A Estrada de Cristal

Só de olhar aquelas miniaturas de mulheres na maquete que representava a estrada luminosa, sentiu um arrepio, e não queria admitir exatamente o porquê. O estômago dele ainda embrulhava com certas lembranças, mas ele já havia matado várias inimigas, tinha desempenho excepcional em combate, e não deveria ter motivos por temer o iminente conflito.

- Filho. - Chamou-lhe atenção seu pai. - Sabe que eu não colocaria você numa missão que não fosse perigosa. Você é um grande guerreiro, e enviar-lhe para cumprir tarefas seguras é uma desonra que não posso tolerar.

O jovem sorriu, de modo ambíguo, de repente se dando conta da estranha contradição. A forma de um pai demonstrar amor por seu filho é colocá-lo constantemente em risco, para garantir que confia em sua capacidade. Embora sua opinião nunca tivesse sido consultada, já estava tão acostumado que se surpreendia pelo fato de estar pensando sobre isso agora. Mesmo assim, interpelou em tom de desapontamento. - Mas o quê pode haver de perigoso nisso?! Ficar escondido para abrir uma porta?! Eu deveria estar na frente de batalha!!!

Seu pai, no entanto, se limitou a sorrir de modo misterioso e entreolhar-se com outros dos generais ali presentes, num ar de cumplicidade.

- Na verdade... - Continuou o jovem. - Ainda nem entendi o sentido desse plano!

Debruçou-se sobre as maquetes sobre a mesa, que reproduziam com notável fidelidade o cenário da batalha. Lá estavam representados a Estrada de Cristal, construída pelas feiticeiras para tornar suas viagens seguras, pequenos modelos das guerreiras LIANS e das feiticeiras, as paredes rochosas do desfiladeiro que cercavam o trecho selecionado da estrada onde se daria a emboscada, e numa pequena caverna remota, representada por um corte quase imperceptível, a localização do exército que deveria pegá-las de surpresa.

Continuou seu questionamento, que poderia ser visto como um tanto insolente pelos generais mais velhos não fosse o fato dele ter conquistado respeito não só por seu desempenho em combate como por algumas estratégias notáveis, embora não raro aborrecesse com idéias ousadas demais.

- Entendo que elas irão seguir pela estrada! É antiga, mas ainda tem alguma magia protetora. Então entram no desfiladeiro, e lá na frente, abrimos a saída da caverna secreta superior e as pegamos de surpresa, jogando tudo o que tivermos em cima delas. Muito bem. Elas então se protegerão com escudos mágicos, aí, abrimos a entrada frontal e lançamos outro exército em cima delas. Atacando em duas frentes. Mas...

Fez uma pausa dramática, onde passou-lhe pela cabeça seu bem guardado segredo. Por um instante se lembrou do porquê ele lutava. Se elas vencessem, viveriam num mundo onde os pensamentos de ninguém estariam a salvo. As feiticeiras poderiam fazer-lhe o que seus companheiros não podiam, ver direito em sua mente as coisas que fizera, e que poderiam ser consideradas traição. Se acalmou, e voltou ao discurso.

- Se elas relaxarem a defesa de cima para nos enfrentar no corpo a corpo, ficam vulneráveis, mas nosso outro exército também pode ser pego pelos projéteis de nossos amigos aqui em cima!

- Ora! Já conversamos sobre isso! Bobagem! - Interpelou-lhe o pai. Por uns instantes, ele pensou nessa pouca consideração que davam aos guerreiros menos habilidosos de seus exércitos, ou talvez enviassem os bárbaros. O ataque dos artilheiros acima do desfiladeiro provavelmente só não causaria tantas vítimas entre suas inimigas quanto entre eles porque as feiticeiras provavelmente não baixariam os escudos. Era um risco grande. Um rasgo sentimental lhe acometeu. Por uns instantes, quase odiou a mulher com quem tivera seu encontro secreto. Ela era a culpada por lhe semear sentimentos que lhe enfraqueciam. Então, voltou a si. E respondeu ao pai.

- Eu sei! Mas mesmo assim... Como saber se teremos forças para subjugá-las antes que o próximo exército chegue!? Se quando as LIANS ruivas chegarem, ainda estivermos lutando contra as loiras, elas simplesmente subirão a encosta e enfrentarão nossos atiradores, e depois se juntarão à suas companheiras de causa! O corredor do cânion não é tão estreito assim!

