Cruzando o Limite...

…do vale, ele sobrevoou a montanha que na verdade não era um vulcão. Apenas tivera sua ponta removida quase cirurgicamente, como se tivesse sido desintegrada, tal como o foi o cume da montanha onde ficara a base em que fora descongelado.

As chuvas que vinham ficando cada vez mais escassas haviam parado por completo há 10 dias. Dias que ele vinha medindo com precisão desde que alcançou a cidade flutuante. Estimou, de um modo um tanto arbitrário, que atingira Laputa cerca de 50 dias após sua “ressuscitação”, pois não havia se preocupado em contar criteriosamente. Mas desde então, contabilizou exatos 50, declarando a si mesmo em tom solene que no dia 100 de sua nova vida, partira para uma nova exploração.

Sua asa delta estava muito bem equipada. Havia reparado um modelo maior e trouxe bastante equipamento. Tinha sua poderosa Veste, que só tinha como desvantagem eliminar quase por completo sua noção da temperatura ambiente, visto que se adaptava com tanta perfeição que tanto fazia estar um calor infernal ou um frio glacial. Era algo com o qual se sentia quase um super homem. E além disso, trazia também o único binóculo que havia encontrado na cidade aérea.

Após a montanha, surgia novamente a floresta. Imensa, quase infinita. E rumo ao gigantesco planeta joviano voou até anoitecer, quando a luminosidade que este recebia do Sol continuava tornando a noite tão clara quanto a mais forte Lua cheia, ainda que amarelada. Nada havia encontrado além de árvores e pequenos rios. Mas preferiu não parar. Tinha bastante água num cantil improvisado, e comida também.

Quando o dia surgiu novamente, ele supunha ter percorrido mais de mil kms. Os ocasionais ventos contrários atrapalharam um pouco, mas na maior parte do tempo foi tranquilo seguir adiante. O dia já estava bem claro quando começou a ter uma noção do quanto os mapas no qual se baseara estavam defasados. O que deveria ser uma vasta e imponente cidade, com prédios de centenas de metros de altura, era apenas ruínas, quase totalmente engolida pela floresta.

Demorou a se situar no cenário, mas uma imensa construção em forma de cruz lhe permitiu ter uma idéia bem precisa de sua localização. Era suficientemente grande para que pudesse pousar em segurança sobre ela, que praticamente lhe ofereceu uma pista de aterrissagem. De lá, olhando o horizonte, estimou que tudo devia estar abandonado há pelo menos um século, mas aumentou ainda mais essa estimativa quando, com o auxílio de uma corda, desceu para uma exploração mais direta por aquilo que, aparentemente, outrora fora uma rua pavimentada.

Como sempre a floresta era repleta de árvores frutíferas saudáveis e tinha apenas animais inofensivos. Mas diferente dos que encontrara até agora, pela primeira vez viu animais perfeitamente reconhecíveis, gatos! Do tipo comum, em cores variadas, que caçavam pequeninos roedores num dos poucos exemplos de predatismo remanescentes. Pelo pouco que sabia de biologia evolutiva, não se surpreendia pelo fato de animais perfeitamente adaptáveis como os gatos ainda permanecerem versáteis, cinco mil anos depois, naquele ambiente da cidade abandonada, sugerindo também que fossem descendentes de animais domésticos.

Tentou achar resquícios de cultura que permitissem uma melhor idéia do como fora aquela cidade, mas estava tão destruída e consumida pelo tempo que a busca ameaça ser inútil. Não bastasse a ação constante da chuva, do sol, dos ventos e das formas de vida, notou que havia também danos que não pareciam ações naturais. Tais como buracos causados por aparentes explosões, a julgar pela aparência dos destroços, estilhaços, e pedaços de rocha derretida, que só poderiam ser resultado de armas pesadas, ou talvez meteoros. Mas a julgar que não havia visto um único meteorito em toda sua nova vida, pensou que ação de forças inteligentes era mais provável. Pois o planeta gasoso atrairia para si a maioria dos asteróides errantes.

Mal pensava nisso e ouviu ao longe o som de aeronaves. Se apressou a subir de volta ao ponto de aterrissagem e avistou uma pequenina esquadrilha seguir ao longe. Pouco depois, uma ainda maior passou diretamente sobre ele, e mais baixo do que nunca. Deviam tê-lo sobrevoado a menos de 1 km de altura, e numa velocidade seguramente menor que a de costume. O fato de, apesar disso, ter sido novamente ignorado, o deu tranquilidade. Pensara se não seria melhor ficar por lá, ou voltar ao sossego de Laputa e do vale. Mas já estava se cansando do isolamento, de não poder conversar com outras pessoas, ou ao menos, seres inteligentes. Há muito já havia começado a falar sozinho, o que lhe preocupava, e sobretudo, queria ter algumas respostas, queria ter o que aprender novamente, em contato com uma nova, vasta e certamente poderosa ciência.

Então decidiu seguir em frente, e decolou rumo ao destino das esquadrilhas.

As Aeronaves...

…não tardaram a ser novamente avistadas. Como sempre eram escuras, triangulares, perfeitamente aerodinâmicas e certamente automáticas, pois eram pequenas demais para comportar um homem como ele, quanto menos um daqueles enormes seres cujos esqueletos jaziam na cidade flutuante, ou até mesmo aqueles de menor porte. Havia transposto os limites da cidade abandonada, demarcada por um rio, além do qual só havia a mais virgem floresta quando subitamente a quantidade de naves aumentou, ultrapassando sua asa delta por todos os lados.

Olhou para trás e ficou surpreso com o enxame que se aproximava, e então se deu conta de sua imprudência. Não conseguia imaginar outro motivo para tamanha concentração de naves em abordagem rápida que não algum tipo de combate, e apesar das naves continuaram indiferentes à sua presença, o mero ar que deslocavam em suas velozes passagens começaram a chicotear seu planador.

Percebeu que era melhor descer o mais rápido possível, pois a qualquer momento podia ser atingido por uma delas, mesmo que acidentalmente, pois já estavam tão numerosas, e tantas mais vinham, que em breve a área em que se encontrava seria preenchida. Mas não podia descer, pois abaixo diversas delas passavam velozes. Acima também, e sua primeira tentativa de fazer uma meia volta foi frustrada por uma ultrapassagem tão rápida que quase fez a asa delta rodopiar. E quando a situação parecia já estar suficientemente perigosa, uma delas simplesmente explodiu!

Olhou para frente e viu uma bola de luz branca , e mais outra, e então as naves passaram a ser mais e mais atingidas por feixes de luz rapidíssimos que as desintegravam em explosões radiantes. Não sobravam destroços, o poder de destruição daquelas armas parecia tão grande que as naves simplesmente vaporizavam por completo.

Curiosamente elas não reagiam, como se estivessem ali exatamente com o propósito de serem abatidas, e mais e mais chegavam, avançando inexoravelmente contra algo que finalmente ele conseguiu distinguir. Sacou seu binóculo e teve alguma dificuldade para conseguir avistar a imagem, mas diante dele surgiu algo ainda mais temível. Parecia um robô flutuante, azul metálico. Vagamente antropomórfico, embora talvez mais por coincidência. Ele estava cercado de pequenos satélites, aos menos 6, e sobrevoava uma aeronave mais baixa, como se estivessem magneticamente ligados, flutuando baixo, quase parados.

Os disparos luminosos provinham dos satélites à sua volta, que se afastavam e voltavam a orbitar o robô à medida que atingiam o enxame de naves que se concentrava. Então, de súbito, uma saraivada de pontos luminosos cor de fogo choveu do céu, disparados pelas inúmeras naves negras, atingindo o robô em cheio e tornando tudo impossível de distinguir dentre a bola de fogo que se formou.

Mas o robô não fora destruído. Somente os satélites foram desintegrados e logo foram substituídos por outros. Mais ao longe, outra nave, um pouco maior e com um design que fazia crer ser do mesmo time do robô, se aproximava mais rápida, e numa única rajada de luz varreu os céus e desintegrou ao menos uma centena de aeronaves.

Foi praticamente um milagre que ele não tenha sido atingido, e agora só havia uma coisa a fazer, descer o mais rápido possível, mesmo tendo que se desviar das aeronaves que continuavam a se aproximar e, com sorte, talvez se desviassem dele também. Num mergulho quase suicida foi contornado nuvens brancas e negras, da fumaça do último ataque que não era tão “limpo” quanto os disparos brancos, até que chegou quase à altura da copa das árvores, por sorte, abaixo da maioria das naves negras.

Mas a situação não ficou muito melhor. Uma troca ferrenha de disparos continuou poluindo o céu, não havias clareiras onde pudesse pousar e ao olhar para frente percebeu outro grupo de robôs flutuantes cercados por inúmeras naves escuras. Um dos robôs explodiu em meio a descargas elétricas, e diante daquele cenário, tendo como pano de fundo o planeta joviano, se sentiu dentro de um pesadelo em forma de videogame.

Então sentiu uma explosão ao seu lado, nem soube de quê, apenas a asa delta foi jogada ao alto como se fosse uma folha de papel, completamente desgovernada, e então voltou a cair se chocando nos topos das árvores. Por um instante ele tomou fôlego, preso entre folhagens e ainda podendo ver a estupenda cena onde robôs, satélites e aeronaves azuladas imponentes enfrentavam um enxame de pequeninas naves negras.

Outro solavanco o fez mergulhar por entre as árvores, numa queda alucinada. A asa delta foi sendo destruída pedaço por pedaço, seus pertences se espalharam por todos os lados, até que ele, enfim solto, começou a se apoiar em galhos tentando frear a queda, mas não foi muito bem sucedido. Sentiu o baque com o solo ao mergulhar numa moita densa de onde pularam pássaros e insetos.

