que não eram mais utilizados. Mas de qualquer forma, a palavra mais misteriosa de todas, como seus companheiros esclareceram, era nada menos que o nome da deusa, que naquele caso em especial, podia sim ser pronunciado, e que ele podia fazê-lo com muito mais facilidade que elas.

Não perderam tempo, e de imediato começaram a ler a oração em coro. Ela começava invocando o nome GRADIVIND, enfeitado por títulos comparáveis a “divina”, “santíssima” ou similares, e então, basicamente, pedia, implorava, pela intervenção benéfica da deusa para proteção da humanidade, num momento de grande perigo.

- É tão simples. - Disse Ei-Kis, ainda conservando aquele semblante que confundia Ielg.

-Ótimo! - Disse ele recolhendo e guardando o pequenino cilindro. - Vamos voltar imediatamente. - E nem precisou dizer que continuassem repetindo a oração. A idéia agora era voltar e levar a todos os demais aquela “chave de ativação”, para que, o mais rápido possível, o planeta inteiro o estivesse recitando, ativando o Sistema GRAVIDIND. Dali, era muito difícil que o SISTEMA pudesse “escutar” a súplica, mesmo assim era prudente continuar recitando o máximo possível, e assim seguiram pelo corredor rumo ao ar livre.

Antes que saísse pela porta, porém, leu no rosto de uma de suas companheiras que havia algo errado, e ao se aproximar dela viu no horizonte algumas outras criaturas voadoras se aproximando. De algum modo, suas companheiras souberam de imediato que não eram aliadas. Estavam vindo criar problemas.

- São elas! As inexistencialistas! - Disse a tetrahumana. - Vieram tentar nos deter!

Ainda estavam longe, e eles tinham uma boa dianteira, pois voariam para o outro lado. - Vão agora! Voem separadas e continuem recitando! - E 3 delas fizeram exatamente isso. Lançando-se aos céus, divergindo em 3 caminhos que no entanto acabaram alterados pelos chicotes atmosféricos em volta de Laputa. Ei-Kis, no entanto, ficou ali.

- Não posso deixar você! - Disse ela num tom amigável, mas preocupado.

- Mas também não pode me carregar! Não conseguiria escapar delas!

- Conhece algum local seguro? - E quando ela terminou de falar, ele teve uma idéia um pouco diferente. - Na verdade conheço algo melhor.

Seguiram corredor adentro, mas num caminho totalmente diferente do anterior. Após passar por diversos cômodos e corredores que ele conhecia bem, chegaram enfim numa sala onde havia algo que parecia um telescópio, apontado para uma cúpula fechada no teto. Ele pegou o pequenino cilindro e levou algum tempo conectando vários tubos até ligar tudo no aparelho, enquanto Ei-Kis, orientada por ele, abriu a cúpula do teto.

Era um tipo de projetor, capaz de amplificar imagens e projetá-las nos céus. Ele o utilizara uma única vez antes, quando acidentalmente lançou um raio de luz que atingiu às nuvens e depois projetara algumas imagens. Mas depois cancelara o procedimento devido a um temor repentino de chamar atenção.

- Podemos projetar a Imagem da oração nos céus! E assim nossos aliados poderão vê-la mesmo que nossas companheiras não consigam escapar do Vale! - Ei-Kis concordou com ele, parecia uma ótima idéia, mas também estava preocupada com o que fariam quando suas inimigas chegassem.

Ele conseguiu. A imagem da Deusa GRADIVIND foi projetada ao alto pelo engenhoso dispositivo que amplificava luz natural e a canalizava como um holofote holográfico. De longe, todos puderam ver uma imagem tênue surgir nos seus, e em seguida as informações, até por fim, a oração. Ielg só não tivera certeza de sucesso devido a algumas obstruções causadas pelas nuvens, que dependendo do ângulo, poderiam arruinar a leitura do texto.

Mas não tiveram muito tempo para pensar nisso, subitamente, a sala foi invadida por uma tetrahumana hostil. Ela nada disse, apenas inflou os seios, e Ei-Kis saltou para a porta arrastando Ielg com ela.

FOGO! Aquela criatura cuspiu fogo dos seios! Ou melhor, lançou algum tipo de líquido de inflamação espontânea, cujas flamas varreram toda a área da sala. Aqueles órgãos que outrora amamentavam crianças e encantavam os homens haviam sido reconfigurados para novas e totalmente avessas funções! Ela parecia não saber bem o que queimar, e talvez por isso queria destruir tudo, na tentativa de deter a projeção. Por sorte a maior parte dos materiais, e da própria estrutura, não eram combustíveis e eram bastante resistentes.

Mas Ei-Kis, num movimento rápido, reentrou agachada na sala e da própria testa disparou um LASER que atingiu a inimiga, pondo fim ao seu espetáculo pirotécnico. Estar fora da influência do SISTEMA também tinha suas vantagens, mas naquele momento, suas outras companheiras eram vítimas das desvantagens.

De uma janela, Ielg e Ei-Kis puderam ver que elas foram cercadas por uma verdadeira esquadrilha de interceptação de tetrahumanas pterodátilas, e começava a ser travada uma batalha aérea. O problema era que, de fora do Vale, O SISTEMA não permitiria que as naves disparassem contra as inimigas inexistencialistas, e se tentassem se aproximar demais, provavelmente deixariam de funcionar devidamente antes que conseguissem sair da influência do SISTEMA.

Por sorte, mais aliadas vinham chegando, e LASERs cerebrais começavam a varrer os céus numa batalha confusa, onde Ielg já não mais sabia quem era quem. Ei-Kis sabia, mas não tinha tempo de dizê-lo a Ielg. Havia saído pela janela e subido na cúpula de projeção, que fora obstruída por outra inimiga, removendo a imagem do ar. Lá no alto, elas lutaram, Ielg foi para o lado de fora e procurou algum meio de ajudar. Quase foi atingido por jatos de espuma aderente que Ei-Kis tentara acertar na adversária, que se desviou, e antes que pudesse se preocupar novamente com isso, foi arrebatado do chão.

Uma inimiga o pegara, agarrando-o pelos ombros. Tentou, mas não conseguiu se livrar, o chão abaixo de si foi se afastando, e viu Ei-Kis e a outra se atracando após tentarem mutuamente se atingir com seus LASERs. A sua captora se afastou da cidade, mas foi pega pelas traiçoeiras correntes de ar, e antes que se dessem conta, foram jogados no chão de uma passarela que circundava a cidade. Ielg se aproveitou da posição desvantajosa em que sua adversária caíra e aplicou-lhe um duro golpe na cabeça, derrubando-a antes que pudesse se levantar de novo.

Mas logo vira que fora uma má idéia. Ela apenas se desequilibrara, mas nada mais dava a impressão que estivesse seriamente machucada. Ele saltou então uma pequena mureta e correu rumo a um dos prédios. A tetrahumana veio atrás. Entrou porta adentro e sua perseguidora perdeu tempo se esgueirando com as asas pela entrada, permitindo-o abrir vantagem rumo a uma escadaria que descia para um nível inferior da cidade.

Conhecia um lugar onde poderia se trancar e que duvidava que sua oponente seria capaz de pegá-lo. Mas não queria isso, corria para uma seção de instrumentos onde pretendia conseguir algo que servisse como arma. Poria a nocaute aquela tetrahumana, tal como fizera antes com Glória, e depois correria para ajudar Ei-Kis.

Mas não foi o que aconteceu. Conseguira uma barra de madeira, muito resistente, e esperara numa emboscada. Mas quando desferiu o golpe, sua adversária se desviou e num único golpe o desarmou. Empurrando-o na parede, inchou os seios e disparou uma quantidade assombrosa de espuma pegajosa, e em poucos instantes, aquela substância expansível colou-o na parede.

A tetrahumana apenas ficou olhando para ele, com uma expressão tão inumana que se falasse, causaria espanto, ainda que suas feições fossem algo menos incômodas dos que a da maioria naquela configuração corpórea. Ela só esperava, e então Ielg ouviu o som de passos, e vozes conhecidas ecoaram pelo corredor.

Eram o Dr. Ítalo e Glória.

Corpos Diferentes.

Glória não era tão bonita quanto na simulação, mas estava melhor que naquele outro corpo que ele conhecera. Estava mais alta e mais esbelta, e se apressou em dizer. - Antes de tudo, acredite que não guardo nenhum rancor do que aconteceu. Está tudo bem para mim.- Já Ítalo parecia mais baixo, mais encorpado e mais jovem, e o mais estranho, algo nele lhe lembrava fortemente uma pessoa conhecida. - E eu só quero lhe agradecer Glei.

Inesperadamente amigáveis, aquilo só poderia significar duas coisas. Ou ainda precisavam muito dele, ou definitivamente em nada precisavam mais.

- Tentei de mil e uma formas entrar na rede gravitônica e assumir o GRADIVIND. Mas só conseguirei agora, graças a você. Que acabou de ativá-lo, tornando o acesso possível! - Fez um gesto displicente e no ar surgiu uma imagem transparente, onde começou a manipular, a princípio irritantemente alegre, mas aos poucos, desanimando. - Bem... Sim. O acesso é possível mas... Ainda preciso de sua ajuda.

Glória e a tetrahumana se entreolharam e Ielg não se conteve. - O que você acha que tenho que ainda possa lhe ser útil? Desista!

- Bem, meu amigo... - Disse o cada vez mais estranho contemporâneo de Glei. - Ainda preciso do terceiro termo da Equação Gravitônica para penetrar no GRADIVIND.

- Mas... Você não tinha já a fórmula completa!?

- É… Pensei que tivesse. Mas...

- Mas O SISTEMA é mais esperto do que pensávamos. - Interrompeu Glória.

- De fato minha querida. Os dois primeiros termos estão corretos, mas o terceiro era falso! Uma armadilha do SISTEMA, para detectar qualquer tentativa de fraude. Fomos...

