Qualquer desavisado que visse a cena não poderia deixar de se indignar com tamanha perversão.
Um pobre velho, magérrimo e maltratado, com longas barbas e cabelos brancos e os inequívocos sinais de anos de sofrimento,
praticamente nu, amarrado a uma cama de tortura.
O outro personagem era um homem de meia idade, cujos cabelos grisalhos não diminuíam sua aparência de força e vigor,
cujo franzir de sobrancelhas denunciava um olhar que parecia capaz de furar seus óculos escuros com uma fibra
sobrenatural.
Vestindo um impecável terno, esse homem estava na posição de um torturador, tentando arrancar do pobre velho algum
tipo de informação.
Mas, no entanto, a cena não poderia ser mais enganosa, pois naquele momento os papéis eram o exato oposto. O homem de
terno, ditador máximo e tirano de uma recém pequena república independente da América Central, era quem estava sendo de
fato torturado, e o pobre diabo sem dentes, em estado decrépito de agonia, era realmente seu algoz. Algo que somente
sua abafada, rouca mas ainda assim intensa gargalhada, poderia denunciar.
- FALE DESGRAÇADO!!!
- HA HA HA HA HA HA... COFF! COFF! ARGH! HE HE HE... HI HI HI!
- Pare! Pare com essa risada infernal seu velho maldito!!!
- P-parar? P-parar por quê... Quan... Quantos anos você acha que eu esperei... Para ver essa sua cara de desespero?
- Eu vou... Eu vou... Fale!!! Ou eu...
- Ou você o quê?!? Hi hi hi! Olha pra mim seu estúpido. Estou morto! Tenho 60 anos mas um corpo de 100! Não duro
nem mais uma... Coff! Argh... Nem uma semana! Acha que eu tenho algo a perder?
- Você ainda tem sua vida seu maldito!
- Vida?! Chama isso de vida?! Você acabou com minha vida há muito tempo seu canalhaaaarghhh...
Mas o breve grito logo se transformou numa sonora gargalhada. O velho na verdade expressava uma alegria difícil
de descrever, ao passo que o ditador estava prestes a ter um colapso nervoso. E não era para menos.
Sua república passara a existir após uma breve luta armada separatista que criara uma nova e pequenina nação.
Nos primeiros anos ele contou com amplo apoio popular, até que as condições começaram a declinar, desentendimentos
se agravarem e uma terrível guerra civil já ocorria há anos.
A ditadura recrudesceu a tal ponto que não havia um único país no mundo a apoiar o governo, que terminou por isolar
o país e submeter sua população a uma constante e crescente agonia por falta de recursos. Por muito menos as Nações
Unidas já haviam aprovado intervenção militar direta, porém aquele pequeno país tinha um trunfo muito especial.
- Você não entende? Eu não vou deixar você estragar tudo! Já tenho as outras senhas, só falta a dele! E eu sei
que você sabe! Não minta!
- Mentir?! Pra quê men... coff coff... Mentir? Mas é claro que eu sei! Está aqui! Fresquinha na minha memória!
Posso vê-la inteirinha e clara... Como a luz do dia. He he... Mas... Eu... Não... Vou contar. He he hi hi...
- Então sinta isto!
- Au! Uiii... Hi hi hi... O quê? Não doeu nada!
- Como... Não doeu?
- Seu idiota! Como pode ser tão... Ignorante das coisas que acontecem nas suas masmorras? Não consegue reconhecer...
Os sinais da Lepra?! Eu estou leproso seu estúpido! Leprosos não sentem dor! Ai! É... Eu até sinto. Uma dorzinha.
Mas essa dorzinha não é nada comparada a alegria de ver você agonizar! Sabe Ramos! Hoje é o dia mais feliz da minha vida!
Eu nunca pensei que o tempo me daria uma vingança tão gloriosa!
- Ummmfff... #$%&@!!!
- HA HA HA HA HARRGHH! COFF COFF! UFF... He he... Hi hi...
O General Carlos Ramos não tinha escolha. Aplicou ele mesmo uma dose de Pentatol. O famoso "soro da verdade", que
na realidade não faz jus ao nome, mas que poderia sim ajudá-lo a descobrir a terceira senha. O problema é que era
comum a vítima ficar em estado de delírio, e costumava dizer a verdade mais por descuido, como se estivesse alucinando.
O risco de que nada dissesse existia, mas o general não tinha mais o que perder. O velho não cooperaria. Sempre
fora um osso duro de roer, um soldado de fibra extraordinária, e não seria agora que iria fraquejar.