Não sabia por quanto tempo ficara desnorteado. Se levantou e continuou ouvindo os sons do combate acima de si. A Veste, por sorte, continuava tão eficiente como sempre, tendo o protegido da maior parte dos danos, mesmo assim se encostou num tronco, tentando achar ao seu redor algo de seus pertences. Olhou para cima e percebeu o quanto era sortudo pelo fato das naves serem destruídas com tanta eficiência que não sobravam destroços para ameaçá-lo, mas antes que pudesse sentir alguma segurança, um ruído enorme chamou sua atenção.

Ao longe, um robô adentrara a floresta, e vinha em sua direção.

Gravitônica...

…era um título meramente provocativo. Tinha como principal intenção fazer um trocadilho com “grave tônica”, e incitar a idéia de que a física deveria criar um ramo especializado em pesquisar unicamente a mais misteriosa de todas as forças conhecidas. A Gravitacional.

Quanto mais os cientistas, com seus poderosos aceleradores de partículas, sofisticados modelos teóricos e verbas astronômicas falhavam em detectar a partícula fundamental que transportava a Força Gravitacional, o Gráviton, mais surgiam propostas de novas teorias gravitacionais que, entre outras coisas, propunham modelos teóricos que tendiam a romper com os paradigmas vigentes.

A idéia de insistir num modelo relativístico einsteiniano para novas teorias da gravidade era bem popular, mas poucos tinham coragem de apresentar uma proposta séria, principalmente em um evento de renome. Por isso, a tese de que a gravidade não passava de uma reação inercial à aceleração da expansão espaço e tempo tinha mais chances de ser bem sucedida entre apreciadores de ficção científica.

A idéia era a seguinte. Estando o universo em expansão, crescia a uma certa taxa, mas para que a mesma fosse mensurável, a expansão não poderia ser uniforme, caso contrário o detector também estaria se expandindo juntamente com o detectado, anulando qualquer chance de detecção, da mesma forma como ninguém conseguiria medir o aumento na altura de uma criança se lhe fosse dada uma fita métrica que aumentasse também, na mesma proporção.

Então, era evidente que algumas coisas aumentavam mais que outras, e essa diferença era em função da massa. Assim, uma galáxia se expandia mais rapidamente que uma estrela, que se expandia mais rapidamente que um planeta, que se expandia mais rapidamente que uma pessoa. E o fato do planeta sob nossos pés estar se expandindo mais rapidamente do que nós, nos arrastava “acima”, e era a resistência a esse arrasto que resultava na força gravitacional.

Como a expansão se dava em todas as 4 dimensões, tempo incluso, era naturalmente impossível fornecer um ponto a partir do qual o universo se expandia, de modo que ele inflava em todas as direções, fazendo com que essa inércia gravitacional também se desse em todos os sentidos, conectando tudo, sendo porém mais sensível em relação ao contato direto entre o corpo menor e o maior, por isso os corpos menores pareciam ser atraídos para o centro dos maiores. O próprio espaço se expandia, conservando a distância entre os astros, e é evidente que tal expansão teria que manter uma constante aceleração, pois uma expansão uniforme seria imperceptível.

Assim, a “teoria” apenas explicava porquê não havia uma partícula gravitacional a ser detectada, mas deixava tantas outras perguntas que não podia ser levada à serio além da mera especulação livre. O autor deixava isso claro, ou ao menos pensou deixar, ao adicionar uma Equação Gravitônica ao final de seu artigo, assumidamente jocosa, onde sequer se aventurava a deduzir os valores de alguns termos, deixando isso a serviço de quem tivesse mais tempo a perder.

Se arrependeu muito ao ver que tudo fora levado bem mais a sério do que ele jamais poderia imaginar.

O Robô...

…se aproximava rapidamente. Flutuando, imenso, com ao menos uma dezena de metros de altura. Seu metal azul reluzente refletia a floresta, que mesmo escurecida abaixo da cobertura das copas, tinha luz suficiente para que se notasse muitos detalhes.

Seu primeiro impulso foi correr, mas era ridículo ter viajado de tão longe esperando encontrar alguma inteligência, e bater em retirada ao primeiro sinal de uma. Evidentemente o robô já o teria matado se quisesse, e o modo como se postou à frente dele denotava muito mais curiosidade do que hostilidade.

Poderia-se dizer tranquilamente que possuía braços e pernas, 3 delas, embora não exatamente uma cabeça, e sim um centro luminoso no tórax. Flutuava sustentado por jatos de ar aparentemente fracos demais para dar conta de seu peso, que sugeria algumas toneladas. Parou a poucos metros à frente dele, como que o examinando, e então, subitamente, ele se sentiu completamente arrebatado da realidade. Num instante nada mais via, exceto um delírio luminoso multicolorido. Nada mais ouvia exceto um zumbido grave onipresente, nada mais sentia exceto um formigamento em todo o corpo. Se é que sentia o corpo.

Totalmente desorientado, sem sequer saber se estava de pé, deitado, com braços estendidos ou abraçado a si próprio, experimentava provavelmente o efeito de uma arma de desorientação sensorial completa. Não sentia dor, mas essa ausência de uma sensação nítida, correlata a de uma incômoda anestesia, era por si só agonizante. Não sabia se estava ferido, não sabia se seus membros ainda estavam no lugar, não sentia sequer sua respiração.

No momento em que começou a se perguntar por que ao menos não desmaiava de vez e tinha um merecido descanso, começou a voltar a si e então percebeu que havia sim desmaiado. Pois agora seus sentidos retornavam e tudo havia mudado. Não estava mais na floresta. Sentia abaixo de si um confortável colchão, e estava sob tecidos finos. Seus olhos entraram em foco, e aos poucos ele se levantou. Estava em um quarto, completamente fechado, mas que nitidamente sentia seu despertar, pois parecia ir ficando mais claro quanto mais ele se movia. E já conhecia seus sentidos bastante bem para saber que não era apenas acomodação visual à luminosidade.

Chamou-lhe então a atenção o fato de que estava nu, e se surpreendeu pelo tempo em que não olhava suas tatuagens. A Veste se fora, e não estava em qualquer lugar à vista. Bem como nenhum de seus pertences. Seu corpo estava intacto, mas não estava por completo livre de indumentárias. Tinha argolas amareladas e transparentes nos pulsos e nos tornozelos, aparentemente de plástico, resistentes e que não podiam ser removidas. Tentou não pensar naquilo enquanto passava a explorar o cenário.

Sentiu repentina sede quando viu algo similar a uma pia, com um vertedouro por onde escorria um apetitoso filete de água. Bebeu com as mãos, mesmo tendo percebido que havia um copo que poderia ter usado. A água era deliciosa e revigorante, e diferente de tudo o que já provara antes, era absolutamente pura, de uma forma que jamais uma água de rio ou lago, por mais limpa que fosse, poderia ser.

Também havia frutas. Por sinal, das mesmas variedades que ele havia colhido. Comeu-as com avidez, e se sentiu mais tranquilo devido ao evidente cuidado de seu “anfitrião”. Cuidado que ficava ainda mais evidenciado ao notar que havia algo que era certamente um banheiro. Após meses utilizando a própria natureza como sanitário, ficou um tanto fascinado por se deparar com aquilo que apesar do design estranho, era um vaso. Um tanto alto, por certo. Teve dificuldade para se sentar nele e ficou com as pernas penduradas, o que lhe deu a certeza de estar nos aposentos de um daqueles seres de membros inferiores compridos.

Um calafrio lhe percorreu a espinha quando, de volta ao quarto, ouviu algo começar a se mover, mas era apenas o que se revelou ser uma cortina, e onde antes havia apenas uma parede aparentemente opaca, surgia um vidro tão transparente que só era perceptível devido ao movimento das venezianas que deslizavam sobre ele. Do lado de fora, percebeu que estava longe de onde fora capturado. A floresta ainda estava lá, ao fundo, e o planeta gasoso também. Mas em primeiro plano, uma linda cachoeira alimentava um rio que descia belamente a perder de vista. Pássaros revoavam ao longe, e pelo que já conhecia da luminosidade e dos satélites naturais, sabia que devia ter se passado ao menos um dia inteiro, se não mais de um.

Finalmente, enquanto se deslumbrava com o cenário, outro som lhe fez virar para trás. Uma porta muito alta se abria, e ele sabia com toda certeza que conheceria enfim algum dos seres que o haviam recolhido. Puxou subitamente um lençol da cama em que estivera e se cobriu, bem a tempo em que uma enorme silhueta surgiu à sua frente.

Ela,

…pois definitivamente a criatura tinha uma forma feminina, estava trajando uma Veste negra, completamente coberta, não muito diferente da que ele havia usado por tanto tempo. Sua anatomia era de certo compatível com o esqueleto que ele primeiro encontrara, e agora, observando mais, conseguia deduzir melhor a relação ossos e corpo, percebendo que a criatura era, ao mesmo tempo, mais harmoniosa e menos humana do que esperava.

A altura chamava atenção, no mínimo uns 2,20m, mas a cintura estava bem acima do meio do corpo, devido às pernas claramente desproporcionais. Num primeiro momento os joelhos dela se dobravam ligeiramente ao contrário, ficando atrás das pernas e coxas, mas então ela os dobrou para frente, assumindo uma postura mais humana, o que implicou também em descer das pontas dos pés e plantá-los mais firmes no chão, o que compensou o ganho de altura quando ela deixou as pernas retas, como se estivesse tentando se assemelhar a forma dele.