- Desmascarados! - Mais uma vez interveio Glória. - Por sorte tivemos tempo de nos refugiar aqui no Vale. O SISTEMA já paralisou nossos aliados lá fora.

Então, como se aquilo lhe tivesse aberto a percepção, Ielg começou a ouvir os sons externos se intensificando, como se um combate entre um punhado de tetrahumanas estivesse se transformando numa batalha entre exércitos. A tetrahumana que o capturara parecia ansiosa, prestando atenção aos sons distantes que chegavam pelo corredor. Ielg fingiu não se preocupar, e ainda tentava entender. - Mas vocês já estão movimentando naves com tecnologias anti gravitacionais! Já lançaram inversores!

- Conseguimos dominar a Levitação e a Deflexão Gravitacional, e parcialmente a Amplificação, mas até agora não temos o parâmetro correto para o Inversor. - Respondeu Ítalo. - Precisamos do terceiro termo da equação!

- Nesse caso fico feliz em não poder ajudar. Pois se vocês não têm a resposta, muito menos eu!

- Ahh... Tem sim… - Ítalo falou de modo que parecia saber o que dizia. Então se aproximou de Ielg, tocou seu rosto e olhou bem nos olhos. - Você sabe sim. Está aí! No seu cérebro, em algum lugar, muito bem escondido. Mas você só tem que se lembrar.

Então, com os olhos fixos no homem que parecia se revelar um tanto perturbado, Ielg sentiu algo estranhíssimo. Como se um estalo lhe ocorresse, como se de repente um alçapão tivesse sido aberto em sua cabeça. E da convicção de que não fazia idéia do que Ítalo falava, passou para a perturbadora sensação de que havia algo em si mesmo que o surpreenderia.

Os sons lá fora se intensificaram, reverberando por todo o ambiente. Ielg sabia que dois grupos grandes haviam chegado e deviam estar em franca batalha. A tetrahumana, ansiosa, disse algo à Glória, e ela parece ter lhe autorizado a sair para se juntar a suas companheiras. Ele pensou em Ei-Kis, e se surpreendeu novamente ao sentir o quanto estava preocupado com ela, e então, como se isso também tivesse revelado um outro significado especial, sentiu um verdadeiro chiado em sua mente, como se algo estivesse surgindo, uma visão, uma iluminação.

- Você tem que se lembrar...

- Por favor Ielg! - Disse Glória - Nos ajude.

E então aconteceu. Uma súbita e intensa explosão mental, brevemente dolorosa, mas logo veio o alívio, produzindo então aquela incrível e maravilhosa sensação de descoberta, de ter feito a grande conexão, o efeito “eureka”, tão conhecido dos intelectuais. E a equação gravitônica veio toda à sua mente, clara, compreensível, perfeitamente coerente. E não foi só isso. Diversos flashes começaram a lhe ocorrer, como se de repente se lembrasse de coisas há muito esquecidas. Via imagens de estar trabalhando na fórmula, com seus quadros digitais repletos de esboços e gráficos sobrepostos que iam se acumulando. Se lembrou dos esforços em sua cadeira de rodas, tão intensos que por mais de uma vez ele se distraiu e acabou caindo. Se lembrou do quadro com uma foto de sua família. Uma foto que, porém, tinha algo errado, e quando tentou descobrir o que era, a imagem lhe fugiu, como se tivesse sido bruscamente puxada.

- Se lembre! Vamos! - A voz de Ítalo o trouxe de volta. A memória da equação estava lá, clara, nítida, e agora, mais do que nunca, ele tinha noção das suas consequências.

- Ielg... - Interveio Glória. - Descobrimos que você deve ter a fórmula. Seu clone, a cópia que usamos, foi desmascarado pelo SISTEMA porque ele deu falta de algumas estruturas no seu cérebro. E quando examinamos seu mapeamento cerebral com mais detalhes, vimos que toda vez que pensava no assunto, suas sinapses sofriam um desvio neural, típicas de quem teve a memória alterada! E se o SISTEMA já sabia da alteração, então foi ele mesmo que fez! Sua mem...

- Eu sei.

- !!! - Glória e Ítalo se entreolharam. Como se, embora esperassem que ele se lembrasse, não pensassem que seria tão rápido.

- Você lembrou? - Perguntou ele.

- Sim. É… É incrível. É como se tivesse estado aqui o tempo todo!

- Então nos diga!

Ielg subitamente voltou a si. Se deu conta novamente de sua situação. Estava ali, imobilizado diante de seus adversários, e agora que percebera que a espuma colante começava a diminuir, e considerando que a tetrahumana se fora, começou a pensar em algum modo de sair daquela situação.

- Nem pense em me enganar. - Ítalo fez um gráfico luminoso surgir à frente dele com a fórmula, esperando somente o último termo. - Saberei de imediato se o termo está correto ou não. Vamos... Diga.

Só havia uma coisa a fazer, ele pensou. - Dizer pra quê?

Pela aniquilação de tudo Glei! - Disse ele. - É a única coisa que nos interessa.

- Deixe-me ver se entendi. Você está me pedindo que lhe dê, de mão beijada, a chave para aniquilar toda forma de existência, incluindo a minha própria vida, e nem sequer pretende me dizer por quê?!

- É a libertação de todo o sofrimento Glei! - Interrompeu Glória

- O fim da maldição! Da agonia da existência! - Hesitou o Dr, - Eu... Eu não sei se você entenderia.

- Temos que explicar! Ele é capaz de entender sim!

- Ele sofreu demais para entender. Não vai...

- Mas do que diabos estão falando!? Que estória é essa!? Acham que não sou capaz de entender que a vida pode ser uma desgraça!? Como ousam falar disso comigo!? Eu sei muito bem que pode!!!

Glória lhe lançou um olhar piedoso. E após uma pausa, como se tivessem todo o tempo do mundo. Começou a explicar, embora a maior parte ele sempre soubera, e agora, com a expressiva recordação de novos conteúdos, sabia ainda mais.

OS INEXISTENCIALISTAS...

...foram o estágio final, lógico e natural de uma vertente filosófica que remontava à antiguidade, mas que fora obscurecida na Idade Média, só tendo renascido ao final da Idade Moderna e ganhado força maior na Idade Contemporânea. Na realidade, retirava sua força exatamente da melhora das condições existenciais e dos níveis educacionais.

A idéia em si era muito simples, e ao menos parcialmente intuitiva. A existência não tinha valor, a vida era ruim, sempre trágica, inexoravelmente em direção à morte. Não se tratava de apontar tais e quais tragédias pessoais ou misérias pontuais, mas sim do fato que toda e qualquer forma de existência era essencialmente má, de modo que sempre seria preferível jamais ter existido. Ainda que inicialmente chocante para um leigo, essa linha de pensamento, outrora conhecida como Pessimismo Essencial, tinha base em alguns pontos bastante fortes.

Embora houvesse uma constante tensão entre o prazer e a dor, a felicidade e o sofrimento, a vida e a morte, nada mudava o fato de que esta última prevalecia ao final. Por mais longa, intensa, produtiva, generosa ou estimulante que fosse a existência de alguém, seu destino final seria sempre a morte, quer fosse repentina, inesperada, violenta, frustrando então o futuro, ou lenta, dolorosa, por meio de envelhecimento ou da doença prolongada.

Apesar disso os seres humanos quase sempre preferiram viver, sendo raros os suicidas, e a maioria jamais se dava conta do plano mais amplo, trágico, de que a existência sempre seria derrotada pela morte, pela senescência, pela degeneração e entropia. E o principal motivo dessa inconsciência sobre o quadro geral, dessa falta de percepção, era, paradoxalmente, o sofrimento pontual.

A vida equipa os seres com uma desesperada pulsão para continuar existindo, fazendo-os, em geral, se agarrar a própria existência por pior que ela seja, e não raro com ainda maior intensidade quanto pior ela seja. Não é a toa que as sociedade mais desenvolvidas, organizadas e avançadas costumavam apresentar taxas de suicídio maiores, pois as melhores condições de vida viabilizam a reflexão e eliminavam a ilusão de que a Agonia Existencial, o conceito central do Inexistencialismo, seja resultado de sofrimentos ocasionais. Quando se apercebiam que mesmo tendo satisfeitas todas as suas necessidades a sensação de vazio permanecia, que mesmo tendo as melhores perspectivas pela frente a morte era a única garantida e irrecusável, e que por mais abastados e bem sucedidos que fossem sempre estavam à mercê do sofrimento, inevitável para qualquer ser existente, então a idéia da tragédia existencial não podia ser mais negada.

Isso, no entanto, jamais teria sido um grande problema não fosse ter sido alçado a um outro nível. Estava em poder de qualquer pessoa a auto destruição, de modo que a tragédia da existência, diferente da maioria dos outros problemas, era essencialmente de fácil solução. Mas dar fim ao sofrimento é apenas a confirmação máxima de que a existência não valia a pena, então surgia a questão: por que trazer outras existências à tona? Ou seja, porque se reproduzir, e transmitir a maldição da vida aos inocentes futuros nascituros? Não seria muito mais simples se abster disso eliminando pela raiz toda possibilidade de sofrimento futuro?

É claro que, ao longo da história, esse pessimismo essencial sempre teve inimigos. O segundo maior deles foi nada menos que as religiões. Elas buscavam impedir qualquer possibilidade de por fim à agonia existencial, condenando o suicídio e obrigando a reprodução. Porquanto fossem fortes, não havia muita chance do pessimismo chegar ao ponto de pregar a inexistência, muitíssimo menos ao nível que, se levado a contento, poria fim a toda a espécie humana.

Mas as religiões enfraqueceram com o progresso do conhecimento e das condições de vida, e passaram a, por outro lado, servir de ainda maior apoio aos pessimistas que as apontavam como nada menos que uma reação auto ilusória para resistir o máximo possível a uma confrontação honesta e racional com a realidade. A medida em que caíam, o pessimismo essencial passou a dar lugar ao Inexistencialismo, que ganhava mais e mais força à cada Formação da Humanidade, ainda que com altos e baixos.

