OS CRONONAUTAS
A Versão EXERIANA de
"A Máquina do Tempo" de H.G.Wells

Quinta Parte
Sexta Parte
EVOLUÇÃO E REVOLUÇÃO
[aproximadamente 24.000 caracteres]
Sétima Parte

CAPÍTULO XVI

Os crononautas não sabiam o que era mais espantoso naquele sacerdote Morlok, se era o que ele tinha de inumano, ou o que tinha de humano. Ele repetia frases curtas, em linguagem Eloi, ou algo muito similar. E então, pouco a pouco, começou a falar, entregando-se a um monólogo lamurioso, que alternava longas sentenças compreensíveis para George e os Eloi, com trechos em linguagem própria dos Morlok, e que finalmente George começava a também compreender fragmentos. Ocasialmente ele parecia dizer frases em linguagem totalmente incompreensível, bem como rosnava e grunhia em alguns acessos de ira.

Naquele momento, em meio a escuridão, parecia começar o primeiro contato com algum potencial de negociação entre as raças da superfície e do subterrâneo, que não fosse brutalmente desigual em favor dos últimos. Wells não hesitou em gravar cada palavra do desabafo do sacerdote, que captava não só a atenção dos viajantes e dos Eloi, mas também dos demais Morlok que agora pareciam tão inofensivos quanto assustados, e mais humanos.

Naquela ocasião não foi realmente possível uma compreensão clara de tudo o que fora dito, mas posteriormente, com o auxílio da gravação e da compreensão dos aciãos, que conseguiam se comunicar com os Morlok, bem como com novas informações que os aventureiros viriam a obter, pode-se enfim ter um quadro compreensível do que havia por trás do sinistro comportamento dos seres do subterrâneo.

Como George antes supusera, o brutal canibalismo ritual obedecia a uma concepção primitiva de antropofagia religiosa. Os Morlok não eram amantes da escuridão. Na verdade, de uma certa forma, a odiavam, mas não podiam suportar a luz do Sol, que lhes era fatal, causando queimaduras imediatas em sua pele. Também eram fotosensíveis de um modo geral, qualquer luz forte não apenas os incomodava, mas realmente os feria pondo sua vida em risco.

As frequências luminosas acima do amarelo eram todas mortíferas para eles, que só toleravam bem o vermelho. Os Morlok atribuíam isso a algum tipo de punição divina por uma ofensa contra os Deuses cometida por seus ancestrais. Tinham essa noção porque sabiam, de algum modo, que dependiam da vida da superfície. Vegetais colhidos ao ar livre em noites escuras, bem como caça, eram parte regular de sua dieta, e também dependiam do ar fresco que era puxado por seus engenhos para o interior de seus domínios.

Acreditavam que houve uma época em que podiam caminhar livremente na superfície e que um dia poderiam fazer o mesmo. Não que isso implicasse em fazerem as pazes com o Sol, pois até onde pareciam se lembrar, sempre foram seres notívagos, no entanto, falavam num tempo onde as noites não eram tão claras. Ao que parece, os hábitos ancestrais em questão pareciam ser de um tempo anterior ao deslocamento orbital da Lua, que agora muito mais próxima, tornava as noites de Lua Cheia quase tão claras como o dia.

Pelo que o sacerdote disse, eles vinham de uma época onde o luminar "noturno", a Lua, só era clara por poucas noites, e sumia por completo por várias outras. Certamente se referia aos períodos de Lua Cheia e Lua Nova, e também parecia indicar uma época onde o céu ficava encoberto por nuvens com maior frequência, aumentando a incidência das noites escuras. De fato, durante todo o tempo que George vivera, e ainda viveria, ali, notara que céu nublado era um fato muito raro. A estiagem se estendia por quase todo o ano, com breves e intensas chuvas que logo davam lugar a ceu aberto novamente.

Os Morlok, porém, também foram, em certa época, cultuadores do Sol. Mas o veneravam apenas no poente e no nascente, quando este é vermelho, e então se recolhiam para suas cavernas. Já os Eloi, por outro lado, eram livres integralmente. Ñão se expunham em noites escuras apenas por medo dos Morlok, mas não tinham motivos fisiológicos para não fazê-lo.