O efeito demorou, e o general voltou a insistir na pergunta. Precisava desesperadamente saber a terceira senha de
ativação da Ogiva Nuclear de sua Bomba de Nêutrons, única arma que poderia fazer frente à iminente invasão que seu
país estava prestes a sofrer. As senhas anteriores ele possuía. Uma era a dele e a outra, do Chefe Maior das Forças Armadas,
que fora duramente persuadido a fornecê-la. Mas a terceira, a do Coronel, estava perdida, morta com seu dono, que
preferiu o suicídio a entregá-la ao insano general.
Somente com as 3 senhas era possível a ativação do artefato. Uma sábia medida de segurança para evitar um
lançamento resultante de algum delírio ou paranóia individual. A senha entretanto tinha 12 caracteres, que podiam
ser números, letras ou símbolos comuns, totalizando uma gama de 5012 combinações. Ele teria apenas 3 tentativas
entre 244.140.625.000.000.000.000 possibilidades!
Duzentos e Quarenta e Quatro QUINQUILHÕES, Centro e Quarenta QUATRILHÕES, Seiscentos e Vinte Cinco TRILHÕES
possibilidades para apenas 3 chances!
- Senha... Que senha?
- A senha do Coronel Gutierez... Seu maldi...
- Aaaahh... A Senha! Hi hi. É... A senha.
- Vamos... Confesse! Fale a verdade!
- A senha do Gutierez... Era... Lá-la-ri-la-la... Iiuuupiii! Hi hi hi... Senha? Que senh... Ah! A senha!
É... A senha era... Na-na-ni-na-não! Eu não vou contar não!
O general se segurou para não perder a paciência, mesmo porque estava prestes a perder o "paciente"! Era evidente
agora que o velho dava sinais de insensível agonia, misturada a um grotesco êxtase, um certo delírio mortífero.
Mas estava chegando perto. Entre risadas e cantigas ultrajantes, o velho viajava, e parecia prestes a dizer qualquer coisa
que lhe viesse à cabeça.
- Senha, senha, senha! Senha, senha, senha!
- Huumpff...
- Senha! Senhinha! Senhão! Sen... Coff cof COF!!! A-hamm...
- Vamos... A senha do Gutierez. Qual era a senha do Gutierez.
- Aaahhh... A senha do Gu-Gutierez. Sennha do Gugu... Era... Era...!
Então os lábios ressequidos e decrépitos pronunciaram algo inaudível, fazendo o General se aproximar. Quanto mais
perto, mais ele sentia o insuportável hálito, mas não tinha opção. O velho dizia alguma coisa, bem baixo, mas dizia.
Até que finalmente, bem mais perto, ele pôde ouvir as palavras nada agradáveis de um grosseiro insulto.
- AAARRGHHH!!!! DESGRAÇADO!
E nada mais fez do que dar um golpe mortífero na já cadavérica expressão moribunda, logo em seguida levando as
mãos ao rosto, com vontade de chorar. Até que então ouviu algo, entre o suspiro final que levava a vida embora.
- ...letras... Hi hi hi... Tudo isso... P-por causa... de... He he... 6 letras...
Seis letras! O velho falara "6" letras! Então não eram preciso 12? Teria a senha somente 6 letras?!
O general correu para sua sala e
examinou o manual de instruções. Era verdade! As senhas podiam ter entre 6 e 12 caracteres, e podiam ser apenas letras.
Se o coronel fizera uma senha de apenas 6 letras, em 266 combinações...
308.915.776 (Trezentos e Oito Milhões Novecentos e Quinze Mil Setecentos e Setenta e Seis). Ainda era um número bem grande,
mas muito menor que os quase 245 quinquilhões! Já era um começo.
Além disso ele conhecia Gutierez e, pensando bem, agora isso fazia sentido. Não que fosse um mau memorizador, mas
Gutierez era daqueles que gostava de ver sentido em tudo, sendo assim, ele não teria feito uma senha caótica como
a do próprio Ramos, que era "$S9T3?FG%2+1", cujo truque mnemônico só ele era capaz de adivinhar.
Se era assim, devia ser uma palavra comum do espanhol. Não deveria haver muito mais do que umas 30 a 40 mil palavras
com 6 letras. E assim seu leque de possibilidades diminuía ainda mais. Melhor ainda, deveria ser algo que tivesse um sentido
pessoal para o excêntrico Gutierez. Para quantas possibilidades isso faria a senha encolher? Alguns milhares?
O velho agora estava morto, partira deixando apenas um aviltante e largo sorriso no rosto. Fora um dos homens de confiança
do Coronel Gutierez, daqueles que de tudo sabia, mas caíra em desgraça quando não aceitou a aliança de seu coronel com
o General Ramos, que trouxera uma breve paz ao país, e que parecia a única coisa capaz de impedir uma intervenção militar
das forças do Império Austral, que agora dominava quase toda a América do Sul.