Após olhá-lo de cima à baixo, ou ao menos era o que o movimento de cabeça sugeria, considerando que ele nada via por trás do capacete dela, a alienígena se aproximou. Aquilo que equivalia a barriga ficava praticamente na altura do rosto dele, e logo acima, um inegável par de seios. Na verdade, da cintura para cima ela se parecia com uma mulher, muito delgada, mas da cintura para baixo, mesmo assumindo uma postura mais compatível com a anatomia humana, continuava inegavelmente estranha, principalmente pelas proporções.

A cabeça também não sugeria uma proporção compatível com a dele. Parecia alongada e expandida para cima, e os únicos componentes do corpo que passariam pelo de uma pessoa normal eram os braços, ainda que longos e de mãos muito compridas, mas que pelo menos tinham 5 dedos, longos, em especial o polegar, maior e mais forte em relação aos demais que nos humanos. Então, subitamente, quando ela se aproximou mais, a parte frontal do capacete se tornou transparente, e diferente de todo o resto do corpo, que continuava coberto pela Veste negra, ele pode ver seu rosto, ainda que por trás do vidro.

A pele era muito clara, ligeiramente cinzenta, ou prateada, os olhos enormes, amendoados, mas nem tanto quanto os antigos ufólogos terrestres representavam seus ETs, ou quanto os desenhistas japoneses imprimiam em seus personagens. O que mais chamava atenção era o branco dos olhos, sem sinal algum de irrigações sanguíneas, a ponto de parecerem brilhar. A íris era pequena e cinzenta clara, de modo que uma observação descuidada poderia não a perceber, o que faria a pequena pupila, quase imperceptivelmente alongada, parecer ainda mais distante.

Tinha um nariz pequeno, discreto, mas com narinas vistosas e rosadas. O mesmo podia-se dizer da boca, com lábios finos, e no momento em que ela abriu a boca para pronunciar algo inaudível, ele pensou que não tivesse dentes, mas apenas porque eles eram, de fato, muito pequenos.

Então ela se moveu para o lado, deixando que ele então percebesse uma outra alienígena entrando porta adentro, trajando Veste muito similar e com a cabeça ainda encoberta, mas no momento em que a primeira delas fez com que seu capacete abrisse por completo, a outra o fez apenas ficar transparente.

De imediato saltou-lhe aos olhos as diferenças entre as duas. A primeira, que agora tinha a cabeça totalmente à vista, calva e com orelhas pequenas, tinha um ar inegavelmente simpático, quase amistoso. A outra, que permanecia por trás do capacete, tinha um ar flagrantemente hostil, agressivo, ligeiramente selvagem, apesar de pertencer claramente à mesma espécie, ou uma muito similar. A principal diferença, além dos detalhes das feições, era que suas íris eram amareladas e suas pupilas mais notadamente alongadas, e embora ambas não tivessem sobrancelhas, na segunda as têmporas desenhavam protuberâncias que franziam sobre os olhos, o que por sinal era o principal motivo pelo qual ela parecia agressiva, ou no breve momento que sorriu, quase perversa, se é que aquilo era um sorriso.

Elas se comunicavam oralmente, mas ele nada ouvia do que pronunciavam, como se assistisse um filme mudo. Finalmente a outra também removeu o capacete, provavelmente tendo concluído que seu visitante era químico, viral e bacteriologicamente seguro. A primeira avançou mais, numa distância em que ele já podia tocá-la se quisesse, a despeito de uma aparente repreensão da outra, que também se aproximou, mas nem tanto. Pode então notar outras diferenças. A segunda era mais baixa, menos esbelta, embora ainda mais do que uma humana saudável poderia ser. Ambas não tinham cabelo algum, mas a segunda curiosamente tinha um tipo de véu cuja faixa envolvia da testa até o pescoço, dando a nítida aparência de uma freira, algo que a primeira logo colocou na cabeça também, escondendo uma discreta linha horizontal que cortava toda a circunferência acima dos olhos, análoga ao do corte de uma lobotomia.

Foi só quando a outra circulou em torno dele que teve o vislumbre de uma diferença muito mais perturbadora. Diferente da primeira, ela tinha uma cauda, também protegida pela Veste e tão comprida quanto um dos braços, embora delgada, fina e de movimentos graciosos. Pode notar também que tanto os quadris quanto as nádegas eram humanóides, reforçando a aparência de mulher não fosse a cauda que parecia se mover de um modo meticuloso, sempre pronto a desferir um movimento brusco caso fosse necessário.

Ambas também tinham seios protuberantes, mas isso, ele já sabia, se devia ao fato das costelas do peito serem projetadas para frente, como pôde verificar nos esqueletos que já havia encontrado. E toda a residual feminilidade desaparecia com o modo que por vezes elas se moviam, ou melhor, desaparecia a própria humanidade, visto que caminhavam e se portavam de modo mais similar a “faunos”, inclusive dobrando os joelhos ocasionalmente para trás.

Com tudo isso, ele não conseguia quebrar o gelo e dizer alguma coisa, já prevendo que não seria entendido. O pior, elas comunicavam-se entre si com notável eficiência e ênfase, até trocando gestos e numa discussão que já parecia estar acalorada, mas ele não ouvia som algum excetos certos estalos dos lábios, como se falassem numa frequência inaudível. Finalmente, a outra pareceu convencer a primeira de alguma coisa, e então elas se afastaram e foram em direção a porta, mas quando a primeira fez um sinal para que ele a seguisse, a outra fez um para detê-lo, e fez um estranho gesto de dedos em sua direção, e subitamente, as argolas de seus pulsos se acenderam e se atraíram, prendendo-se por um tipo fortíssimo de magnetismo uma na outra, resultando numa eficaz algema. Então, aliviando o gesto, elas se soltaram de novo, e com outro gesto, foi a vez das tornozeleiras se atraírem, o que quase o derrubou e terminou por fazer o lençol que o cobria, que por sinal era por demais transparente, cair.

Enfim, com um sorriso de aparência maléfica, e outra desativou a atração das argolas dos tornozelos, Fora apenas um teste, e com um sorriso bem menos convidativo, confirmou o convite para que ele as seguisse.

As Criaturas...

… o conduziam por um corredor estranhamente estreito e alto, como se feito sob medida para elas. A primeira alienígena, a simpática, ia na frente, e mais uma vez a contraditória sensação de humanidade e não humanidade se misturava. As nádegas e quadris eram muito similares às de uma mulher, até mesmo no rebolado, mas as pernas se moviam de modo completamente inumano, inclusive com os joelhos se flexionando lateralmente, além de para a frente e para trás. Além disso, o estranho “dedo” traseiro parecia servir tanto para elevar a planta dos pés, como num salto alto, como também para equilibrá-la lateralmente, visto que por vezes se deslocavam para fora ou dentro.

Olhou para trás mas preferiu voltar-se novamente para frente, devido ao olhar hostil da outra, e então chegaram numa sala octogonal, rebaixada e com três aberturas para à floresta e as montanhas. Elas o orientaram a ficar no meio, sobre um círculo branco ao centro, enquanto se acomodaram em bancos altos, que mais se pareciam com selins de bicicleta. A primeira alienígena pareceu ter o cuidado de assumir uma posição mais humana, dobrando os joelhos com coxas à frente e as pernas atrás. A segunda pareceu ter feito questão de deixar as pernas dobradas no ângulo mais estranho possível, parecendo um inseto.

Então o círculo onde ele estava se elevou, deixando-o mais ou menos na mesma altura delas, pois embora estivessem sentadas, seus bancos ainda as deixavam muito altas. A alienígena hospitaleira fez uma expressão serena, como se tentasse sorrir, e começou a nitidamente falar com ele, embora de modo inaudível. Ele tentou mostrar que não conseguia ouvi-la, e então ela falou num tom audível, ainda que suave e baixo, e que por sorte era perfeitamente compatível com uma voz humana feminina, porém, é claro, discorrendo em idiomas incompreensíveis, pelo que sugeriam as distintas frases que proferia, cada uma de uma estrutura e estilo diferente. Ele então respondeu em Inglês, na vã esperança de que esse idioma tivesse mais chances de ter sobrevivido mais tempo ao longo da história, mas não se impressionou quando não foi entendido. Ficou em dúvida se mudava de idioma ou se mantinha o mesmo, aumentando as chances de que alguma coisa fosse entendida, até que decidiu falar em Espanhol, e após algumas frases, para sua surpresa, uma voz onipresente nitidamente perguntou, ainda que num sotaque estranhíssimo:

- Você fala o idioma 'Português' da Segunda Formação?

Ficou tão espantado que demorou a responder. – Quê? Sim! Falo português! Mas como...

A voz, evidentemente de um computador e carregada de um sotaque aparentemente espanhol, interrompeu sua pergunta. – Seu sotaque arcaico nos outros idiomas o denunciou.

Agradeceu aos céus por finalmente ter a chance de ser entendido e conversar, e então começou a contar sua história. Seu despertar na base que fora destruída, sua fuga para a floresta e o modo como sobreviveu, mas logo foi interrompido quando o computador lhe pediu silêncio e começou a conversar com suas anfitriãs, num daqueles idiomas incompreensíveis embora audível.

Sabendo que estava sendo traduzido, começou a sorrir e sentir que finalmente estabelecera contato com os novos habitantes daquele mundo, mas quando o computador voltou a falar com ele, foi bruscamente interrompido pela primeira anfitriã, que parecia lhe dar instruções. Então elas começaram a conversar entre si, de forma que ele podia ouvir mas não entender, e conversavam também com o computador. Ele esperou por bastante tempo, até que tentou interromper, mas foi ignorado. Após um tempo infindável ouvindo-as conversar, insistiu em se fazer ouvir, tentando garantir que tinha boas intenções e que queria apenas aprender.