O sacerdote, ao final do diálogo, lamentava que agora jamais seria possível novamente voltar à superfície, pois não foram capazes de satisfazer seus deuses, que exigiam o sacrifício dos Elois. Havia no entanto uma confusão conceitual neste ponto, pois por outro lado, era notável a idéia de que a capacidade dos Eloi de suportarem a luz seria passada aos Morlok por meio de sua carne. A absorção de caracterísitcas de uma criatura por meio do consumo de seu corpo e ou sangue é uma crença comum em sociedades primevas, e que reverbera em versões mais sofisticadas até mesmo no cristianismo, por meio da Eucaristia.

Mas o motivo mais alegado parecia ser uma espécie de perpétua vingança. De algum modo, os Eloi eram os culpados pela era de luz excessiva, onde a Lua "desceu das alturas" e passou a perseguir os Morlok. Os deuses monstruosos, então, exigiam uma cota de punição, que se traduzia nos temíveis rituais sanguinários.

Ao que tudo indicava, houveram épocas que os Eloi foram mortos aos milhares, talvez milhões, para aplacar a ira dos deuses, mas os Morlok não demoraram a perceber que em certo grau dependeriam dos Eloi, e instituíram esse curioso modelo de dominação que evitava seu exterminínio e garantia um suprimento de sacrifícios perpétuo. Para garantir a sobrevivência de seus escravos, os Morlok eliminavam as criaturas perigosas nas noites escuras, permitindo que a floresta fosse um lugar onde os Eloi podiam se multiplicar com segurança, bem como lhes forneciam alguns artefatos, roupas e utensílios, alguns fabricados por eles próprios, outros obtidos de antigas cidades dos deuses.

Finalmente, então, o sacerdote questionou novamente por que tudo aquilo havia acontecido. Para ele, os crononautas eram evidentemente deuses, ou demônios, da superfície, que desciam trazendo suas luzes causticantes para atormentar os pobres seres das profundezas. Eles haviam destruído seus deuses, seus rituais e sua esperança. Ao ouvir aquilo, em alguns momentos, George teve vontade de chorar.

Mas não seria ali, e nem a eles caberiam, corrigir milênios de distorção social e injustiças históricas. George tomou a palavra, e disse que uma nova era havia começado. Os Eloi não mais seriam devorados, pois isso, ele sabia, não daria aos Morlok o poder de suportar a luz, nem traria de volta sua era dourada.

Durante seu breve discurso, que capturou a atenção dos Morlok, George tentou em alguns momentos ser conciliador e generoso, mas muitas vezes acabou sendo duro. Finalizou tentando convencer o sacerdote de que seu esperado dia ainda viria, e que não seria necessário sacrifícios ao deuses para isso. Chegou a dizer-lhes que seus deuses estavam errados, ou que os Morlok os haviam interpretado mal, e por mais que tenha tentado, George não conseguiu lhes dizer que seus deuses não existiam.

Ele teria falado mais, não fosse a crescente urgência em sair dali, recuaram aos poucos, encontrando quase nenhuma resistência pelo caminho. E George ainda fez o inusitado, prometeu aos Morlok que voltaria, e que os ajudaria.

Atravessaram o amplo ambiente e chegaram ao local da máquina, que ainda trabalhava. O vento ascendente praticamente os "empurrou" rumo a superfície, e finalmente, quando saíram ao ar livre, as nuvens negras haviam se dissipado, e as estelas brilhavam intensamente compensando parcialmente a escuridão da Lua Nova.

CAPÍTULO XVII

O caminho de volta foi tenso. Potentes lanternas iluminaram a floresta escura, os viajantes tiveram tempo de recarregar suas pistolas e dois dos cães monstruosos tiveram de ser afugentados a tiros. Quando finalmente chegaram à aldeia, as enormes fogueiras estavam mais altas do que nunca, visto que assim mantinham os cães afastados.

A recepção dos aldeões foi no mínimo ambígua. Muitos manifestaram alegria ao ver todos retornando quase ilesos, com no máximo ferimentos leves. Outros ainda estavam impressionados com os viajantes do tempo, e os anciãos se dividiam entre o medo e uma incipiente esperança.