Seu pai riu novamente. - Não se afobe menino! O exército que temos ali embaixo irá dar cabo delas sim. E bem rápido!

Incrédulo, o jovem desafiou. - E posso conhecer esse exército secreto? Isso tem a ver com o suposto perigo de minha missão? Aquele que ainda não vi?

Os generais, por um momento, pareceram se deliciar. Então seu pai, com um sorriso um tanto malévolo e confiante, estendeu-lhe a mão. - Venha que eu lhe mostro.

Quando pequeno, pensava que a guerra era o estado normal do mundo. Sempre havia existido. Só depois descobrira que na verdade eram recentes, ao menos aquelas 3 que seu povo enfrentava desde que ele nascera.

Sua terra ficava no centro de um triângulo de hostilidades. De um lado, os bárbaros das praias, os quais por vezes faziam pactos de paz mais ou menos duradouros, mas que ocasionalmente atacavam sem aviso. Eram o menor problema, embora fossem os mais enervantes, devido a bruta indisciplina e total falta de modos que apresentavam. Como seus estranhos costumes exigiam que matassem com frequência suas próprias mulheres, não raro desciam para capturar as dos outros. Com isso, terminaram por surgir laços sanguíneos entre as nações, o que por um lado amenizava, por outro piorava as hostilidades. A preocupação constante era que, ultimamente, vigorava um tenso acordo de paz e um bizarro intercâmbio de forças contra inimigos comuns, mas que a qualquer momento certamente descambaria para outra guerra inusitada. Ainda mais se o ataque dos guerreiros de cima do desfiladeiro fizesse muitas vítimas entre eles.

Do outro lado estavam os inimigos não humanos. Os Saurins. Eram similares a dinossauros bípedes, mas peludos, quentes e muito inteligentes considerando o fato de serem animais. Maiores que quaisquer homem, com dentes e garras afiadas, os saurins lançavam ataques relâmpago atacando todas as outras criaturas que encontravam para fins de alimentação e demarcação de território. Sua população aumentava rápido e já era claro que estavam além dos esforços de uma extinção sistemática. Restava então patrulhar os territórios, preparar armadilhas cada vez mais engenhosas, visto que eles aprendiam e não demoravam muito a evitar as mais usadas, e estar sempre a postos para batalhas terríveis contra um inimigo com o qual era impossível fazer qualquer acordo. Não a toa, era devido a eles que os bárbaros das praias ocasionalmente aceitavam alianças.

Mas a maior ameaça vinha das regiões mais frias. A revolução das feiticeiras que expandia cada vez mais seu território. Reforçadas por poderes mágicos e pelas formidáveis guerreiras LIANS, elas pretendiam subjugar todos os territórios em todos os cantos de SAMTAM-RA, como eles chamavam seu mundo. Tal qual os saurins, não aceitavam nenhum acordo, e tal qual os bárbaros das praias, eram imprevisíveis, sempre desenvolvendo novos truques, já não bastassem suas habilidades místicas.

Na nação do rapaz, os feiticeiros foram exterminados, mas eles haviam desenvolvido técnicas suficientes para que todos os guerreiros resistissem à magia das feiticeiras. Outrora, tais habilidades haviam sido vitais para resistir à investida das tribos dos mares quentes, que usavam fantasmas para possuir os corpos dos oponentes. Hoje, estavam praticamente extintos, em especial pelas tribos matriarcais e suas Espadas de Cristal, mas sua ameaça foi incorporada pelas feiticeiras, que usavam poderes tão ardilosos quanto.

Ele já fora assediado pelos poderes delas uma vez. Tentaram entrar em sua mente, tentaram entrar em seu corpo, mas ele resistiu. Não suportava a idéia de ser controlado, e compartilhava com seus conterrâneos o temor de que as feiticeiras escravizariam todos os homens, invertendo o "natural" sentido da hierarquia sexual. Por isso ele lutava, para defender suas terras, seus povos, suas delicadas e submissas mulheres.

Enquanto caminhava sobre os rochedos, rumos à caverna misteriosa onde o exército secreto estava escondido, olhou em volta, para o horizonte, lembrando as batalhas passadas. A noite de céu violáceo estava um tanto mais escura que a média, visto que a grande lua verde estava oculta, e a lua pequenina, que refletia a luz do sol como um pequeno espelho, dançava lentamente no horizonte, já se escondendo entre as montanhas. Nessa rara ocasião podia-se ver as luminosas estrelas, que disputavam com o horizonte avermelhado, e a lua anã, a prerrogativa de iluminar a noite.