O computador pareceu ter traduzido à elas sua frase, pois a anfitriã simpática olhou para ele de modo expressivo, e fez uma clara confirmação com a cabeça. Ela se levantou e pegou uma placa escura, depositando-as sob seus pés. Era uma Veste, e só então se lembrou que estava nu, mas diferente de sua antiga roupa, esta não cobriu totalmente seu corpo, vestindo apenas a partir de pouco acima dos joelhos, cobrindo totalmente o tórax, mas prolongando-se até o meio dos antebraços. E ele logo percebeu que não podia controlá-la.

Curiosamente, as alienígenas se levantaram e suas roupas também se encurtaram de modo similar à dele, ficando com as pernas nuas a partir do meio das coxas, e com os braços também semi despidos. Os braços então se revelaram bastante similares aos humanos, mas os pés, agora descalços, revelaram-se ainda mais estranhos. A primeira não tinha dedos, apenas uma ponta similar a de um sapato de salto, embora evidentemente feita de carne e osso, a segunda, por sua vez, tinha uma ponta ligeiramente fendida, mas não como um casco, apenas como um pé que usasse uma meia grossa que permitia alguma distinção entre um enorme polegar e os demais dedos. Ambas porém tinham após o calcanhar o estranho dedo traseiro, com duas articulações como se fosse um enorme polegar inferior. A primeira anfitriã os dobrava na primeira articulação, mais próxima ao calcanhar, simulando um salto baixo enquanto o restante do dedo se acomodava sob o pé. A segunda manteve o polegar totalmente ereto, simulando um salto alto.

Então a primeira apontou para algo em sua própria roupa, próxima ao pescoço. Um pequeno símbolo que não era discreto, mas que com tantas coisas novas, ele havia ignorado. Ela pareceu ter removido o símbolo, mas na verdade removeu uma cópia, pois o original permanecia intacto ao mesmo tempo que um novo, idêntico, ficou em sua mão. Ela pegou esse símbolo e aplicou no peito dele, numa posição equivalente, e pronunciou algo incompreensível, até que apontou para sua companheira e disse nitidamente “Ei-Kis”, apontou a si própria e disse “Dir-Zá”, e então apontou para ele e disse “Ielg”.

Há Cinco Milênios...

...o reitor Edmundo Sales Reignhald, em seu reservado gabinete, terminava de ouvir atentamente seu velho amigo Glei, que prostrado numa cadeira de rodas, não conseguia conter as lágrimas. Ficou um pouco chocado, mas nada que pudesse alterar a simpatia que tinha por aquele homem. Após um longo e compreensivo silêncio, tentou consolar o companheiro, e finalmente falou.

- Obrigado por me contar. Obrigado por ser tão... Honesto.

- Eu não poderia... Guardar isso só pra mim. Mesmo que estrague tudo! Mesmo que me custe...

- Shhh... Quem está dizendo que vai custar? Olha... Essas coisas são... Inevitáveis. Quantas vezes eu já tomei muito mais que uma taça de vinho antes de cair na estrada? Quem já não fez isso!?

- Mas nunca matou ninguém... Não é mesmo?

- E quem disse que você matou?

- Ed... Eu... Eu vi o carro! Eu vi! Só que eu não consegui reagir! Não consegui porque estava bêbado!!!

- Há! O dia em que duas taças de champanhe deixarem alguém bêbado, o mundo acaba! Amigo... Você bebeu um pouco mas... Não estava nem alto! Alguém percebeu?

- Não... Ninguém percebeu. Ninguém...

- E daí? Impossível descobrirem. Quando te acharam você estava encharcado em álcool combustível! Quando aquele tanque rompeu o carro só não explodiu porque a pista estava muito molhada! Foi muita sorte!

- Sorte? Quisera eu ter morrido.

- Não! Não diga isso! Você já foi escolhido! Você será o nosso representante no futuro! Não estamos mandando um depressivo nessa jornada! Entenda isso. Todos contam com você. Todos admiraram sua capacidade de superação.

- Eu só quero... Fugir. Deixar tudo isso pra trás...

- Olha! Fato é que mesmo que tivessem tentado medir seu estado etílico teria sido impossível. Não com aquele álcool todo espalhado. Você quase se afogou. Além do mais as testemunhas viram que o sujeito entrou mesmo pela contra mão! E daí se você demorou?! Se seu reflexo foi lento!? Mesmo que não fosse, nada garantia que evitasse o acidente! A ocorrência foi clara, ninguém jamais culpou você! Por que diabos acha que isso muda alguma coisa?

- Não sei, eu... Eu só queria... Contar pra alguém. Desabafar.

- Claro. Eu entendo. Mas... Ninguém mais precisa saber disso, ok? Não vai ser bom pra ninguém.

- É. Eu sei. Ninguém mais sabe. Nem vai saber.

- Promete?

- É... Pelo menos pelos próximos 50 anos.

- Há há há... Isso.

- Ok.

- É... Tem alguma outra coisa? Alguma coisa a mais que você queira me contar?

- ...

- Tem?

- ... Humm... Não. Era só isso.

- Bom. Muito bom. Agora, preciso cuidar de alguns últimos detalhes. Vá pra casa. Você precisa descansar.

IELG...

…se surpreendeu com a facilidade com que se adaptou a seu novo nome. Tentou inúmeras vezes dizer seu nome real, mas foi deliberadamente ignorado, e terminou ficando com uma sensação estranha de acomodação. Primeiro, pelo fato bastante esquisito de que seu novo nome soava como seu mais comum apelido, desde a infância, dito invertido. Segundo porque achou que ser batizado lhe deu uma notável sensação de superação do passado. Como se de repente olhasse para trás e tivesse vencido o trauma. Via as tatuagens de sua mulher e filha, e sofria menos, como se elas fossem personagens históricas às quais admirava e se orgulhava, mas cuja tragédia parecia agora elevada de um drama pessoal a um drama literário oficial, profundo, pesado, mas ainda assim... “distante”.

Ademais, era nítido que aquele ritual fora importante para suas novas companheiras, ou proprietárias, por assim dizer. Sim, pois algo que ele tinha percebido desde o primeiro momento é que havia sido não apenas adotado, mas que Dir-Zá se sentia como sua dona e responsável, ao passo que Ei-Kis mantinha uma relação bem mais distante, e menos amigável.

Não foi fácil aceitar o estranho fato de que o computador estava, de algum modo, proibido de falar com ele em qualquer idioma que entendesse. Seria como se estivesse submetido a um programa de aprendizado de idioma absolutamente imersivo e compulsório, não fosse o fato de, na maior parte do tempo, elas conversarem entre si de modo inaudível, e somente Dir-Zá falasse com ele. Ainda que ela usasse frases simples e fáceis de ser memorizadas, bem como sempre gesticulasse de um modo auxiliador, ele não conseguia entender por que era sutilmente repreendido quando tentava falar em seu próprio idioma com o computador. Não se conformava com o fato de que uma troca de informações perfeitamente eficiente, com um equipamento capaz de deduzir até o idioma natural pelo sotaque, e inclusive com enorme potencial em facilitar o aprendizado da língua, estava sendo deixada de lado.

Mas de qualquer modo, com o tempo acabou percebendo que, ainda que de forma mais lenta, estava aprendendo talvez de forma mais profunda. Nos dias que se seguiram ele passou a conviver com aquelas criaturas sobre as quais ainda quase nada sabia. Eles dormiam nos mesmos horários, ele naquele mesmo quarto, elas em algum lugar que ele ainda não conhecia, mas comiam juntos num amplo ambiente externo, ao ar livre, diante de um bosque artificial em frente à magnífica floresta. A antropologia deixava claro que compartilhar a comida num ritual presencial era um dos mais nítidos sinais de amistosidade, bem como a simples aparência de feminilidade das criaturas o deixava mais tranquilo, remetendo a probabilidade sociológica das mulheres serem menos perigosas em tais situações.

A floresta era na verdade um tipo de pomar, onde as frutas eram cultivadas, sempre em árvores, e possuíam uma variedade espetacular, muito maior do que a que ele poderia encontrar no passado. Algumas sequer pareciam frutas, se assemelhando mais a bolinhos de massa ou mesmo carne. Eram por vezes crocantes, as vezes repletas de recheios comestíveis, complexos demais para serem produtos naturais. Era evidente que a tecnologia e a cultura haviam chegado ao entendimento que era melhor projetar os alimentos com os componentes ideais e então criar as árvores para que os produzissem. E tal engenharia biogenética era tão impressionante que até havia se preocupado com a durabilidade e decomposição, pois as frutas permaneciam muito tempo maduras, conservando-se muitíssimo mais que as do passado, mas quando começavam a passar do ponto, decompunham-se surpreendentemente rápido.

Sua nova casa, que ele preferia não considerar como uma prisão apesar dos “grilhões” que ainda usava, era bem vasta. Tinha ao menos 3 mil m² de área interna e muitíssimo mais de externa, de modo que a cachoeira e grande parte do rio ficavam nos limites da propriedade, que ele podia saber exatamente onde eram, apesar de não haver coisas similares a cercas, pois as argolas em seus pulsos e tornozelos se ativavam automaticamente sempre que ele cruzava um certo limiar, prendendo os braços, e se avançasse mais, as pernas, e se ele ainda insistisse em prosseguir aos pulos, as quatro argolas enfim se juntavam, tornando qualquer avanço impossível. Na primeira vez em que isso ocorreu Ei-Kis pareceu se divertir em arrastá-lo de volta até que pudesse andar novamente, na segunda, Dir-Zá o carregou no colo com evidente delicadeza.