Todos passaram a noite acordados, e pouco falaram entre si. George se concentrou em cuidar dos ferimentos dos amigos e dos Eloi, em especial Uiina, que requisitava muita atenção. Herbert tivera uma contusão na perna, mas passava bem, e Wells tivera apenas ferimentos leves, ainda que marcantes.

Com o raiar do dia, veio a segurança, e então todos relaxaram. Ainda assim Wells só conseguiu dormir dentro da máquina do tempo. Mais tarde, quase ao cair da noite, houve uma reunião dos anciãos, onde um deles, e alguns dos capangas que haviam sido levados pelos Morlok, relatavam suas experiências novamente. George se aproximou, e pela primeira vez não foi repelido nem isolado. Finalmente, sentaram-se para uma longa conversa.

Todos pareciam concordar que os Morlok estavam derrotados, curiosamente, apenas os crononautas não eram tão convictos da idéia. Por isso a noite de Lua crescente ainda teve seus momentos de tensão. Finalmente, na manhã que antecederia a noite de Lua crescente quase cheia, onde teriam mais de 70 horas seguidas de luminosidade, os crononautas deciriam voltar ao domínio dos Morlok, sendo largamente acompanhado por centenas de Eloi.

Ao se deparar com a entrada do templo, para surpresa geral, não havia qualquer tipo de reconstrução. As paredes destruídas continuavam a expor a caverna e os longos corredores. E havia uma aparente inatividade a julgar pelo silêncio que sugeria o não funcionamente das máquinas. Mesmo assim, antes de se aventurar nas profundezas, os aventureiros tomaram várias providências.

Primeiro destelharam todas as chaminés, deixando-as com a entrada totalmente exposta ao céu aberto. Acharam também duas entradas laterais, com portas de madeira, e arrobaram ambas, deixando-as totalmente abertas. Posicionaram diversas chapas metálicas e pequenos espelhos de modo a refletir luz para o interior dos corredores, aumentando ao máximo as áreas protegidas pela claridade.

Com suas armas recarregadas, ainda que com os últimos cartuchos de munição, finalmente adentraram o subterrâneo, trilhando cuidadosamente os longos corredores parcialmente iluminados por luz indireta. Levavam também tochas, que colocaram em alguns pontos estratégicos marcando o caminho, e continuaram até a grande galeria da máquina a vapor, que como desconfiavam, estava abandonada e com todos os engenhos desligados.

Os 3 continuaram sozinhos, visto que os poucos Eloi que haviam se atrevido a seguí-los vieram somente até onde alguma luz diurna alcançava. A cada passo, o silêncio e a quietude crescentes pareciam confirmar o que parecia cada vez mais evidente. Os Morlok haviam partido.

Na sala onde jaziam os ídolos de pedra, nem sequer haviam sido feitas quaisquer reformas. Tudo estava deserto e abandonado. Os crononautas então acenderam mais fogo, utilizando restos de materiais inflamáveis avermelhados dos Morlok, e então se aventuraram a ir mais longe.

Caminharam cautelosamente por algumas galerias, e encontraram alguns locais onde foi possível arrombar mais alguns acessos à superfície. Perfuraram a tiros algumas portas altas, permitindo a entrada de finos mas possantes raios de luz, e com isso foram ainda mais longe na investigação do local.

Encontraram vários vestígios da sociedade dos Morlok. Roupas, utensílios, barracas, esculturas e mesmo artefatos relativamente engenhosos, como ferramentas de pedra, tesouras de metal, picaretas, estilingues e facas. Numa ampla galeria, notaram o que parecia um cemitério, com montes de terra simetricamente ordenados, todos com ornamentos de pedra. A presença de alguns ossos claramente Morlok num dos cantos reforçava a impressão. Mesmo na dúvida, ninguém se animou a escavar as sepulturas, mas logo pensaram que deveriam ter matado algo em torno de 100 Morlok. Onde estariam os cadáveres?

Não demoraram a achar túmulos aparentemente recentes, com a terra mais fofa, e alguns nem sequer tinham os quase onipresentes ornamentos de pedra, como se tivessem sido feitos às pressas. Mais adiante, notaram algumas covas abertas, e finalmente perceberam um túmulo ainda mais recente, com um forte cheiro de putrefação.