Foi num cenário parecido que perdera seu primeiro irmão. Num combate quase suicida, onde seu pai enviara os três filhos homens, e mais um punhado de primos, para enfrentar um bando muito maior de bárbaros das praias. Venceram o combate, mas seu irmão caçula morerra em sua batalha de estréia. Foi a primeira vez que odiou seu pai, e seus costumes, que exigiam sacrifícios imprudentes dos mais jovens, no desespero de provar sua masculinidade. Mas ele parecia ser o único que se incomodava com isso.

Foi também, numa noite totalmente diferente, visto estar amplamente iluminada pela lua verde, que perdera seu irmão mais velho, desta vez enquanto preparavam armadilhas contra os saurins no lado oposto das planícies, de onde os monstros provinham. Eles haviam descoberto que não precisavam sempre inventar novas armadilhas, pois após uma ou duas gerações, os saurins esqueciam-se das armadilhas mais antigas, que podiam ser reaproveitadas pegando-os de surpresa novamente, embora ele tivesse a sensação que armadilhas reaproveitadas, mesmo de décadas atrás, costumavam ser superadas mais rápido que as totalmente novas.

De qualquer modo, numa destas feitas, foram atacados por um pequeno e rapidíssimo bando. Estava, desta vez, num grupo grande de guerreiros, que derrubou muitos dos saurins com chuvas de flechas. Mas ardilosos como eram, conseguiram atacar por ângulos inesperados, dando o troco nos arqueiros, um dos quais, seu irmão. Por sorte, sua incomum agilidade lhe permitiu subir nas árvores e ser o único sobrevivente do massacre. Pulou de árvore em árvore até mergulhar num rio, e se deixar levar cachoeira abaixo.

Lembrou-se também da outra ocasião onde quase fora a vez dele. Aliás, ele queria que fosse. Achava que tinha obrigação de morrer em combate, visto que o mais novo e o mais velho já haviam partido do mundo, e ele queria se juntar a eles nos paraísos subterrâneos. Não se importava com o que o pai sentiria, mas mudava de idéia quando pensava em sua carinhosa mãe. E de fato, foi por pouco, muito pouco, que ele sobreviveu.

Aliás, foi apenas por uma única mulher.

Começou a sentir um cheiro desagradável, e ouvir ruídos estranhos cada vez que se aproximavam mais da tal caverna recém descoberta. Havia resultado de um desmoronamento quando trabalhadores tentavam construir uma escada que facilitasse o acesso ao desfiladeiro. Essa abertura agora estava fechada com uma porta pesada, muito bem trancada, e exageradamente reforçada. Não entendeu porque o exército secreto precisava ficar fechado daquela forma, visto que a porta parecia ser do tipo que não abria pelo outro lado.

Então, seu pai e os outros generais o mostraram um pequeno e discreto túnel, por onde entraram quase se arrastando, e onde o cheiro quase insuportável aumentava cada vez mais, junto com ruídos que antes pareciam estranhos devido ao abafamento e ao eco, mas agora mais e mais se tornavam familiares.

- Saurins! Há saurins aqui!!! - Ele gritou, e imediatamente os rugidos dos saurins aumentaram, confirmando sua denúncia. Por um momento ficou desesperado, estavam rumando direto para uma caverna com aquelas feras, e começou a recuar imediatamente, porém, tanto a sua frente quanto atrás, seus companheiros impediam sua passagem. Curiosamente, eram todos mais largos e mais lentos do que ele, e se arrastavam com dificuldade pelo túnel. Não haveria tempo de escapar, pois embora fossem maiores, os saurins eram capazes de se espremer por passagens ainda mais estreitas que aquela.

Então notou que seus companheiros não compartilham seu pânico, pelo contrário, estavam calmos e sorridentes! Atônito diante da situação, acabou sendo levado lentamente túnel adentro, até chegar num alargamento, protegido por grades de metal, por onde se podia ver abaixo a assustadora cena.

- Aqui está nossa arma secreta. - Disse-lhe o pai, após espremer a ativar um cristal luminoso e jogá-lo lá embaixo. Ao menos uns 50 saurins estavam presos, agoniados, revoltadíssimos e famintos. Tentando subir uns em cima dos outros ou escalar as paredes, inutilmente. Por isso a caverna era fechada por uma pesada porta atrás, e também à frente, como ele podia ver agora.