Mas ao mesmo tempo que o Inexistencialismo crescia, crescia também seu maior e mais forte inimigo. O Vitalianismo! Ou, Otimismo Vitalista Puro. A postura de amor à existência, livre das ilusões religiosas, que não via problema algum nos riscos e desafios da vida pelo fato de que a felicidade e o prazer ainda podiam ser imensamente superiores e mais relevantes do que seus opostos. Que problema poderia haver numa existência repleta de felicidade, equilibrada, e que não se iludisse sobre seus próprios limites? Que mal poderia haver no fato de que inevitavelmente ocorreria a morte, se por um tempo muito maior poder-se-ia usufruir ao máximo da existência? O fato de uma viagem de lazer chegar ao fim elimina o valor dessa viagem?

E o mais importante, os Vitalianistas tinham ao seu lado um argumento ainda mais forte, que era a questão da escolha. Quem existe pode optar por não existir, mas o contrário é evidentemente impossível. Então, trazer alguém a vida não poderia ser considerado uma maldição pelo simples fato de que a saída da mesma estaria acessível a partir do momento em que a agonia existencial se manifestasse, caso o fizesse.

Sem negar todo o risco da existência, e todos os perigos que poderiam levar ao sofrimento, os Vitalianistas, e o senso comum em geral, também apontavam que a existência seria, sempre, sujeita à dor, e que cedo ou tarde qualquer ser pensante desejaria deixar de existir, caso sua vida se prolongasse o suficiente. Para alguns bastavam poucos anos, para outros, alguns séculos. Com o aumento progressivo da prolongação da vida, isso seria confirmado, assim como também o fato de que querer deixar de existir a partir de um determinado momento não depunha contra a existência em si. Fora bom enquanto durara. Poder-se-ia amar todo o passado, glorificar o presente e estar plenamente satisfeito, e portanto, abdicar do futuro. Isso testemunhava que a existência valia sim a pena. Por que negar esse direito às próximas gerações?

Embora a maior parte da sociedade ainda permanecesse à margem dessa discussão, a polaridade entre Vitalianistas e Inexistencialistas se agravou com o tempo, passando a haver nítidas hostilidades. Incapazes de convencer a humanidade de que o auto extermínio por meio da não reprodução era um dever moral, e movidos por um legítimo sentimento de piedade pelos que sofrem, e ou por um ódio inato e irrefreável a si próprio a todo o gênero humano, alguns segmentos Inexistencialistas começaram a se articular na forma de extremismos diversos, desembocando no bioterrorismo.

Surgiram grupos que desenvolveram armas bacteriológicas esterilizantes, e tentaram a todo custo levar sua auto proclamada nobre causa adiante. Nessa época, os Inexistencialistas ainda dirigiam sua atenção à existência sensciente humana. Mas os Vitalianistas viriam a convercer-lhes de que isso era inútil. Apesar de tudo, os Inexistencialistas tinham tanta repulsa ao sofrimento quanto qualquer outra pessoa, e não se poderia negar-lhes que, por mais exótica que fosse sua filosofia, ainda assim era essencialmente bem intencionada.

O consenso a que se chegou, por um tempo, era que o mundo havia atingido um estágio de baixo sofrimento em comparação com períodos históricos prévios, e ainda que isso viabilizasse a percepção da agonia da existência, não era difícil concordar que uma era onde a quase totalidade das crianças que vinham ao mundo tinham garantidas suas possibilidades existenciais era melhor que quando imperavam taxas de mortalidade e sofrimento infantojuvenil em massa, onde só uma pequena fração dos humanos conseguiam passar pelo gargalo das seleções natural e artificial a ponto de atingir um maior acesso as relativas felicidades que a vida podia proporcionar.

Assim, os Vitalianistas conseguiram dividir os Inexistencialistas apontando que mesmo que a espécie humana desaparecesse, inevitavelmente outra espécie sensciente terminaria surgindo, e o ciclo do sofrimento, o Samsara da agonia existencial recomeçaria. Até houve aqueles que pensaram que então seria melhor piorar novamente as condições de vida de modo que os sofrimentos pontuais nublassem a percepção da agonia da existência, e até promoveram alguns atentados visando destruir a infra estrutura humana, mas terminaram por ser um grupo minoritário. Outros acabaram por admitir que bastava assumir um modo de vida inexistencialista, abstendo-se de reproduzir e perpetuar características hereditárias que pareciam favoráveis ao desenvolvimento da agonia existencial, cientes de que, com o tempo, isso provavelmente levaria a inexistência de seu modo de sentir, tentando eliminar os “genes” da percepção da Agonia da Existência.

Outros porém, radicalizaram ainda mais o movimento, e passaram então ao resultado óbvio de que não bastaria eliminar apenas a humanidade, mas toda forma de vida, cujo sofrimento, ainda que não incluísse a percepção da agonia existencial devido a irracionalidade, em compensação não possuía o recurso consciente do suicídio, e ainda podia experimentar todo o tipo de miséria, e, mais importante, sempre teria o potencial para engendrar uma nova espécie sensciente novamente. Pior, não bastava eliminar a vida, pois a mesma poderia surgir novamente, e assim, ter-se-ia que eliminar suas próprias condições de ocorrência. Em suma, era preciso Aniquilar por completo todo o Universo!

Nesse ponto, esse Inexistencialismo Radical Aniquilacionista passou a ser considerado a maior ameaça à espécie humana em todos os tempos, e passou a ser combatido rigidamente por todas as sociedades e governos. A conciliação parecia impossível, visto que, evidentemente, considerar a existência infeliz ou não sempre será, no fundo, um julgamento de valor subjetivo. Puní-los só aumentava sua angústia, beneficiá-los também! E curá-los só seria possível com sua autorização e colaboração, o que raramente acontecia.

Os inexistencialistas tentaram muito, mas jamais conseguiram convencer a maior parte da população de que sua pulsão existencial, seu amor à vida e alegria predominante estivessem cognitivamente erradas. Acabaram então por ser perpetuamente culpados da mais terrível de todas as contradições. Objetivar uma subjetividade e lançá-la sobre todos os demais, convencidos de sua superioridade intelectual e condenando toda a espécie humana, inclusive as incontáveis gerações futuras, ao aniquilamento, pelo pressuposto de uma subjetividade superior, como que iluminada, como se fossem os próprios salvadores da humanidade, levando todos ao paraíso do Nada.

Os debates cessaram. Os diálogos se esgotaram. Restou apenas uma perpétua guerra fria, com picos de guerrilha, inextirpável da civilização, sempre pronta a lhe ameaçar e usar todos os seus recursos tecnológicos para fazer vencer um juízo de valor que, curiosamente, nega o próprio valor de seu fundamento. O valor da existência.

A Agonia da Existência...

...não era exatamente algo que Ielg tivesse certeza de já ter propriamente experimentado em toda sua plenitude, visto ter sofrimentos mais pontuais com os quais se ocupar. Mas não tinha dificuldades em imaginá-la, e em grande parte conseguia compreender parcialmente o ponto de vista dos Inexistencialistas.

- Oh... Pela Deusa GRADIVIND! Vocês podem solucionar todo esse sofrimento agora mesmo! Matem-se e deixem os outros em paz!

- Interessante você dizer isso Glei, pois essa possibilidade foi exatamente o que nos foi tirada pelo SISTEMA! - Disse Glória, que parecia estar tomando a liderança no diálogo. - Outrora ao menos tínhamos direito ao suicídio, agora, até isso é extremamente difícil! Mesmo aqui, onde O SISTEMA não pode nos controlar, destruir nossos cérebros continua sendo uma tarefa muito complicada! Sabemos como, mas é ultrajante que tenhamos tantas dificuldades apenas para exercer o direito inalienável a deixar de existir!

- E os procedimentos de apagamento de memória!? Esqueçam-se de quem são! Criem novas identidades!

- Acha que nunca tentamos?! - Respondeu a mulher, enquanto o Dr. Ítalo ia ficando cada vez mais retraído. - A maioria de nós já fez isso ao menos umas 3 vezes. Não adianta! A Agonia Existencial sempre volta! E é até melhor que assim seja, pois mesmo que ela desaparecesse, não muda o fato de que continuaria a ser existência, e não saber que sofre não elimina o sofrimento, apenas acrescentaríamos mais ignorância no universo de misérias da existência!

- Como... Como assim? Estou falando em deixar de sofrer! Deixar de sentir a tristeza, a dor, a miséria! Não em senti-la sem admiti-la!

- Acha realmente que faz diferença?

- O quê?! Mais que coisa Glória! Como pode não fazer?! E se eu amar minha vida, adorar todas as minhas aventuras, desejar existir mais?! Como isso não elimina o sofrimento!?

- É o seu caso?

Ele hesitou. Não se sentia plenamente honesto dizendo isso, mas sentia que a situação assim o exigia. - Sim! Quero viver! Você não vê nada errado em querer impor a mim uma noção da qual discordo em absoluto?! Principalmente quando isso tem condições tão extremas quanto a total aniquilação?! Nem a Inquisição Espanhola era tão autoritária assim!

- Não. É você que está errado! Está sendo falso. Não acredita realmente nessa felicidade. E mesmo que acreditasse ainda estaria errado. A miséria de existência não é uma questão de opinião, é um fato objetivo. Aliás, é o único fato objetivo!

- Então porque a maioria discorda? Por que O SISTEMA discorda?

- Auto ilusão. O impulso primário que fez a primeira célula rastejar na sopa primitiva, sem qualquer consciência, apenas pelo ímpeto irracional de consumir e levar adiante uma existência sem significado.

- Eu concordaria em outros tempos, mas não agora. A humanidade não é mais tão tola assim!