Abandonaram o local. Encontraram um lago subterrâneo com água extremamente poluída, e acharam então um outro acesso a superfície que com muita dificuldade arrombaram, deixando entrar uma forte dose de luz solar que iluminou o ambiente, revelando novos detalhes à volta e ao lado. Ao que tudo indicava, os Morlok jogavam ali seus excrementos e lixo.

Mesmo cansados, prosseguiram por um corredor cada vez mais amplo, seguindo uma notável corrente de ar que aliviava o mau cheiro do local. Enfim entraram no que pareciam ser as moradias. Havia pequenos "prédios" escavados nas pedras, e alguns locais onde casas rústicas se erguiam, algumas poucas eram maiores e mais imponentes, até mesmo com símbolos e ornamentos pintados, provavelmente as dos líderes. Tudo jazia deserto.

Por fim, após mais um bom tempo de caminhada, se depararam com um imenso túnel, oval. Deveria ter em torno de uns 15m de altura por uns 40 de largura, e se extendia em linha reta até sumir de vista. Notaram então milhares de rastros, pegadas, e mesmo itens que haviam sido deixados para trás como testemunha intencional do êxodo.

O que mais chamou a atenção, porém, foi a arquitetura, seguramente além das capacidades dos Morlok. Era um evidente resquício de uma engenharia muito avançada. Escavando um pouco a terra, não demoraram a perceber pistas planas e regulares, de material resistente e de aparência plástica. Por trás da sujeira acumulada nas paredes, havia sinais claros de tubulações e dispositivos de iluminação e ventilação. Não demoraram a concluir que outrora grande veículos devem ter trafegado por ali.

Com as câmeras fizeram várias e ótimas imagens, anotaram vários detalhes, a fim de posteriormente voltar o local e verificar se haveria alguma alteração. Mas por mais que tentassem, não conseguiam notar o fim do túnel, que sugeria se estender por muitos kms. A única certeza é que era por ali que os Morlok haviam partido.

CAPÍTULO XVIII

Voltando a superfície, os crononautas ainda estavam envolvidos em questões. Haviam destruído uma civilização? Os Morlok partiram para o exílio, ou voltariam com reforços? Haveria outras comunidades Morlok além daquele local? E Eloi?

Tais respostas só poderiam ser obtidas com investigações muito mais detalhadas, mas, por sorte, não demoraram a perceber que poderia haver respostas não muito longe dali. Após investigar pela superfície as instalações dos Morlok, chegaram a uma falésia, como um canyon, de onde podia-se ver, abaixo, um grande rio.

Era a primeira vez que George via aquilo, pois aquele local ficava na parte "proibida" da floresta, e só era acessível após passar sobre a cidade subterrânea. Mas o mais impressionante era o que havia do outro lado do rio, também ao alto do canyon. Ruínas do que parecia ser uma cidade! Foi difícil conter a empolgação, mas os crononautas concordaram que deveriam descansar primeiro, e voltaram para a aldeia.

Ao saber sobre o êxodo dos Morlok os Eloi ficaram vibrantes de alegria, e não eram poucos os que agora queriam acompanhar os viajantes na aventura à cidade em ruínas. Decidiram partir ao final da madrugada, fortemente iluminada pela Lua quase cheia, e no meio da manhã estavam novamente na beira do precipício. Notaram então pequenos botes pendurados nas rochas. Certamente pertencentes aos Morlok, que então deviam ter acesso àquele local. O botes porém estavam fora de alcance, pendurados ao meio da parede, muito baixo para serem alcançados do alto, e muito alto para serem alcançados por baixo.

Decidiram então descer até o rio, o que não foi difícil, e logo chegaram ao nível da água, mas não demoraram a perceber que deviam se apressar, pois era evidente que a variação da maré era de mais de 10m, o que era de se esperar, haja visto a proximidade da Lua. Devia ser somente numa maré favorável que os Morlok alcançavam os barcos.

Estavam agora na maré vazante, o que lhe permitiu atravesar um pedaço raso do rio, que em média tinha 30m de largura. Seguidos de mais de 20 Eloi, incluindo dois anciãos e Uuina. Os desbravadores subiram a escarpa, com um pouco mais de dificuldade, e logo encontraram um caminho pela floresta.