- Mas... Pelos nossos ancestrais... O que é isso?! - Perguntou o jovem atônito, diante de uma cena específica, ainda mais macabra, que roubava toda a atenção.

- É uma história interessante. - Disse um dos generais. - Um dos exércitos de nossos aliados estava sendo perseguido por esse bando de saurins, e decidiu se refugiar aqui, na caverna recém descoberta. Nem sabiam que nós já havíamos construído as portas. Então tiveram a idéia de atrair os bichos aqui para dentro, reforçamos as portas e num golpe de muita sorte, deu tudo certo.

- Alguns escaparam. - Disse o pai. - Mas os que temos aqui são suficientes para destruir um exército inteiro daquelas bruxas malditas!

Um tanto indignado por não ter sido devidamente entendido, o jovem gritou. - Não estou falando disso! Quero saber o que é AQUILO?! - Apontando para os ossos, evidentemente humanos, que alguns saurins ainda trituravam ferozmente nas bocas, enquanto lhes dirigiam aquele típico olhar perverso.

- Ah! Bem... - Disse outro dos generais. - Estão aqui há quase cinco dias. Temos que alimentá-los, não é mesmo!

- Com carne humana?! - Protestou o rapaz. - Não gosto disso tanto quanto você! - Replicou o general, com um sorriso dúbio, que misturava um certo tom de desaprovação pelo que estavam fazendo, mas ao mesmo tempo um certo alívio por tudo estar correndo tão conforme o planejado. - Foi idéia dos bárbaros! Trouxeram corpos de algumas de suas mulheres recém mortas. Dessas que eles vivem matando por ciúmes ou pura crueldade. Assim, os monstros se acostumam com o gosto de mulheres, e assim que você abrir aquela porta que os levará contra as Lians, eles partirão para cima delas com tudo!

- Confesso que... - Disse-lhe o pai. - Desconfio que algumas dessas mulheres foram mortas para isso, se é que não foram jogadas aí vivas! Geralmente as mais feias... Coitadas. - Mas o jeito com que gargalhou, deixou o filho enojado, balbuciando impropérios. Mas o pai o exortou.

- Anime-se filho! Também não gosto dos modos desses bárbaros, mas temos que admitir que a idéia é genial! Está tudo muito bem preparado, a única coisa que queremos é que você use sua notável agilidade para escalar até aquele ponto da caverna, de onde, com um gancho e uma corda, pode içar aquelas alavancas e abrir a porta frontal, pois não podemos fazê-lo por fora, e ninguém pode fazê-lo de lá de baixo. Sei que é difícil, mas tenho certeza de que você consegue! E quando o fizer, vamos dar um golpe devastador nessa revolução das feiticeiras!

- Talvez o golpe definitivo! - Disse outro general.

Então ele ligou os pontos. Lembrou do mapa, da estratégia, e finalmente entendeu. As tropas de sua nação estavam escondidas numa outra caverna, mais ao final do desfiladeiro, onde os cristais dificultavam que as feiticeiras os percebessem, e correriam em peso para atacar as Lians por cima. A princípio elas achariam o ataque inútil, pois facilmente poderiam conjurar seus escudos mágicos para cima, e seguir caminho até começar a subir de volta pelo outro lado. Mas quando a porta abrisse, os saurins não só estariam famintos, como com o gosto de mulheres na boca, tornando-os triplamente agressivos, considerando o tempo em que estavam presos. Normalmente eles eram bem estratégicos, sendo capazes de recuar, reorganizar ataques e evitar perdas desnecessárias, mas naquela situação atacariam sem nenhum freio! Aqueles 50 seriam capazes de dizimar ao menos umas 200 guerreiras antes de caírem.

Agora entendia também a função do exército acima. A melhor chance das feiticeiras contra os saurins seriam posicionar seus escudos místicos para se protegerem deles, mas assim ficariam descobertas por cima, vulneráveis à chuva de flechas, pedras e bumerangues. Não importava que acertassem também os saurins, pois enquanto uma pessoa morria com apenas um projétil, o saurins não podiam ser derrubados com menos de 10!

Por fim, mesmo que elas conseguissem eliminá-los, o que ainda era provável, logo atrás da caverna havia um exército inteiro de bárbaros das praias, prontos para lançar o ataque terminal contra um exército já debilitado. Não havia escapatória, elas seriam liquidadas!

Quando as Lians ruivas chegassem, estariam sozinhas, além do fato de que o massacre eliminaria a já débil proteção da Estrada de Cristal. Haveria tempo dos outras tropas de sua nação chegarem e as receberem em campo aberto, com contingente superior. Na pior das hipóteses, elas teriam que recuar. O plano era perfeito.