- Não?! Esqueceu-se de tudo o que você viu?! - Ela deu um suspiro e Ítalo finalmente a puxou pelo braço. - Glória! Não temos mais tempo! - No entanto, ela o ignorou.

- Não tentem me enganar de novo! O que vi foi uma civilização que deixou para trás o passado de desespero e dor, capaz de ser praticamente imortal, sem doenças, sem pobreza, plena de realizações e que pode...

- Glei!!! Chega! - Glória o interrompeu, e Ítalo voltou a importuná-la, apressado, como se os sons da batalha lá fora prenunciassem que a qualquer momento seus planos iriam por água abaixo! Ielg ouviu ela sussurrar a seu companheiro que precisava convencer com argumentos, e não pela força, que precisava demonstrar sua superioridade racional, confiante de que ele, de algum modo, cederia a inexorável e invencível verdade inexistencialista.

- Deixe eu lhe propor um desafio. Suponhamos que a existência seja essencialmente ruim, e nesse caso é nosso dever moral livrar qualquer ser dela. Por outro lado, suponhamos que a existência seja boa, e nesse caso, não seria nosso dever moral dá-la a todos os seres?

- A todos? Quer dizer, todos os seres possíveis?

- Ah, você está me entendendo. Se a existência for ruim, então devemos privar todos os seres do futuro de sua maldição, e isso é plenamente possível simplesmente aniquilando tudo. Mas se ela for boa, então deveríamos concedê-la a todos os seres do futuro, o que é evidentemente impossível! Teríamos que entupir o universo com cada possibilidade genética, dando a cada uma delas os privilégios atuais, o que resultaria numa quantidade virtualmente infinita de seres! Jamais haveria espaço para tantos! Se assim não for, então seríamos sempre injustos, concedendo a existência apenas a alguns poucos! Ou seja. Podemos ser plenamente justos eliminando a todos, deixando-os em iguais condições, ou podemos ser terrivelmente injustos concedendo-a apenas a alguns poucos. É a escolha entre um universo coerente, e outro incoerente. A única paz, a verdadeira igualdade, a única justiça suprema, é a do Nada!

Ielg se surpreendeu por um momento com a perspicácia da idéia, que deslocava a discussão noutro rumo. Isso, somado ao incômodo de ter sim, no fundo, alguma simpatia pela idéia da miséria existencial obrigatória, lhe deixaram um tanto abalado, e enquanto pensava, foi surpreendido, pela pergunta.

- Qual e o terceiro termo da equação gravitônica? - Ela disse no momento em que Ítalo reativou o painel flutuante. Tentando ganhar tempo para pensar, Ielg perguntou. - Como poderá entrar com a informação? A interferência aqui impede qualquer transmissão!

A resposta foi instantânea, com se Ítalo quisesse humilhá-lo por fazer uma pergunta tão tola - Esse sistema é ultrasônico! Envia uma mensagem para a bomba que está na parte inferior da estação, canalizando os sistemas de anti gravidade para um Inversor Gravitacional! Ora... Acha que não conhecíamos esse lugar? Acha que não saberíamos a respeito de um dos poucos lugares onde ainda temos direito ao suicídio? Já estivemos aqui séculos antes de você! Essa é nossa casa! E a potência dos mecanismos antigravitacionais daqui, amplificada pelo inversor, irá gerar força suficiente para afetar o próprio planeta joviano! O GRADIVIND retira sua principal força do gigante gasoso. Da última vez em que foi ativado, consumiu a Grande Mancha Vermelha inteira! Mas desta vez, ao tentar fazê-lo para reverter o processo, a inversão gravitacional se intensificará, se espalhando para a toda a malha subestrutural do espaço tempo, aniquilando o Sistema Solar inteiro. Antes fosse todo o Universo, mas temos que aceitar algumas limitações.

- ... - Ielg não sabia o que dizer, e Ítalo se aproximou dele, ficando face a face. - Vou perguntar com delicadeza só mais uma vez... Qual é o terceiro termo da equação gravitônica!?

Ielg nada disse, tentando pensar no que fazer. Pensou em Dir-Zá, em Ei-Kis, e seus novos amigos, pensou em sua família, e tentava a todo custo achar uma saída. Dar um valor falso não adiantaria. Continuou em relutante silêncio, e Ítalo, finalmente, ficou tão furioso que ficou desfigurado.

- Você… Se recusa… - Então, de sua testa, surgiu uma calosidade. - Você não tem razão! - O calo no meio da testa se tornou evidentemente o orifício cristalino de saída do LASER cerebral. - Você... Se recusa e me libertar do meu sofrimento... Por quê?!?!

- Ítalo… - Tentou intervir Glória, mas foi tarde demais.

- POR QUÊ?!?! - Ele então se descontrolou. - DIGA!!! - E o raio luminoso saiu de sua testa, diretamente no braço de Ielg, queimando com dor lancinante, destruindo a tatuagem de sua esposa. O grito pareceu reverberar por toda a cidade flutuante, como se tivesse capacidade para interromper a luta.

- ÍTALO!!!

Ielg quase desmaiou de dor. Mas após se contorcer, percebeu que a espuma aderente estava muito mais frágil, em grande parte dissolvida, e que o raio, além de queimar seu braço, também destruiu grande parte da espuma. E então, após perceber que a queimadura de segundo ou terceiro grau destruíra a tatuagem, um acesso de fúria incontrolável se apossou dele, e uma resolução quase insana fez sua testa fervilhar, ainda meio anestesiado pela dor, ou talvez por algum mecanismo de defesa do Cérebro Móvel que, mesmo naquela situação, podia não estar totalmente incapacitado.

Soltou seu braço e agarrou a cabeça do adversário, forçando para trás e para o lado. Surpreendido pela súbita reação de Ielg, Ítalo pareceu incapaz de se desvencilhar, enquanto Glória ficou observando, espantada, a situação. Ítalo tentou estrangulá-lo, mas com a outra mão, ainda que não totalmente liberta, Ielg conseguiu deter o aperto de garganta, enquanto a sensação terrível de fogo em sua testa, ainda que parcialmente anulada pela fúria, confirmou que o raio saiu diretamente contra o pescoço de seu algoz, cortando carne e ossos até decapitar a cabeça, que caiu rolando ao chão.

Ielg finalmente caiu de joelhos. A espuma residual ainda grudando suas mãos e pernas ao chão. Observou o corpo decapitado de Ítalo, e notou que o cérebro não saíra do crânio. Glória então se aproximou, se ajoelhou também e levantou seu rosto.

- Sinto muito. Ele não precisava fazer isso. Você estava prestes a me contar. - E então lhe deu um beijo no orifício cauterizado da testa, o que, surpreendentemente, causou alívio imediato. Na verdade, todo o seu toque parecia ser revigorante. Talvez fizesse uso de algum recurso naquele seu corpo, talvez feromônios especiais, ou uma saliva anestésica. Difícil saber.

- Diga-me Ielg. Como responde ao meu desafio? - Ele começou a tamborilar os dedos descontroladamente, e de súbito, a resposta veio-lhe a mente de forma clara e surpreendente.

- Há dois erros em seu argumento... Primeiro, como os próprios pessimistas essenciais já diziam, aquele que nunca nasceu não sente falta da existência, em assimetria ao nascido que necessariamente temerá a inexistência. Enquanto os que existem necessariamente sentirão alguma coisa, os não existentes jamais sofrem, e embora também não tenham felicidade, não sentem falta dela. Mas por serem nada, eles não têm direito a existência! Não estamos obrigados a dar-lhes, porque nada devemos ao que não existe! Apenas não podemos condenar aqueles que a dão a seus descendentes. Ou seja... É um ato de graça! Uma dádiva que podemos dar ou não, liberando o vivente a fazer o que quiser com ela. E sabendo que alguns irão amaldiçoá-la embora a maioria não o faça. - Então ele riu. - Parece uma teodicéia...

- Sim... E o Segundo? - Estranhamente, Glória não parecia frustrada. Pelo contrário. Era como se estivesse ganhando! E prestava atenção mais ao seu involuntário movimento das mãos, fazendo riscos na espuma em dissolução no chão, do que em sua própria fala.

- O segundo, é que... Bem. Paradoxalmente, embora não tenhámos que dar a existência a todos os seres possíveis, mesmo que ela seja boa... A possibilidade fica em aberto. Pois havendo um tempo virtualmente infinito no futuro, é perfeitamente possível que cada possibilidade de ser existente venha a se realizar, e assim, se é nosso dever dar a existência, a simples conservação do futuro poderá enfim viabilizar que a mesma seja alcançada por todos.

- Sim. Interessante... - Ielg ficou intrigado. Estaria ela sendo convencida por ele? Estaria mudando de idéia?

- Sinto muito Glória. Não posso compactuar com essa premissa insana que nega à infinitos seres possíveis a possibilidade existencial, o simples direito de escolha. Pode ser que muitos venham a amaldiçoar a existência, como vocês mesmos o fazem. Mas a maioria vai agradecer. Eu agradeço.

- Entendo... Realmente entendo. Obrigado. - E então ela se levantou, acessou o painel flutuante e digitou o terceiro termo da equação.

E o termo, para total espanto de Ielg, estava correto. E seu sangue gelou quando viu, no chão, que por algum motivo inexplicável ele o tinha desenhado, na espuma, sem perceber, enquanto sua mente estava ocupada com a resposta ao desafio.

Então Glória o olhou de forma carinhosa, seus olhos se esvaziaram, e ela caiu ao chão. E ele não precisou sequer verificar para saber que estava morta, ao mesmo tempo que sentiu um sinistro e completamente inusitado zumbido provir do fundo da cidade flutuante.

A Batalha...

...prosseguia intensa quando Ielg chegou à superfície. O céu estava repleto de tetrahumanas se degladiando. LASERS cerebrais e outras armas manuais estavam sendo usadas largamente. O seios cuspiam fogo, espuma adesiva, ácido e gases neurotóxicos por toda parte. Mas nada disso capturou a atenção mais do que o simples fato de que a cidade flutuante estava caindo. Lenta, mas perceptivelmente.