A situação de Ramos era emergencial não devido às Nações Unidas, que não se atreveriam a atacar uma republiqueta de menos
de 6 milhões de habitantes munida de uma bomba de nêutrons de fabricação clandestina, e que por sinal, usava parte da
estupenda tecnologia roubada do Império Austral, que era agora, sem dúvida, muito mais poderoso do que todo o resto do
mundo.
Era isso que Ramos temia, o Império Austral e seu terrível governante. O selvagem sem nome, o Anti-Cristo em pessoa,
aquele que era conhecido pelo sinistro e singular nome, de DAMIATE.
Deixando sua guarda pessoal do lado de fora, Ramos invadiu o apartamento do coronel Gutierez e passou a, avidamente,
revirar suas coisas. Era preciso achar alguma pista, algum sinal. Virou e revirou gavetas e mesas, até que, na estante de
livros, um caderno escondido caiu ao chão e abriu numa página evidentemente marcada. O general palpitou de euforia.
Imediatamente reconheceu um esboço a lápis do painel de entrada de senhas da bomba, e percebeu que
o falecido coronel fizera várias anotações.
Mas seu desespero não tardou a voltar, pois percebeu que algumas das páginas, as principais, estavam faltando, e no
lugar delas, entre as páginas posterior e anterior, havia cinzas. Queimara! Ele queimara as páginas! Atônito, o general
continuou revirando a estante até que, num lampejo de intuição, voltou a pegar o caderno, e então percebeu que em algumas
das folhas havia sulcos que podiam ser percebidos. Embora fosse pouco, o general sentiu uma esperança ao notar que em
várias das páginas havia sulcos de caracteres que só poderiam ser "L" e ou "E", variando entre as quinta, sexta e sétima
casas de caracteres.
Pensou bem. As idéias começaram a se formar. Era evidente que o falecido Gutierez tentava encaixar algum enigma ali,
fazia testes. Ele destruiu as conclusões, mas deixara aquelas pistas. Mas então, quando uma intuição brilhante
parecia prestes a emergir, Rafaele, filha única do coronel, adentrou o quarto furiosa.
- Deixe as coisas do meu pai em paz! Seu monstro!
- Quê?! Rafaele!?!? Por favor Rafaele me escute! É nossa única chance!!!
- Do que você está falando!?!? Você matou meu pai!
- Não Rafaele! Não matei seu pai! Ele se matou!
- Mentiroso! Canalha! Nós nunca devíamos ter confiado em você, seu s...
Rapidamente esbofeteada, Rafaele se calou, mas apesar de durão, o general sempre soube representar, e logo assumiu
um ar de quem não gostou do que havia feito, lançando mão de certos típicos papéis canastrões.
- Me desculpe! Mas você tem que se controlar! Estamos prestes a ser invadidos!
A moça se recompôs, humilhada, embora assentindo que tinha que agir de outra maneira.
- Eu... Eu sei.
- Então temos que agir! E minha única esperança é descobrir algumas informações sobre seu pai!
- E em que isso pode ajudar?!
- Uma palavra! Preciso de uma palavra que seja importante para ele! Uma palavra de 6 letras! Uma senha!
- Senha? De quê?!
A bomba era secreta, e Rafaele certamente não sabia, ele tinha que inventar uma boa desculpa.
- De acesso a... Um sistema de defesa. Do mesmo tipo que o Império Austral usou contra os americanos!
- Aquela que paralisou a armada inimiga?
- Isso!
- Não sabia que tínhamos isso! DAMIATE nos forneceu!?
- Bem... É uma longa história. Mas eu preciso saber! O que seu pai pensava? O que ele usaria...
O general se virou, vasculhando o quarto do coronel. Havia muitos livros e muita arte, vários quadros na parede, de
temas religiosos. O coronel era católico fervoroso. Rafaele, agora em dúvida, tentou pensar, embora ainda desconfiasse do
sempre enigmático General Carlos Ramos.
- Ele... Nos últimos dias... Lia muito a Bíblia, por isso que...
Então ela voltou um olhar furioso para o general.
- ...Não posso acreditar que ele se matou!
- Ora! Vai ver quis ir logo pra perto de Deus!
- Seu ignorante! Você não sabe nada! Não é? Não sabe que suicídio é crime perante Deus!? Meu pai era devoto,
era teólogo, podia ter sido padre! Acha que ele seria tão estúpido!?
O general pensou. Religião! Teologia! Sim! Podia muito bem ser isso! Tentou se lembrar das últimas frases do
coronel antes de morrer! Falara sobre o Juízo Final, era verdade. Mas e daí? Lembrou-se que o coronel realmente
ingerira uma cápsula de veneno, mas que lhe dissera que não era um suicídio, mas um sacrifício, pois não poderia
permitir que Ramos soubesse a senha, e por ter sido levado a pensar que seu outrora fiel guerrilheiro já estava morto,
ao contrair lepra nos calabouços da ditadura, achou que poderia selar para sempre o segredo.