Ainda estava chocado, e ainda um tanto revoltado com a perversão envolvida. Mas reconhecia a estratégia. Reconhecia também o perigo de sua missão, se equilibrar em paredes rochosas sobre um bando faminto de saurins para conseguir abrir a porta frontal. Se caísse, não gostava nem de pensar na morte que teria.

Com tudo isso, convencido de todas as implicações, aceitou ficar a sós, no escuro, iluminado apenas com um discreto cristal. Os generais se retiraram após dar as instruções finais. Ele ouviria os sons da batalha, e do apito que lhe diria a hora de executar sua missão. Até lá, esperaria, quieto.

Por sorte, os saurins também eram pacientes, sabiam quando era inútil gastar energia a toa. Assim que os demais se retiraram, eles ficaram silenciosos, totalmente conscientes da presença do rapaz, acima, inalcançável, mas aguardavam uma oportunidade para agir.

Teve então o sossego necessário para pensar, e para se lembrar, e admitir porque se sentia tão mal. Era fato que a idéia de soltar aquelas feras contra um bando de mulheres, ainda que fossem inimigas, não era realmente agradável aos generais, ou ao menos ele sentia assim. Mas de qualquer forma eles pareciam muito satisfeitos com a oportunidade que isso significava. Quaisquer considerações morais ficariam para depois da vitória.

Considerações que agora ele podia fazer, sobre a moralidade de seu título de heroísmo na batalha em que pensou, e desejou, morrer. Foi graças a ela que conquistara o respeito de toda a sua nação, o que o incomodava por dentro, visto que era, apesar de tudo, um fama injusta, baseada, de uma certa forma, numa farsa. Além do que fora o evento que marcara a morte de sua mãe.

Então se lembrou. Era um dia radiante, ensolarado, e desta vez eles enfrentavam as Lians. Cerca de 70 a 80 mulheres e também homens que lutavam por elas, se encontrou com um número equivalente de guerreiros do lado dele, em campo aberto, onde se desencadeou uma luta franca e incrivelmente equilibrada.

Havendo vários exércitos lutando em várias frentes, era improvável que outro deles chegasse para reforçar algum dos lados, de modo que a batalha se deu de um modo tão balanceado que as mortes praticamente se revezavam uma a uma a cada lado. Até que, após uma eternidade, só restara ele, tendo a seus pés dezenas de companheiros mortos, nenhum dos quais, por sorte, ele tinha qualquer intimidade.

E do outro lado, da mesma forma, só restava ela.

Ficaram frente a frente, exaustos, mas com a sensação eufórica do desfecho final.

Ela ofereceu-lhe trégua, a possibilidade de declarar um empate. Mas ele não aceitou, derrotá-la agora, apesar das inúmeras perdas, significaria a vitória perante seu povo. Havia poucas glórias maiores do que ser o único sobrevivente de uma batalha franca e equilibrada em campo aberto.

Por isso, partiu para o ataque, e ela reagiu à altura. Suas lâminas se chocaram com violência, mas o equilíbrio insistia em se manter, como se eles encarnassem com perfeição a equivalência que fôra a batalha. O duelo já parecia demorar mais tempo que todo o restante do conflito, quando finalmente, foram se afastando, enfraquecendo, e caindo de exaustão.

Quando ele pensou que tudo estava terminado, e que não havia mais forças para outra coisa que não o empate, ela se moveu de um modo subitamente acelerado, desarmando-o imediatamente e o ferindo na perna. Ele caiu de joelhos, não teria para onde fugir. E mal tinha forças sequer para levar as mãos acima da cabeça, num último e desesperado gesto de proteção.

Mas ele não se desesperou, na verdade, ficou tranquilo. Não tinha medo, nem ódio, e portanto, não sofria. Aceitava a morte iminente com a alegria de que prestes iria reencontrar os irmãos queridos. Embora com a tristeza de se despedir de sua mãe.

A Lian estava à frente dele. Enorme, ainda disposta, soberana, empunhando a lâmina.

Tinha a mesma estatura dele, portanto agora, quando caído de joelhos, ela parecia uma gigante. Era morena, de cabelos curtos e castanho escuros, diferente da maioria das etnias das terras frias, que eram loiras ou ruivas, e de súbito, ela substituiu a expressão dura de guerreira por uma expressão serena, e ofereceu novamente a trégua.