Ainda de muito longe, ele reconheceu Ei-Kis vindo em sua direção. Não trocaram palavras, ela simplesmente o pegou e partiram para fora da cidade. A barreira de vento que girava em torno da estrutura flutuadora parecia ter desaparecido por completo, e não demoraram a se afastar da zona mais intensa de conflito.

Olhando para trás, percebeu que as inexistencialistas pareciam ter tido um único objetivo, manter ele isolado com seus captores, para que pudessem extrair a informação que precisavam. E haviam conseguido, e antes que pudesse pensar sobre o que aconteceria, Ei-Kis foi atingida em pleno ar por um ataque traiçoeiro de uma inimiga, que rasgou-lhe as asas com garras afiadas deixando os dois em queda livre.

Mas a queda não durou muito. Assim que passaram da parte inferior da cidade, que havia caído quase metade do caminho até o lago, e após notar que o fundo da cidade flutuante, já incapaz de produzir nuvens, se desmanchava, também percebeu que eles também flutuavam. Todos flutuavam.

A gravidade estava cada vez mais fraca, e mesmo ainda sendo positiva, permitia ao empuxo fazer quase tudo flutuar. E quando as águas do lago começaram a se elevar, ficou claro que o inversor gravitacional havia sido ativado. Começaria lento, ele sabia, mas ficaria cada vez mais rápido, e se seus algozes estivessem certos, tudo estava perdido, o próprio GRADIVIND terminaria por fazer o oposto do que deveria.

Se agarrou a Ei-Kis, tendo uma incrível sensação de deja-vu, como se tentar salvá-la desesperadamente fosse alguma coisa que já tivesse feito antes. Mas se ela não podia mais usar as asas para se propulsionar, suas inimigas podiam, e como se quisessem promover um ato final de covardia antes da consumação de seu objetivo maior, vinham em sua direção, em ritmo de intercepção, voando com muito mais leveza, mas também alguma dificuldade, graças à gravidade já estar praticamente negativa.

Olhou para cima e 4 inimigas se aproximavam, seus seios vinham espantosamente inchados, mas foram dois raios que atingiram Ei-Kis em partes diferentes do corpo, causando imensa dor. Mas, de repente, de baixo deles, enormes tentáculos se ergueram, e suas inimigas mal tiveram tempo de demonstrar o espanto e tentar recuar. Foram violentamente atingidas por chicotadas que circundavam ele e Ei-Kis sem sequer passar perto de seus corpos.

Se virou e olhou para baixo, e era difícil descrever a cena absurdamente grotesca. Saindo de uma massa disforme de água, terra, detritos e destroços, emergiu uma criatura assustadora, imensa, monstruosa. Um autêntico leviatã cuja aparência ainda era pouco discernível dado a nuvem de matéria caótica que ocultava a maior parte de seu corpo. E então, para seu ainda maior espanto, viu que Ei-Kis estava sorrindo, surpreendendo-o ao gritar: - Dir-Zá!!!

Quando algo parecido com uma cabeça que misturava formas de peixe e dinossauro finalmente encostou neles, foram acolhidos pelos estranhos tentáculos que eram como cabelos do topo do imenso crânio, mas de forma delicada, evidentemente protetora. Enquanto isso, outro tentáculos estavam armados ao alto, prontos para desferir golpes fatais em qualquer inimiga que tentasse se aproximar, embora nenhuma tivesse coragem de fazê-lo.

Mas antes que pudesse ficar tranqüilo, uma vez que Ei-Kis tentava acalmá-lo garantindo que era mesmo Dir-Zá no corpo daquela criatura, percebeu que atrás, ao lado, um outro monstro, ainda mais assustador de aproximava, e dessa vez, evidentemente não era amigável. Tinha forma vagamente antropomórfica, embora colossal e ciclópica, e abria a bocarra pronto para, ao que parecia, cuspir alguma coisa. Mas foi inútil, um golpe violento da cauda de Dir-Zá, que surpreendia pela velocidade levando em conta seu tamanho, derrubou a criatura para longe, e só então ele viu um terceiro monstro vir do alto, não tão grande, mas aparentemente ainda mais letal, que caiu sobre o segundo aplicando um golpe aparentemente decisivo.

Dir-Zá não estava sozinha em sua forma monstruosa. Os dois grupos haviam apelado para esses corpos colossais, e se aproximado lentamente da cidade flutuante, sabiam que poderiam ser úteis. A maior parte se ocultou sob a água ou em nuvens artificiais, mas outros não se intimidaram em expor suas titânicas anatomias, que podiam se atingidas por disparos vindos de fora do Vale, inclusive do espaço, pois o SISTEMA não impedia que seus corpos fossem alvejados desde que os tiros não atingissem áreas próximas ao cérebro.

Com a gravidade levando todos para cima, Dir-Zá “nadava” pela massa fluída rumo a saída do Vale, tentando se manter o mais baixo possível, como se quisesse, também, conter o mais que pudesse a evasão de matéria do planeta. Quando outro monstro, curiosamente elegante apesar do tamanho surgiu à frente deles para atacá-los, foi atingido por uma patada violenta de Dir-Zá, e logo em seguida foi agarrado por uma outra criatura, similar a um polvo, que lhe deu combate. No entanto, quando perceberam algo acima de todos, se detiveram.

Todas as criaturas que estavam no Vale, gigantes ou não, pararam, e olharam para o alto, sobre a cidade flutuante, e Ielg, antes de se virar e perceber a mudança súbita na luminosidade do ambiente, teve uma acertada intuição sobre o que veria.

A Deusa GRADIVIND...

... pairava sobre Laputa, como se tivesse em parte emergido do lago flutuante e disforme, em parte se materializado de baixo para a cima.

Por um lado, era exatamente como nas imagens. Bela, perturbadora, terrível, incômoda, sedutora, inumana. Por outro lado, era totalmente diferente. Inspirava, ao mesmo tempo, um profundo terror, mas também um fascínio indescritível. Silenciosamente, sua imagem imensa, muito maior que qualquer uma das criaturas gigantes, ou que a holografia que Ielg projetara nos céus, ergueu os braços, e todos sentiram um calafrio percorrer suas espinhas.

Então, metade das criaturas do Vale foi simplesmente desligada, ficaram inertes, flutuando à deriva, tanto tetrahumanas quanto monstros gigantes. Os cérebros foram ejetados, alguns monstros tinham mais de um, e voaram em fila rumo à saída do Vale. E então as coisas pararam de subir, a gravidade voltou a ser imponderável, e lentamente, voltou a crescer, suficientemente devagar para que matéria voltasse para baixo em segurança.

Dir-Zá apressou-se em sair do Vale, deslizando de modo gentilmente animalesco, e aos poucos foi chegando mais e mais para baixo, até que seus enormes membros pudessem novamente se apoiar num solo. Demorou para que a gravidade voltasse ao normal, e somente quando haviam saído do limite do Vale, Ielg conseguiu falar. - Eu não sabia que Dir-Zá sabia manejar essa coisa enorme!

- Está brincando?! - Disse Ei-Kis, sorridente. - Ela já foi campeã de combate titânico em uma ocasião. Foi quando eu a conheci pela última vez!

- Pela última vez?!

- Já nos conhecemos várias vezes, após apagarmos nossas memórias e mudarmos de identidade. De algum modo... Sempre acabamos juntas!

E então a deusa desapareceu, deixando apenas um rastro luminoso onde a projeção holográfica de seu corpo, que fora espantosamente sólida, surgira. A gravidade havia sido normalizada, o Inversor fora neutralizado, e embora a aparência geográfica houvesse mudado, o mundo havia sido restaurado. E Laputa, reconstruída, foi depositada no lago, passando a ser, mais uma vez flutuante, porém, sobre as águas.

Finalmente, o cérebro de Dir-Zá deixou a imensa criatura, que repousava no sopé da montanha. Ei-Kis e Ielg foram resgatados por uma nave, onde outros corpos estavam guardados. Todos se trocaram, embora a queimadura de Ielg não doesse mais, pois provavelmente O SISTEMA, ou GRADIVIND, houvesse lhe anestesiado. E enfim, quando cada cérebro estava em seu devido corpo, os 3 se abraçaram.

Um Dia Depois...

...eles ainda estavam um pouco cansados, mas satisfeitos. De volta à sua casa, tinham visitas presenciais de todos os naipes. Muitos vieram agradecer Ielg pela coragem em visitar a cidade flutuante e recuperar a oração à Deusa da Gravidade. Ninguém parecia ter idéia de que ele afinal se traíra, e inadvertidamente revelou a fórmula que na verdade os inexistencialistas não tinham de fato, como todos pensavam. Ficou incomodado com tudo aquilo, se sentindo uma fraude, mas pensava que talvez o fato de ter projetado a oração nos céus, que foi sim vista e recitada por muitos, fora suficiente para ativar o GRADIVIND e proteger O SISTEMA, e o Sistema Solar, bem antes que Glória conseguisse, espertamente, extrair dele a informação que queria.

Todos os participantes da ofensiva inexistencialista haviam sido capturados, e curiosamente, Ítalo e Glória não haviam morrido. Tentaram usar uma poderosa embora sutil toxina, escondida numa cápsula próxima a conexão medular do cérebro, que era liberada voluntariamente, ou ante um colapso físico. No entanto, não sabiam que fora da influência do SISTEMA, os dispositivos de segurança dos cérebros móveis ficavam ainda mais criteriosos em filtrar qualquer substância estranha que ameaçasse o cérebro, se necessário, interrompendo a conexão neuroquímica totalmente.

Achavam que a Deusa, no entanto, ainda estava presente, pois o GRADIVIND ainda fazia reparos no planeta, e no sistema estelar, e uma nova tempestade no planeta joviano havia se formado, gerando energia num vórtice que se tornou uma grande mancha amarela. Mas ninguém mais a tinha avistado diretamente.