Ramos não poderia dizer isso a Rafaele, é claro, tinha que agir com cautela, tudo estava em jogo, e ele tinha um
prazo de algumas poucas horas.
- Está bem... Seu pai não suicidou. Ele foi envenenado. Pelo velho guerrilheiro.
- O quê? Aquele que ele mesmo mandou prender?
- Sim.
- Mas ele está vivo!? Fugiu?
- Tive que dizer que foi suicídio para que ele pensasse que o plano dele funcionou! Aí nós o pegamos. Ele
queria impedir que eu tivesse acesso à terceira senha, e assim ficaríamos indefesos. Mas antes que pudéssemos interrogá-lo
ele conseguiu se matar, engolindo uma cápsula do mesmo veneno que usou para matar seu pai. Não podemos deixar que o mundo
saiba disso, caso contrário saberão que estamos indefesos! E temos que descobrir esta senha!
- Então... Não são os... Anjos Estelares... Que virão nos atacar?
- Anjos?! Ahh...Não. São os yankees.
Num instante Rafaele se sentiu tola por acreditar com tanta convicção nos lendários Anjos de DAMIATE. Embora houvesse
muitas boas suspeitas sobre a existência deles, ela no fundo achava que acreditava mais por esperança do que por
razão. Ficou dividida entre essa possível decepção e sua desconfiança no general. Era difícil encará-lo agora. Mas também
não foi fácil para o general aquela última mentira, pois eram mesmo as forças de DAMIATE que ele esperava, mas
então, de repente, do breve desespero acendeu uma furiosa chama de esperança, e só então se apercebeu das imagens que
estavam a sua volta. Anjos!
Os Anjos Estelares de DAMIATE eram mais que uma tropa de elite, eram muito mais que uma mera arma. Na verdade, eram
super-homens, um tipo de semi-deuses!
Ninguém sabia muito bem quais eram exatamente os poderes do sinistro DAMIATE, mas seu anjos eram como super-homens. Pouco
conhecidos a não ser por ondas de relatos supersticiosos e lendários. DAMIATE nunca os expôs
publicamente. Mas a quantidade de relatos de confiança sobre eles, entre um número muito maior de relatos de pouca confiança,
eram suficientes para que todas as autoridades do mundo soubessem, ou ao menos desconfiassem seriamente de sua existência.
Eles podiam voar, a velocidades estupendas! Tinham força descomunal e podiam gerar ondas de calor e eletricidade como
se fossem estrelas. Dizia-se também que curavam doentes e feridos, e até ressuscitavam mortos. Pareciam também imortais.
Mas Ramos desconfiava que nem mesmo eles seriam insensíveis à sua bomba de Nêutrons, que era agora sua esperança,
e por isso, tinha que voltar sua mente agora para outros anjos. Os anjos cristãos!
O coronel Gutierez era estudioso da teologia cristã e, só então lembrou-se, uma de suas especialidades era exatamente
Angeologia. Claro! Por isso havia todos aqueles quadros de anjos nas paredes, além de estátuas, e também, pôde ele logo
conferir, uma enorme quantidade de livros sobre o assunto.
- Anjos! Rafaele! Tenho certeza que a senha de seu pai é o nome de um anjo. De 6 letras, e a maioria dos anjos
termina com "EL".
Essa última revelação tomou Ramos de euforia. Só precisaria agora descobrir as 4 outras letras! E poderia mesmo excluir
o K,W e Y. Isso dava um total de 279.841 combinações, das quais, é claro somente umas poucas seriam válidas. Possivelmente
mais ou menos uma dezena!
-Vamos! Não temos tempo a perder!
Levar Rafaele tinha dupla utilidade, primeiro porque ela poderia ajudá-lo a descobrir o nome do anjo, segundo porque
agora, mais do que nunca, ele tinha certeza de que ela tivera ligação com a resistência da qual o velho fizera parte.
Um grupo, anteriormente integrado pelo próprio Coronel Gutierez, que pensava em se aliar ao Império Austral e derrotar o
levante militar que vinha tomando conta do país. Gutierez aceitou mudar de lado, em dúvida, devido ao seu apego religioso,
pois o Império Austral já ficava famoso por sua baixa estima para com as grandes religiões. Ademais, era mesmo difícil
olhar para uma imagem de DAMIATE e realmente não achar que as acusações de que ele fosse o anti-cristo tivessem algum
fundamento.
Rafaele provavelmente tinha mais informações sobre os ainda restantes focos desta resistência. Levá-la sem dúvida
causaria certa comoção social, e haveria os mais diversos tipos de pressões. Mas naquele momento, nada disso importava,
pois a invasão era mais que iminente. Além de tudo isso, se tudo o mais falhasse, Rafaele poderia ser uma boa refém.