Tentou não se aborrecer com isso e aproveitar os pontos positivos. Ria de si mesmo ao pensar que estava numa prisão 5 estrelas. Um lugar bonito e confortável, onde estava sendo bem alimentado e bem cuidado, e tinha acesso a recursos interessantes como a informação que aos poucos começava a entender. O idioma que Dir-Zá usava com ele ia sendo aos poucos inteligível, e ele podia usá-lo também com o computador, com o qual aprendia mais. Com isso, pôde começar a desvendar alguns conhecimentos sobre o novo mundo em que vivia, embora grande parte parecia se tornar ainda mais enigmática.

Soubera que Dir-Zá o havia observado desde o primeiro dia, ao detectar a operação de descongelamento no interior da montanha. Enviou um satélite de observação aparentemente impossível de ser visto por ele, mas, supostamente, não tivera nada a ver com a destruição do complexo. Ela disse ter visto sua fuga, acompanhado alguns de seus dias na floresta, sua entrada e seus dias no vale, mas parece que perdera totalmente contato com ele quando voou para Laputa. Aparentemente, como as observações eram ocasionais, ela perdera os momentos em que ele subira à cidade flutuante, e só tomara conhecimento dele novamente quando chegara ao local da batalha que o derrubou na floresta. Ielg tentou não pensar que isso era um tanto estranho, visto que passou vários dias preparando a asa delta e sobrevoando o vale, bem como pelo fato da cidade aérea ser visível por cima.

Entendera também que aquela batalha, por incrível que pareça, era um tipo de jogo. Um misto de diversão e esporte estratégico, embora, segundo o que conseguia entender, também tivesse uma dimensão séria. Ao que tudo indicava, assim como elas, havia vários grupos espalhados pelo planeta, vivendo em propriedades similares, que dominavam vastas áreas de território com seus robôs e aeronaves, e que de algum modo frequentemente lutavam entre si, ainda que sempre por meio de seus recursos totalmente automáticos e sem causar vítimas. Quem vencesse uma batalha podia expandir seu território, embora ficasse claro que pareciam jamais fazer uso deles, visto que apenas uma pequena fração era de fato utilizada, e elas sequer pareciam sair de seus domínios mais próximos, como se jamais precisassem de nada mais do que tinham à mão. Em suma, aquele planeta parecia dar lugar a uma versão real dos antigos jogos multiplayer on-line em massa!

Descobriu também que aquela batalha foi uma espécie de mal entendido. O território em que estava o complexo de congelamento pertencia a um outro clã, que teria pensado erroneamente que a destruição da montanha fora uma invasão do grupo de Dir-Zá, e decidiu retaliar em sucessivos ataques, até que naquela batalha terminou por perder quase que totalmente sua frota numa recepção surpresa, com a ajuda de aliadas delas, bem como num contra ataque fulminante que terminou por expandir o território de suas anfitriãs e aliadas para além do local da destruição da montanha, de modo que agora o Vale, cidade voadora inclusa, fazia parte dos territórios onde Dir-Zá e Ei-Kis podiam visitar livremente. Com isso, Ielg chegou a sugerir irem até a cidade voadora, mas o modo como seu pedido fora recusado lhe deixou particularmente intrigado e cauteloso.

Ele sabia também que havia cidades com números mais expressivos de habitantes, uma não muito longe dali, bem como outras propriedades particulares similares, quer eram em geral aliadas. Mas Dir-Zá conseguiu deixar claro que não havia previsão para que eles, nem mesmo elas, as visitassem, de modo que seu período de aprisionamento naquele local continuava indefinido.

No momento não pensava em escapar. No mínimo teria que aprender muito para tentar uma solução amigável ou, se isso falhasse, tentar algum meio de fuga. Mas sabia que qualquer tentativa seria completamente ridícula enquanto não entendesse muito bem aquela tecnologia, aquele ambiente, a cultura e a situação em geral. E isso ainda não estava sendo fácil.

Dir-Zá...

...era o principal motivo pelo qual ele se mantinha tranquilo. Com o passar dos dias, ela ficava mais atenciosa com ele, aprendeu a sorrir de um modo amistoso e passou a se aproximar mais e mais até que passou a tocá-lo de forma evidentemente carinhosa. Era sua instrutora, tinha muita paciência, e com frequência atendia suas solicitações. Só 3 pareciam ser definitivamente proibidas: falar em qualquer idioma de seu tempo, mesmo com o computador; sair dos limites da propriedade, e falar sobre qualquer coisa relativa à cidade flutuante ou mesmo qualquer cultura passada que não fosse ancestral direta das dela, o que incluía qualquer tema relativo ao seu congelamento e sua civilização.

Ele procurou não pensar muito no assunto e se concentrar no que poderia aprender, e em como poderia conquistar a confiança de suas captoras. Aprendeu a agradar sua proprietária. Ela parecia se divertir com suas dificuldades, gafes e esforços para se adaptar às novas condições. Com o tempo, cedeu algumas regalias, como uma Veste que podia ser configurada de acordo com suas preferências, embora muito mais limitada que a sua Veste original, e direitos crescentes de acessar mais conteúdos nos sistemas de informação da casa, que já sabia ser desconectado de um outro sistema maior, de nível global.

Com o tempo ele também passou a admirá-la. Podia não ser exatamente uma mulher e evidentemente não havia qualquer forma de atração entre eles, mas ela ainda era bela ao seu estilo. Percebeu que apesar da estranheza inicial, ela era essencialmente menos diferente dele do que parecia. Seus joelhos, por exemplo, embora pudessem se dobrar em praticamente qualquer direção, o faziam preferencialmente como os seus, ficando à frente das pernas e coxas. Assim, ela podia, tal como qualquer humano de seu tempo, flexionar as pernas completamente e se ajoelhar, ou se sentar, como uma humana. Mas a flexão inversa era limitada, na verdade não chegava a 45 graus, e as flexões laterais eram mais limitadas ainda. No resto as articulações de seu corpo não eram muito diferentes das dele.

Exceção feita, é claro, ao dedo traseiro do pé. Descobriu que era muito forte e tinha várias funções, sendo a principal se agarrar com firmeza ao solo, fornecendo uma base de solidez que os humanos jamais poderiam simular. Aquelas criaturas, do tipo que, segundo ele havia entendido até agora, constituíam ao menos metade da população planetária ou daquela região, eram capazes de se segurar pelos pés em galhos de árvores, barras horizontais ou mesmo meras protuberâncias no teto, ficando tranquilamente de cabeça para baixo e podendo permanecer assim por horas. Como ele próprio havia testemunhado, a agilidade delas nas árvores era impressionante. Esse dedo também podia ficar completamente estendido, aumentando a base de apoio ao chão, ou confortavelmente dobrado sob o pé, e dependendo da articulação em que se apoiava, ou na ponta do dedo, podia simular 3 níveis de “salto” sob o calcanhar. Mas o que elas pareciam considerar mais importante era a possibilidade de se agarrar com os pés à saliências no solo, impedindo que fossem arrebatadas por qualquer coisa que viesse por cima.

Fora esse detalhe anatômico singular, de resto, a flexibilidade dela não estava muito além da que uma acrobata humana que possuísse frouxidão ligamentar podia apresentar. Em especial destacava-se o fato de ela poder girar a cabeça bem mais que os meros 90 graus permitidos aos humanos, embora não chegasse ao ponto da completa reversão, e pelo fato de que as pequenas orelhas apresentavam movimento independente, embora longe da versatilidade das orelhas de um cão ou de um gato. Seus dentes também eram curiosamente flexíveis, e bem pequenos. Na verdade eram cartilaginosos, adaptados à frutas que consumiam. Não tinham a menor possibilidade de quebrar estruturas mais resistentes, e nem mesmo seriam capazes de rasgar uma carne ou um pão mais duros. Elas ficaram impressionadas com a força dos dentes dele, e isso lhes gerou certa preocupação, de modo que considerou uma sorte que pensassem que os dele podiam se regenerar facilmente como os dela caso se quebrassem, visto que sentiu que ao menos Ei-Kis pareceu pensar que seria melhor deixá-lo desdentado.

Mas Dir-Zá, que era quem de fato era responsável por ele, não manifestara tal preocupação, e só lhe fazia constantemente uma requisição que a princípio parecia estranha, se não preocupante. Preferia que ele usasse o mínimo de Veste possível, e no geral fazia o mesmo. No início ele realmente pensou que aquelas criaturas possuíam algum tipo de interesse físico por ele, mas depois percebeu que ocorria a noção de que as Vestes sinalizavam intenções ocultas entre os seres. Quanto mais alguém estava vestido, menos à vontade deixava seus interlocutores, mais incerteza havia quanto a seus objetivos. Era como se uma Veste fosse, afinal, um tipo de armadura, que só se justificava em ambientes hostis ou em situações de confronto.

O primeiro contato que tiveram, onde ele estava por completo nu e elas totalmente vestidas, simbolizava isso perfeitamente. Era o momento em que ele estava em total vulnerabilidade diante delas, e onde podiam provar que não tinham intenções hostis. Quando ela lhe deu a Veste e ao mesmo tempo elas reduziram às suas, foi uma espécie de sinal de paz e mútuo voto de confiança, e com o tempo, tendiam a ficar cada vez mais nus perante o outro.

Por sorte, ele percebeu, havia um nítido limite civilizado, e não parecia chegar ao ponto em que ficariam completamente despidos. Aparentemente, haviam atingido um nível ideal, onde a pélvis, nádegas e quadris permaneciam vestidos, ao contrário de todo o mais, exceto pelo fato de que elas preferiam usar o véu que lhes dava a aparência de freiras, enquanto ele estava bem servido pelos cabelos. Nesses casos, o símbolo que ele ostentava, que simbolizava seu pertencimento à Dir-Zá, ficava na cintura, enquanto o dela normalmente ficava na testa, na faixa do véu.