Ele só demorou para aceitar porque não acreditava que estivesse acontecendo. Quando a derrota parece inevitável, a perspectiva de um empate é como uma vitória. Então finalmente ela falou, e sua voz de repente lhe penetrou a alma, com uma força cândida e imponente.

- Você tem comida... Não tem? - Ele balançou a cabeça em sinal positivo, voltando a sentir a dor na perna ferida.

- Eu estou faminta... Não como desde ontem... Você me dá sua comida... E eu curo sua ferida.

A proposta não tinha o tom de pergunta, e sem nem se dar conta, ele aceitou. Para sua surpresa, a guerreira decidiu cumprir a parte dela primeiro, como se fosse ela que não tivesse escolha. O modo como ela deixou sua arma no solo, se aproximou dele e começou a delicadamente tocar sua perna, era intrigante. Ela parecia não ter temor algum de que ele fosse traí-la. Talvez lesse sua mente.

Aplicou a mão sobre seu ferimento, e ele sentiu o estranho formigamento. O alívio da dor não demorou, mas o processo de cicatrização tomou longos minutos, nos quais ela foi paciente, meticulosa, e tão gentil que parecia uma velha amiga. Quando terminou, restava apenas uma laceração superficial cicatrizada.

- É o máximo que eu consigo fazer. Não sou feiticeira. - Ele fingiu assentir, mas desconfiando, por pensar que só feiticeiras poderiam fazer aquilo. Então, de modo ainda lento, tirou um pequeno embrulho que guardava nas costas. Tinha um pão, que repartiram igualmente, e um pequeno saco de água, que não foi suficiente para matar a sede de nenhum dos dois, de modo que saíram catando os poucos demais que encontraram entre os corpos destruídos.

Estavam anestesiados pela brutalidade dos acontecimentos. Incapazes de pensar ou refletir. Então ela disse. - Já vai anoitecer, e a noite não será bem iluminada. Os saurins já podem ter sentido o cheiro desse morticínio, e podem aparecer.

Ele concordou, e finalmente falou. - Conheço um lugar seguro.

Mais tarde, estavam numa pequenina caverna oculta, protegidos pelas folhas das árvores. Descansando, e tentando compreender o que havia acontecido.

Então começaram a conversar, aos poucos, lentamente vencendo algumas diferenças linguísticas e a timidez. Não sabiam dizer exatamente por que haviam lutado, e por que lutavam, tanto. Tentaram explicar, cada qual, seus motivos, mas não demoraram a perceber que não sabiam quais eram. Nada conheciam da história de suas nações. Eram apenas guerreiros, cumprindo ordens.

Em alguns momentos se alfinetaram, ele falando que elas os atacavam, ela replicando que a mulheres da nação dele fugiam para a dela, ou pediam socorro e eram resgatadas, o que era visto como sequestro. Mas não tiveram forças para continuar a discussão, mesmo porque algo estranho aconteceu.

Antes, era só o alerta da situação inusitada que os mantinha acordados, ainda desconfiados um do outro. Agora era diferente. Apesar da exaustão, começaram a se sentir atraídos, com uma intensidade que não deveria ser normal naquela situação. Eram belos, interessantes um para o outro, mesmo assim, o abismo cultural, o mundo que havia entre eles, deveria impor uma distância.

Mas não impôs. Quase subitamente, lançaram-se um sobre o outro, e envolveram-se com uma força e intimidade que parecia desafiar qualquer tipo de diferença. Ele já tinha ouvido falar da tal Magia Sexual, mas não podia imaginar que era tão intensa, capaz de regenerar o corpo, eliminar o cansaço, revitalizar.

Foi um êxtase tão violento e insano que foi grande sorte não chamarem atenção de animais perigosos. E não parava. Dormiram, mas continuaram conectados, mantendo a união mesmo inconscientes. O dia amanheceu, e eles não conseguiam se soltar. Comeram a comida que restava, confiscada das reversas dos companheiros mortos e das árvores frutíferas próximas, tudo isso sem desgrudar um do outro, e continuaram o que faziam até cerca do meio dia.

Finalmente se soltaram, e caminharam juntos, conversando, experimentando um torpor que anestesiava corpo e alma. Banharam-se num rio, e começaram a enterrar alguns dos mortos. Ninguém havia aparecido ainda, embora pudessem ver, muito ao longe, colunas de fumaça que sinalizavam batalhas permanentes.