Pequena e franzina, apesar de corajosa, Rafaele foi arrastada pelo não corpulento, embora forte e determinado general,
e pouco depois já estavam de volta à base militar que servia de sede "provisória" de governo. Descendo aos subterrâneos,
passando por vários sentinelas e sistemas de segurança. E tendo que dispensar frequentemente oficiais que vinham lhe
comunicar coisas urgentes, o General Ramos chegou com a jovem ao local onde guardava sua arma secreta.
- Mas... Mas isso é um míssil!!!
- E o que você esperaria que fosse!?
- Também não parece nada com tecnologia do Império Austral!
- Ah não?! Dê uma olhada nisso!
O general então a arrastou para mais perto do painel, que era feito de tecnologia roubada do Império Austral. Olhando aquilo,
atônita, Rafaele se convenceu, e deu ainda mais certeza ao general de que ela era uma das resistentes, pois poucos poderiam
reconhecer aquele desenho típico de uma arquitetura supostamente extraterrestre.
Logo um oficial se aproximou e, temeroso, mas firme, trazia uma má notícia.
- Senhor. Tentamos de tudo. Infelizmente nada parece ser capaz de fazer esse míssil voar novamente! Sinto muito.
O general lhe lançou um olhar agoniado, mas não tão surpreso. E então, em poucos segundos, sua mente
realizou uma verdadeira viagem pelas suas lembranças e sentimentos mais profundos. E tomou uma resolução sinistra.
Seu cinismo, porém, era extremamente eficiente e simulou um tom conformado.
- Eu sei. Já desconfiava. Está dispensado!
Um tanto surpreso, o oficial não pôde resistir ao tom de voz que o expulsava dali. Mas estava aliviado por ter aparentemente
escapado de algum tipo de punição que o general costumava dar em momentos de tensão. Sabendo da iminente invasão, ficou
intrigado sobre qual seria a intenção do general, mesmo porque agora, diante do inevitável, as deserções começavam a se
acelerar, e ele próprio já considerava a hipótese de fugir.
- Então... Não vai adiantar nada!
- Vai sim! Eu... Esse mecanismo pode ainda ser ativado mesmo sem o lançamento do míssil. Seu alcance será afetado,
mas tenho certeza que ainda poderá deter a esquadra americana quando estiver nas nossas praias.
Rafaele não parecia muito convencida, mas estava imersa em dúvidas. De fato havia movimentação de forças das Nações Unidas,
Estados Unidos e da França no local. E o Império Austral há muito não dava sinais de se importar com a situação. O isolamento
de informações que o regime ditatorial conseguia impor ao país, por mais falho que fosse, ainda conseguia limitar os recursos
da resistência. Até mesmo a internet tinha seu desempenho reduzido.
- Então... O que você quer?
- Seu nome. Ra-fa-e-le! É o nome de um anjo, não? Que nome mais apropriado para seu pai colocar na senha?
Basta tirar a última letra.
Ramos se virou empolgado para o painel, acionou alguns comandos e prontamente uma tela surgiu
aparentemente no ar. Teclando rapidamente, ativou uma interface que ostentava instruções em seu idioma. E o visualizador
de entrada de senha se tornou disponível, enquanto uma voz feminina e artificial requisitava a entrada das senhas para
liberação do controle do detonador.
O general mal podia se conter. Lembrava-se muito bem das simulações, e sabia que em breve poderia ter acesso ao painel
que lhe permitiria ativar sua arma fatal. Uma vez entradas as senhas, o painel seria rapidamente liberado, e eram poucos cliques,
que levavam menos de 5 segundos, para que tudo num raio de centenas de km fosse envenenado por uma radiação letal que
causaria morte em todas as coisas vivas.
Respirou fundo, sabia que o processo de digitação exigia alguns cuidados, e então digitou a primeira senha, a dele
próprio. O confuso código que brevemente se arrependeu de ter criado tão complicado. Ao terminar, o sistema aguardou e
aceitou a senha. E então surgiu uma outra tela, e ele entrou a segunda senha, também de 12 caracteres, o simbólico
"LED ZEPPELIN". O espaço valia como um caractere.
Finalmente, tomou fôlego, e tomando sua melhor chance, digitou seu palpite, embora se arrependendo assim que terminou.
Aguardou alguns instantes. O sistema era automático. Devia-se digitar cada letra num ritmo constante e após a interrupção,
o sistema esperava alguns segundos e examinava a senha, e então emitia a resposta, que no caso foi:
- "SENHA INCORRETA."
- Puuufff... Claro. Claro... Óbvio demais.
- Você não sabe o nome dele?!