Mas, como viria a perceber, ter seus tórax despidos não era exatamente um sinal de equivalência, pois aprenderia que elas poderiam ser mais ameaçadoras com os seios à mostra do que cobertos.

Ei-Kis...

...era o oposto de Dir-Zá em quase tudo. Ela quase nunca era francamente amigável com ele, e era difícil saber se era um problema pessoal ou se ela seria sempre assim com possíveis outros seres além de sua companheira. Raramente lhe falava, e quando o fazia não tinha preocupação alguma de se fazer entender, já parecendo aborrecida mesmo por ter que usar um tom de voz que lhe fosse audível. Pois essas criaturas eram capazes de falar numa frequência mais baixa, inaudível para ouvidos humanos, embora também não fossem capazes de captar frequências mais altas, que para ele eram audíveis. Outra diferença era a amplitude visual. Elas podiam enxergar em luminosidades mais baixas e mais altas que ele, pois suas pupilas tinham uma capacidade incrível de adaptação, mas em compensação distinguiam menos as cores, ficando impressionadas com o modo com que ele podia perceber visualmente sutilezas cromáticas.

Se por um lado Ielg jamais faria nada contra Dir-Zá, por outro lado, mais de uma vez, sentiu raiva de Ei-Kis e quis gritar com ela, ou mesmo repelí-la. Mas estava decidido a não partir para qualquer tipo de ação física, porque ela, evidentemente, parecia estar sempre à espera de um motivo para atacá-lo. Irritava-lhe em especial o modo com que ela lhe hostilizava com a cauda, que ele achava mais e mais repulsiva, não pela constituição em si, mas pelo modo como agia. Sempre que ele se aproximava por trás, Ei-Kis, mesmo sem se virar para ele, “armava” a cauda, como numa posição defensiva, e com ela fazia movimentos como se a qualquer momento precisasse se defender de um ataque, ou fosse iniciar um. Certa vez ela virou a cabeça e ficou olhando ameaçadoramente para ele, mantendo sempre a cauda à sua frente, como que numa demarcação de limite de aproximação.

A cauda era na verdade mais comprida que os braços, muito flexível e bastante forte. Ei-Kis, além de poder se pendurar de cabeça para baixo com os pés, ou mesmo com um só pé, como Dir-Zá, também podia fazê-lo apenas com a cauda, que tinha aparentemente dezenas de articulações, de modo que podia dar várias voltas em torno de um objeto pequeno.

A rispidez e aparente hostilidade de Ei-Kis só não lhe preocupava mais porque Dir-Zá evidentemente não se incomodava com ela, até mesmo parecendo se divertir com o clima de tensão entre eles. O que, afinal, acabava dando um verniz de traquinagem, ou ao menos "aborrescência", às atitudes de Ei-Kis. E também porque apesar de tudo Ei-Kis parecia gostar e respeitar muito Dir-Zá. Na verdade pareciam bem íntimas, frequentemente se tocavam, e ele sabia que dormiam juntas embora não pensasse que houvesse algum tipo de contato de tipo sexual, pelo simples fato de que, por tudo o que aprendera até então, aquelas criaturas não eram sexuadas. Não eram mulheres!

Isso era dedutível não apenas pelo fato de não terem umbigo, ou de não ter havido até agora qualquer sugestão de fossem capazes de ser mães ou sequer de que existissem machos de sua espécie, mas principalmente pelo motivo pelo qual ter seus seios à mostra era o exato contrário do que seria no caso das mulheres em relação aos homens, isto é, ao invés de ser um sinal de intimidade ou exposição, e mesmo vulnerabilidade, era na verdade um sinal de ameaça.

Ielg começou a desconfiar disso pelo modo como Ei-Kis, desde antes que começassem a despir seus troncos em sinal de mútua confiança, frequentemente deixava apenas os bicos dos seios à mostra, que apontavam para frente como se fossem dois canhões e ocasionalmente se inflavam. E de fato eram armas! Ao que parecia, a falta de uso para efeitos de amamentação ou sexualidade deu àquelas criaturas, por meio de evolução ou manipulação genética, uma sinistra nova função. Os seios expeliam jatos de uma substância gordurosa que, ao atingir um alvo, rapidamente se expandia como espuma de poliuretano, e se tornava terrivelmente pegajosa, constituindo então uma impressionante arma paralisante.

Ei-Kis fez questão de demonstrar isso à ele, “cuspindo” de seus seios jatos da substância que só compartilhava a cor com o leite, pois ao atingir uma parede, inflou quase instantaneamente, se tornando tão aderente que ao tocá-la, como ela mesma incitou, Ielg ficou com a mão imediatamente colada, só conseguindo se livrar muitos minutos depois após muita insistência, onde acabou prendendo também a outra mão na tentativa de se soltar, e só o conseguiu, aparentemente, mais pela dissolução natural da própria substância do que pelo seu esforço pessoal.

Embora ambas pudessem fazer isso, Ei-Kis o fazia com muito mais frequência. Quase todos os dias praticava “tiro ao alvo”, em especial contra frutas que estavam mais altas nas árvores, por vezes deixando um fio que conectava o bico do seio ao local atingido, muitos metros acima, que se inflava e se tornava um barbante, e depois era puxado com as mãos, derrubando a fruta, ou conforme fosse o caso, o galho inteiro. Se não fosse possível, ela só precisava lamber as mãos para dissolver de imediato a substância pegajosa, o que podia fazer com uma língua incrivelmente grossa e comprida. Assim, podiam comer a fruta mesmo em meio à espuma colante, não só porque elas podiam ingeri-la sem problemas, mas porque sua saliva imediatamente neutralizava o efeito adesivo e expansivo. Algo que, como era de se esperar, a saliva de Ielg não podia fazer, mesmo porque a saliva delas era muito ácida, ao menos para ele. Não chegava a ser corrosiva, mas um pequeno respingo ardia como sumo de limão. Por sorte ele só descobriu isso após ficar convencido que elas jamais pretenderam beijá-lo.

Com isso, era explicado por que Ei-Kis gostava de sempre apontar seus seios em direção à Ielg, frequentemente inflando-os como se fossem disparar, e desinflando-os em seguida, ou fazendo-o repetidas vezes num movimento constante de pulsação. Ficou claro também porque os seios delas variavam de tamanho, e os de Dir-Zá pareciam muitas vezes maiores durante parte do tempo, pois ela demorava a descarregá-los, enquanto Ei-Kis o fazia constantemente, mas quando demorava a fazê-lo, inchavam ainda mais, ficando bem maiores.

Embora elas pertencessem à mesma espécie, se é que podia-se chamar assim criaturas que não se reproduziam, a cauda e os pés ligeiramente ungulados não eram as únicas diferenças entre Ei-Kis e Dir-Zá. Ela era também mais baixa e mais corpulenta, embora não muito e numa proporção equivalente, de modo que tinham o mesmo peso. Suas orelhas eram um pouco maiores, embora fosse difícil vê-las, visto que na maioria das vezes, as duas “alienígenas” as cobriam com o véu que parecia ter como função esconder as estranhas “linhas” cranianas, evidentemente, as divisões dos lobos frontais, occipitais, etc, como os também evidentes em bebês humanos recém-nascidos. Seus olhos também tinham a íris mais notável e a pupila mais alongada, e o mais interessante, sua pele apresentava frequentes mudanças de tom que não eram causadas pela exposição ao sol, mas simplesmente pelo temperamento. Quando mais relaxada, sua pele era mais prateada, quando mais nervosa, era mais dourada, e o melhor é que nenhuma delas podia perceber isso, mas ele percebia, de modo que observar o tom de pele de Ei-Kis lhe permitia prever sua disposição e agir conforme a situação, o que teve o incrível efeito de incomodá-la, visto que passou a aparentar possuir uma percepção sobre ela que lhe parecia sobrenatural. Isso lhe ajudou muito a evitar possíveis conflitos e até em se favorecer dos momentos mais irritadiços de Ei-Kis, quando sabia que podia contar com sua má-vontade e, por exemplo, manipulá-la para ficar ou deixar um recinto.

Ele nunca as viu brigar, mas já havia notado momentos de desconforto mútuo, muitas vezes devido a presença dele, era óbvio. Mas tais momentos sempre eram seguidos por evidentes reconciliações, e depois disso Ei-Kis sempre estava mais prateada.

Os Dias de Cativeiro...

...já totalizavam aproximadamente 30, estimava ele, uma vez que nunca conseguira saber quanto tempo havia se passado quando estivera inconsciente após o ataque do Robô. Apesar disso, era como se a maior parte de sua nova vida tivesse sido passada ali, em companhia daquelas duas criaturas.

Ainda não conseguia conversar plenamente com Dir-Zá, mas conseguiam trocar frases e mais e mais tinham uma forma de comunicação capaz de expressar o que queriam um para o outro, mesmo que isso fosse muitas vezes às custas de gestos, expressões faciais ou modulações tonais na voz. Ele também aprendeu a perceber sutis variações na cor dos olhos dela, que lhe permitiram perceber melhor o que ela queria, pensava ou sentia. Poderia fazer o mesmo com Ei-Kis se eles conversassem mais diretamente com mais frequência, mas dela, bastava ler a expressão das sobrancelhas para saber se era prudente abrir a boca ou não. Era impressionante como 5 mil anos de evolução havia afastado ele dessas criaturas ao ponto de idiomas e corpos absolutamente incompatíveis, mas mesmo assim as expressões faciais permaneciam uma linguagem incrivelmente eficiente para um bom leitor, o que de fato ele era melhor que elas.