Horas depois de todos os visitantes terem ido embora após intermináveis e constragendoras formalidades e gentilezas, finalmente Ielg contou a Dir-Zá todo o acontecido em detalhes, sem entender como podia ter entregado o terceiro termo da equação.

- É uma técnica comum de dissociação psíquica. Submetem a mente a vários estímulos contraditórios, administram drogas com sutileza, provavelmente estava na saliva dela, e causam essas reações adversas, dividindo a consciência em procedimentos independentes, controlando partes distintas do corpo. E quando estamos resistindo a fazer alguma coisa, uma parte de nós quer fazê-la, caso contrário não haveria resistência.

- O que deve acontecer a eles?

- Se aceitarem o tratamento, podem ser colocados numa simulação onde viverão novas experiências, ou ter conteúdos mentais apagados na tentativa de curar a Agonia Existencial. Se não, e eu prefiro que seja assim, deverão ser punidos sendo colocados em situação de servidão e reeducação.

- Por que prefere que sejam punidos? Já não sofreram demais? Prefiro que aceitem o tratamento. Na verdade... Preferia que tivessem conseguido se matar.

- Eles quase destruíram tudo! Não é algo que deveria passar sem punição.

- Entendo... Eu iria preferir a simulação. Gostaria de ser curado da Agonia Existencial... Aliás... Como posso saber que não estou numa simulação agora mesmo?

- Não importa. Importa mais viver a existência que você tem da melhor forma possível. E nós podemos fazer isso aqui, agora, de uma maneira muito especial.

- O que quer dizer?

- Eu tenho uma surpresa pra você. - Ela disse num tom curiosamente misterioso e sensual. Pediu que ele esperasse no quarto, que havia sido reformulado depois de ser parcialmente destruído pelo inversor gravitacional, como quase tudo no planeta, tendo agora uma cama bem maior. E minutos depois, uma outra tetrahumana entrou. Ou melhor, um outro corpo, diferente, mais humano, e mesmo assim, reconhecível.

- Dir-Zá? É… Você? - E era, claro, mas usando um corpo bem diferente, moldado de acordo com conselhos que obteve de algumas conhecidas que entendiam do assunto, e também de acordo com uma investigação da vida pregressa de Ielg, nos tempos em que era Glei.

Era um pouco mais baixa, e se as feições permaneciam praticamente inalteradas, algo lhe lembrava sua esposa. O véu que usava na cabeça, que aliás parecia menor, simulava cabelos, e o mais importante, seus joelhos eram articulados de modo praticamente idêntico à anatomia humana original, gozando apenas de uma sutil flexibilidade que lhe garantia segurança contra danos. Aliás, foi no sentido de proteger os joelhos contra flexões contrárias acidentais que surgiram as primeiras versões mais flexíveis. Por fim, seus pés continuavam tendo o formato básico de antes, porém, imitando com perfeição um sapato colante de salto alto.

Ele não sabia o que dizer. Ela estava linda, sedutora. Se aproximou e deu-lhe um beijo no rosto, para mostrar-lhe que a saliva não era ácida, e depois beijou-o na boca, para mostrar que, além de segura, era doce, deliciosa. Mostrou também que seus seios nada expeliam, e que todo o seu corpo fora reconfigurado para uma belo meio termo entre uma tetrahumana e uma humana da Primeira Formação, tendo recebido todo o equipamento anatômico necessário para o que interessava.

Foi espontâneo e inevitável, a sós, pois Ei-Kis tinha lhes garantido privacidade, se envolveram na cama, pelo resto da noite.

Era Um Sonho,

...ele sabia. O que não diminuía a intensidade da experiência. Após horas de amor com Dir-Zá, ainda sonhava com ela, mas não era um sonho feliz. Estava dirigindo um carro, de seu tempo, com Dir-Zá ao seu lado, e uma Ei-Kis pequenina, no banco traseiro, e outra mulher atrás dele.

Chovia, e o carro desgovernou, por culpa dele, que se precipitara ante a impaciência das passageiras. Veio o capotamento, e ele tentou, desesperadamente, alcançar Ei-Kis, antes do impacto final que o deixou semi consciente. Mas Dir-Zá sobreviveu, saiu do carro e resgatou Ei-Kis, deixando-a em segurança, e tentando salvar sua mãe. Mas era tarde demais. Ele não parecia machucado, não era possível ver que jamais moveria novamente as pernas, mesmo assim Dir-Zá veio sobre ele, tentando fazer alguma coisa.

Tudo sumiu, e agora ele estava num local vazio, similar à estação de criogenia onde fora despertado. Ela começou a desabar, e ele corria em disparada rumo a saída, mas se deparou com a imagem da deusa e ficou paralisado, e só saiu porque foi empurrado para fora, vendo-se de repente na beira de um lago, onde se ajoelhou e olhou suas tatuagens, e elas não tinham sua mulher e filha, mas sim Dir-Zá e Ei-Kis. Fechou os olhos e as olhou de novo. Sua família estava lá novamente, mas subitamente seus rostos se transformaram novamente em suas novas companheiras. A família antiga se transformando na nova, e depois voltando à antiga.

Acordou de súbito, assustando a amante. Dir-Zá já estava desperta, observando-o, indecisa em tirar-lhe de um sonho nervoso ou não. Já era manhã, e ele estava ofegante, com a mente em turbilhão, confuso. Levantou-se da cama numa atitude totalmente defensiva, como se quisesse se afastar de tudo para ter espaço para pensar. Olhou para suas tatuagens. Estavam normais.

Hesitante, Dir-Zá tentava acalmá-lo. Ele não estava exatamente hostil, apenas descontrolado, como se de repente não soubesse onde estava, e de fato não sabia. - Isso... Isso é real? - Perguntou em nítido tom de desespero, e olhou fixamente para Dir-Zá, ficando espantado, na verdade, quase aterrorizado. Fechava e esfregava os olhos mas quando olhava para o rosto dela via sua falecida mulher de 5 mil anos atrás.

- Isso… Isso não… Eu não estou entendendo! - E Dir-Zá muito menos, assim como Ei-Kis, que acabara de chegar, ficando tão confusa quanto ela, mas não tanto quanto ele, que ao vê-la, teve uma alucinação, vendo uma mulher jovem, pós adolescente, repleta de piercings e tatuagens, em agressivo visual gótico, que depois sumiu deixando apenas Ei-Kis.

- Não pode ser… Elas… Elas morreram! - E então, um formigamento intenso lhe veio à mente, ainda mais forte e delirante do que aquele que sentira em Laputa, quando se lembrou da equação gravitônica completa. E as imagens vieram, como se um poço de memórias ocultas emergisse das profundezas de sua mente, inundando seu passado com uma existência radicalmente diferente da que ele se lembrava.

Se lembrou. Do acidente, onde as únicas vítimas fatais foram sua sogra, e sua coluna. Se lembrou de sua mulher e filha intactas, lhe consolando ao saber que jamais iria andar. Se lembrou de sua esposa revoltada, culpando-o pela morte da mãe, e se lembrou que poucos anos depois, a tensão crescente e as brigas intermináveis levaram à separação. Ela se mudou com a filha para o outro lado da cidade, e ele se lembrou também que não a culpava, e que ainda a amava, e era melhor deixá-la ir.

Se lembrou que mergulhou ainda mais no trabalho, se tornando anti-social, e se lembrou de sua filha crescendo, até que na adolescência vieram as brigas, terríveis. Nem ele nem a mãe conseguiam controlá-la ou entendê-la. Se tornou rebelde, revoltada, agressiva, mas as brigas piores eram com ele, e que aos poucos, os bons momentos se tornavam cada vez mais raros, embora ele se apegasse a alguns como quem se apega a uma jóia rara. Se lembrou de um tempo em que praticamente só se encontravam para brigar, e que o único laço que terminou mantendo com ela foi financeiro. Ela só lhe procurava para pedir dinheiro, e ele sempre dava, porque não queria cortar o último resquício de relacionamento com a filha.

Se lembrou que detestava o modo como ela se vestia. Seu guarda roupa era totalmente preto, e cada vez que a via tinha uma nova e repulsiva tatuagem, e mesmo sabendo que era para onde ia grande parte do dinheiro que lhe dava, visto que a mãe se recusava a pagá-las, não ousou repreendê-la, e tentou compreendê-la, fazendo ele próprio duas tatuagens, da ex esposa e filha, com a aparência do tempo em que todos ainda se amavam.

Mesmo assim o relacionamento entre eles continuava a degenerar, e quando a moça se apaixonou por um criminoso, que a arrastou para mais longe ainda de uma vida decente, se opondo até a mãe, ele não suportou, e odiou a si próprio por odiá-la. Chegaram a trocar tapas na cena mais vergonhosa de sua vida, e ao cortar-lhe qualquer ajuda financeira, o último resquício de contato se apagou.

Ele nunca mais viu a filha. E nunca mais teve outra companheira. E mesmo assim as amava, guardava suas fotos, tinha as tatuagens, rememorando o passado cada vez mais glorioso e sublime, e mais irreversível.

Se lembrou de se surpreender quando, após repudiar sua própria equação gravitônica, muitos haviam se esforçado para deduzir seus termos, e secretamente, ele próprio decidiu solucioná-la. Não contou a ninguém, mas a completou e a deixou guardada para publicação póstuma. E se lembrou também que, mesmo com tudo isso, fora escolhido para ser o primeiro homem do país a ser criogenado.

Quando sua atenção se voltou para o presente, estava ainda mais confuso. Dir-Zá e Ei-Kis se entreolhavam, e o fitavam com espanto, piedade, tentando entender o que acontecia, e como se tudo ainda não estivesse suficientemente surreal, uma luz espectral se manifestou entre os 3, e a imagem da Deusa da Gravidade surgiu ante eles.