A caminhada foi longa e cautelosa. Os viajantes não sabiam o que esperar daquela parte da floresta, onde nenhum Eloi estivera antes. Por vezes ouviram ruídos estranhos, principalmente quando paravam para descançar, e ficaram em prontidão, mas a passagem não teve incidentes, e finalmente chegaram às ruínas da cidade.

A fascinante arquitetura parecia misturar o estilo medieval de construção de castelos com linhas de arte moderna. Havia arcos em vários locais, corroídos mas firmes, torres de pedra com vidraças coloridas, muitas das quais intactas, e diversas escadarias que desciam para galerias subterrâneas. Nestas galerias havia vitrines, que lembravam lojas, embora a maioria estivesse vazia. Saguões amplos e empoeirados, com as estruturas tomadas por trepadeiras, pareciam ter um tipo de paisagismo saído da mente de um ousado jardineiro.

Encontraram estruturas de vidro que para todos os efeitos eram estufas, pois estavam tomadas por árvores e insetos. Havia praças, onde podia se ver o que seguramente eram chafarizes e espelhos d'agua, mas que agora certamente se contentavam em reter brevemente águas das chuvas. Os prédios não eram em geral muito altos, e os que outrora pudessem ter sido eram os mais destruídos. Olhando de um modo geral, era como se uma grande onda de choque tivesse varido tudo acima de uns 30m.

Os viajantes estavam preocupados com a ausência de qualquer coisa que ajudasse a esclarecer que tipo de habitantes viveu naquela cidade. Tinha-se a impressão que os ambientes foram projetados para indivíduos de estatura mais próxima aos Eloi, mas isso podia ser enganoso. Até que finalmente alguns Eloi chamaram atenção dos crononautas para uma série de murais com imensos desenhos.

Era um prédio como um templo, ou uma acrópole cultural. Havia uma nave central que, mesmo semi destruída, deixava emanar um sentimento místico e devocional. Em seu interior, dezenas de painéis contavam em desenhos uma história difícil de interpretar, mas logo se via que as representações, ainda que um tanto estilizadas, eram de humanos parte similares aos Eloi, mas também com alguns elementos Morlok, como a pele clara e o olhos maiores.

Ao que tudo indicava, Eloi e Morlok haviam sido um dia uma mesma raça, ou uma mesma espécie, pois havia desenhos que retratavam cidades como aquela, onde as ruas estavam repletas de uma população que era um meio termo entre as duas raças. Outros desenhos mostravam grandes bolas de luz brilhando no céu, e uma população espantada.

Havia muitos painéis destruídos e de difícil visualização, e os crononautas talvez estivessem forçando sua intepretação para se encaixar no que já suspeitavam. Mas era irresistível teorizar, de acordo com os desenhos, que algum tipo de fenômeno celeste afetou parte da população tornando-a sensível a luz, o que dividiu a civilização em duas castas distintas. Em vários desenhos, era notório que a classe social afetada se tornara uma casta inferior, aparentemente servil, submetida a escravidão dos que não foram afetados pela doença.

Alguns desenhos mostravam claramente pessoas, agora ainda mais parecidas com os Eloi, em posição privilegiada enquanto pessoas cada vez mais parecidas com os Morlok executavam toda a sorte de trabalho. Como auxílio de outros painéis econtrados em outros pontos da cidade, e de alguns papéis que pareciam ser a única coisa que restara de livros, os viajantes do tempo se arriscaram a conjecturar que aquela relação de dominação perdurou por milhares de anos, com um total isolamento reprodutivo entre as castas, que foram cada vez mais se diferenciando.

Com o passar das gerações, os Morlok se tornaram seres do subterrâneo. Sua doença aparentemente evoluíra para os tornar sensíveis não só ao Sol, mas a quase toda forma de luz forte de espectro superior ao laranja. Tambem ganharam vantagens, pois isolados no subterrâneo, desenvolveram sentidos mais aguçados, capacidade de enxergar em baixíssimos níveis de luminosidade, e maior força e resistência física.