Como pôde ser tão idiota?! Só agora lembrou que o segundo nome do coronel era "Rafael"! E uma das recomendações expressas
dos armeiros que lhe treinaram no uso a bomba era nunca usar uma senha óbvia como o próprio nome"
- Não acredito! Que burrice!!! Mas tudo bem. Eu teria que testar de qualquer jeito.
- Ainda acha que é um anjo?
- Sim. Acho. Mas qual? O Arcanjo Gabriel? Claro que não! Tem 7 letras. Sim! Claro! Mas é Claro!
Assim que o sistema autorizou a segunda tentativa, advertindo sobre o risco de errar, ele percebeu que havia um candidato
muito mais provável. Um Arcanjo guerreiro!
- Claro. O anjo cuja espada guarda o portal do paraíso.
- Yyyeees!
O processo se repetiu e os segundos de avaliação pareceram intermináveis. Finalmente, o sistema voltou a mesma decepcionante
resposta anterior.
- Hum!
- Droga!!! Mas que droga! Eu estava tão certo! Mas que...
Não pôde completar a frase, porque um estrondo imenso foi ouvido. As paredes e o teto vibravam, e embora fosse nítido que
a fonte do ruído fora distante, era motivo de séria preocupação.
- Estamos sendo atacados!? Os americanos?!
Então um oficial entrou correndo na sala, sem medo, pois trazia uma notícia que justificava interromper o general.
- O que foi isso tenente!?
- Não temos certeza senhor! Fomos atingidos por alguma coisa, rápida como um míssil! Primeiro recebemos uma estranha
mensagem exigindo falar com o senhor, como não respondemos, nossos... Nossos sistemas foram sondados, e então sentimos o
impacto!
- Impacto do quê?!!?
- Algo pequeno e luminoso senhor! Do tamanho de um homem!
Então um soldado trouxe um pequeno computador portátil, e na tela podia-se ver uma cena de combate
no salão principal. Embora combate talvez não fosse o nome apropriado. Dezenas de soldados disparavam tudo o que tinham,
metralhadoras, granadas e mísseis contra uma luz branca que continuava a avançar ilesa, e então a imagem mostrou uma
intensa e luminosa descarga elétrica colocar os soldados fora de combate, antes da câmera ser destruída e só mostrar
chuvisco.
- Deus do céu!
- Um Anjo! Um dos Anjos Estelares de DAMIATE!!!
- Eles... Então eles existem mesmo?!
- Então não estamos sendo atacados pelos americanos!!! Você mentiu!!!
Finalmente, o soldado que trouxera o monitor chamou a atenção do tenente, que finalmente viu o painel da bomba de nêutrons.
- G-General? O que o senhor está tentando fazer?!
O general se sentiu duramente flagrado! Não soube o que dizer.
- Os motores do míssil não funcionam! Se detonar a bomba vamos todos morrer!!!
- O quê?!?! Isto não é uma arma defensiva!?!?
- Claro que não sua idiota!!! É uma bomba de nêutrons!!!
Levando as mãos próximo ao coldre, o tenente fitou friamente o general.
- General! O que está tentando fazer?!
Como um raio, o general sacou sua pistola, o soldado não teria tempo de empunhar e engatilhar seu fuzil, por isso sua
única reação foi saltar em direção à porta e se proteger do lado de fora, deixando o monitor cair ao chão. O tenente
também reagiu muito rápido, chegou a empunhar, destravar e engatilhar sua pistola, mas um tiro no meio dos olhos
frustrou a reação, e ele caiu para trás, empurrando involuntariamente a porta atrás de si, que se fechou com um estrondo.
O general correu até ela e a trancou. Agora só restava ele e Rafaele, que estava aterrorizada, com as mãos na boca,
e demorou para conseguir dizer alguma coisa.
- Seu... Seu monstro! Você vai matar todos nós!!!
- SIM!!! VOU!!! E daí!?!? É o mínimo que merece esse povo ingrato!!! Depois de tudo o que fiz...
Por um momento, parecia que o general ia chorar, mas então um ódio insano se apossou de seus olhos.
- Eles não merecem... Não. NÃO MERECEM NADA!!!
- Vai matar seu próprio povo?!?!
- Um bando de miseráveis comunistas desgraçados!!! Me viraram as costas!
- Claro! Depois de todo esse terror! Essas prisões estúpidas! Essas torturas monstruosas!!! O que você queria?!?!
- CALE A BOCA!!!
Ele apontou a arma para ela, mas de repente, um estrondo bem maior sacudiu o ambiente. Saindo de um
estado de breve insanidade, o general correu para o computador caído ao chão e selecionou outra câmera. Viu então a mesma
luz avançando por um dos corredores, ainda sendo atacada por vários soldados.