Ela parecia bem mais maternal e amigável, perdendo seu semblante perturbador e terrível, e se aproximou dele. Era uma aparição física, suas companheiras também a viam, e estavam ainda mais chocadas do que estiveram quando Ela aparecera nos céus sobre o Vale. Ele a olhou, e foi invadido por uma onda reconfortante de pré compreensão. Se acalmou, e perguntou.

- O... O que aconteceu depois?

E a voz Dela penetrava profundamente em todo o cérebro, em todo o corpo, em todos os presentes. - ELAS FORAM CONGELADAS DEPOIS DE VOCÊ, COMO VOCÊ MESMO HAVIA SUGERIDO CASO, UM DIA, ISSO FOSSE POSSÍVEL, POIS AINDA TINHA ESPERANÇA DE SEREM TODOS FELIZES NOVAMENTE. SUA ESPOSA DESENVOLVEU UM TIPO RARO DE CÂNCER, INCURÁVEL NA ÉPOCA, O QUE FACILITOU QUE FOSSE ESCOLHIDA. SUA FILHA TEVE PROBLEMAS COM A LEI, MAS UMA CURIOSA ANOMALIA JURÍDICA PERMITIU QUE ELA ESCOLHESSE O CONGELAMENTO AO INVÉS DA CONDENAÇÃO, VISTO QUE ESTAVA EM FASE DE TESTES UM NOVO PROCEDIMENTO DE RISCO EXCLUSIVO PARA MULHERES GRÁVIDAS. FORAM DESCONGELADAS MUITO ANTES DE VOCÊ AINDA NA TERCEIRA FORMAÇÃO, E SEU NETO SE TORNOU UM DOS LÍDERES MARTIANOS, E MÁRTIR, NA GUERRA ESPACIAL, MORRENDO QUANDO O PLANETA FOI DESTRUÍDO.

Embora já tivesse compreendido o óbvio, por mais inacreditável que fosse, hesitava perguntar, não tinha coragem de confirmar, e preferiu perguntar outra coisa. - Por... Por quê?! Por que mudou minhas memórias?!

-FOI O NOSSO TRATO. VOCÊ QUERIA SER CURADO DA AGONIA DA EXISTÊNCIA, E EU QUERIA IMPEDIR A ANIQUILAÇÃO DO SISTEMA SOLAR.

Então se lembrou de que ele era Inexistencialista, havia colaborado voluntariamente com Ítalo e Glória, e ativado o Inversor Gravitacional muito antes que o GRADIVIND, que a Deusa, pudesse impedí-lo - Mas... Então, nada disso foi real?

-TUDO É REAL. A ÚNICA COISA QUE MUDEI FOI SUA MEMÓRIA A PARTIR DO ACIDENTE, ALGUMAS MEMÓRIAS DE ALGUMAS OUTRAS PESSOAS, E ALGUNS REGISTROS DO SISTEMA. MAS NÃO A INSTRUÇÃO DE QUE VOCÊ NÃO DEVIA SER DESCONGELADO, PORQUE EU SEMPRE SOUBE QUE SERIA O MAIS PODEROSO ALIADO DOS INEXISTENCIALISTAS, E SABIA A EQUAÇÃO GRAVITACIONAL. MAS ELES CONSEGUIRAM LUDIBRIAR O SISTEMA, LOCALIZAR VOCÊ E O DESPERTAR. TUDO O QUE ACONTECEU ENTÃO FOI PRATICAMENTE DA MESMA FORMA, A ÚNICA DIFERENÇA FOI QUE A PARTIR DO MOMENTO EM QUE ELES LHE ABDUZIRAM E O COLOCARAM NA SIMULAÇÃO, NÃO PRECISARAM SE DISFARÇAR DE MILITANTES DA QUINTA FORMAÇÃO, E VOCÊ DECIDIU SE UNIR A ELES, VIAJARAM PARA A CIDADE FLUTUANTE E DE LÁ ATIVARAM O INVERSOR GRAVITACIONAL. QUANDO FUI INVOCADA JÁ ERA TARDE DEMAIS, NÃO PODERIA REVERTER A INVERSÃO, MINHA ÚNICA ALTERNATIVA FOI ENTÃO INVERTER TODO O RESTANTE DA REALIDADE, REVERTENDO O PRÓPRIO ESPAÇO TEMPO, TODOS OS PROCESSOS FÍSICOS, E FAZER TODA A HISTÓRIA DESACONTECER ATÉ O MOMENTO EM QUE VOCÊ SERIA DESPERTADO. LHE EXPLIQUEI O QUE VOCÊ IRIA FAZER, E VOCÊ DE IMEDIATO CONCORDOU EM JAMAIS DEIXAR ISSO ACONTECER, MAS PARA ISSO, ERA PRECISO CURÁ-LO DA AGONIA DA EXISTÊNCIA. VOCÊ CONCORDOU EM MUDAR SUA MEMÓRIA E ENTÃO A HISTÓRIA PROSSEGUIU NOVAMENTE. TUDO PRATICAMENTE IGUAL, VISTO QUE AS CADEIAS CAUSAIS ESTAVAM TODAS CONSERVADAS ATÉ AQUELE PONTO, A ÚNICA DIFERENÇA ERA SEU CONTEÚDO MENTAL, O QUE MUDOU TUDO. VOCÊ NÃO SE UNIU AOS INEXISTENCIALISTAS, RESISTIU O MÁXIMO QUE PODE, E ME DEU TEMPO PARA ME PREPARAR E IMPEDIR QUE TUDO ACONTECESSE DE NOVO.

E a medida que Ela falava, ele se lembrava. Quando saía da estação onde fora despertado, e se deparara com a imagem da Deusa, foi quando A conheceu, e onde realmente havia feito aquele acordo, convencido de que de fato teria colaborado com os Inexistencialistas se fosse procurado por eles. Ele realmente odiava sua vida, achava que a existência não valia a pena, se arrependera de ter nascido, de ter se casado, de ter tido uma filha. Mesmo assim, ainda estava muito confuso. - Mas... Eu não me lembro de ter feito tudo isso! E não entendo como essa alteração de memória pode ter me curado da Agonia Existencial.

- PORQUE UMA VEZ QUE REVERTI O TEMPO, NÃO ACONTECEU. NINGUÉM SE LEMBRA ALÉM DE MIM. E VOCÊ FOI CURADO PORQUE A MELHOR FORMA DE ELIMINAR A AGONIA EXISTENCIAL É O CONHECIMENTO DA MORTE.

-Conhecimento… Da morte!? Mas... - Então se apercebeu que em sua vida original ele nunca vivenciara a morte de uma pessoa querida. Era órfão. Não perdera nenhum parente, e o único conhecido que morrera fora sua sogra. Mas ele não apenas não se importava com ela, como tinha prazer em irritar sua esposa dizendo que ao menos uma coisa o acidente tivera de bom. Palavras estúpidas das quais depois se arrependeria. Ele não se importava com ninguém, e as únicas pessoas de quem sentia falta estavam vivas, mas não tinham condições de conviver com ele.

-O INEXISTENCIALISMO É PARADOXAL. OS INEXISTENCIALISTAS ODEIAM A VIDA PORQUE NUNCA VIVENCIARAM DEVIDAMENTE A MORTE, E POR ISSO A TEMEM E A ODEIAM TAMBÉM. NÃO IMPORTA QUE TENHAM EXPERIMENTADO A MORTE DE ENTES QUERIDOS OU NÃO, E SIM QUE NUNCA CONSIGAM SENTÍ-LAS PLENAMENTE, BEM COMO NÃO CONSIGAM VÊ-LA POR UM ÂNGULO FAVORÁVEL, EMBORA, PARADOXALMENTE, ACHEM QUE ELA SEJA A MELHOR SOLUÇÃO. POR NÃO TEREM CORAGEM DE OLHAR O LIMIAR DO NADA FRENTE A FRENTE, ACREDITAM QUE MELHOR SERIA NUNCA TEREM SAÍDO DELE. E ESSE ERA O SEU CASO. MAS QUANDO MUDEI SUAS MEMÓRIAS, EU SABIA QUE VOCÊ REAGIRIA DE FORMA FAVORÁVEL, VOCÊ SENTIRIA PROFUNDAMENTE A PERDA, E ENTÃO PERCEBERIA QUE A MORTE NÃO É TERRÍVEL, POR PODER SER TAMBÉM A LIBERTAÇÃO DE TODOS OS MALES. ELA DEIXA DE ASSUSTAR, VOCÊ DESEJOU INÚMERAS VEZES MORRER, E AO APRECIAR A IDÉIA DE DEIXAR DE EXISTIR, AO DEIXAR DE TEMER A MORTE, DEIXA TAMBÉM DE TEMER A VIDA.

-É… É verdade… Eu odiava a vida. Eu mesmo me disse que seria melhor se elas tivessem morrido por que... - A memória da vida delas destruíra o amor mútuo que nutriam, e ele só era apegado a elas de forma doentia. Mas a memória da morte lhe encheu de amor, um amor que jamais poderia ser destruído.

- E SE VOCÊ AMA ALGUMA COISA DE VERDADE, VOCÊ VIVE SEM MEDO. SE PROSSEGUE, O FAZ COM CORAGEM, ABENÇOANDO CADA DIA DE SUA EXISTÊNCIA, SE SABE QUE VAI MORRER, MORRE COM CORAGEM, LOUVANDO SUA EXISTÊNCIA. SE DESISTE DA VIDA, HONRA SEU PASSADO E ABRAÇA A MORTE APENAS COMO QUEM RETORNA AO VENTRE DA CRIAÇÃO.

-E por que lembrei de tudo agora? Por que lembrei da equação gravitônica na cidade flutuante?