Ainda passaram outras noites juntos, numa loucura sensual que nunca haviam experimentado. Ele contrastava essa experiência com suas experiências prévias, com as pequenas e delicadas mulheres de sua nação, tão submissas e servis. E agora tinha aquela mulher enorme, forte, capaz de subjugá-lo na arte da guerra, e na arte do prazer.

Ela também se impressionava, talvez com o sabor diferente que ele tinha, talvez por sua expressão de surpresa, confusão e tentativa de se ajustar ao que acontecia. Talvez apenas por uma estranha inocência que, apesar de tudo, ele ainda conservava.

Finalmente, outro exército Lian se aproximava. Ela lhe propôs que viesse com ela, garantindo que seria bem recebido. Ele não aceitou. Se despediram antes que o exército finalmente chegasse.

Nunca souberam os nomes um do outro, pois em sua crença, era a única coisa que faltava para selarem uma união de compromisso. Resguardaram esse segredo num último gesto de fidelidade às suas nações.

Dias depois ele chegaria ao seu povo, e descobriu que sua mãe havia morrido, por pensar ter perdido seu último filho. Ela estava grávida novamente. Esse golpe final o deixou ainda mais desorientado, de modo que foi quase num transe que levaria alguns generais de volta ao campo de batalha do qual foi o único sobrevivente. Nunca chegou a reivindicá-lo, mas foi declarado como o vencedor da batalha, tendo ganhado inclusive o mérito por ter enterrado os corpos dos mais de 70 companheiros, o que evidentemente, a maioria não havia sido feito por ele, como pensaram seus companheiros.

E com isso, se tornou um herói. O que nada significava. Ao menos tanto quanto a lembrança das duas mulheres que acabaram de sair de sua vida.

Os generais aguardavam ansiosos. O exército de Lians acabava de adentrar o cânion, numa fila que tinha o cuidado de se manter sempre sobre os tijolos cristalinos, cuja energia mística aliviava o cansaço e tornavam os sentidos mais alertas, mas apenas daquelas que estivessem sob o apoio das feiticeiras, responsáveis por converter a magia residual, que outrora servira também para afastar animais e corpos astrais adversários, embora agora só tivesse aplicações mais discretas.

Iniciaram então a operação. O exército principal saiu de pequenos orifícios e rapidamente dezenas de homens corriam sobre o penhasco. As feiticeiras perceberam de imediato, e o ataque começou. Embora não esperassem uma estratégia tão ineficaz, tornaram-se cuidadosas, principalmente ao perceberem que alguma coisa estranha estava próxima. Uma presença feroz e selvagem que parecia prestes a atacá-las a qualquer momento.

Enquanto mantinham escudos acima de si, protegendo-as de um ataque estranhamente leve, algumas perceberam que além das paredes rochosas uma coisa horrenda estava acontecendo. Elas pressentiram as criaturas, que também as pressentiam, e subitamente previram o que estava prestes a acontecer.

Mal podiam acreditar que fossem ser vítimas de uma estratégia tão perversa, foi então que um sinal estridente tocou, ecoando por toda parte, o sinal para que a porta, oculta entre as rochas, fosse aberta. Sinal também que foi ouvido do outro lado do rochedo, pelo exército de bárbaros que já se preparava para subjugar e estuprar as sobreviventes, prontos para também eliminar os poucos saurins que restassem.

Os generais viam a visível euforia dos bárbaros, e alguns deles, por um momento, se sentiram mal com estratégia tão maligna, mas não tiveram tempo de pensar a respeito, pois de repente, a porta foi aberta.

Mas foi a porta errada.

Os saurins, que estavam se concentrando do outro lado da caverna sentindo a presença das Lians, de repente tiveram sua atenção capturada quando a porta traseira, em tudo idêntica à frontal exceto na camuflagem, foi parcialmente movida, e velozes como um raio terminaram de abri-la com tanta violência que os bárbaros nem tiveram tempo de entender o que estava acontecendo.

Os saurins os atacaram como demônios insaciáveis e vingativos, como se soubessem que eles eram os responsáveis por seu aprisionamento. Resistiam aos seus disparos ainda mais que o normal, com o agravante de que eles não estavam municiados com projéteis suficientes para tão horrenda batalha. Não foram só os bárbaros das praias, muitos da nação dos generais também foram pegos de surpresa. E de forma ainda mais inesperada, antes que os saurins começassem a morrer em número suficiente para sinalizar o fim do conflito, um outro bando apareceu, atraído pelos gritos e pelo cheiro dos companheiros que antes estiveram aprisionados, como se, de algum modo, estivessem se mobilizando para resgatá-los.