Tanto que já havia percebido de antemão que iriam finalmente sair da propriedade, quando Dir-Zá lhe comunicou, meio que de surpresa, ou assim ela esperava. Ele já conhecia a maior parte da casa, sendo os aposentos delas um dos poucos locais que ainda lhe eram proibidos, e onde também, desconfiara recentemente, elas “jogavam” os combates contra os clãs adversários, que ele era proibido de ver, e tinham acesso aos comandos de suas naves. Por isso ficou surpreso quando viu pela primeira vez, no subterrâneo, o acesso ao túnel que os levou centenas de metros até um hangar, onde havia uma quantidade incrível de veículos, embora a maioria pequenos.

No caminho, eles passaram do limite imposto a ele, de modo que as algemas dos pulsos se acenderem e se atraíram, mas Dir-Zá imediatamente se virou para Ei-Kis, como que indignada por algo que ela deixara acontecer. A antipática criatura apenas sorriu malévola, e num gesto desativou totalmente as algemas no momento em que as dos pés também estavam prestes a se atrair.

Passavam pelo hangar, onde estavam inúmeros robôs como o que havia lhe capturado, bem como aquelas naves azuis sobre as quais eles flutuavam, e diversos outros tipos de veículos, alguns imensos, outros pequeninos. Pararam num setor mais afastado e se dirigiram a uma nave de aparência diferente, que evidentemente era convidativa, adequada ao transporte de passageiros.

Finalmente ela lhe deu uma Veste do tipo que ele usava antes, e elas próprias vestiram outras similares, e logo, como há muito não acontecia, estavam totalmente cobertos exceto as cabeças e mãos. Ele então pode mais uma vez manipular sua roupa. Estava desacostumado a ter suas tatuagens tampadas, por isso removeu as mangas e as observou mais uma vez, antes de cobri-las de novo. Elas perceberam, aliás o faziam com frequência, tendo sempre se mostrado intrigadas. Mas nunca fizeram pergunta alguma sobre isso, e se recusaram a ouvir nas poucas vezes em que ele tentou lhes contar.

Devidamente acomodados, a nave flutuou, se dirigiu a um teto sólido como metal e subitamente se viu ao ar livre, como se tivesse atravessado a rocha sólida que havia ficado para trás e para baixo, próxima a outra cachoeira, na parte baixa da propriedade, que ele jamais havia visitado.

Percebeu algo que até agora não tivera oportunidade de examinar melhor. A nave usava propulsores de ar comprimido, possivelmente iônicos, tais como os do robô que o capturara, que lhe pareceram na época pouco potentes em relação a seu peso. Mas descobrira depois que o robô, tal como aquela nave, eram muito mais leves do que aparentavam, e podiam manipular o ar ao seu redor com espetacular eficiência, inclusive criando áreas de vácuo. Quando a nave decolara, no entanto, notou que parecera ter sido usado algum tipo de repulsão magnética, o que Dir-Zá de fato confirmara. O que isso lhe sugeria é que até agora não vira nenhum tipo de recurso anti gravitacional como os tão sonhados pelos escritores de ficção científica de seu tempo, embora fosse uma explicação razoável para a cidade flutuante, pois a simples repulsão magnética, naquele caso, parecia ainda mais improvável.

Embora a nave não tivesse janelas e fosse metálica, podiam ver tudo como se ela fosse de vidro, e sobrevoaram a floresta por cerca de uns 300kms, estimou ele pelo que já entendia dos caracteres nos gráficos flutuantes dos mostradores, quase como se voassem ao ar livre. A aceleração fora um pouco incômoda, sugerindo que chegaram a quebrar a barreira do som em bem menos de um minuto. Teria desmaiado em seu antigo corpo. Em pouco tempo chegaram até uma clareira onde ao centro havia uma pequena construção em estilo pouco diferente da arquitetura da casa de suas anfitriãs.

O mesmo recurso de "anti-magnetismo" foi claramente usado quando a nave, após passar sobre a vegetação rasteira, sobrevoou e pousou sobre a estrutura metálica. Então a própria estrutura desceu, em diagonal, entrando no subterrâneo, e penetrou nas rochas percorrendo uma distância enorme, que sugeria ao menos um km. Finalmente saltaram para a plataforma, ainda antes que a descida terminasse, até que curiosamente não pararam numa estrutura subterrânea, mas num campo aberto, no sopé de uma montanha, sobre outro, ou talvez o mesmo, rio, cercado por ao menos 3 belas cachoeiras.

E enfim ele pode avistar outras criaturas daquele novo mundo. E o que viu, lhe perturbou bastante.

O comitê de recepção era constituído de 4 “pessoas”. Duas delas eram como Dir-Zá, mas uma bem mais alta, a outra mais baixa e mais corpulenta, de modo que, já pensava ele, elas sempre procuravam manter a mesma massa corpórea variando apenas as proporções. Também eram menos claras, ou mais douradas como Ei-Kis, embora não tivessem cauda, e a julgar pelo que conhecia dela, essas duas também estavam um pouco nervosas.

Além delas havia uma outra, um pouco diferente, maior e mais magra, evidentemente inteligente, inclusive trajando uma Veste com apenas cabeça e braços descobertos, aliás como todos os demais, inclusive eles. A Veste de Ielg se ajustara automaticamente. Essa outra criatura, porém, tinha nada menos do que asas. Enormes, como as de morcegos, além de uma cauda ao estilo de Ei-Kis. Olhando melhor notou que no geral ela tinha mais similaridades que diferenças, mas estas últimas chamavam atenção, como os pés que possuíam, além do polegar traseiro, dois dedos frontais bem mais separados que os de Ei-Kis, e a expressão muito mais selvagem, quase monstruosa.

Teria reparado mais nela não fosse pelo quarto membro do comitê de recepção, que embora fosse o que mais se assemelhava a uma pessoa como ele, foi o que mais lhe perturbou. Era mais baixo que ele, e mais magro, e lembrava um pouco os antigos alienígenas cinzentas dos ufólogos de cinco milênios atrás, mesmo pela cabeça um pouco avantajada, e de aparência andrógina, ou mesmo feminina. Só o que destoava eram os 6 dedos em cada mão, o último deles uma espécie de meio termo entre dedo mínimo e o polegar, no lado oposto deste último.

Mas o que mais chamou atenção não foi sua aparência, mas sua atitude. Era nitidamente um tipo de serviçal. Que não se atrevia sequer a se mover sem a anuência de suas proprietárias, e que, ainda pior, parecia constantemente ameaçada pela presença da criatura maior, que agora parecia mais humana pelo modo como se movia e falava com as outras.

Elas se comunicaram com Dir-Zá e Ei-Kis com notável amistosidade, mas Ielg foi completamente ignorado, e só mostraram perceber sua presença quando Dir-Zá o mostrou a elas. As duas do mesmo tipo de suas companheiras tiveram uma reação similar a de Ei-Kis. A criatura grande foi aparentemente mais amistosa, mas o modo como ela olhou para ele lhe encheu de repulsa, como se o visse como algum tipo de alimento.

Caminharam por uma escadaria descendente até chegar a um local amplo e com várias outras criaturas magras e altas como suas companheiras. Dentre ao menos um dezena, somente ao longe ele viu outro par de criatura alada e criatura pequenina com a mesma dinâmica. Era como se a grande fosse uma espécie de guardiã da menor, sempre conduzindo-a de forma um tanto ameaçadora. Ele não notou nenhum tipo de agressividade ou mesmo uma nítida coerção, mas havia um clima tenso não apenas entre os dois, mas também entre eles e as demais. A impressão que tinha, por algum motivo que ainda não entendia, era péssima.

O local era evidentemente um tipo de ponto de encontro, como uma festa, e as criaturas, em geral sentadas em posição humana, pareciam confabular e com frequência olhavam para ele, mas em seguida desviavam o olhar em definitivo, em geral depois de comunicar-se com outras. Quando suas companheiras se sentaram, ele foi claramente instruído a ficar de pé, tal como ficavam também as criaturas pequenas e as gigantes, embora essas parecessem até mesmo dispensar assentos, visto que sempre se moviam, inquietas, e frequentemente agitavam as asas e alçavam breves vôos.

A decoração ambiente era simples. Tudo parecia de plástico, ou metais leves, em geral cinzentos ou brancos. Confirmava então a preferência geral por tons neutros, onde as cores, em geral suaves, pareciam mais acidentais que intencionais, possivelmente porque passavam desapercebidas. O que chamou-lhe mais atenção, porém, foi a recorrência de quadros com personagens distintas retratadas de forma evidentemente respeitosa. Todas do mesmo tipo da espécie de criaturas maiores, nenhuma, é claro, representando as menores, e em ao menos dois lugares notou também quadros representando aquela mesma criatura enigmática, ao mesmo tempo fascinante e incômoda, que parecia um tipo de divindade, sempre vestida numa túnica negra.

Mas no geral o passeio foi absolutamente decepcionante. Ninguém falou com ele, e não ouviu uma única palavra que pudesse entender embora todas estivessem conversando num tom audível. Todas também foram servidas com bebidas, aparentemente sucos, e quitutes diversos, alguns deles frutas, e outros alguma outra espécie de comida. E o mais interessante, trocavam o que pareciam ser presentes, objetos pequenos e em geral graciosos, feitos de cristal, pedra polida, metal, plástico ou mesmo madeira, todos ricamente trabalhados, embora ele não tenha podido observar melhor por não ter tido acesso a eles. Aliás, o tempo todo ele permaneceu de pé, e a nada teve acesso. Somente Dir-Zá ocasionalmente dirigia-lhe o olhar.