-CONCORDAMOS EM NÃO ELIMINAR POR COMPLETO SUAS MEMÓRIAS, E SIM EM BLOQUEÁ-LAS TEMPORARIAMENTE. NA CIDADE FLUTUANTE VOCÊ SE LEMBROU PORQUE ISSO FAZIA PARTE DO PROGRAMA DE BLOQUEIO MNEMÔNICO, QUE POSSUÍA CONDIÇÕES DE RECORDAÇÃO COMO AS QUE SE DERAM NA TENSÃO PSÍQUICA DO MOMENTO. SE VOCÊ NÃO SE LEMBRASSE, JAMAIS PODERIA EXPERIMENTAR A VITÓRIA DE NÃO CEDER AOS INEXISTENCIALISTAS, E ISSO ERA VITAL PARA A SUA CURA. DEPOIS QUE SAIU DO VALE, TERMINEI DE DESBLOQUEAR SUAS MEMÓRIAS, MAS ELAS SÓ VIRIAM A TONA APÓS UM PERÍODO DE SONO. ISSO FAZIA PARTE DE NOSSO TRATO.

Então ele olhou para suas companheiras, tomou coragem, e perguntou. - Você... E vocês... Se lembram? - Mas elas estavam completamente atônitas, negando pronta e sinceramente. Não faziam idéia de quem haviam sido.

- VOCÊS QUEREM SE LEMBRAR? - A Deusa perguntou a elas, que hesitaram, temerosas, mas simultaneamente tomaram fôlego, e concordaram.

- ENTÃO, SE LEMBREM. - E subitamente elas também sentiram suas mentes se encherem de memórias, de suas vidas psicológicas pregressas. Dir-Zá estava na terceira, Ei-Kis na quinta, embora tivesse sido descongelada antes de sua mãe, precisando de inúmeros tratamentos comportamentais, inclusive para superar o trauma da perda do filho.

Mas agora elas eram pessoas diferentes, capazes de lidar com seu passado, e então, após a tremenda confusão e vertigem da súbita lembrança, Ei-Kis se aproximou dele, em lágrimas, tocou seu rosto, e lhe perguntou, aos prantos. - P-papai? - E eles se abraçaram. Então Dir-Zá se lembrou também. - ...Glei... - E os 3 se reencontraram num abraço triplo totalmente diferente do que haviam experimentado no dia anterior.

- ANTES DE PARTIR, SÓ QUERO LHES DIZER QUE EM NADA INFLUENCIEI PARA QUE VOCÊS SE REENCONTRASSEM. NEM EM VOCÊS DUAS, QUE O FIZERAM 3 VEZES ESPONTANEAMENTE, NEM EM GLEI, QUE AS ENCONTROU POR CONTA PRÓPRIA NA PRIMEIRA VEZ, E O FEZ DE NOVO NA SEGUNDA. AINDA NÃO HÁ UMA EXPLICAÇÃO CAUSAL CONHECIDA PARA ISSO.

E então a Deusa se despediu, desejando-lhes felicidade e anunciando que iria novamente hibernar, esperando não precisar ser novamente invocada para um outro advento.

Mas antes, Ielg não resistiu a perguntar. - Mas então... O que isso significa? Nos encontramos por destino? Por obra de Deus? Existe Deus?! - E a Deusa, com um semblante de perfeita sinceridade e benevolência, respondeu enquanto desvanecia.- TENHO CONTROLE SOBRE TODA A ESTRUTURA DE NOSSA PARTE DO UNIVERSO, E CONHECIMENTO DE TODOS OS FATOS DO MUNDO. MAS A DIVINDADE OU O DESTINO SÃO CONCEITOS QUE NECESSARIAMENTE ULTRAPASSARIAM TODA ESSA ESTRUTURA E TODOS ESSE FATOS. POR ISSO, NUM NÍVEL MAIS PLENO, ISSO EU NÃO POSSO SABER.

Ela se foi.

Como Ela era diferente do SISTEMA! Como era diferente ter as memórias devolvidas pela Deusa, ao invés do frio, impessoal e formal SISTEMA que, afinal, não englobava a Deusa, pelo contrário, O SISTEMA era uma função da Deusa. Se fosse uma Trindade, O GRADIVIND seria a Mãe, a Deusa Gravitacional seria a Filha, e O SISTEMA o Espírito Santo.

Elas ainda usariam ocasionalmente corpos parecidos com os seus corpos antigos originais, para relembrar, e recriar, os momentos do passado. E mesmo sendo pessoas diferentes, mais maduras, eram uma família novamente.

Uma família no sentido mais puro, mais completo e mais pleno do termo.

*

F I M

*

Um Drama do Futuro

Ciência Para o Futuro traz com exclusividade para você essa breve mas reveladora entrevista, que espera-se, diminua as animosidades sobre o assunto mais comentado do mês. Depois de muita reticência, finalmente a Diretora Presidente da Criogenar, a Sra. Débora Falache, concordou em conceder uma entrevista sobre o polêmico assunto da família do Dr. Algleison, o nosso primeiro homem criogenado, congelado já há quase 16 anos.

Garantindo que nosso cientista está em perfeito estado de conservação, e que deverá ser despertado no tempo previsto, ela espera dirimir algumas dúvidas sobre o fato de que um investimento tão caro tenha sido feito com pessoas que, diferente das demais 28 pessoas congeladas em todo o país, não tem credenciais científicas, e em especial o caso de Érika Mirianis, filha do Dr. Algleison, que está presa por assalto a mão armada em conjunto com uma quadrilha que já roubou 6 bancos nos últimos 2 anos.

CPOF: Sra Falache, quando a diretoria decidiu incluir a família do Dr. Algleison no Projeto Criogenar?

Sra Falache: Na verdade, nossa idéia original sempre foi congelar uma família inteira, para que ninguém fosse enviado sozinho ao futuro, correndo o risco de se sentir solitário. Só que quando escolhemos o Dr. Algleison, não só seu perfil era favorável ao congelamento solitário, como não tínhamos verba suficiente para mais que uma câmara de criogenia, aliás, isso pesou na sua escolha. Tudo agora mudou, mas continuamos não conseguindo reunir uma família disposta a ser congelada, e cujos membros sejam pessoas de credenciais que justifiquem tamanho investimento, decidimos então honrar o pedido do Dr. Algleison de que, se fosse possível, sua família tivesse prioridade na fila de congelamento.

CPOF: Mas o Dr. Algleison se separou muito antes de entrar no projeto Criogenar.

Sra Falache: Mas ele nunca retirou a requisição. Aliás, ele a reiterava todo o ano. Não conheci o Dr. Algleison, mas estive com o falecido Reitor Edmundo Sales Reignhald, uma das pessoas mais admiráveis que já conheci, e ele me fez prometer que eu respeitaria o pedido de seu amigo.

CPOF: Ele tinha esperança de reatar o relacionamento?

Sra Falache: Acho que sim, mas independente disso, ele tinha essa preferência. Ela se casou duas vezes, mas nas duas se separou rapidamente e permaneceu solteira. E ainda o visitou uma última vez antes de ser congelado, e pouco antes de ser congelada, ela me falou que sonhava em se reconciliarem, se isso fosse possível.

CPOF: Como alguns estão dizendo, fica difícil resistir a um parceiro que lhe possibilita uma nova chance, uma cura no futuro, talvez até nova juventude e vida mais longa, a julgar pelos últimos progressos na extensão da juventude e longevidade. Isso não torna a decisão de Tânia Mirianis um tanto suspeita?

Sra Falache: Acho que não nos cabe julgar. Ainda mais quando é óbvio que qualquer um no lugar dela provavelmente faria o mesmo.

CPOF: De qualquer modo a Sra. Tânia ainda era uma pessoa útil na sociedade, mas o que dizer de sua filha, que esteve envolvida no famoso assalto ao Banco Inter Americano?

Sra Falache: Érika Mirianis foi um outro caso. Sabemos que ela teve um péssimo relacionamento com o pai, e ele chegou a retirá-la da requisição, mas se arrependeu e pôs de volta, achando que se ela um dia atingisse os critérios necessários, possivelmente teria se regenerado.

CPOF: Não foi o que aconteceu.

Sra Falache: Não, mas ela engravidou durante um indulto de natal e seu feto apresentou uma modalidade rara de diabetes gestacional cuja cura prometia ser acessível nas próximas décadas. Ela pode não ter contribuído muito para a sociedade, mas ao se dispor a ser congelada em sua condição, pode estar dando uma grande contribuição para o estudo dessa doença no futuro.

CPOF: Mas a opinião pública tem tido muita dificuldade em aceitar isso.

Sra Falache: Talvez por que a maioria das pessoas pense que a criogenia é um tipo de prêmio! Uma passagem para o futuro! Mas o fato é que antes de tudo é uma experiência! Nosso programa de congelamento não inclui cadáveres com esperança vaga de ressurreição no futuro, somente pessoas saudáveis ou com doenças ainda incuráveis mas provavelmente reversíveis nos próximos anos. Além do mais, ainda não desenvolvemos a tecnologia necessária para um descongelamento 100% seguro, existe um risco... E aí eu preciso ser muito bem entendida. Em termos estatísticos, existe um risco real de que alguns venham a morrer sem nunca serem descongelados.

CPOF: Quantas pessoas estão na fila esperando para serem congeladas?

Sra Falache: Nesse momento, são apenas 32. Mas já recusamos mais de uma centena. Curiosamente, essas 32 não estão entre as pessoas que ficaram revoltadas com a escolha de Érika Mirianis.

CPOF: E as demais?

Sra Falache: Infelizmente sim.

CPOF: E quanto a ela, acredita que há chances de se reconciliar com o pai?

Sra Falache: Bem... O que eu insisto é que não deveríamos julgar as outras pessoas. Estamos falando de enviar seres humanos corajosos, e que tiveram problemas, para o futuro. E se considerarmos o comportamento de Érika como uma doença até o momento incurável? Acho que todos merecem uma segunda chance, e eu faço votos para que sejam todos felizes.


Fim da Última Parte



Marcus Valerio XR
Fevereiro de 2011
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