Por outro lado, os ancentrais dos Eloi se entregaram a uma vida de ócio improdutivo, sendo em tudo servidos pelos seus escravos, o que terminou por resultar em sua degeneração. Um dia, algum tipo de catástrofe causou o deslocamento orbital da Lua. Havia muitos desenhos retratanto essa terrível tragédia que aparentemente devastara cidades inteiras. A destruição dos fundamentos da civilização terminou por permitir aos Morlok uma revolução, e passaram não mais a servir seus antigos senhores.

Ocoreu então a inversão da relação de dominação, os escravos se tornaram independentes e promoveram uma guerra contra a civilização da superfície. Se por um lado a catastrófe lunar os isolou ainda mais no subterrâneo, por outro lado o mundo subterrâneo parece ter sido mais poupado do impacto destrutivo. As cidades da superfície degeneraram e toda a riqueza passou a vir do subterrâneo.

Ao que parecia, houvera outras catástrofes de outras ordens, que tornaram a situação ainda mais confusa. Até que o povo da superfície se tornou praticamente apático e indefeso, e refém dos Morlok. Os detalhes de como essa situação levou ao desenvolvimento de uma situação tão peculiar eram um mistério, mas os desenhos permitiam inferir que a civilização da superfície pré catástrofe lunar possuia um padrão de vida elevado, com tecnologias relativamente avançadas. Mas por outro lado havia evidência de tecnologias muito mais sofisticadas que não pareciam ter sido desenvolvidos nem pelos ancestrais diretos dos Morlok, nem dos Eloi.

Era difícil estimar como teriam sido 80 mil anos de evolução e revoluções, mas era válido pensar que nesse tempo a humanidade atingira mais de uma vez o apogeu civilizatório, mas caiu pelos mais diversos motivos. Nesse período teria havido eras glaciais, alterações geológicas radicais, impactos meteóricos, sem falar nas catastrófes provocadas pelos próprios humanos. Era provável que camadas alternadas de alto desenvolvimento tecnológico se alternassem com camadas de estágio técnico primitivo, e que boa parte desta história tivesse se perdido irremediavelmente.

Era razoável supor que, naquele momento, não houvesse no planeta nenhuma concentração significativa de tecnologia avançada. O simples silêncio radiofônico era suficiente para sustentar essa hipótese. Os viajantes do tempo rastrearam quase todo o espectro conhecido de ondas eletromagnéticas e nada encontraram além de silêncio.

Por não poderem voltar para nenhuma época além de 2009 e 3009, ao menos era o que George agora concluíra, só restava aos viajantes reconstituir a história do futuro da forma de que dispunham. Essas conjecturas também permitiam supor que havia outros remanescentes da civilização espalhados pelo mundo, mas era bem provável que somente os Morlok possuiam algum contato com eles, visto que ao que tudo indicava, eles podiam se mover por extensas galerias subterrâneas que pareciam interligar boa parte do continente. Era provável que aquela mesma situação escravista se repetisse em outros lugares do mundo.

Pensando nisso, os crononautas consideraram que a possibilidade dos Morlok voltarem, e em maior número, não podia ser descartada, e não demoraram a descobrir o que seria prudente fazer. Até onde puderam investigar, o imenso túnel por onde os Morlok partiram seguia em linha reta por centenas de kms passando por baixo do rio e da cidade, de onde alguns acessos eram possíveis. Mas o túnel de fato parecia terminar onde os Morlok construíram seu mundo subterrâneo, e assim, só havia coisa a fazer. Bloqueá-lo.

Os argonautas do tempo, dias depois, voltaram ao mundo dos Morlok. Verificaram que não houve movimento no local, exceto o de animais inferiores. Com granadas e explosivos improvisados, a maioria obtidos do combustível deixado pelos Morlok, arquitetaram uma bem sucedida demolição. Implodiram então o domínio subterrâneo, soterrando a saída do túnel sob centenas de toneladas de escombros que não poderiam ser abertos em menos de uma geração sem grandes escavadeiras mecânicas.

Os Morlok também poderiam voltar pelas ruínas da cidade. Mas dali, a possibilidade de lançarem uma ofensiva contra os Eloi era remota. Seria necessário toda uma noite de viagem para alcançarem a aldeia, o quando o fizessem, o dia estaria a nascer. Ainda assim, os crononautas também bloquearam algumas passagens que da cidade davam acesso ao túnel subterrâneo.