O Anjo Estelar estava vindo. Os invencíveis super seres de DAMIATE eram mesmo reais, e havia um bem ali. Vindo diretamente
naquela direção. O que ele poderia fazer? O quê?
Então se recompôs. A Bomba! Era sua única esperança! Ele também tinha um anjo! Só precisava descobrir seu nome.
- Vamos... Vamos! Uriel? Não! Salatiel? Não!!! Azazel!? Não! Isso é um anjo caído! Az...
A revelação o atingiu em cheio. Era claro! Só podia ser isso. Gutierez não colocaria o nome de um
anjo divino numa senha que ativaria uma arma de destruição daquelas! Só poderia ser o nome de um anjo caído! Ele se virou
para interrogar Rafaele, mas um outro estrondo, desta vez sentido até os ossos, o apressou. E ele correu para o painel
digitando o único nome relevante que conseguiu se lembrar.
Esperou uma eternidade de alguns segundos, e então...
- NÃÃÃÃOOOOO!!!! NÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!!!!!!! AAARRRGGGGHHHHH!!!!
Aquele último fracasso fora demais para ele, por um instante enlouqueceu completamente. Tremia,
estava vermelho, e Rafaele, que por um instante respirou aliviada, voltou a entrar em pânico quando viu o general
vir em sua direção, com a arma apontada.
- Sua cadela!!! Eu te mato!!! Depois me mato!!! E está tudo acabado!!!
- Seu... Seu monstro! Demônio!!!
Rafaele se sentou no chão, chorando, o general se aproximando, com um olhar sádico, prestes a
matá-la, quando de repente, uma mensagem do controle da bomba chamou sua atenção.
- "...ATIVA INVÁLIDA. REPETINDO. TERCEIRA TENTATIVA CONSECUTIVA DE ENTRADA DE SENHA INVÁLIDA. VOCÊ AGORA TEM
DUAS OPÇÕES. AGUARDAR UM PERÍODO DE 24 HORAS PARA REINICIAR A SEQUÊNCIA DE SENHAS, OU UTILIZAR UMA QUARTA TENTATIVA.
NESSE CASO, O SISTEMA PERMITIRÁ UMA ÚLTIMA E IRREVERSÍVEL TENTATIVA DE ENTRADA DE SENHA QUE, SE VÁLIDA, ATIVARÁ
O CONTROLE DO DETONADOR, SE INVÁLIDA, DESTRUIRÁ O DETONADOR. REPETINDO, O SISTEMA PERMITIRÁ UMA QUARTA E ÚLTIMA TENTATIVA,
QUE, SE INVÁLIDA, DESTRUIRÁ O DETONADOR E INUTILIZARÁ O NÚCLEO DA OGIVA.
Então, com incrível versatilidade e rapidez, o general se recuperou, correu para o painel com os olhos arregalados, e
a esperança pareceu trazê-lo de novo à vida. Olhou para Rafaele, e então, mais forte do que nunca, teve uma revelação
radiante.
Não poderia ser um anjo caído qualquer. Tinha que ser o maior de todos. Ao ouvir Rafaele chamando-o de demônio, percebeu
aquilo que só poderia ser óbvio. Era o nome do primeiro anjo caído. Do maior de todos.
Só havia um problema.
- LÚCIFER!!! Tem 7 letras... E não termina em "EL"...
E então olhou para Rafaele, com uma força de vontade e uma sensação de ameaça e triunfo indescritíveis.
- Mas Lúcifer... Não é o nome original. Não é?
- Ah.... Eh...
- Tem um nome hebráico original, que também termina com "EL"... Eu sei que tem... Qual é?
- Eu...
A sequência de estrondos que se seguiu foi a mais violenta de todas. Era possível ouvir o enorme
tiroteio que ocorria a poucos metros dali, por trás de uma imensa parede de concreto e aço. Rafaele viu o general olhar
no fundo de sua alma. Parecia ler pensamentos.
- Eu me lembro... Seu pai uma vez me falou sobre isso. O nome hebraico de Lúcifer... É... É SAMAEL! Não é?!
- Aahhh...
Pela expressão de Rafaele, o general teve certeza de que tinha acertado. E Rafaele também.
Fatalmente seria esse o nome que seu pai escolheria para tal hediondo instrumento de morte.
- S-A-M-A-E-L...
Então o general se aproximou do teclado, totalmente resoluto. Não tinha mais nada a perder, e Rafaele
percebeu que sua vida, e a de seu povo, estava em suas próprias mãos. Rápida, mas silenciosamente, percebeu-se
fazendo algo sem sequer lembrar de ter pensado em fazer. Se agachou e pegou a arma do tenente assassinado.
Se atrapalhou ao retirar a pistola da mão do cadáver, e o general percebeu, apontou a arma para ela, e disparou.