O exército que estava no topo do desfiladeiro teve que intervir, movendo sua artilharia na esperança de salvar seus aliados, enquanto as feiticeiras, tremendamente aliviadas ao perceber que a ameaça foi removida, ficaram livres de qualquer investida, e apertaram o passo de seu exército para terminar de cruzar o desfiladeiro.

Como se tudo ainda não bastasse, as guerreiras ruivas chegaram antes do previsto, mas praticamente não entraram em combate. Os saurins estavam todos mortos, assim como praticamente todos bárbaros, e os poucos homens dos generais que ainda estavam em condições de lutar, visto que os saurins se voltaram contra eles também, nada puderam fazer para enfrentar dois exércitos em duas frentes. O das loiras, embora houvesse muitas morenas, que contornara o desfiladeiro, e o das ruivas que subira o rochedo diretamente.

Quando o dia amanheceu, tudo estava acabado, os generais haviam sido capturados e agora estavam amarrados e de joelhos perante suas adversárias, que vestiam capuzes cobrindo o rosto, e então, o jovem guerreiro também foi trazido. Ele havia se entregado, e mal precisou explicar a situação. As feiticeiras entenderam que fora ele que abrira a porta do lado oposto, embora ainda estivessem compreendendo o porquê.

- O que você fez?!?! - Gritou seu pai, em visível desespero. - Você abriu a porta errada!!!

- Não! - Respondeu o jovem. - Eu abri a porta que tinha que abrir. A porta certa para acabar com toda essa loucura!

As feiticeiras e guerreiras observavam, admiradas. Suas estaturas variavam, mas uma delas era estranhamente mais baixa que as demais.

- Seremos escravos para sempre!!!

- E qual era a opção?!?! - Gritou o jovem. - Promover esse massacre perverso para depois voltarmos a lutar contra os bárbaros?! Pra que eles continuem matando suas próprias mulheres e raptando as nossas?! Para depois termos que nos aliar a eles de novo para enfrentar os saurins?! PRA QUÊ?!?! Chega disso!!! Antes sermos todos escravos delas! Pelo menos lutaremos todos juntos contra os saurins!

O pai não sabia o que dizer. Mas o filho sim. - Eu cansei pai. Essa guerra não faz sentido. É melhor elas ganharem! Pelo menos não matam seus próprios homens nem sequestram os das outras terras... Nem mandam suas filhas para a morte para provarem que são honradas! Nem estupram os guerreiros derrotados, nem...

- Elas também já sequestraram nossas mulheres?! Elas sequestraram a sua mãe!!!

- Não é verdade. - Disse uma das guerreiras. A mais baixa. Ela desceu o capuz e disse. - Eu fui por vontade própria. Após perder meus dois filhos, e pensar que você também havia morrido... - E ela olhou para o rapaz, que recuou atônito. - O que mais eu podia fazer?! Ficar lá para ter mais filhos para enviá-los para a morte também?

- Mãe...

- Você podia ter só filhas!!!

- Pra que elas fossem sequestradas pelos bárbaros?

- Mãe... É você?

- Sou eu... Meu querido. - E abraçou longamente o rapaz. Que depois, virou-se novamente para o pai. - Por que você mentiu?! Me disse que ela tinha morrido! - E entre fúria e lágrimas, ele confessou. - Era melhor do que aceitar que ela nos abandonou...

- Agora acabou. - Disse uma das feiticeiras. - Esse dia marca o começo de uma nova era. De agora em diante, vocês não vão mais se matar. Aceitem nossa oferta. Abracem esse novo mundo que estamos criando. Não haverá ressentimentos.

- É verdade. - Disse a mãe. - Eu estive com elas, e posso garantir que... Tudo é melhor. Eu vi o futuro, e é lindo. Brilhante! Elas estão curando as doenças, eliminando os defeitos que nos fazem tão infelizes. Estamos mudando nossa natureza desse estado selvagem que ainda compartilhamos com os animais, para algo verdadeiramente humano.

O pai se calou, e os generais nada conseguiam dizer.

- E filho... Tem alguém que quer rever você. -

Então a bela guerreira morena surgiu, se aproximou do rapaz, e eles, após um breve hesitação, deram-se as mãos, e sorriram.

E finalmente compartilharam seus nomes.

Marcus Valerio XR
14-16 de Setembro 2010

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