Então, mais de uma semana após chegarem do passado, decidiram que estava na hora de voltar para casa. Não foi fácil convencer os Eloi a deixá-los partir, pois faziam toda sorte de apelos e chantagens para conseguir sua estadia permanente, em parte, é claro, por medo da volta dos Morlok. Uiina, como seria de se esperar, chegou a querer vir com eles. Ela até caberia na Máquina do Tempo, mas George achou que estava fora de cogitação.

Partiram no amanhecer que antecedia a Lua Crescente, e se despedindo dos Eloi, deram sua palavra de que voltariam, e partiram para uma viagem rápida rumo ao ano 2009.

Chegaram a um laboratório no mesmo estado em que o haviam deixado. Haviam se passado nada mais que 7 horas. Regressar ao seu tempo original, curiosamente, não deu aos crononautas a sensação de que tivessem vivido um sonho. Quase pelo contrário. Tinham a sensação de que continuavam no sonho, ou que tudo, afinal, era um grande sonho.

Passaram-se semanas, e diversos dos dados coletados foram analisados pelos 3, mais um grupo pequeno de pesquisadores de confiança. Mais do que a própria viagem no tempo em si, a história do futuro trazida era também vista como fantástica. As notícias do sucesso das experiências de George com a viagem no tempo se espalharam de forma discreta, dentro de instituições de pesquisa do mundo todo, e seus experimentos passaram a ser reproduzidos em toda a parte.

Algo porém, perturbava a todos. Por mais que tentassem, laboratório algum em todo o mundo conseguia criar uma máquina do tempo funcional, apesar de todos os cálculos e teorias mostrarem-se claramente corretos, conseguiam apenas reproduzir modelos pequenos e automáticos que viajavam poucas horas para o futuro e voltavam. George começava a ser assediado tanto por entusiastas quanto por críticos que desconfiavam estar diante da maior fraude científica da história. É claro que somente a parte técnica operacional da viagem no tempo estava em questão. Ninguém realmente acreditava na história contada pelos 3 viajantes.

As notícias vazaram na internet e chegaram à mídia, mas se perdiam em meio da uma infinidade de boatos e estórias falsas, algumas das quais propositalmente inventadas pelos próprios crononautas, para evitar exposição excessiva. Mesmo assim, George não suportou mais que alguns meses, e já havia conseguido construir outro reator nuclear, mais potente, afim de prosseguir noutra viagem. Tinha motivos científicos sérios. Mas também havia Uiina.

Assim, dias antes da nova data marcada para a próxima viagem no tempo. George chamou seus dois amigos para testemunharem sua partida. Foi mais uma vez, à noite, longe da vista dos demais técnicos e cientistas, e desta vez George foi novamente sozinho.

Os amigos testemunharam novamente a máquina flutuar, piscar e finalmente sumir. Durante longos minutos, ficaram a esperar algum retorno, e esperavam passar a noite no laboratório, quando de repente, 45 minutos depois, uma luz intensa irrompeu na sala. Flashes luminosos começaram a se suceder cada vez mais rápido, até que uma estrutura luminosa foi ficando cada vez mais opaca, e descendo por sobre o pedestal de decolagem da máquina do tempo.

Finalmente parou, mas Herbert e Wells não podiam conter o espanto, pois tinham diante de si uma máquina do tempo, mas não a mesma máquina na qual George partira. Ao invés dela, estavam diante de um engenho muito mais impressionante, com linhas indubitavelmente mais sofisticadas, predominantemente transparente e luminosa, essa nova máquina do tempo sugeria uma engenharia muito além da humana.

E então, George surgiu. Mas também, não o mesmo George, mas um muito diferente. Aparentemente mais jovem e saudável, e vestindo roupas de um tecido difícil de descrever. Trazia consigo uma caixa misteriosa, mas o mais misterioso mesmo foi que George não saiu da máquina como seria de se esperar. Nenhuma porta se abrira.

Ao invés disso, ele simplesmente surgira, do nada, como se atravessasse a estrutura luminosa como um fantasma. E então disse em voz alta, diferente mas inconfundível.

- Olá meus amigos.

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