Sabe-se lá com que forças, ela também atirou, e ambos caíram ao chão, baleados, mas para seu terror, antes de chegar
ao chão, ela percebeu que o general conseguira digitar a senha.
O que aconteceu então foi muito rápido. A parede foi pulverizada por uma luz intensa, deixando um rombo por onde um
ser luminoso do tamanho de um homem passou. Rafaele sentiu o sangue chegar-lhe à boca, mas ainda assim pôde contemplar
a cena. O anjo existia, os Anjos Estelares de DAMIATE eram reais. Era um rapaz jovem, mas alto e forte, que vestia roupas
brancas luminosas e folgadas. E ela se lembrou de uma passagem do Evangelho, que descrevia os anjos como varões em vestes
resplandecentes.
Se aquele anjo era de Deus ou do Diabo, ela não sabia, sabia apenas que era lindo. Apesar do estranho efeito que seus
cabelos e sobrancelhas brancas causavam. Não por serem grisalhos, mas por brilharem tanto quanto suas vestes.
O anjo foi até o painel da bomba, e ficou um tempo a contemplá-la. E então, calmamente, deu-lhe as costas e examinou o
general, que estava caído, com uma bala na perna, aparentemente fora de maior perigo, embora com muita dor. O anjo,
gentilmente, tirou-lhe a arma. E então olhou para Rafaele. E veio andando em sua direção.
Ele se ajoelhou perante ela, que começava a não mais enxergar, mas ainda pôde ver uma última coisa antes de sua visão
escurecer. Ela viu uma luz brilhar na testa daquele belo homem, e então, como um terceiro olho, surgiu uma esfera luminosa
azulada bem no centro, logo acima dos olhos, e mal sua visão escureceu, foi invadida por uma intensa luz branca. E ela
sentiu como se nascesse de novo.
No começo a dor, intensa. De repente, um alívio, também intenso. E por fim um prazer mais intenso ainda. Ela sentiu a bala,
que se alojara em sua coluna, retroceder e subir, até sair pelo seu ventre. Então sentiu um calor que parecia fazer cada
célula de seu corpo ser reconstruída. Olhou para sua barriga, e pôde ver a bala cair ao chão, e seu ferimento começar
a sarar, de dentro para fora, até que sua pele foi emendada por um raio azulado que partia da testa do anjo, enquanto
as mãos dele, que também brilhavam, tocavam seu corpo lhe fornecendo uma embriagante sensação de anestesia e prazer.
Foi um êxtase final quando um pulso de luz ainda mais intensa envolveu-lhe todo o corpo, e então o brilho na testa do anjo
se apagou, e a esfera azul submergiu em sua pele. Por um instante, ele lhe sorriu, ao mesmo tempo que seu cabelo e
sobrancelhas foram se apagando, até ficarem castanho escuros. Mas logo se acenderam de novo, quando o buraco que abrira na
parede serviu de passagem para alguns soldados, praças e oficiais, que contemplaram a cena inteira, e estavam tão fascinados
que não se atreveram a mais nenhuma ofensiva. Então, numa voz bela, máscula, divina e trovejante, o anjo falou.
- EM NOME DO IMPÉRIO AUSTRAL, COM O APOIO DAS NAÇÕES UNIDAS, DECLARO QUE A AMEAÇA NUCLEAR DESTE ARTEFATO ESTÁ NEUTRALIZADA!
E QUE O GENERAL CARLOS RAMOS ESTÁ DEPOSTO DE SEU CARGO AUTOCRÁTICO! EM INSTANTES, TROPAS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA,
FRANÇA E IMPÉRIO AUSTRAL CHEGARÃO À SUA COSTA PARA FORNECER APOIO AO CONGRESSO QUE ACABA DE SER REABERTO.
POR FAVOR. COLABOREM E EVITEM MAIS DERRAMAMENTO INÚTIL DE SANGUE!
E então ele se aproximou dos oficiais, que mesmo atemorizados, conversaram com ele. Rafaele, estava de pé,
sem saber o que fazer, e finalmente entendeu o que acontecera. Pôde ver no desespero dos olhos do general, que contemplava
o painel da bomba.
A última senha também fora inválida. Seu pai conseguira surpreender, e criar um enigma praticamente impossível de
solucionar. Pois ninguém seria capaz de adivinhar aquela senha, que o sistema, num curioso rompante de sarcasmo, agora
exibia, ao final da mensagem que confirmava a destruição do detonador e anulação da ogiva.
Podia ser uma ironia do destino. Uma queda dos fabricantes daquele artefato maligno de destruição, para o sadismo de revelar
a senha após a última e fracassada tentativa.
E ainda mais. Ela sorriu ao saber que seu pai fora muito ardiloso ao criar, contra todas as expectativas,
aquela tão Inusitada Senha.
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