Numa plataforma mais abaixo viu outro par de criatura voadora e mal encarada, e pessoa pequena, com aparência que, diferente das que vira antes, parecia ainda mais andrógina, sendo então a criatura menos distante de uma aparência masculina que já vira. Na verdade a androginia se devia mais pelo fato das criaturas terem corpos infantilmente neutros, sem qualquer atributo especifico que pudesse denunciar o sexo. Nesse caso a relação parecia ainda pior, a pequena era frequentemente empurrada pela maior, que parecia impaciente. Não demorou a perceber que aquilo era mesmo o padrão, tanto que muitas das criaturas mais comuns, e que aparentemente eram a espécie socialmente superior, muitas vezes ao olhar para ele, procuravam pela criatura maior, e ao não achar o olhavam mais detidamente, e só então se davam conta do quanto ele era diferente. Isso era impressionante, visto que Ielg muitíssimo pouco se parecia com qualquer outra criatura ali, devendo ser evidentemente destoante, mas quase sempre elas só pareciam notá-lo por acidente, embora em seguida o observassem fixamente, e os olhares só terminavam quando uma outra lhes cochichava alguma coisa, como que explicando a situação, quando então pareciam constrangidas e não mais tornavam a olhá-lo.

O fato é que não tinha idéia do que fazia ali. Tentou falar com Dir-Zá, mas ela sempre sinalizava para que silenciasse, em alguns momentos, até com certa impaciência. A situação se tornou tão incômoda que até Ei-Kis lhe parecia mais simpática, em comparação com as demais. Foi um alívio quando, bruscamente, elas se levantaram e o levaram de volta para a nave, aparentemente após uma súbita discussão.

O modo como saíram apressados surpreendeu Ielg, e de repente estavam na nave, tendo sido praticamente empurrado. A nave levantou vôo enquanto Dir-Zá parecia envolvida numa telecomunicação auditiva acalorada, que parecia estar irritando Ei-Kis.

A situação parecia não poder piorar quando sobrevoavam a floresta de volta para casa, até que após um alarme, uma explosão sacudiu e abriu o teto da nave. Só então viu, ao longe e ao alto, pequenos veículos voadores que desciam em nítida interceptação, e como se viesse do nada, uma das naves azuis de suas companheiras surgiu por baixo deles, contra atacando as inimigas.

Estavam sob fogo cruzado, Ei-Kis ficou absolutamente perplexa e então deu um grito arrepiante ao olhar para Dir-Zá. Ela estava ferida, com o braço direito e parte do rosto queimado, e só não fora pior porque a Veste protegera o tronco e as pernas. Pareciam ainda mais surpresas do que ele, mas Ei-Kis se tornou furiosa quanto a nave sofreu outro impacto. Ielg não entendera como, mas Dir-Zá estava sangrando pelas narinas e pela boca, nitidamente sofrendo. Olhou para a companheira numa estranha expressão de resolução, e então, para a completa surpresa dele, abriu uma porta na nave, olhou-o por uma última vez e saltou.

Aquilo não podia estar acontecendo. Se Dir-Zá morresse, o que seria dele? Ficou imaginando que aconteceria algo, que ela usaria um dos flutuadores que ele já vira no computador, ou que alguma outra coisa ocorresse, mas o que aconteceu simplesmente aterrorizou o homem do passado. A cabeça dela parecia ter explodido, e um pequeno objeto saiu voando. Em seguida, uma nave satélite disparou contra o corpo que despencava rumo a floresta e o desintegrou completamente.

Nem viu que já estavam sobre a casa quando Ei-Kis o puxou para fora da nave por outra abertura, e para seu mais terrível espanto, viu o objeto que saíra da cabeça de Dir-Zá se aproximando. Tinha a silhueta aproximada de um cérebro, porém, envolto por algum tipo de invólucro rígido e escuro, com um tipo de farol na frente e pequenos dispositivos abaixo. E então se aproximou dele, como se o filmasse, imprimindo-lhe um verdadeiro pânico do tipo que jamais sentira antes naquele novo mundo, e talvez nem no antigo.

O Cérebro...

...flutuante o contornou, rumando para a parte da casa correspondente aos aposentos de suas captoras. Ei-Kis o agarrou e correu atrás, adentrando com ele, logo após o cérebro, numa sala que jamais vira antes. Paralisado de medo, ele se deixou levar até um local onde um grande cilindro repleto de líquido se movia, posicionando-se próximo a horizontal, embora ligeiramente inclinado.

Lá dentro havia um corpo, uma outra Dir-Zá! Nua, com o crânio sendo aberto por delicados braços mecânicos submersos no líquido esverdeado e denso. O cérebro submergiu na água e então adentrou a cavidade craniana, que foi devidamente fechada e selada, com um tipo de solda elétrica, até que a cabeça ficou pronta, deixando claro o que eram, afinal, aqueles sulcos no diâmetro equatorial e meridional do crânio.

Poucos segundos depois, enquanto Ei-Kis parecia ocupada com diversas observações do sistema, o corpo começou a ter convulsões e o líquido foi sendo esvaziado. O cilindro se abriu revelando um cheiro insuportável de formol e restava o corpo nu, começando a se levantar. Meio cambaleante, sendo ajudada pela companheira ela foi abrindo os olhos, que estavam diferentes, mais amarelados, assim como a pele que estava mais dourada. Finalmente ele pode notar que em sua virilha não havia nada que se assemelhasse a uma vagina, embora houvesse evidentemente ânus e uretra, envolvidas por uma pequena vulva completamente desprovida de pelos.

Ela se levantou, e estava mais alta, com os joelhos dobrados ao contrário. E ainda zonza, e com dificuldade de controlar os movimentos, veio caminhando em direção a ele, com movimentos faciais aleatórios, como se não conseguisse controlar suas expressões, em que prevaleciam o que pareciam ser sentimentos de sofrimento, raiva, pânico, desgosto e até mesmo expressões maléficas como as de Ei-Kis.

Ielg já estava transtornado demais. Já havia sido um choque sentir que estava destinado a ser um tipo de ser inferior, numa sociedade de desigualdade jamais sonhada em seu tempo. Já havia se sentido péssimo com o clima de opressão que experimentara no tal local que visitara. Descobrira então que não estavam seguros, que podiam ser atacados por forças que não compreendia, e como se tudo isso não bastasse, agora havia aquilo.

Aquele espetáculo mexeu com ele de um modo indescritível, desencadeando-lhe o horror de um pesadelo Frankesteiniano, Lovecraftiano, Huxleyniano! Seu único impulso foi correr. Saiu porta afora sem ser impedido. Desceu para o pátio, ainda sem saber o que fazer. Absolutamente transtornado por aquela experiência tenebrosa. Estivera o tempo todo convivendo com zumbis! Com corpos descartáveis que podiam ser jogados fora e ter seus cérebros colocados em outros corpos. Nem tentaria pensar por quê, mas algo naquilo era tão aterrorizante, lhe lembrava tantos pesadelos de infância e juventude, evocava tantas possibilidade terríveis como a experiência mental do cérebro numa cuba, que tudo o que pensava agora e sair dali o mais rápido possível.

Na verdade nem se lembrou de suas algemas e dos limites que lhe eram impostos, mas por sorte Ei-Kis as havia desativado quando saíram e não os ativara novamente ao voltar, e ele pôde penetrar floresta adentro, correndo destabanado, apenas começando a recobrar um pouco o juízo. Sabia que passara do limite da propriedade, que estava mais longe do que antes, e sabia que tinha novamente uma Veste eficiente. Sabia que havia frutas por toda parte e que podia sobreviver longamente na floresta.

Mas também sabia que elas poderiam vir atrás dele, ou pior, que poderia ser capturado por algumas das outras. Ficou particularmente terrificado pela idéia de ser pego por alguma daquelas criaturas aladas e passar a ser tratado como eram aqueles servos. Percebeu então que não havia como escapar. Podiam rastreá-lo, com certeza, pelas algemas que ainda tinha, e que não podiam ser removidas, e que a qualquer momento talvez fossem reativadas. Pensou se não havia chance de sair do alcance do controle remoto, e se aproximou da beirada do precipício.

Poderia pular no rio abaixo. Era uma distância maior do que a que estava acostumado, mas confiava que conseguiria. Ademais, sabia que a Veste lhe permitiria respirar embaixo d’água, de modo que mesmo que as algemas fossem ativadas, ele poderia ser levado rio abaixo, à salvo, ou mesmo se esconder no fundo do rio. Já estava anoitecendo, e no escuro talvez tivesse alguma chance.

Quando procurava algum ponto favorável para pular, sem correr o risco de atingir as pedras abaixo, as algemas foram ativadas, tanto as dos pés quanto as das mãos. Ele desequilibrou-se e caiu, dezenas de metros em direção às pedras.

O impacto foi terrível. Teve a veste e o peito perfurado por um tronco velho pontiagudo, que pelo visto lhe estilhaçara as costelas e vazara seu corpo, arrebentando a coluna vertebral, realizando o antigo temor de ter suas pernas invalidadas outra vez.

Mas foi pior, a dor lancinante não o impediu de saber que coração e pulmões haviam sido destruídos, e antes que falecesse, sentiu-se bem. Aliviado, agradecido por dar fim àquela história que começou como um paraíso, flertara com o purgatório, e subitamente se transformara num inferno.

E tentou, ainda que não tivesse tido tempo, pensar que estava enfim indo ao encontro de sua esposa e filha.

Fim da Parte - 2



Marcus Valerio XR
Dezembro de 2010
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